diversidade e transdisciplinaridade em psicopatologia do desenvolvimento

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O conhecimento acerca das crianças com algum tipo de perturbação do desenvolvimento tem caminhado quer no sentido da segmentação quer da sua atribuição a uma multiplicidade de profissionais especializados. Primeiro estas crianças foram deixadas a cargo dos especialistas em educação, peritos em perturbações do desenvolvimento, ou em educação especial, a quem forma entregues como problema para ser resolvido por quem melhor se esperava que o poderia entender, numa perspectiva unifactorial. A primeira consequência deste movimento, foi que à ideia de Pessoa total e global se sobrepôs a de deficiente, ou de patologia, problema e limitação. O objectivo passa a ser a reabilitação, e esta seria a finalidade de toda a intervenção, ou conjunto das diferentes intervenções: resolver, minorar ou atenuar as consequências e implicações do problema num domínio especifico. Num segundo momento, foi a própria concepção de deficiência que se pulverizou face à diversificação e especialização dos saberes. Perdida a importância da noção de Pessoa, facilmente o, até aí, “deficiente” passou a ser atendido por múltiplos especialistas, cada um na área da sua especialidade e de acordo com as patologias ou as necessidades específicas. Os cuidados passaram a ser os derivados ou requeridos por essa patologia, sendo que tudo o mais deixou de ser considerado por se situar fora do âmbito daquele especialista particular.A segmentação disciplinar dos saberes relaciona-se, assim, directamente com uma forma de abordar, pensar e intervir sobre a realidade. Em que a Pessoa, no seu todo, é subalternizada pela lógica da segmentação em função dos saberes, práticas e técnicas. Numa época em que se debate o significado da inclusão, será importante retomar uma perspectiva holística, integrada e multidimensional de pessoa. A transdisciplinaridade oferece-se como caminho fundamental de ultrapassagem das limitações do conhecimento disciplinar e especializado, fazendo confluir na compreensão da criança, e nos trabalho que com ela fazem distintos profissionais, um corpo mais vasto, uno e coerente de conhecimentos.

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FRANCO,  V.  (2007)  Diversidade  e  transdisciplinaridade  em  psicopatologia  do desenvolvimento. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

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de  pessoa.  A  transdisciplinaridade  oferece‐se  como  caminho  profícuo  de ultrapassagem das limitações do conhecimento disciplinar e especializado, fazendo confluir  na  compreensão  da  criança,  e  no  trabalho  que  com  ela  fazem  distintos profissionais, um corpo mais vasto, uno e coerente de conhecimentos. 

1. O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR SOBRE O HUMANO

O  artigo  Segundo  da  Carta  da  Transdisciplinaridade  aprovada  no  Primeiro Congresso  Mundial  de  Transdisciplinaridade,  realizado  em  Portugal  em  1994, declara que “qualquer tentativa para reduzir o ser humano a uma definição e de o dispersar  em  estruturas  formais,  sejam  elas  quais  forem,  é  incompatível  com  a visão  transdisciplinar”(CRET,  1995).  Interessa‐nos  pois  compreender  o  modo como, no âmbito da psicopatologia e do desenvolvimento, uma visão ampla do ser humano nos permite ter dele numa renovada compreensão. 

1.1. Subjectividade, determinismo e psicopatologia 

Nascida  como  disciplina  organizada  no  início  do  séc.  XX,  com  Karl  Jaspers,  a Psicopatologia  delimita  um  domínio  da  experiência  humana  que  se  refere  ao pathos  inscrito  no  desenvolvimento,  ou  seja,  um  discurso  sobre  o  sofrimento psíquico. No entanto “cada contexto histórico‐político teve a sua psicopatologia, ou seja, as suas tentativas de ‘decompor’ o sofrimento psíquico nos seus elementos de base  para,  a  partir  daí,  os  compreender,  classificar,  estudar  e  tratar”  (Ceccarelli, 2005:471). 

Hoje  em dia, muitas  das  nossas  práticas  sociais  fazem‐se,  sobre  a  negação  do sofrimento, da dor mental e da subjectividade. Se alguém está triste, em situação crítica  ou  em  sofrimento,  de  imediato  se  recomendam  remédios,  tratamentos  e soluções  rápidas,  como  se  a  tristeza  e  a  dor  fossem  exteriores  ao  homem  e passíveis de ser removido da condição humana.  

