divercidade - retratos da avenida paulista

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DiverCIDADERetratos da avenida Paulista

Tamirys Seno

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Gostaria de agradecer, primeiramente, aos meus pais por terem me ajudado tanto durante todo o período da minha graduação, e em especial minha mãe, que foi quem sugeriu a ideia deste livro-reportagem.

Sem eles nada disso seria possível.Também gostaria de agradecer à Aline Calahani, por ter me acom-

panhado durante todos os dias de entrevistas cansativos e frios pela Avenida Paulista.

Gostaria de agradecer a Giovana Penatti, Deborah Cabral, Bar-bara Jacinto, Melina Teixeira, Marina Crespo, Vânia Burocco, Juliana Nanes, Fernando Araújo, Bruno Navarini, Vitor Soares, Eduardo Colombo, República Xilindró, e os litros de coca-cola que me aju-daram durante o processo de produção do livro, assim como muitas outras pessoas que estiveram presentes indiretamente ao meu lado ao longo da produção e que se fossem citadas gerariam uma lista imensa.

E claro, devo agradecer ao meu orientador e amigo Ângelo Sot-tovia, por me guiar durante as etapas do processo de criação do livro-reportagem e por possibilitar seu desenvolvimento.

E, acima de tudo, gostaria de agradecer aqueles que me fizeram companhia durante toda minha graduação e que acreditaram no meu potencial para a realização desse projeto.

Todos sempre terão um lugar especial em minha memória e em meu coração.

Agradecimentos

DiverCIDADE: Retratos da Avenida PaulistaUnesp, Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Bauru, 2011

Fotografia e imagens: Tamirys Seno BarbozaDiagramação, capa e projeto gráfico: Tamirys Seno BarbozaRevisão: Ângelo Sottovia AranhaImpressão: Master Graphics

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Essa é São Paulo, a curiosa metrópole brasileira com sua 2ª maior frota de helicópteros do mundo, seus quase 30.000 milionários e 4 milhões de moradores de favelas. Uma cidade complexa onde ricos e pobres se tornam vizinhos.

São 864 mil transações de cartão de crédito por dia, 240 mil lojas e 79 shoppings. Se São Paulo fosse um país, sua economia seria a 47ª no mundo.

E a cada ano a cidade apresenta mais de 4.800 shows de teatro, com mais de 50.000 bares e uma vida noturna similar a Europa e Nova York.

Cerca de meio milhão de pessoas visitam a 25 de março todos os dias e 82% da população admite comprar produtos piratas.

E no meio de tudo isso pulsa a artéria principal dessa cidade. Uma avenida famosa por seus imponentes prédios, museus, cine-mas, travessas e tantos rostos desconhecidos. A avenida dos paulis-tas, criada em sua própria homenagem: A avenida Paulista.

A conhecida “terra das oportunidades” é um mosaico cultural da miscigenação que a cidade recebeu e ainda recebe de todo o país. Os personagens encontrados nela são diversos. Cada um em um con-texto diferente, com seu estilo, trejeitos, linguajar, mas ainda assim, anônimos.

Eu nasci em São Paulo, mas me mudei para o interior do estado ainda pequena, aos 6 anos de idade. Meus pais, aposentados, diziam que queriam criar a filha caçula em uma cidade tranqüila, longe do estresse e da violência da megalópole. Mas me lembro bem como foi o processo de adaptação. Mesmo com apenas 6 anos, eu já acha-va estranho as outras crianças não conhecerem shoppings centers, franquias de fast food, e nem mesmo out doors de propagandas, coisas que não existiam na cidade onde eu morava.

Mas ainda assim, o que mais me chamava a atenção, era a maneira

ais de 11 milhões de habitantes, 37 mil táxis, 15 mil ônibus, 82 km de linhas de metrô, 270 km de linhas de trem e mais de 8 milhões de carros. M

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Sumário

como as pessoas falavam. Puxavam o “R” como se quisessem falar em inglês. E até hoje minha mãe conta o dia em que ela foi chama-da na escola pela professora, a qual disse que eu havia chamado a atenção dela durante a aula, ao perceber que ela tinha pronunciado “barquinho” com o típico R do interior “caipira”.

Desde então sempre morei no interior de São Paulo, e estranha-mente, não adquiri o tal sotaque do “r caipira”. É como se a metró-pole nunca tivesse saído de dentro de mim ao longo de todos esses anos no interior do estado.

Cresci com uma infância inversa. Ao invés de passar as férias no interior, eu passava minhas férias em São Paulo, na casa de tios e primos, trocando as brincadeiras de rua pela televisão dentro do apartamento. E eu adorava.

Estar em São Paulo dá a sensação de fazer parte do mundo, de estar no centro das coisas, de se sentir englobado por tudo. Mais ainda é estar na avenida Paulista, um lugar fascinante que agrega todos esses valores da metrópole em um único lugar.

Sempre achei a Paulista fantástica. Dona de um universo próprio, com seus personagens tão distintos e curiosos ela sempre foi, pra mim, um local rico em cenas e sensações. E foi exatamente isso que despertou minha curiosidade para escrever este livro. Quis conhecer de perto os personagens anônimos que passam pela avenida mais famosa de São Paulo. Entender suas histórias, suas experiências, suas paixões e desamores. Queria entender suas diferentes visões sobre um mesmo local. Acompanhar as histórias dessas pessoas, até então, anônimas em seu ambiente e entender um pouco mais sobre esse universo caótico da metrópole, amado por uns e odiado por outros.

Conheci diversos personagens e, consequentemente, suas histórias e seus anseios. Pude acompanhar de perto o cotidiano dos “urbanóides” e entender um pouco da sua visão sobre a metrópole paulista.

Convido você a me acompanhar por essas andanças na avenida mais famosa de São Paulo, tentando compreender o real sentido da vida e da cultura urbana da maior cidade do país.

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Agradecimentos.................................................................................7

Apresentação.....................................................................................9

A Paulicéia: caos, poeira e pressa...............................................12

Culturama: arte, música e asfalto...............................................24

A Selva de Pedra: rostos, vidas e sonhos.................................62

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A PaulicéiaCaos, poeira e pressa.

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“No tempo o progresso chegouMeu trevo é samba raiz

‘Paulista viva’ virou, virouO centro financeiro do país”

Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco

Como entoa o samba-enredo de 2011 da escola de samba Camisa Verde e Branco, São Paulo sempre foi ícone de progresso no país, principalmente a avenida Paulista, o grande xodó dos paulistanos.

Em meio à correria da avenida, os “toc-toc” das solas dos sapa-tos nas calçadas se destacam entre o barulho dos carros, ônibus e conversas ao telefone celular das pessoas anônimas que passam por ali de segunda à sexta-feira, numa trilha sonora sem igual, sobretudo no horário comercial e frenético dos bancos e empresas presentes na Paulista.

É tudo ao mesmo tempo. E o tempo parece ser o bem mais val-ioso no maior centro financeiro da metrópole paulista e da América Latina. Poderia até me atrever a dizer que a avenida Paulista está para os paulistanos como a 5ª Avenida está para os nova-iorquinos, um dos principais símbolos da riqueza de Nova Iorque.

E envoltos por toda a pressa e passos apertados de quem passa por ali, nos deparamos com um refúgio em meio à selva de pedra de São Paulo: 48.624 m² de reserva florestal de mata nativa, com esculturas em mármore, bronze e madeira, bancos estrategicamente colocados para o descanso, clima úmido e refrescante, e uma calma-ria em que só se pode ouvir as distantes buzinas e roncos de esca-pamentos.

Esse refúgio é o Parque Tenente Siqueira Campos, mais con-

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hecido como Parque Trianon, uma espécie de ilha urbana para se fugir do estresse paulistano, inaugurado em abril de 1892, quando foi aberta a avenida Paulista. O parque ganhou esse nome em hom-enagem a um dos heróis da Revolta Tenentista, Antônio de Siqueira Campos, e ficou mais conhecido como Trianon graças ao atual Mu-seu de Arte de São Paulo (MASP), onde antigamente existia em seu lugar o Belvedere Trianon, ambiente que concentrava restaurantes, salões de festas e galerias para reuniões e encontros da alta socie-dade paulistana.

E foi bem ao lado desse refúgio, no coração de São Paulo, que conhecemos José Miranda Filho, de 60 anos, funcionário da banca de jornal “TRIANON” há 37 anos. Camiseta cinza, óculos de grau com lentes grossas por conta da idade, estatura mediana e barba bem feita. Seu José é um sujeito simples, como muitos outros “Jo-sés” de São Paulo, que assim como ele também vieram da Paraíba.

Filho de uma família que lhe deu mais 9 irmãos, José Miranda mudou-se para São Paulo em 1969, aos 19 anos, em busca de em-prego. Ano em que o homem pisava na lua e São Paulo – e o Brasil – sofria com o temido AI5 do governo militar. Começou trabalhando em construção civil na capital paulista, foi ajudante de pedreiro para conseguir ajudar a família nas despesas da casa. Depois trabalhou como vendedor de pipoca nas saídas de cinema da cidade e, por fim, conseguiu seu emprego na banca TRIANON, onde trabalha até hoje com muito gosto, segundo ele.