Muitas vezes, o próprio psicólogo é instrumentalizado nesta perspectiva, sendo‐lhe  atribuída  a mesma  responsabilidade  de  erradicar  ou  evitar  o  sofrimento  e  a dor, através de técnicas objectivas e pragmáticas, assim se criando a representação social  de um profissional  que  evita  o  conflito,  a  dor mental,  e,  dessa  forma,  gera bem‐estar. Os grandes sistemas de classificação dos nossos dias, o DSM‐IV e o CID‐10,  recebem  a  grande  crítica  de  não  levarem  em  conta  a  subjectividade,  tanto daquele  que  classifica  como  daquele  que  é  classificado,  descomprometendo‐se, assim, do sofrimento psíquico e da sua compreensão. 

No  entanto,  a  Psicologia  assenta  sobre  a  inevitabilidade  da  existência  da  dor mental  e  do  conflito  interno.  Um  dos  contributos  essenciais  de  Freud  para  a compreensão  do  humano  foi  a  noção  de  conflito:  a  existência  de  uma  tensão dinâmica  entre  estruturas  ou  entidades. Noção  de  complexidade  que  se  situa  no 

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FRANCO,  V.  (2007)  Diversidade  e  transdisciplinaridade  em  psicopatologia  do desenvolvimento. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

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pólo  oposto  do  determinismo,  porque  fala  do  desenvolvimento  individual  para além das classes e categorias nosográficas, e da subjectividade do sofrimento que procura palavras para  se  expressar  e  suscita  a  escuta do outro,  terapeuta,  que o pode  ajudar.  “É  por  ‘falar’  que  a  dor  solicita  escuta;  escuta  essa  que,  sendo terapêutica, possibilita o recuo necessário para  transformá‐la em experiência. Na actualidade, entretanto, observa‐se um movimento cada vez maior no sentido de eliminar a dor – de evitar o contacto consigo mesmo ‐ do que para transformá‐la em experiência”(Ceccarelli, 2005:475). 

Outras  ilusões,  que  vão  no  mesmo  sentido,  assentam  sobre  o  determinismo biológico e genético. Começa a pensar‐se que, quando conhecermos todos os genes, teremos  pré‐tipificado  o  futuro  e  assim  saberemos  prevenir  as  doenças,  os comportamentos indesejáveis e o sofrimento. Como se os genes pudessem conter e explicar a nossa própria decisão. Esta procura de determinismo biológico ramifica‐se  em  diferentes  vias,  uma  das  quais  é  a  da  objectivação  á  custa  de  rótulos  e diagnósticos  pseudo  neuropsicológicos.  Muitos  rótulos  (como  disléxico  ou hiperativo,  por  exemplo)  tendem  a  ser  formas  de  dar  título  ao  que  até  aí  era apenas  descritivo  (criança  com  dificuldade  em  estar  quieto,  sossegado,  atento  e participativo) mas supostamente subjacente ao novo rótulo está uma explicação de tipo  biológico  ou  neurológico.  Assim,  grande  parte  dos  comportamentos  e problemáticas, multifatoriais,  passam a  ser doenças  e, de  imediato, passam a  ser entendidas  como  tendo  etiologias  orgânicas  e,  consequentemente, predeterminadas. 

O  risco  para  o  psicólogo  é  tornar‐se  numa  espécie  de  normalizador  social: aquele que resolve e elimina os resultados disfuncionais da nossa acção.  

Tudo isto assenta sobre a negação do mundo interno. Sobre negação de que há objetos  internos  que  marcam  o  nosso  sofrer,  prazer,  desejar,  suportar  as frustrações  e  viver  as  alegrias.  E  sobre  a  dor  mental  de  podermos  perder  e  de estarmos sós perante nós próprios. 

Um desafio renovado á Psicologia e á Psicopatologia é, assim, o de entendermos as  pessoas  no  seu  desenvolvimento,  na  construção  e  vivência  da  sua  inevitável subjectividade.  “Torna‐se  então  necessário  que  os  pressupostos  básicos  da Psicopatologia  sejam  submetidos  a  interrogações  sobre  as  suas  condições  de possibilidade.  Isto  significa  que  devem  ser  objecto  de  uma  ciência  primeira  que Fédida  denomina  Psicopatologia  Fundamental:  uma  psicopatologia  primeira, convocada  a  dar  conta  da  interdisciplinaridade  e  da  transdisciplinaridade presentes  nas  psicopatologias  actuais.  Fundamental  no  sentido  não  da fundamentalidade mas da  intercientificidade dos objectos conceptuais  (...) não se trata  de  uma  interdisciplinaridade  mas  de  transdisciplinariade  pois  campos diferentes, cada qual com os seus métodos, procedimentos e objectivos próprios, não  se  comunicam  facilmente”  (...)  “Na  Psicopatologia  fundamental  o  pathos manifesta  uma  subjectividade  capaz  de  transformar  a  paixão  em  experiência, servindo  a  existência  do  próprio  sujeito.  Para  Freud  as  neuroses,  perversões  e 

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psicoses são modos de subjectivação encontrados pelo sujeito frente a desmedida pulsional”. (Berlink, 2000). O pathos, se por um lado, causa dor, por outro lado cria subjectividade (Ceccarelli, 2005). 

1.2. As inquietações da infância e as inquietações sobre a infância 

Quando  se  tenta  erradicar  a  subjetividade  do  mundo  adulto,  as  crianças resistem.  Fazem‐no  demonstrando‐nos  um  dos  grandes  pilares  da transdisciplinaridade: que há diferentes níveis  da  realidade  (Henagulph,  2000)  e que  “a  realidade  significa  o  que  resiste  ao  nosso  conhecimento,  experiências, representações,  descrições,  imagens e  formalizações matemáticas”  (CRET, 1995). As  crianças  resistem às  nossas  tentativas  reducionistas  e  deterministas. Dão‐nos sinais, sintomas do seu mal‐estar. A criança sofre; nós, adultos, preferimos pensar que  fazemos  tudo  bem,  quando  fazemos  o  melhor  que  pudemos.  E,  de  novo,  a tendência  reducionista  e  normalizadora:  o  psicólogo  é  procurado  para, rapidamente, tratar. Essa a expectativa de pais e professores quando nos trazem as crianças para consulta ou terapia, como quem diz: ponha‐o bem e funcional, para que  tudo  possa  prosseguir  normalmente  e,  depois,  possamos  então  ser  pais  ou professores. 

A  hiperatividade  é  também  um  bom  exemplo  deste  domínio.  Antes  de  nos interrogarmos sobre a nossa insuficiência educativa e relacional, queremos tratar, medicando,  curando,  escudando‐nos  num  suposto  conhecimento  do funcionamento cerebral. Mas as crianças sofrem e mostram, de múltiplas formas, o seu sofrimento: às vezes sendo agressivas, agitadas, distraídas e agindo demais, ou de menos.  

Quando  investigamos  sobre  o  desenvolvimento  infantil  e  as  perturbações  do desenvolvimento,  admitimos  que  as  crianças  vivem  estas  conflitualidades  e  as expressam de múltiplas formas. Mas quais as inquietações sobre a infância? Numa sociedade  que  hipervaloriza  a  infância,  o  que  nos  inquieta  e  chama  a  atenção nelas? Quando começamos a achar que algo não vai bem no seu desenvolvimento? 

A  abordagem  da  realidade  faz‐se,  inevitavelmente,  a  partir  dos  quadros  de referência teóricos e técnicos que habitualmente utilizamos. Quando olhamos para uma  mesma  realidade,  as  formas  que  dela  emergem  aos  nossos  olhos  estão  de acordo  com  aquilo  que  nos  habilita  a  vê‐las:  a  nossa  experiência,  expectativas, valores, formação e personalidade. Estes diferentes níveis de realidade asseguram o progresso do conhecimento das diferentes disciplinas ou ciências. Tal progresso da ciência e dos saberes práticos assenta na possibilidade de segmentar o real de forma  a  melhor  podermos  lidar  com  ele,  de  o  conhecermos  mais  profunda  e minuciosamente e sobre ele produzirmos conhecimento. 

Ao nível da  formação e das práticas profissionais,  isto conduz a uma cada vez maior especialização em que cada profissional sabe cada vez mais do seu domínio, sempre  mais  restrito,  e  sabe  cada  vez  menos  dos  restantes.  Nessa  medida,  o 

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distanciamento em relação ao real total e global tenderá a ser cada vez maior por parte da generalidade dos profissionais. 

No  que  se  refere  ao  desenvolvimento  das  crianças  com  deficiência  ou  com algum  tipo  de  perturbação,  este  movimento  levou  a  que  fossem  entregues  a especialistas.  Primeiramente  aos  especialistas  em  educação  especial  ou  em perturbações do desenvolvimento, entregando o problema para ser resolvido por quem melhor o compreendesse, numa perspectiva unifactorial. 