“Gosto de viver em São Paulo, mas já foi melhor, né?”, indaga ele. “Como eu já moro aqui há 40 anos, eu já acostumei. Só con-seguiria morar em uma cidade menor se fosse movimentada. Cidade parada não dá não”.

Enquanto isso, nossa conversa é interrompida por um cliente que entra na banca e pede um Marlboro azul.

José Miranda abre a banca impreterivelmente todos os dias, há 37 anos, incluindo domingos e feriados, a partir das 5h da manhã, e trabalha até as 13h. E às 5h da manhã já tem muito movimento por lá, garante.

“Ah, lá pelas 5h o pessoal já começa a chegar aqui. Mas é mais o pessoal que trabalha na faxina, empregados, porteiros, esse pessoal

“Cidade parada não dá não.”

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que tem que entrar mais cedo. A Paulista é comercial, então o pes-soal se concentra muito aqui, mas de final se semana é bem morto”, explica Seu José enquanto arruma as balas de caramelo na bombonière que fica sobre o balcão.

Quando pergunto se a Avenida Paulista tem um significado es-pecial para ele em sua história de vida de mais de 40 anos em São Paulo, a resposta é rápida e sem romantismo: não.

“A Paulista é uma avenida como qualquer outra pra mim. Já pas-sei tantos anos vindo todos os dias pra cá que não vejo nada de diferente nela. Mas o pessoal gosta daqui, todo mundo quer conhec-er a Paulista. Quando eu cheguei era tudo muito diferente: as ruas eram bem menores, o Trianon era aberto, não tinham essas grades, e agora só tá pior... muito assalto, mas não dá pra reclamar, porque em todo lugar hoje em dia também tem assalto”, conforma-se.

Para Seu José, os anos trabalhando na Paulista transformaram o lugar em um ambiente neutro, comum, como se fosse o arroz-feijão de todos os dias. Essa é uma visão um tanto quanto comum entre os que trabalham durante a semana na Paulista e já se acostumaram a vê-la tão de perto diariamente.

Como um dos mais importantes centros financeiros e comerci-ais de São Paulo, a avenida Paulista reúne as principais empresas e bancos do país em um único espaço. Carlos Eduardo, nascido em São Paulo, é um dos estagiários do Banco Safra, um dos dez maiores bancos do país, especializado em grandes empresas e pessoas com alta-renda. Aos 23 anos, é estagiário na área de financiamento do banco e leva uma vida estável na classe média-alta. Isso é perceptível logo de cara em sua aparência: roupa social, gravata azul combi-nando com a camisa também azul – aparentemente de grife – e um elegante suéter de lã preto por cima da roupa. O estagiário mantém vivo o típico estereótipo burguês, com cabelo e barba muito bem feitos, quase impecáveis, e sapatos lustrados.

Ao longo da conversa, Carlos se mostra muito sério e centrado – bem diferente de um jovem comum de 23 anos – intercalando braços cruzados e mãos no bolso ao longo de toda a entrevista.

Para ele, a Paulista é um importante ponto comercial e finan-ceiro, mas não vai muito além disso.

“Nasci em São Paulo e vejo a Paulista como um local de trabalho. Gosto de morar aqui pelas opções e diferentes oportunidades de emprego na minha área. Em uma cidade do interior eu não teria nenhuma opção de trabalho com bons salários como tenho em São Paulo, mas acredito que futuramente, depois de construir minha carreira, a melhor coisa a se fazer seja mudar para uma cidade do interior pela questão da qualidade de vida”, explica ele já progra-mando seu futuro.

Quando falo sobre as opções de lazer da avenida Paulista, Carlos assume – sem nenhum constrangimento – não conhecer nenhuma.

“Nunca fiz nenhuma opção cultural aqui nos fins de semana. Só venho aqui para trabalhar”, explicou.

Ao ser questionado sobre a constante diversidade de grupos so-ciais na Paulista, palco de tantas manifestações e eventos de difer-entes tribos urbanas, a resposta de Carlos é bem simples e objetiva, como quem faz uma conta de mais: “é notável”.

Passando pelo estereótipo burguês presente em boa parte das grandes e imponentes empresas da Paulista, vamos a baixo do MASP, o Museu de Arte de São Paulo, projetado pela arquiteta modernista Lina Bo Bardi, que era conhecida pela sua frase: “Tenho horror de projetar casa para madame, que infringe como será a piscina, as cor-tinas. Só projeto casas para pessoas que tenho relação afetiva”.

Sob o MASP há o famoso “vão-livre” de mais de 70 metros, onde as pessoas costumam se sentar, descansar, tomar sol, ouvir música ou simplesmente admirar a vista de boa parte de São Paulo de um lado, e o movimento das pistas da Paulista do outro.

Entre essas pessoas que matam o tempo por lá, encontrei Diego Rodrigues, jovem de cabelos cacheados, 29 anos e com um estilo muito urbano: calça verde com estampa xadrez, tênis, barba, uma tatuagem no braço e um sotaque arrastado indicando um pé em algum estado próximo ao Nordeste.

Olhando assim, ninguém imaginaria que Diego é funcionário do Banco Central de Brasília, bem diferente do estagiário do Safra com sua combinação de cores entre gravata e camisa.

Ao avistá-lo, senti que Diego parecia perdido em seus pensamen-tos, distante de tudo, sentado na mureta embaixo do MASP enquan-

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to fazia alguns rabiscos em um caderno. “Vim a trabalho pra São Paulo por 7 dias, daí tava de folga hoje,

eu sabia que era de graça pra ficar aqui no MASP e vim pra cá”, conta ele.

Durante a conversa, ele me diz que gosta muito de São Paulo, principalmente porque em Brasília não existe uma avenida como a Paulista:

“Ver uma única avenida com concentração de pessoas de diver-sos tipos, com muitas atrações, é uma coisa bem diferente. E é até normal pra uma cidade como São Paulo. Mas Brasília não é normal. Lá não tem um local como esse, onde tem muitas pessoas circu-lando. Aqui tem muitas tribos, muita gente diferente. A diferença é normal na Paulista, isso que eu acho interessante. Vou passando e vejo uma pessoa de cabelo verde? Normal. Vê um cara de terno e gravata, vê um mendigo, vê de tudo”.

Na metrópole, o inusitado e o exótico se misturam a outras difer-enças e geram uma multiplicidade de estilos e modos de vida, prin-cipalmente na avenida Paulista. Para Diego, isso dá a sensação de se fazer parte do ciclo de uma cidade como São Paulo, pulsando ao seu ritmo de metrópole.

Quando pergunto se nunca pensou em se mudar para São Paulo, Diego confessa sua paixão pela megalópole paulistana:

“Tô cogitando mudar pra São Paulo ou Rio de Janeiro. São ci-dades em que você sente que tá no mundo, no centro de tudo. Não sei explicar... é muito cosmopolita. Tem gente do mundo inteiro resolvendo coisas relevantes. Brasília não, Brasília é uma roça”.

São Paulo se destaca entre as outras capitais do país por agregar diferentes valores e costumes, por possibilitar oportunidades para as mais diversas áreas de atividades. Tudo o que se precisa se encontra em São Paulo e é isso que atrai tanta gente.

“Um lugar como são Paulo recebe influências de pessoas de to-dos os lugares do mundo, e acaba dialogando com toda essa mistura. A pessoa que mora aqui, ela sente que está em um lugar importante do mundo”, diz Diego.

O cosmopolitismo se expressa nas travessas da principal aveni-da de São Paulo, mostrando a capacidade do homem urbano de se

“Vou passando e vejo uma pessoa de cabelo verde? Normal.”

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adaptar em diferentes ambientes agregando grupos, personalidades e estilos sem perder sua autenticidade.

“Aqui é um lugar para circular, andar, mesmo sem nenhum obje-tivo específico. Parece que aqui tudo tem um sentido. Eu acho que é um lugar agradável, os fluxos de pessoas, coisas e pensamentos são tão grandes que só de você estar passando aqui você tá carregando alguma coisa também. Se você passa andando rápido na Paulista, parece que você tá indo resolver alguma coisa importante em algum lugar. E se você anda devagar, parece que você tá descansando por ter resolvido uma coisa importante. Nunca parece que você tá à toa”, reflete Diego.

Sobre a qualidade de vida e as expectativas para o futuro em São Paulo e nas grandes cidades, Diego ainda tem uma visão positiva.

“Eu imagino que seja sem carros. Chega, né? Já deu. Principal-mente numa área central de qualquer cidade. Eu imagino no fu-turo muita gente circulando a pé, muito transporte público, gente de bicicleta, poucos carros. Numa visão pessimista, imagino uma especulação imobiliária. Tipo, destruir isso aqui (apontando para o MASP) e construir mais um prédio enorme pra alugar escritórios. Talvez tenha cada vez menos lugares onde você possa se sentir à vontade, por questão de violência. Mas eu acredito mais na hipótese de melhorar”.

A verticalização da Paulista deu-se início em 1933, com a con-strução do primeiro edifício. Após essa data, com o crescimento econômico da região, a especulação imobiliária aumenta e durante as décadas de 60 e 70 a Paulista passa por um fortíssimo processo de verticalização; vão sendo demolidos os antigos casarões para da-rem lugar aos altos edifícios espelhados com dezenas de andares, para empresas e escritórios. E é nessa época que a avenida Paulista assume oficialmente seu papel como centro financeiro e comercial de São Paulo.