A primeira consequência deste movimento foi que à ideia de Pessoa se sobrepôs a de deficiente, patologia, problema ou  limitação. A reabilitação, ou  terapia,  seria então  toda  a  intervenção,  ou  o  conjunto  das  diferentes  intervenções,  visando resolver a patologia. Tratava‐se de, num domínio específico, resolver, minorar ou atenuar  as  consequências  ou  implicações  do  problema.  Os  serviços  passaram  a organizar‐se  tendo em conta a especificidade da patologia ou da deficiência, e os técnicos  passaram  a  ser  chamados  em  função  do  contributo  trazido  para  a compreensão ou intervenção naquela patologia. 

Num  segundo momento,  foi  a  própria  concepção  de  deficiência  se  pulverizou face à diversificação e especialização dos saberes. Perdida a importância da noção de  Pessoa,  facilmente  “o  deficiente”  passou  a  ser  atendido  por  especialistas múltiplos, cada um na área da sua especialidade e de acordo com as patologias ou as necessidades específicas. Os cuidados que passaram a ser prestados são os que derivam dessa patologia e tudo o mais deixa de ser considerado por se situar fora do âmbito desse especialista.  

Note‐se  que  não  se  trata  de  uma  questão  de  terminologia  e  este desenvolvimento  conceptual não se alterou  substancialmente  com a mudança de designação  de  deficiente  para  criança  portadora  de  deficiência,  ou  para  a terminologia  mais  soft  de  criança  com  necessidades  educativas  especiais  ou  com dificuldades de aprendizagem. A segmentação disciplinar dos saberes relaciona‐se directamente com uma forma de abordar, pensar e intervir sobre a realidade. Em que a Pessoa no seu todo é subalternizada pela lógica da segmentação em função das  práticas  e  técnicas.  Apesar  de  tudo,  a  expressão  “pessoa  portadora  de deficiência”  remete‐nos  para  uma  abordagem  em  que  a  pessoa  readquire  o primeiro  lugar.  Esta  pequena  mudança  é  relevante  a  dois  níveis.  Situa  as necessidades e problemáticas ao nível dos direitos da pessoa, o que dá uma nova dimensão  às  questões  da  inclusão mas  também,  de  um modo mais  específico,  a todas as práticas e serviços prestados a essas pessoas. 

Um outro nível, aquele que agora nos interessa, remete‐nos para a necessidade de retomar uma perspectiva integrada, multidimensional de pessoa que reconheça a  sua  unidade.  A  questão  é:  quem  trata  da  Pessoa.  Sabemos  quem  cuida  dos aspectos motores, dos problemas com os dentes ou o estômago, das aprendizagens ou até das carências sociais específicas. Mas se a Pessoa é mais do que isso, quem é, ou são, os técnicos capazes de abordar e responder às suas necessidades? Sendo a 

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Pessoa  o  objecto  dos  cuidados,  o  valor  de  uma  intervenção  específica  (seja educativa  ou médico‐cirúrgica)  tem de  ser  sempre  avaliada  tendo  em  conta  este princípio. Claro que aos olhos de cada profissional pode ser a sua intervenção que se  afigura  relevante,  ou,  pelo  menos,  não  lhe  é  fácil  pensar  comparativa  e conjugadamente  a  premência,  importância  ou  significado  da  multiplicidade  dos “necessários”. Se pensarmos ainda que a Pessoa é ela mais os seus contextos e as suas  relações,  quem  pode  ser  o  profissional  capaz  de  cuidar  de  toda  essa complexidade?  Tal  exigirá  um  novo  profissional  ou  mais  uma  nova profissionalidade?  Certamente  uma  nova  prática  profissional  que  não  perca  de vista o todo e o multidimensional, que assente num conhecimento que ultrapasse o disciplinar.  Por  isso,  podemos  reencontrar  hoje  alguns movimentos  de  busca  da totalidade e de síntese complexa de cada pessoa. 

A necessidade de  trabalhar  com outrem, de ultrapassar o domínio disciplinar, surgiu  como  imperativo para um  trabalho deste  tipo. Cuidar das  crianças no  seu todo  exige  também  uma  perspectiva  de  desenvolvimento,  e  a  humildade  de reconhecermos  a nossa  inevitável  incompetência para  resolver  o problema  todo, ou mesmo a sua parte mais importante. E também para aceitarmos que tudo aquilo que possamos encontrar no quadro do nosso pensamento profissional é sempre, e tão só, uma parte desse problema ou da solução, e sempre delimitado pelo papel que os outros, família e mesmo os técnicos, possam ter. 

Quando hoje pensamos sobre a necessidade de, desde muito cedo, cuidarmos do desenvolvimento  das  crianças,  especialmente  daquelas  que  por  alguma  razão  o têm posto em causa,  temos de o  fazer a partir desta perspectiva. Sem a  ilusão de soluções  simples  e  milagrosas.  A  preocupação  com  a  intervenção  no desenvolvimento  infantil,  vai  ao  encontro  da  necessidade  de  perspectivas  de Pessoa  e  de  desenvolvimento  que  sejam  genuinamente  transdisciplinares.  A transdisciplinaridade oferece‐se como uma abordagem promissora e profícua para trabalho  em  psicopatologia.  Que  pode  ultrapassar  as  limitações  de  um  saber disciplinar, mas também oferecer uma metodologia de trabalho mais abrangente e integradora. 

1.3. Conhecimento transdisciplinar 

Embora  se  considere  que  o  surgimento  do  conceito  de  conhecimento transdisciplinar está ligado à publicação do artigo sobre unidade do conhecimento pelo físico Neils Bohor, em 1955, foi Piaget quem utilizou o termo transdiciplinar pela primeira vez, em 1972, num colóquio promovido pela Unesco, para dizer que se  pode  esperar  uma  etapa  superior  à  das  relações  interdisciplinares  que  será transdisciplinar,  a  qual  não  se  contentará  com  a  obtenção  de  interacções  ou reciprocidade  entre  pesquisas  especializadas  mas  se  situará  nessas  ligações  no interior  de  um  sistema  total,  sem  fronteiras  estáveis  entre  essas  disciplinas. (Iribarry, 2003). 

A  transdisciplinaridade  propõe‐se  trabalhar  naquilo  que  está  entre,  através  e além  das  diferentes  disciplinas,  ou  ciências.  Não  se  opõe,  portanto,  a  elas. 

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Alimenta‐se  da  investigação  disciplinar,  mas  vai  para  além  dos  limites  das disciplinas  existentes  e  cuida  também  das  correspondências  e  interfaces  entre diferentes campos de conhecimento 

O primeiro pilar da transdisciplinaridade é o de reconhecimento de diferentes níveis da realidade regidos por diferentes lógicas. Tem uma atitude não linear, nem multidimensional, mas “ uma abordagem á natureza que se sente confortável com a ambiguidade e o paradoxo, usando‐os como princípios criativos para estender o alcance  e  utilidade  da  actual  abordagem  reducionista  defendida  pela  ciência” (Henagulph 200?) 

O segundo grande pilar é a lógica do terceiro incluído “O nascimento da ciência moderna  e  contemporânea  trouxe  como  consequência  um  deslocamento  do estatuto  da  verdade  do  sujeito  para  o  objecto...Nós  nos  dirigimos,  na  busca  da verdade, muito mais  ao  objecto  que  ao  sujeito...esta  suposição  de  que  a  verdade opera  assim,  ou  seja,  que  está  absolutamente  colada  ao  objecto...permeia  a Psicologia  e,  portanto,  permeia  as  diversas  disciplinas  que  se  alimentam  dela.  E uma  vez  que  se  supõe  que  a  verdade  está  no  objecto,  quanto  menor  o  objecto, maior  o  nível  de  certeza  que  sobre  ele  se  pode  atingir.  Assim  é  que  surge  a fragmentação  que  vai  dar  nas  especializações...  É  por  isso  que  o  discurso  das especialidades  faz  a  resistência  à  interrogação  sobre  a  subjectividade.” (Jerusalinsky in Kupfer, 2000). 

O 3.º pilar o da complexidade e abre caminho para uma compreensão não linear nem determinista dos fenómenos e da realidade. 

Por  tudo  isto,  a  perspectiva  transdisciplinar  do  conhecimento  não  anula  a psicopatologia, ou psicopatologias, nem as diferentes perspectivas teóricas em que elas se organizam. A grande mudança que nelas provoca é a aceitação do carácter multidimensional da realidade, que coloca um limite ao próprio saber disciplinar. Na  Psicologia  tem  sido  preponderante  a  busca  de  uma  lógica  linear,  procurando relações  de  causa‐efeito,  no  que  poderíamos  chamar  uma  psicologia  limpa: racional, objectiva e esquemática,  tendendo a  ignorar os sujeitos, e procurando o funcionamento  das  variáveis  e  processos,  quase  sempre  deterministas.  A  maior parte  dos  estudos  são  deste  tipo,  assentando  numa  lógica  em  que  o  sujeito  está ausente e a ciência está na racionalidade do processo. 