Para Diego, a avenida se transformou não só num centro impor-tante, mas em um ícone para a cidade.

“Acho que a Paulista oferece uma opção maior de cinemas e te-atros. Me dá a sensação de que é um lugar significativo e simbólico não só pra quem passa aqui, mas pra quem administra também”.

Um grande ícone de uma cidade com um significado especial para quem o conhece. A Paulista tem uma magia que envolve os turistas e empregados que transitam por suas calçadas, e cria um ambiente único com tantos fatores que parecem fugir aos nossos olhos. É preciso ficar atento para nada passar despercebido dentro da selva de pedra.

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CulturamaArte, música e asfalto

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E 27DiverCIDADEEm frente ao portão do parque Trianon, muitos param

para descansar na boa sombra ou aproveitar o tempo que resta no horário de almoço em local arborizado.

E bem ali é o lugar onde Fernando William, mais conhecido como Fernando “Loco”, trabalha como artista de rua. Apresenta seus acordes de guitarra para quem passa por ali entre os ruídos tão comuns de buzinas e escapamentos da avenida Paulista.

Nascido na capital paulista e criado em Itanhaém, Fernando tem 20 anos, mora há um ano e meio em São Paulo e mostra seu trabalho na Paulista.

“Toco violão, guitarra, toco no busão, no metrô, no cotidiano”, diz ele sorrindo com os dentes amarelados, provavelmente pelos anos de cigarro. “Eu gosto do que faço, e não é nem pelo dinheiro, é pelo prazer da música mesmo. Tipo, de não parar de tocar, tá ligado? Daí eu associei isso a um trabalho”, conta ele enquanto afina sua bela guitarra amarela e preta no colo.

Para ele, e para muitos artistas de rua de São Paulo, a Paulista é como uma segunda casa, um lugar onde existe a liberdade para mostrar sua música e sua arte graças à grande mistura de estilos ur-banos encontrados na metrópole paulista.

“Tipo, foi em São Paulo que eu me criei como artista de rua há pouco tempo, mas o único lugar que me acolheu quando eu tive problemas foi aqui”, confessa ele. “O legal é que aqui você vê gente de todo o tipo pra todo lado, um lugar muito movimentado... tem o MASP, o Trianon, tudo envolvendo a cultura”.

Na avenida Paulista a cultura sempre foi parte essencial. Compõe sua importância e história, começando com os antigos saraus no Belvedere do Trianon (atual MASP), com seus restaurantes, mesin-has de mármore, cadeiras de ferro trabalhadas detalhadamente no estilo rococó, que se tornou o berço da Semana de Arte Moderna em 1922.

“Pra mim, a Paulista tem dois significados, o primeiro é como um ambiente de trabalho, e o segundo como minha segunda casa. Eu amo aqui! Tudo é lindo demais!”, conta ele sorrindo por se sentir tão acolhido em meio a mais de 10 milhões de habitantes.

“Cidade, santidade urbana, intensidade humanadispersão -concentração de tudo que se anula

reforçando a afirmação de vida-ebulição”Fernanda Abreu

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“O pessoal daqui é muito legal, gente boa, e a Paulista tá sempre fazendo alguma coisa envolvendo cultura. E onde tem arte e cultura eu quero tá dentro”.

O sol da tarde já reinava forte quando Fernando começou a con-tar sua história em frente ao portão do Parque Trianon. Mas parecia que isso não atrapalhava em nada seu estilo: sobretudo preto, camisa branca, calça e coturnos de couro pretos, óculos escuros e barba rala. Quase uma versão paulistana de Raul Seixas, um dos grandes ídolos de Fernando.

Quando perguntei o que o fez querer sair do litoral paulista e es-colher o caos da cidade grande, ele me responde: “Ah, é uma longa história”, e sorriu para mim como quem já sabia que eu iria gostar do que ele iria me contar.

“Eu tocava numa banda, e com o tempo a banda acabou. Daí pensei ‘Tô de saco cheio, quero me aventurar’, vim pra São Paulo e tô aqui”.

São Paulo é o local ideal para quem – como Fernando – quer se aventurar, buscar novas oportunidades e diferentes rumos na vida, como uma grande mãe que acolhe a todos que chegam de todos os cantos do país. Mas, claro, nem tudo seria fácil para ele.

“Desde o primeiro mês eu já comecei trabalhando como artis-ta de rua, mas não foi fácil. No começo houve muitos problemas, como polícia reclamando por causa do som, vizinhos... o único lugar em que eu não tive problema pra trabalhar foi aqui na Paulista. Na Praça Deodoro, mesmo (referindo-se à famosa praça do centro de São Paulo), me chutaram de lá”.

A vida dos artistas de rua em São Paulo tem sido cada vez mais difícil, principalmente depois da Operação Delegada, criada em ou-tubro de 2010 pela Polícia Militar e pela Prefeitura de São Paulo, a qual proíbe qualquer tipo de atuação ou manifestação artística que receba doações do público na avenida Paulista.

Conversei com Fernando um mês antes da Operação começar, e ao retornar à Paulista em dezembro de 2010 não consegui encontrar nenhuma atuação de músicos, atores, estátuas vivas e nem mesmo do próprio Fernando “Loco” pela avenida.

A princípio, a prefeitura argumentava que os artistas não pode-

riam vender produtos (como CDs próprios ou artesanatos) e nem receber por suas apresentações ao público. Mas, após manifestações pela avenida, o posicionamento da prefeitura mudou e muito. Se-gundo nota à imprensa, a prefeitura diz que apenas proíbe a venda de produtos, mas que os artistas têm total liberdade para se apresen-tarem e receberem doações do público que passa pela Paulista.

Porém, ainda assim a quantidade de artistas de rua que se via na Paulista não voltou a ser a habitual, por conta do preconceito e mui-tas vezes do próprio medo das autoridades. Mas todos sabem que, por mais dificuldades que enfrentem eles não desistem.

“É muito bom tocar aqui, embora ainda role um preconceito. Tem gente que se estressa por qualquer coisa, mas eu encaro como um trabalho normal. Eu já me acostumei a aturar esse tipo de coisa, tanto pra sobreviver quanto pra continuar fazendo o que eu gos-to. Mas mesmo assim eu conheci muita gente legal aqui, que virou parte da minha história. Não sei explicar, a Paulista é foda”, con-fessa Fernando, mostrando todo o seu amor pelo trabalho que faz na avenida.

Fernando “Loco” representa o pensamento dos tantos artistas que veem a Paulista com olhos românticos, como um lugar único onde qualquer um pode mostrar sua arte sem ser repreendido ou julgado pelos preconceitos comuns da sociedade.

“Não tem dinheiro nenhum que pague o prazer de tá tocando aqui e chegar alguém pedindo pra tirar uma foto. Você vê o sorriso na cara das pessoas, uma coisa espontânea, verdadeira, pura. A gente se sente, por esses segundos, um pouco importante, e é isso que me faz acordar todos os dias e vir pra cá pensando em tocar de novo, tentar outra vez”.

Fernando mostra como um lugar pode motivar a vida de uma pessoa e fazê-la acreditar mais no futuro e em seus próprios sonhos e ideais. Algo que é cada vez mais difícil perante às dificuldades da vida na metrópole.

“Particularmente, eu tenho um sonho realizado aqui, cara. Essa é a minha alma, eu sem a minha música não sou nada”, conta ele.

A Paulista sempre foi palco para manifestações, tanto artísticas quanto políticas. Um local marcado por comemorações e protestos,

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propondo a diversidade entre os pontos da cidade. Não há como esquecer de manifestações importantes como a marcha negra e anti-racista que reuniu 20 mil pessoas, ou a primeira Parada do Orgulho GLBT (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis e transex-uais) em 1997. A avenida Paulista sempre foi – e provavelmente sempre será – o símbolo do coração de São Paulo e do seu capital-ismo. Tudo o que acontece lá é visto e ouvido por todos.

Enquanto converso com Fernando e ele afina a sua guitarra ao lado de uma árvore, as pessoas que passam parecem perceber sua presença e começam a se interessar pelo que acontece. Alguns sen-tam afastados e ficam observando, enquanto outros param em pé mais próximos de nós. Talvez seja esse o grande chamativo da Pau-lista, um local onde tudo de mais diferente pode acontecer simulta-neamente, como uma artéria central de um coração que recebe todas as veias de São Paulo.

“A cada dia esse lugar cresce, cresce e cresce. Não pelo fato de ser o metro quadrado mais caro de São Paulo (girando em torno de quase 10 mil reais), mas porque a Paulista é o pedaço de São Paulo que não para, cara! A gente tá sempre inovando, sempre mudando. E o novo é bom! O novo traz dinheiro, e o dinheiro traz melhorias e reformas, e aos poucos a Paulista vai ficando cada vez mais bonita”, conta Fernando com esperanças de melhora para o seu local favorito de São Paulo.

A avenida cresceu tanto que se tornou impossível falar de São Paulo sem falar da Paulista e de seu desenvolvimento. Serve como uma vitrine do progresso e da diversidade cultural na metrópole.

“Sinceramente, eu não me imagino morando em outra cidade”, confessa Fernando. “Eu fui criado a minha vida inteira vendo São Paulo pela TV, mas agora não é mais uma televisão, agora é real, tá ligado? Eu tô aqui”, comemora ele.

Muitas pessoas, de todos os cantos do país, também sonham es-tarem em São Paulo, quase uma Hollywood brasileira onde os sonhos podem se tornar realidade e todos podem ter sua oportunidade.

“Eu conheço muitas pessoas que gostariam de estar aqui no meu lugar, não pelo prazer de tá tocando, mas por estar pisando aqui, no lugar mais maravilhoso de São Paulo. Sempre fui apaixonado por

“A cada dia esse lugar cresce, cresce e cresce. Não pelo fato de ser o metro

quadrado mais caro de São Paulo, mas porque a Paulista é o pedaço de

São Paulo que não para, cara!”

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essa cidade”, conta Fernando com um sorriso sincero de quem se sente escolhido pela capital.

São Paulo abriga toda a miscigenação de culturas e pessoas de todos os estados do Brasil. Mas, com o crescimento exacerbado de uma megalópole global, a cidade não consegue suprir sua própria demanda em alguns aspectos, principalmente no que se refere às moradias mais distantes, como me conta Fernando.

“Eu moro numa quase periferia, e dá pra prestar atenção nas diferenças. Não porque lá é mais pobre e aqui é mais rico, mas muita gente acha que jogar lixo na rua é tranqüilo, porque ‘ah, a prefeitura vai pagar, a prefeitura vai arrumar’. É o típico negócio de ficar pen-sando que se você votar no fulano ele vai melhorar todo o Brasil sendo que você não mexe um palito pra melhorar a sua parte. Eu digo isso porque aprendi muita coisa aqui, tanto coisas boas quanto coisas ruins. Não é porque aqui é tudo bonito, cheio de gente que não tem maldade. Infelizmente, tem maldade por toda a parte”.

A maldade faz parte dos grandes centros, assim como a pobreza e a riqueza andam juntas, as pessoas estão sujeitas aos problemas de uma cidade que suporta – como quem carrega um peso nas costas – mais de 10 milhões de pessoas todos os dias. 10 milhões é muito. Mas a realidade mostra que é o dobro disso, 20 milhões. Número estimado de habitantes na região metropolitana de São Paulo, que agrega 39 municípios da região da capital paulista.

Embora existam os problemas que a maioria, ou os 20 milhões de habitantes dessa região devem conhecer, Fernando ainda con-segue ver – com os olhos românticos de artista – o lado bom.

“Mas aqui tem muita cultura, muita gente a fim de fazer coisas legais. É muito bom passar aqui de terça-feira e ver o pessoal no maracatu em baixo do MASP. Sempre trombo com alguém com um violão, um bongô. Tem sempre alguém a fim de fazer alguma coisa legal por aqui. Foi o mundo da música que me acolheu aqui”.

A Paulista sempre teve significado especial para os artistas, músi-cos e atores, que veem a avenida como um grande símbolo cultural da cidade, um único lugar que reúne todas as características culturais de São Paulo e se torna palco de liberdade de expressão para todos os credos e tribos.

A maldade faz parte da metrópole, assim como a pobreza e a riqueza.

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Cinema, teatro, dança, música e restaurantes. Tudo unido em um mesmo local, como um agregador responsável pelo mosaico cultural de São Paulo. Desde o maracatu das terças-feiras no MASP até os esqueitistas que andam pelas calçadas da avenida de madrugada. A Paulista representa uma diversidade sem limites.

E assim como Fernando Loco mostra seu trabalho a quem passa pela Paulista, outros também buscam divulgar o que fazem ali. É isso que Cíntia Gimenez e Eric Nascimento buscam para mostrar o projeto de teatro em que trabalham, usando um método válido desde o no século XII: a boa e velha panfletagem.

Cruzei com eles próximo ao MASP, quando entregavam panfle-tos aos que passavam. Chamavam a atenção por estarem vestidos como artistas circenses, com muita cor e brilho em suas roupas no meio de uma de quarta-feira cheia dos ternos e gravatas típicos da avenida Paulista.

Cíntia tem 19 anos, nasceu em São Paulo e sempre gostou muito da cidade, até que algumas experiências a fizeram repensar um pou-co o modo de vida da metrópole.

“Sempre fui apaixonada por São Paulo, e eu não sairia daqui por nada até eu passar um mês no interior e ver todas as desvantagens de se morar aqui”, conta ela aparentemente surpresa com sua própria descoberta.

“A qualidade de vida aqui é muito comprometida. Mas, ao mesmo tempo, tem uma enorme variedade de tipos de pessoas, aqui você encontra gente de tudo quanto é jeito diferente. É tanto de tudo que acaba neutralizando, entende? É uma variedade muito grande de qualquer coisa”.

É tanto ao mesmo tempo que o diferente passa despercebido aos olhos. O diferente é neutro, é normal, é o cotidiano em São Paulo. A sensação de liberdade se junta ao anonimato proposto pela metrópole urbana, criando a sensação de poder observar sem ser observado por trás de tantas pessoas que passam e mal se olham.

“A Paulista é a avenida que representa São Paulo, até pelo próprio nome dela, né?”, ri Cintia de seu raciocínio óbvio.

“Pra mim, a Paulista é ao mesmo tempo um centro comercial, residencial e cultural. E não é elitizado, é acessível para toda a popu-

lação. E eu senti muita falta disso no interior. É importante pra toda a população ter arte no dia-a-dia. Eu penso em estudar no interior, fazer faculdade lá, e acho que eu me adaptaria facilmente, embora eu tenha um perfil muito paulistano. Sou meio desbocada mesmo”, conta ela com um sotaque forte no R e no Ê, gesticulando agitada-mente as mãos como boa paulistana que é.

O paulistano tem esse perfil apressado, workaholic, muitas vezes até estressado. Diferente do carioca malandro que tem a praia logo ali pra relaxar, ou do mineiro que tem o seu sossego característico. O ambiente de metrópole faz de São Paulo – e da Avenida Paulista – um lugar imponente que marca presença.

“Aqui tem muito barzinho, balada, tem muitas opções. E é aces-sível porque tem transporte perto, é fácil de chegar. Sempre tem como voltar. Aqui passa ônibus de hora em hora de madrugada, en-tão eu posso voltar a hora que eu quiser sem depender de um carro”, explica Cintia enquanto arruma – sem muito sucesso – os panfletos de divulgação do projeto de teatro em que trabalha.

Quando pergunto se ela não sente medo de andar pela Paulista durante a noite por se menina, e de sofrer algum tipo de violência, ela sorri com tranqüilidade e diz que se sente segura.

“E eu acho super seguro de madrugada, mas a segurança de-pende de alguns fatores pessoais, da minha postura, de ficar ligeira, de saber onde eu tô, como eu tô. O bandido não assalta quem ele quer, ele assalta um alvo fácil”, explica ela se mostrando menos in-ocente do que aparenta sua idade.

A Paulista é considerada uma das avenidas mais vigiadas de São Paulo, com guaritas em toda a sua extensão, cerca de 200 PMs fazen-do rondas e sistema de câmeras de segurança. Mas, ainda assim as estatísticas dos três distritos policiais que atendem o local (o 4.ºDP, na Consolação; o 5.º DP, na Liberdade e o 78º DP, nos Jardins) mostram que a segurança não vai tão bem como Cintia acredita.

As três DPs informam que entre janeiro e março de 2011 foram registrados 888 roubos no local e 2.717 furtos, cerca de 30 por dia. Os números são mais que o dobro dos registrados no mesmo perío-do do ano passado. Além dos furtos e roubos, a Paulista também se tornou palco de casos de homofobia, como o dos três estudantes

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que foram agredidos em novembro de 2010 ao serem supostamente confundidos com homossexuais.

A Paulista se torna um ambiente atrativo para os bandidos por conta de sua movimentação e pela freqüência da classe média-alta nos bares e restaurantes das proximidades. Mas Cintia parece descr-ente dos números das estatísticas.

“Aqui, de madrugada, tem muita gente que vem pra balada e bar-zinho É bem iluminado, tem boa fiscalização, tem muita viatura, muito policial”, conta.

Talvez Cintia seja uma menina de sorte e, para sua felicidade, ainda está fora dos números de registros de furtos e roubos do local. Para ela, ainda vale a pena visitar a Paulista mesmo assim.

“Muitos momentos me marcaram aqui. Mas, teve uma vez em que a gente decidiu vir pra cá com a maior galera, com violão e não sei o que lá”, fala ela fazendo mais um gesto brusco com as mãos que quase batem no gravador que estou segurando. “E a gente veio sub-indo a Paulista brincando, cantando, fazendo palhaçada, um monte de brincadeiras, se divertindo mesmo. Aqui é um lugar confortável, tem pessoas bonitas, interessantes, que tem vidas parecidas com as nossas. Tem violência, tem poluição, tem desgaste físico e mental? Tem. Mas tem arte, tem cultura, tem transporte, tem as pessoas que te ajudam a acumular conhecimentos ou trocar experiências.”