Freud, como sabemos, havia trazido uma perspectiva distinta, multipolar: uma tensão  dinâmica  entre  opostos;  a  inevitabilidade  dinâmica  do  conflito,  mais  de acordo  com  uma  lógica  de  complexidade  (que,  mais  que  multifactorialidade,  é multidimensionalidade complexa). 

Podemos  concordar  assim  que  o  lugar  privilegiado  para  o  exercício  do  olhar transdisciplinar  é  aquele  onde  nos  encontramos  e  nenhum  outro.  O  olhar transdisciplinar  inclui  o  espaço  interior  de  cada  pessoa,  o  espaço  do  outro  ser humano e da natureza.  

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FRANCO,  V.  (2007)  Diversidade  e  transdisciplinaridade  em  psicopatologia  do desenvolvimento. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

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2. TRANSDISCIPLINARIDADE E TRABALHO DE EQUIPA

Para  além  de  uma  atitude  quanto  á  produção  do  conhecimento  em  geral,  a transdisciplinaridade concretiza‐se na dimensão prática do trabalho de articulação das diferentes disciplinas ou práticas profissionais e da produção de conhecimento técnico. 

Falando sobre o trabalho com crianças com perturbações do desenvolvimento, seja no quadro institucional de Equipas de Intervenção Precoce seja nos contextos hospitalares  ou  de  saúde,  a  transdisciplinaridade  reflecte‐se  no  domínio  do trabalho  de  equipa.  Uma  equipa  é  “uma  unidade  funcional  composta  por indivíduos  com  formação  especializada  e  variada  e  que  coordenam  as  suas actividades  a  fim  de  prestar  os  seus  serviços  às  crianças  e  famílias”  (Golin  & Ducanis, 1981: 124) 

A  forma  como  uma  equipa  que  trabalha  a  partir  da  psicopatologia  do desenvolvimento  se  vai  organizar  pode  ser  bastante  diversa,  tendo  em  conta  os contextos  de  trabalho  e  os  profissionais  (psicólogos,  médicos,  terapeutas, educadores) que as  constituem. Estes profissionais,  oriundos de diferentes áreas do saber, podem actuar em conjunto ou de forma individualizada com uma mesma criança,  numa  mesma  problemática,  consoante  o  modelo  de  intervenção  que  a equipa adoptou na sua prática.  

Inevitavelmente hoje, trabalhar com as perturbações do desenvolvimento exige uma  multiplicidade  de  saberes,  formações  e  intervenções  que  têm  de  agir conjugadamente.  Podemos  considerar  que  existem  três  grandes  modelos  de organização  e  trabalho  em  equipa:  multidisciplinar,  interdisciplinar  e transdisciplinar. 

Do mesmo modo que o conhecimento multidisciplinar assenta na produção das múltiplas disciplinas mas sem cuidar das suas relações nem as fazer cooperar, no trabalho  de  equipa,  também  reconhece  a  necessidade  do  trabalho  de  múltiplos profissionais para que a criança possa ser convenientemente cuidada. Profissionais que avaliem e  intervenham de acordo com a situação. No entanto o resultado da intervenção é mais o somatório das actividades individuais dos diferentes técnicos, que  tendem  a  trabalhar  e  a  tomar  decisões  isoladamente,  não  sendo  postas  em questão as  suas perspectivas pessoais, porquanto  se parte do princípio que  cada um  sabe  que  o  que  é  melhor  para  aquela  problemática.  A  orientação  que  cada técnico  vai  seguir  depende  da  sua  perspectiva  profissional  e  da  formação  que possui  e  cada  um  tenderá  a  tomar  decisões  e  a  trabalhar  isoladamente,  sendo  a interligação e a coordenação entre as acções e programas de intervenção bastante ténue.  Este  modelo  pode  conduzir  a  intervenções  ou  orientação  dos  casos eventualmente  contraditórias  ou  concorrentes,  sendo  difícil  a  definição  de prioridades, assim como faz com que seja difícil chegar a entender a criança na sua globalidade e unidade.  