Eis a grande vantagem da metrópole: o constante fluxo de pes-soas e sua troca de informações, muitas vezes involuntárias. Seja no caminho para o trabalho, em um bar, no metrô, na fila do cinema ou da padaria. Quando você entra na metrópole está, involuntari-amente, sujeito a tudo dentro dela, incluindo suas personagens reais, uma parte tão rica e única desse local fantástico.

“Vale muito a pena morar aqui”, diz Cintia. “É o tipo de coisa que você não encontra no interior, porque lá é tudo mais padroni-zado. Geral pensa igual, geral faz a mesma coisa. Aqui em São Paulo as pessoas têm a mente mais aberta para os assuntos, coisa que no interior não tem. Ou você é totalmente a favor de alguma coisa ou você é completamente contra. É uma galera meio bitolada com um mesmo pensamento que vem passando de geração pra geração. São pessoas que não têm muita capacidade de mudar e de ampliar os

pensamentos e os horizontes”, argumenta ela, explicando sua visão – talvez preconceituosa e talvez precipitada – do interior do estado.

Cíntia tem apenas 19 anos e tem esse pensamento, possivelmente bem diferente de outra jovem de 19 anos de uma cidade do interior. Cintia se mostra desinibida e desbocada, como ela mesma se de-screve. Os olhos são grandes, dando a impressão que nada se deixa passar em branco por eles, e o sorriso é aberto, sincero. A jovem chama a atenção de quem passa pela calçada da avenida com sua car-tola vermelha no topo da cabeça com um belo vestido rodado cor de rosa. Parecendo que acabou de sair de dentro de um espetáculo de circo.

Ao perguntar para Cintia sobre os panfletos que distribui para quem passa pela avenida, ela responde:

“Tenho muito amor por esse projeto e quero ver isso aconte-cendo! Nosso objetivo é trazer benefícios para a sociedade. Estamos panfletando para divulgar o espaço em que a gente trabalha para convidar as pessoas a participarem dos cursos e das aulas oferecidas lá”, explica Cintia.

Quando pergunto por que escolheram justamente a avenida Pau-lista como ponto de divulgação do projeto, ela confessa mais uma vez a sua simpatia pelo lugar.

“Escolhemos a Paulista pra fazer a divulgação porque imagina-mos que o público que circula por aqui já gosta ou pelo menos se interessa pela arte. E eu me sinto à vontade aqui, é como se fosse a minha casa”, sorri ela.

Junto de Cíntia na divulgação do projeto está Eric Nascimento, fotógrafo, 23 anos, também natural de São Paulo. Não pude ver seus

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olhos, pois estavam escondidos atrás dos óculos de sol em formato retrô, meio anos 80.

Assim como Cintia, ele parecia ter surgido de um espetáculo de circo, vestindo um paletó amarelo revestido com lantejoulas muito brilhantes e, assim como ela, uma bela cartola na cabeça, como um anfitrião que recebe seu respeitável público.

“Eu amo essa cidade. Sou apaixonado por ela”, diz ele, já ras-gando sua paixão por São Paulo sem enrolação. “É tudo lindo, tudo fácil, tudo é perto. Eu pego o metrô onde eu quero, ônibus quando eu quero. E tem pessoas lindas. É um lugar muito bom. Pra mim, tem mais coisas boas e às vezes até o que é ruim pra mim é bom”, conta Eric, rindo do seu excesso de otimismo.

Talvez seja esse o grande segredo para morar na metrópole: a leveza do otimismo. Para viver em uma cidade de 10 milhões de habitantes cheios de pressas e vontades, deve haver muito otimismo no coração.

“Se fosse pra eu morar em outro lugar, seria só no exterior, fora do país”, conta Eric. “Aqui é o melhor lugar para sair de final de semana. Gosto de sentar com meus amigos, conversar, tomar minha cerveja, porque a Paulista nunca dorme.”

Eric tem razão. A Paulista nunca dorme. Suas luzes estão sem-pre acessas e, quando cai a madrugada e o barulho do trânsito se ausenta, ele é logo substituído pelos risos, conversas e músicas dos

bares ao redor da avenida. Principalmente pela famosa Rua Augusta, aquela de Roberto Carlos, com carro sem breque, sem luz e sem buzina.

A rua mais boêmia dos arredores da Paulista, repleta de estilos, bares, botecos, night clubs em neon e prostitutas ao lado de fashioni-stas hypes do momento.

A famosa Augusta que liga os Jardins ao centro da cidade; con-hecida antigamente pela estética chique da Jovem Guarda com lojas e boutiques sofisticadas; passou por uma grande transformação nos anos 70 com o surgimento dos shoppings centers e a diminuição da sua clientela. Sua área passou a ser tomada por prostíbulos e boates de strip tease. E foi assim até o começo dos anos 90, época em que a Augusta ganhou bares e boates de rock alternativo, transformando o ambiente em um local um pouco menos promíscuo.

Hoje, a rua agrega diversas tribos da cidade, desde prostitutas ro-dando bolsinhas até moderninhos underground, emos e patricinhas do Alphaville. A Augusta reúne todas as caras da juventude paulistana em seu trecho central com 52 bares, 18 baladas e 16 restaurantes.

Sábado à noite, a rua se torna um formigueiro humano, com grupos aglomerados em frente às portas das casas noturnas e bares, ocupando as calçadas e muitas vezes até o meio da rua, onde os mo-toristas enfrentam um pouco de dificuldade para passar em algumas noites.

A mistura de estilos é a principal característica da Paulista, mas ao descer a Rua Augusta percebemos isso ainda mais. Enquanto se vê um casal homossexual, também vemos playboys atrás de um progra-ma fácil pelas esquinas. A Augusta é o exemplo vivo da convivência pacífica entre as diferentes tribos e estilos de uma mesma geração de São Paulo.

Eric sabe muito bem disso e também confessa seu amor pela travessa da Paulista.

“Eu até já trabalhei aqui na Paulista e foi o melhor emprego que eu já tive. Era todo mundo simpático demais, todo mundo muito legal, e a gente saia do escritório e ia em um barzinho lá na Augusta, geralmente de quarta, quinta e sexta”, conta ele rindo, por dar início ao seu final de semana logo na quarta-feira.

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Quando entramos no assunto sobre porque a Paulista é tão es-pecial para ele, Eric não deixa de citar a grande movimentação e as pessoas que compõem o cenário da avenida.

“Pra mim, a Paulista representa felicidade. Porque eu me sinto muito feliz aqui, me sinto bem”.

Em um contexto diferente, alguns dias depois, próximo a estação Brigadeiro, outros atores chamavam a atenção de todos que pas-savam pela calçada da avenida. Era como se tivessem saído direta-mente de um conto de fadas para a cidade de São Paulo.

Um estava vestido como o lendário cavaleiro Dom Quixote, out-ro como o mítico herói inglês Robin Hood, outro como o astuto detetive Sherlock Holmes e, claro, uma bela moça, como Cinderela. Eles andavam todos juntos pela avenida atraindo todos os olhares de quem passava por perto. Era inevitável não perceber o figurino de contos de fadas tão destoante entre as roupas comuns e cotidianas do nosso século.

Ao me aproximar deles tenho um pouco de dificuldade para con-seguir um pouco de atenção, já que todos os 4 atores estão sendo abordados pelas pessoas que passam, seja para tirar uma foto, para simplesmente perguntar o que está acontecendo ou questionar se eles se perderam em alguma viagem na máquina do tempo.

Após conseguir conversar um pouco, descubro que a proposta dos atores é divulgar um evento cultural (ainda secreto) que aconte-ceria no mês seguinte.

Todos – exceto um de Santo André – são do interior Paulista e foram para São Paulo em busca de melhores oportunidades na área de interpretação e teatro. Querendo ou não, todos enfrentaram um processo de adaptação nessa vinda do interior para a metrópole, onde eles ainda estão se acostumando à constante pressa urbana que parece contagiar a todos.

“São Paulo é caos”, diz Fernando, o ator vestido como Dom Quixote, natural de Santo André.

“Parece que São Paulo reúne as melhores coisas do país com as piores coisas do país”, diz Felipe, vestido como o herói Robin Hood, nascido em Brasília e soltando sua opinião na ponta da língua sem ao menos pensar sobre o assunto.

“É uma cidade que de tão grande se torna pequena, porque as pessoas deixam de se encontrar”, opina Leonardo, um jovem de olhos claros e cabelos loiros, natural de São Carlos, enquanto em-punhava seu cachimbo, vestido como o famoso detetive Sherlock Holmes.

“Mesmo sabendo que o paulistano vive numa populosa solidão, mesmo sabendo que a gente vai ser explorado, ganhar pouco e tudo mais. Mas pelo menos tem trabalho. Demora pra chegar nos lugares, o transporte público é um caos, mas tudo bem. É São Paulo, né? Tem que morar aqui, não tem jeito. É o pólo. Aqui é onde tem as melhores escolas e trabalho na nossa área”, conforma-se Leonardo.

Para Felipe, o Robin Hood de Brasília, São Paulo vive um caos que muitas vezes se torna saturado de informações, pessoas e acon-tecimentos, o que dificulta um pouco morar numa cidade onde tudo acontece ao mesmo tempo.

“O melhor amigo da gente, que é de fora e não tem carro, é o metrô. Então, qualquer lugar que tenha metrô pra gente é bom”, explica ele.

Atualmente, o metrô de São Paulo é considerado o melhor sistema de transporte por trilhos da América, com um intervalo entre trens de cerca de 99 segundos, o 3º menor tempo do mundo. Por ano, o metrô paulistano transporta em torno de 845,6 milhões de passage-iros, batendo seu maior recorde em 19 de novembro de 2009, com 3.716.405 passageiros transportados em um único dia.

“Se eu pudesse escolher, eu utilizaria só o transporte público, porque pra mim é difícil ter essa noção de rodízio de placas e trân-sito. De outra forma, também não tem metrô pra todo lugar, e nem em todos os horários”, diz Felipe.

A dificuldade dos horários de funcionamento do metrô em São Paulo é um fator que ainda prejudica muito as saídas noturnas dos moradores da cidade.

“Se passou da meia-noite ou você espera até as 4 da manhã ou paga um táxi, que é um preço absurdo aqui. E se você pegar o metrô às 6 horas da tarde você sente na pele como é viver dentro de uma lata de sardinha”, explica Leonardo, contando sua própria experiên-cia na hora do rush dentro do metrô, que transporta, em média, 3,6

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milhões de pessoas por dia.O caos no transporte público de São Paulo não é novidade para

ninguém. A todo tempo os noticiários mostram greves de fun-cionários, problemas de funcionamento e constantes reclamações dos usuários sobre as péssimas condições do transporte.

“A gente que é de fora sabe que tem que morar perto de metrô, tem que estar numa boa localização, se não a gente vai perder muito tempo. É estranho pra gente aprender a perder tempo com coisas que a gente não perdia antes”, completa Leonardo, entregando sua origem carlopolitana enquanto puxa o conhecido “R”do sotaque do interior de São Paulo ao falar comigo.

Durante nossa conversa, todos que passam andando pelas calça-das da avenida ficam apaixonadas pelo figurino dos atores, propondo uma mistura entre o urbano e o conto de fadas. A todo o momento, a conversa é interrompida por pessoas que param e pedem para tirar fotos com os atores. Enquanto Felipe e Leonardo são abordados, aproveito para saber um pouco mais sobre a linda Cinderela de Ri-beirão Preto e o Dom Quixote de Santo André. Quando pergunto como ela se locomove pela cidade, ela cita o principal problema já conhecido por toda a população de São Paulo:

“O mais barato é o transporte público. E o pior é o transporte público”, diz ela. “Mas o carro também é ruim. Na verdade, tudo é ruim aqui. Se você for para um lugar muito longe e vai gastar muito, daí você pode pegar um ônibus, um trem, um metrô. Às vezes você vai para um lugar pertinho, daí você vai de carro. Depende muito, mas eu uso mais o transporte público mesmo”, conta a bela jovem com olhos azuis e cabelos louros, num comprimento mais curto, acima dos ombros, como a própria cinderela moderna.

Em toda a trupe, apenas Fernando – o Dom Quixote – está mais acostumado com São Paulo, por sempre ter morado no ABC pau-lista.

“Eu tenho um carro e venho tentando deixar de usá-lo porque é muito estressante! Principalmente nessa região da Consolação e Centro, o metrô é muito melhor. Pena que muitas vezes os even-tos acontecem em horários noturnos, e ultrapassam os horários do metrô, mas daí você fica na casa de um amigo, fica mais perto de

alguém, pede carona. Mas eu tenho deixado de usar o carro”.Ao lado dos atores, um pouco mais distante e reservado por trás

dos óculos escuros, estava o produtor do evento que estava sendo divulgado por eles. E é ele quem aparece por um único momento na conversa para dizer por que escolheu a Paulista para fazer a divulga-ção do seu evento cultural:

“A Paulista é um pólo comercial. É um ponto multiétnico, é o lugar onde as pessoas de todos os tipos se encontram. O público que nós queremos é o da Paulista”, explica ele.

Para cada um deles, assim como para cada um que passa pela avenida e conhece um pouco mais sobre esse lugar tão singular, a avenida tem um significado diferente:

“A Paulista representa modernidade e organização”, conta Felipe ao comparar a avenida mais famosa de São Paulo com as avenidas de Brasília, sua cidade natal.

Para o Dom Quixote Fernando, a Paulista é mais romântica: “Pra mim, a Paulista representa programa cultural. Eu já cheguei

a agradecer a Deus várias vezes ao cruzar a Augusta com a Paulista pensando: ‘Que bom que eu estou aqui!’”

Ao mesmo tempo em que muitos agradecem por estarem na

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cidade, outros olham de forma diferente o possível futuro de São Paulo:

“Eu acho que se não houver um planejamento de trânsito na cidade, tudo vai piorar muito”, diz Felipe.

“Quando eu cheguei na Paulista pela primeira vez, eu tive a im-pressão de que eu não estava no Brasil”, confessa Leonardo ao se deparar com a imponência da avenida mais famosa do país. “Porque eu vim andando da Praça da República, bem no centrão. Depois subi a Augusta e quando cheguei na Paulista me surpreendi ao ver uma avenida larga, prédios enormes, tudo muito limpo, destoando muito de onde eu estava vindo. Parecia que eu estava em outra ci-dade”, conta Leonardo, surpreso com as diferenças gritantes entre lugares tão próximos de São Paulo.

A avenida Paulista assume o papel de divisão entre a sofisticação do bairro dos Jardins, com a pobreza e o abandono do centro antigo na Praça da República e no Vale do Anhangabaú.

Quando faço o mesmo caminho citado por Leonardo, a principal mudança que sinto é no cheiro. Ao passar pela Praça da República, sinto a mistura do cheiro forte de urina com o suor dos corpos dos mendigos que não tomam banho há tempos.

O antigo centro da cidade é caracterizado por suas belas con-struções da época da fundação de São Paulo, misturadas com o abandono, sujeira e violência da região. Perambular pelo antigo cen-tro é algo que muitas pessoas evitam, tanto pelo medo de roubos e assaltos quanto pela visão nada agradável que lhes é proposta.

É como se a Avenida Paulista fosse responsável por manter toda a sujeira do centro debaixo do tapete. Afastando o que não é bem visto aos nossos olhos. E, com isso, a avenida se torna a principal artéria do centro da cidade, não apenas por reunir as diferenças de quem mora em São Paulo, mas também por ser o eixo que liga im-portantes avenidas como Dr. Arnaldo, Rebouças, 9 de Julho, Briga-deiro Luís Antônio e 23 de Maio.

“Quando eu vim pra cá, eu não achei que fosse tão tenso”, de-sabafa Leonardo contando o quanto se surpreendeu com a cidade e como encara essa mudança tão brusca de ambiente que existe entre São Carlos e São Paulo.

“Quando eu cheguei na Paulista pela primeira vez, eu tive a impressão de que eu não estava no Brasil”

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Sanca, como é conhecida carinhosamente a cidade de São Carlos, é uma das tantas cidades do interior paulista que estão se desen-volvendo nos últimos 20 anos. Com mais de 220 mil habitantes, a cidade conhecida como Capital da Tecnologia e do Conhecimento reúne universidades como USP (Universidade de São Paulo) e UFS-CAR (Universidade Federal de São Carlos), e oferece a mistura entre tranqüilidade e facilidade de uma cidade do interior com o agito dos jovens universitários em alguns pontos da cidade.

Para Leonardo, deixar de dormir algumas horas para conseguir chegar a tempo no trabalho era uma realidade inexistente em São Carlos, mas que agora se tornou corriqueira em São Paulo.

“Eu sabia que era grande, que ia ter que pegar ônibus, metrô, trem. Mas, quando comecei a trabalhar eu passei a sentir mesmo como é que era. E eu trabalho com gente que passa mais de três horas dentro de ônibus e ainda pega mais meia hora de metrô pra conseguir chegar ao trabalho. Trabalha oito horas e fica quatro den-tro do transporte público. E tudo isso pra quê? Ganhar sete mil reais por mês? 15 mil? Não”, fala Leonardo, inconformado com a situação da vida, infelizmente comum, da maioria dos trabalhadores de São Paulo.

“Ganha o quê? Dois mil? Dois mil a gente ganha no interior com uma qualidade de vida muito melhor do que essa daqui”, esbraveja ele. “Mas daí é uma questão de valores agregados, e nós pagamos um preço por estarmos aqui”, conclui Leonardo, aceitando todos os problemas e contratempos da cidade grande.

Morar na metrópole paulista não é para todos e, assim como tudo nessa vida, tem um preço a ser pago, tanto financeiro quanto emocional. Ao fazer a escolha de ficar mais perto das oportunidades, da cultura, e de tudo o que acontece no mundo, abdica-se da tran-qüilidade, da saúde e até mesmo de nossa segurança.

“Eu tenho vontade de me mudar daqui antes de ficar velho. Acho que 11 milhões é muita gente, né? (referindo-se a quantidade de ha-bitantes de São Paulo) Acho que São Paulo é um exagero que não oferece muita qualidade de vida”, opina Leonardo, acostumado com o ritmo de São Carlos.