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O modelo interdisciplinar é mais integrado que o anterior e corresponde a um nível da produção do conhecimento a partir da justaposição de disciplinas. Passa a existir uma estrutura formal de interacção, de cooperação e de trabalho de equipa. Os técnicos cooperam mas sem coordenação (Iribarry, 2003) 

A partilha de informação é mais frequente e assumida como fundamental mas o factor decisivo nas  tomadas de decisão quanto ao planeamento ou à  intervenção continua a ser a perspectiva de cada disciplina ou de cada especialista. Sendo cada profissional a fazer a sua própria avaliação e selecção de prioridades, a tomada de decisão quanto à orientação do caso tende a reflectir as relações de poder entre os técnicos  dentro  da  equipa  ou  do  serviço,  mais  do  que  as  reais  necessidades  da criança  ou  da  família.  Há  um  saber  que  prevalece  e  a  quem  cabe  a  tomada  de decisões que vinculam toda a equipa e os seus diferentes profissionais. 

Já  o  trabalho  de  equipa  numa  perspectiva  transdisciplinar  assenta  no reconhecimento mútuo das  posições  e  competências  de  cada um  face  ao mesmo objecto: a criança e o seu contexto de desenvolvimento. É por isso uma perspectiva que  requer humildade e disponibilidade por parte de  cada profissional  (Iribarry, 2003), porquanto assenta mais nas insuficiências e limites de cada disciplina e no que está para além dela, do que nas competências individuais 

Pressupõe, em primeiro lugar, a existência de um conceito de equipa mais forte, estruturado e dinâmico em que: 

O dinamismo de toda a equipa é vivido como elemento fundamental do próprio trabalho e da respectiva qualidade; 

É fundamental o suporte mútuo e a partilha de informação e conhecimento; pelo que é importante que os técnicos estejam familiarizados com as diferenças entre si – o que exige “uma legibilidade dos discursos “ (Iribarry, 2003:489). 

Cada  técnico  integra  conhecimentos  e  estratégias  que  ultrapassam  a  sua formação de base. É a transdisciplinaridade que gera “novos dispositivos”, ou seja, conhecimentos que resultam de uma discussão compartilhada acerca do problema que exige solução. Dispositivos derivados de um outro saber e aplicados a novas situações ou simplesmente derivados das limitações das soluções pré‐existentes. 

Total  co‐responsabilidade,  de  todos  os  membros  da  equipa,  nas  tomadas  de decisão e na avaliação dos resultados. Sem que um saber se sobreponha, mas numa relação horizontal. Centrando‐se fundamentalmente nas necessidades da Pessoa e não na especialização dos técnicos. 

2.1. Trabalho multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar 

No  funcionamento  concreto  das  equipas,  o modelo  transdisciplinar  vai  diferir bastante dos diferentes modelos de equipas multidisciplinares e interdisciplinares 

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na abordagem das várias dimensões da intervenção com as crianças, suas familias e  contextos.  Podemos  diferenciar  as  práticas  transdisciplinares  das  restantes  no que se refere às seguintes dimensões: 

a) Detecção e sinalização da patologia  ‐ O modelo  transdisciplinar assenta no  princípio  da  cooperação  e  articulação  entre  técnicos  e  serviços  na detecção  e  identificação  da  situação,  pelo  que  qualquer  que  seja  o profissional  que  faz  a  detecção,  em  vez  de  elaborar  o  seu  próprio programa  de  intervenção  ou  de  remeter  a  criança  para  múltiplas avaliações  procura  uma  entidade/equipa  que  possa  conjugar  as intervenções de uma forma mais global e que esse técnico pode, ou não, vir a incorporar.  

b) Avaliação e diagnóstico – No modelo transdisciplinar a avaliação é  feita por diferentes membros da equipa de forma compreensiva e global tendo em conta os múltiplos saberes sobre a criança, sobre o contexto e ainda os  deste  acerca  da  criança.  Evitando  repetir  processos  de  avaliação  e procurando  que  cada  observação  efectuada  produza  o  máximo  de informação sobre o desenvolvimento em geral e de cada uma das áreas de competência da criança, e usando técnicas transdisciplinares. 

c) Participação  das  famílias  no  processo  –  A  família  detém  um conhecimento sobre a criança que não pode ser desvalorizado pelo que participa  activamente  em  todo  o  processo,  Esta  participação  é  um elemento  fundamental,  levando  a  considerar‐se  muitas  vezes  que  a própria  intervenção  é  centrada  na  família.  Enquanto  que  nos  outros modelos  a  família,  mesmo  reunindo  com  cada  técnico,  ou  com  o representante da equipa, continua a ser sempre um elemento exterior às tomadas de decisão técnicas. 