Quem é do interior sabe que, dependendo da sua área de atuação,

para conseguir uma carreira de sucesso não existe outro jeito: Tem que ir para São Paulo e dar a cara à tapa. As melhores oportunidades estão onde se concentra o nicho da área.

Só em janeiro de 2011, São Paulo se destacou como o estado que mais gerou empregos no Brasil, com 54.346 vagas. Além disso, em maio de 2011, só na grande São Paulo, foram abertas 20.078 vagas para empregos e 533 vagas para deficientes. Quando existe oferta, a procura é inevitável.

“São Paulo é um lugar para passear e curtir os eventos culturais. Mas para morar não é um lugar que eu desejo. Às vezes eu fico mais tempo dentro de um ônibus circular do que se eu pegasse um ônibus e fosse para a minha cidade, que é a 200 km daqui. Esse é um tipo de absurdo que eu não consigo conceber”, diz ele.

Esse é só um dos tantos “absurdos” encontrados na vida met-ropolitana, como o constante estado de alerta ao andar pelas ruas – tanto à noite quanto à luz do dia –, o olhar já frio e acostumado com os moradores de rua e com as crianças pedindo dinheiro nos semáforos. Numa espécie de indiferença que invade as pessoas pou-co a pouco, tornando alguns indivíduos cegos perante tantos fatores “absurdos” que passam todos os dias pelos olhos de cada um.

Durante os dias úteis da semana, a Paulista passa despercebida, como se estivesse ali para ser vista, mas ninguém a vê, a não ser pelas poucas exceções que encontramos pelo caminho do cotidiano. Mas é a partir de sexta-feira que assistimos à metamorfose completa de um ambiente caótico e movido pelos interesses de lucro e dinheiro. A Paulista se transforma em um local de cultura, diversão e prox-imidade.

Sim, proximidade dentro de uma metrópole de 10 milhões de habitantes que mal se olham durante a semana, mas que, surpreen-dentemente, param para respirar e olhar para os lados ao final da sexta-feira.

Aos finais de semana, a mesma avenida que agrega os engrav-atados é palco de todas as tribos e estilos, mostrando a mistura de gêneros que só São Paulo oferece em um único lugar.

Quem visita a Paulista aos sábados e domingos à tarde, com suas calçadas vazias, seu fluxo tranqüilo no trânsito, vendo os turistas

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passeando com as famílias, sente-se como se estivesse em outra avenida da cidade, bem diferente daquela abarrotada de gente que conhecemos durante a semana.

Em um desses domingos encontramos Gustavo Prata, de 23 anos, morador da Vila Madalena, bairro nobre de São Paulo, andan-do pela clássica – e famosa – feira de antiguidades, localizada no vão livre do MASP. Um paraíso cheio de histórias, artefatos de guerra, câmeras fotográficas, porcelanas, cristais, brinquedos antigos, moe-das e muitas outras peças antigas que transformaram a feira em um típico ponto turístico da cidade. A feira – toda padronizada com barracas idênticas muito bem organizadas – atrai desde os amantes de arte e colecionadores até curiosos.

Entre os visitantes da feira, Gustavo se mostrava muito despo-jado. Um rapaz de cabelos curtos e com a barba muito bem feita, usando jeans, tênis brancos e uma jaqueta xadrez vermelha e azul, numa combinação que chamava a atenção pela mistura de peças e cores.

Quando me aproximo e pergunto se ele está à procura de algo especial na feira de antiguidades, tenho uma surpresa:

“Não, eu gosto de vir aqui porque é agradável, eu trabalho com direção de arte e publicidade, e são bonitas as coisas aqui. O estético, você vê a referência. Mas, eu só olho, porque eu não tenho cacife pra comprar nada aqui”, e fecha os olhos numa gargalhada que entrega toda a sua sinceridade e descontração.

Gustavo aparenta muita jovialidade, não apenas pelas suas roupas e trejeitos, mas pelo tom com que fala. O típico vanguardista da metrópole que está sempre aberto às novas ideias e conceitos, sem se prender aos preconceitos bobos ou tradições passadas. Essa é a cara do ser habitante do cenário da avenida Paulista, vanguardista, ou, como preferirem chamar: prafrentex.

“O legal mesmo é ver que é tão bonito e você pode contemplar. Puts, – diz Gustavo com o tom de um sotaque paulistano muito forte – a Paulista é uma referência de São Paulo, ela é como um divisor de águas entre o centro, onde está tudo de sórdido de São Paulo; onde tem os usuários de crack, os travestis, os michês, e que é um reduto da sordidez da cidade; apesar de eu adorar o centro. E o

Jardins são exatamente o contrário, são as pessoas mais ricas de São Paulo. O que divide isso é a Paulista. Eu acho legal o ponto dessa soma, onde tudo se mistura. Eu gosto dessa cidade, acho muito in-teressante. Eu sou meio urbanóide”, dizia ele enquanto arrumava o piercing no nariz, que ajudava na composição do seu estilo urbano e despojado.

Como disse Gustavo, para morar e gostar de São Paulo tem que ser urbanóide, não se importar com o barulho e o caos, com o ar impuro por conta da fumaça e nem com a pressa – a qual parece perseguir a todos, onde se for, – e mesmo que não tenha nada para fazer ou nenhum lugar para chegar, você estará andando rápido sem perceber tal fato. E digo isso por experiência própria. Depois de caminhar por tantos dias pela Paulista, chegava um momento em que meu passo era mais apertado sem ao menos saber por quê. É como se a pressa fosse uma gripe chata que se pega no ar.

“Nunca me imaginei morando em outra cidade do Brasil”, con-fessa Gustavo. E quando pergunto se ele nunca se imaginou mo-rando no interior, ele faz uma expressão engraçada de surpresa e diz: “Acabei de me imaginar morando no interior e não gostei do que imaginei”, conta Gustavo, rindo do estilo de vida que acabou de passar em sua mente.

“Vou pro interior, passo duas ou três semanas e é uma delícia, mas morar lá eu acho que eu não conseguiria. Porque você nasce aqui, você se acostuma com esse ritmo. Acho que fica meio enraiza-do em você, meio intrínseco, né?”

Quando nasci em São Paulo, em 1989, meus pais se aposentaram e depois de 6 anos decidiram se mudar para uma cidade do interior paulista para que eu, a filha caçula de três irmãos, pudesse ter uma infância mais tranqüila e com mais liberdade. Me lembro bem das constantes reclamações de minha mãe sobre a cidade pequena. Ela dizia que o silêncio das ruas do bairro era algo que a irritava profun-damente ao invés de tranqüilizá-la, pois ela sentia falta do barulho dos carros e buzinas de São Paulo. Segundo ela, “parecia que tinham jogado uma bomba atômica e só as casas permaneceram em pé”.

Quando você passa boa parte da vida dentro de uma metrópole como São Paulo e começa a viver em outro lugar com ritmo mais

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lento, é inevitável um processo de readaptação. E Gustavo tem razão quando diz que São Paulo fica enraizado dentro de nós, pois leva tempo até a metrópole sair de dentro de você (e quando sai).

“Mas entre as coisas legais da Paulista estão justamente as cenas que você vê aqui”, explica ele.

Percebi isso durante os dias que passei andando pela Paulista de ponta a ponta. Atravessando a avenida desde a Consolação até o Paraíso, eu podia ver as mais diversas cenas inusitadas que só pode-riam ser vistas ali, naquele cenário único e diversificado que recebe as mais diferentes pessoas fazendo tudo e nada ao mesmo tempo. Quem sente um carinho especial pela Paulista é porque já viu ou viveu cenas que marcaram a memória com um significado especial. E com Gustavo também foi assim:

“Uma vez, eu estava andando aqui e um bueiro vazou, então a faixa de pedestres foi coberta por um rio de bosta”, diz ele soltan-do um riso não contido pela situação inusitada que passou. “Jamais imaginei ver algo desse tipo por aqui”.

A Paulista esconde muito dos problemas de São Paulo. Um lugar considerado elitizado, onde jamais se esperaria ver um rio de bosta cobrindo os pés dos escarpins e mocassins de quem passa pela faixa de pedestres.

“Mas, apesar de todos os problemas, compensa viver em São Paulo. É um saco a violência, é um saco a miséria, é foda ter que ver isso”, desabafa Gustavo. “Só que é o lado ruim, né? Como todo lugar tem. Óbvio que São Paulo tem mais problemas do que out-ras metrópoles como Londres ou Paris. Nós temos mais violência porque é outro estágio de civilização, somos um país de 500 anos enquanto eles são muito mais velhos”.

São Paulo poderia ganhar o posto de “metrópole emergente” entre todas as outras do mundo. Crescendo com seu potencial entre altos e baixos, em meio a problemas que parecem já serem aceitos por quem vive nela.

“Eu acho que faz parte. É tenso, eu detesto, acho que todo mun-do detesta, mas acho que, apesar dos pesares, ainda vale a pena. To falando do meu ponto de vista de classe média, sabe? Eu que tenho uma moradia boa aqui, eu que não convivo tanto com a violência,

“Porque você nasce aqui, você se acostuma com esse

ritmo. Acho que fica meio enraizado em você.”