d) Responsabilidade  pela  intervenção  –  Numa  perspectiva  de funcionamento  transdisciplinar,  todos  os  elementos  da  equipa  são  co‐responsáveis pela intervenção. Independentemente da equipa atribuir a um,  ou mais,  dos  seus membros  as  tarefas  concretas  de  intervenção,  é sempre a equipa que assume colectivamente a responsabilidade pela sua condução. Ao contrário do que acontece nas outras perspectivas, em que a responsabilidade é do técnico que faz a intervenção directa. 

e) Planeamento  da  intervenção  –  Enquanto  que  nas  perspectivas  multi  e pluridisciplinares  cada  técnico  é  chamado  apenas  a  planear  a intervenção  no  seu  domínio  específico  de  acção  e,  quando  muito,  a conjugá‐la  com  outros  interventores,  aqui  a  equipa  é  responsável  pela definição de um plano integrado, em que a família é igualmente chamada a  participar,  que  tem  em  conta  a  globalidade  das  necessidades  e  dos recursos  e  em  que  as  prioridades  são  definidas  em  função  da  própria criança e família. 

f) Implementação  de  programa  de  intervenção  ‐  No  modelo transdisciplinar  todos  os  técnicos  são  co‐responsáveis  pela implementação  do  programa,  independentemente  de  quem  o  executa. 

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Todos os técnicos têm permanentemente em consideração os objectivos definidos  para  a  intervenção,  havendo  um  responsável  pela  sua implementação que pode ser o responsável ou gestor de caso. 

g) Pressupostos  de  funcionamento  da  equipa  ‐  Todos  os  técnicos  estão comprometidos  em  ensinar,  aprender  e  trabalhar  em  conjunto  para desenvolver práticas e alcançar objectivos que ultrapassam os limites da sua  disciplina.  O  que  é  bem  mais  do  que  o  mero  reconhecimento  ou atribuição de espaço e valor às outras disciplinas. 

h) Comunicação intra‐equipa ‐ As equipas de cariz transdisciplinar apostam na  comunicação  e  partilha  dos  diversos  saberes,  integrando  os conhecimentos  e  estratégias  dos  diferentes  profissionais  através  de reuniões estruturadas e de uma ligação permanente.  

i) Aprendizagem  e  formação  dos  técnicos  –  A  aprendizagem  feita  no contexto da equipa e fora dele, tende a ser transdisciplinar, centrada nas problemáticas  e  não  na  formação  de  base.  Cada  um  aprende  com  os outros elementos da equipa ou a partir deles. 

j) Implicações organizacionais – A prática transdisciplinar aponta para uma organização  em  equipas  maleáveis  com  partilha  de  responsabilidades, sendo  o  responsável  de  caso  quem  articula  a  equipa  com  a  família. Fugindo assim à estrutura orgânica mais corporativa, por departamentos criados em função das especialidades e exigindo um funcionamento mais horizontal 

CONCLUSÃO

As  perturbações  do  desenvolvimento  apresentadas  pelas  crianças,  pela  forma como  interligam diferentes  factores,  dimensões  e níveis,  facilmente  transbordam em relação a uma perspectiva disciplinar. 

A  transdisciplinaridade  surge  como  uma  abordagem  promissora  para compreendermos  a  criança  como unidade multidimensional,  em que os  aspectos do  desenvolvimento,  da  educação,  do  sofrimento  emocional,  da  patologia,  das relações e dos contextos se apresentam como níveis de realidade que se interligam mas  não  se  anulam  nem  explicam  mutuamente  numa  lógica  linear.  Permite construir um conhecimento mais amplo, mais diverso e simultaneamente mais uno sobre as crianças com perturbações do desenvolvimento. 

Por  outro  lado,  a  transdisciplinaridade  coloca  desafios  à  prática.  Permite ultrapassar os limites do saber disciplinar na medida em que exige que os técnicos tenham uma atitude de partilha dos seus próprios saberes, de disponibilidade para dar  e  receber  informação,  o  que  coloca  exigências  ao  nível  da  utilização  de  uma linguagem comum e de terminologias e conceitos que possam ser partilhados por toda  a  equipa  e  pelas  próprias  famílias.  Passa  também  pela  atitude  face  à 

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comunicação  e  à  transferência  de  conhecimentos  e  competências  que  é,  sem dúvida,  a  atitude  fundamental  do  funcionamento  transdisciplinar  que,  perante  o saber do outro, exige um posicionamento de humildade, aceitação e valorização. 

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