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mas acho que para uma pessoa que não tem as mesmas condições de vida que eu, talvez São Paulo não seja tão boa como uma cidade do interior seria”, pondera Gustavo.

O futuro de São Paulo é um tanto quanto incerto, já que a cidade abriga 10.659.386 milhões de moradores – 225 mil a mais do que há 10 anos – sem nenhum tipo de planejamento para agregar a quan-tidade de pessoas e de necessidades de uma cidade em permanente crescimento.

Como uma das principais responsáveis por grande parte do PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil, São Paulo representa 35% de toda a riqueza produzida no país, ostentando o status de cidade mais rica do Brasil, sendo considerada por muitos como a terra das opor-tunidades e do emprego. E realmente é. Ninguém vem para São Paulo à toa. As pessoas migram para São Paulo em busca de em-prego, novas chances, melhores condições de vida e, acima de tudo, oportunidades.

Muito se espera de São Paulo como metrópole global. Com todos os seus inúmeros defeitos e qualidades é quase impossível definir a capital paulista com uma única palavra. A avenida Paulista repre-senta boa parte disso, com seus arranha-céus revestidos de vidros e mais de 3.029 empresas instaladas em toda a sua extensão.

Gustavo pensa que a Paulista e São Paulo ainda podem melhorar, proporcionando uma qualidade de vida mais elevada aos mora-dores da região, mas talvez muitos fatores acabem se perdendo pelo caminho.

“Daqui a 20 anos eu acho que esses prédios mais antigos vão ter virado uns prédios enormes empresariais e, provavelmente, essa rua principal da Paulista talvez não exista mais, acho que vai virar um chão de concreto. Acho que vai ter mais ruas, como a gente vai ter trânsito e mais trânsito, eu acho que talvez role um projeto de urbanização que ao invés dos carros passarem pela Paulista eles con-tornem a avenida e ela vire um Boulevard enorme”, diz ele, expli-cando seu plano arquitetônico completamente novo para a Paulista do futuro.

E os projetos para uma Paulista melhor parecem já estar começan-do. Em janeiro de 2011, a prefeitura de São Paulo já anunciou o

projeto da nova iluminação da avenida. O atual sistema de ilumina-ção existe desde a década de 70 com 54 postes, os quais serão sub-stituídos por tubos de aço de carbono com lâmpadas de 48 lux de iluminância, gerando um aumento de 300% nos níveis de luminosi-dade na avenida. Mas, segundo a Eletropaulo, o consumo de energia não será maior, muito pelo contrário, pois com as novas lâmpadas a redução de consumo poderá chegar a até 60%.

O zelo com a Paulista é cobrado e cumprido por quem passa e habita nela. Todos, assim como Gustavo, esperam sempre o melhor para a avenida.

“Acho que daqui a um tempo vai estar muito mais democrático por aqui, porque vai ter mais transporte pra cá. Mas acredito que se os projetos de revitalização do centro acabarem rolando, vai acabar ficando uma coisa mais elitista pra quem mora aqui”, prevê Gusta-vo.

A questão da elitização de um lugar é relativa, principalmente quando se pensa na avenida Paulista, onde, embora os moradores da região façam parte de uma classe mais alta da sociedade, existem pontos culturais que atraem pessoas de todas as classes sociais.

Quando questiono Gustavo sobre o papel cultural da Paulista, ele me responde:

“Acho que as opções de lazer e cultura são o que mais sustenta a Paulista. A diversidade que se tem aqui é o que atrai tanta gente diferente pra cá. Chama todos os públicos, né? Acho que isso é um dos pilares financeiros da Paulista, não tem como deixar de zelar por isso”.

O carinho e o cuidado dos paulistanos com a avenida Paulista já vem de muito tempo, desde sua inauguração, em 8 de dezembro de 1891, quando o engenheiro Joaquim Eugênio de Lima, responsável pela construção da avenida, decidiu que ao invés de chamá-la de avenida das Acácias ou Prado de São Paulo como queriam, ela teria um nome mais comum: “Será Avenida Paulista, em homenagem aos paulistas”, disse ele. A qual, posteriormente, se tornou a primeira via pública asfaltada de São Paulo, em 1909.

A Paulista sempre foi prioridade em São Paulo, como uma vitrine de loja que deve estar sempre muito bem arrumada e atraente para

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seus visitantes.E assim como boa parte dos paulistanos, Dona Meire, uma

simpática e educada senhora de 70 anos que encontramos ainda pela feira do MASP, também teme pelo cuidado e pelo futuro da Pau-lista.

Ao avistá-la, com cabelo loiro e curto, mas já acinzentado por conta da idade, vestindo uma elegante blusa de lã branca, percebo que ela está interessada em uma barraca com bibelôs antigos de por-celana, muito delicados e bem conservados, como se fossem uma herança de família guardada com carinho e cuidado. Decido me aproximar e abordá-la para saber qual o grande interesse dela por aquelas peças e naquele local.

“Uma vez por mês eu venho aqui, eventualmente eu dou uma passadinha. Às vezes eu olho uma peça ou outra que eu gosto pra uma coleçãozinha”, conta ela, nascida em Ribeirão Preto, no interior do estado e moradora da capital paulista há 51 anos.

“Eu vim para São Paulo aos 19 anos”, conta ela me olhando com os olhos azuis muito vivos. “Eu moro aqui na Pamplona”, me diz apontando para uma das travessas mais tradicionais da avenida Paulista, localizada ao lado do MASP, uma região nobre com apar-tamentos antigos, e, claro, caros, mas muito bem pagos por aqueles, que assim como Dona Meire, optam por morar nas extremidades do coração de São Paulo.

“A Paulista oferece muita facilidade, né?”, me pergunta ela, mes-mo já sabendo a resposta. “Facilidade pra tudo. Não só pra você ir para qualquer lugar de São Paulo por meio das conduções, mas a parte de bancos que você precisa, a proximidade de serviços que se tem, além de ser um lugar pitoresco. É uma mistura de poder e pobreza, que mostra que a Paulista realmente é a cara de São Paulo”, define ela.

Pitoresco é aquele que chama a atenção pela beleza e pela origi-nalidade, aquele que é digno de pintura e de se transformar em obra de arte. É isso que a Paulista significa para Dona Meire e para muitas das 1,5 milhão de pessoas que circulam diariamente pela avenida mais famosa do país. Um lugar original por natureza.

Meire conversa comigo muito educadamente o tempo todo, não

demonstrando incômodo algum por estar sendo interrompida em seu passeio durante a tarde de domingo. Talvez um típico reflexo de sua profissão. Meire é professora de redação de um cursinho pré-vestibular e convive muito com os jovens de São Paulo, o que reflete sua jovialidade mesmo na velhice.

“Eu vou fazer 71 anos e ainda trabalho, ainda estou na ativa. A Paulista para mim é vida. Aqui eu ando, aqui tem as coisas que eu mais gosto. Eu não me acostumaria em uma cidade do interior, seria uma vida muito monótona. Acho que aqui tem uma vida boa pra mim, eu vou ao cinema na hora que eu quero. Gosto de teatro, exposições, cinema. E o interior não oferece tantas coisas assim”, justifica Meire.

Ela é um exemplo da contramão de uma parcela da 3ª idade brasileira, que ao invés de procurar o interior em busca de tranqüili-dade e qualidade de vida, prefere se manter nos centros urbanos, onde existe uma maior concentração de opções de lazer e cultura.

“Durante a semana a Paulista recebe outra população, é bem diferente. Acho esse anonimato de São Paulo fantástico”, diz ela.

A impessoalidade é um fator predominante na vida dos metro-politanos. A relação face to face parece deixar de existir em muitos locais de São Paulo, são tantas informações e rostos passando ao mesmo tempo pelo olhar que tudo já se tornou comum.

E então pergunto a ela sobre as suas expectativas para a região da Paulista, já que pretende permanecer morando nas proximidades, quando me surpreendo com sua resposta:

“Eu acredito que isso vai se tornar um novo centro popular, porque tem muitas lojas de contrabando abrindo por aqui. Fecharam uma e abriram três. Se não tomar cuidado, os ‘chang’s’ – diz ela se referindo aos coreanos e japoneses que trabalham com eletrônicos na região – vão tomar conta de tudo. E se um local oferece perigo, as pessoas se afastam dele”.

O aluguel mensal dos boxes das galerias da avenida Paulista varia de R$ 2.000 a R$ 4.500. Segundo o jornal Folha de S. Paulo apurou, para alugar um box de R$ 4.500 o locatário ainda tem de pagar luvas --pagamento unitário pelo direito da loja-- de US$ 25 mil (cerca de R$ 41,6 mil).

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E quase todo mês a Polícia Federal faz operações para fechar os estandes e apreender as mercadorias contrabandeadas, numa luta contra a pirataria que já vem acontecendo há muito tempo.

A questão do contrabando na região é tratada com seriedade pela polícia, diferentemente do que acontece em outras regiões de São Paulo, onde a venda de produtos importados e pirateados é feita à luz do dia sem problema algum, como na famosa Galeria Pajé e na rua 25 de Março. Mas na Paulista, não. A avenida com a cara de São Paulo não poderia aceitar produtos contrabandeados em suas galerias.

A Paulista é o cartão postal de São Paulo, onde tudo que é de melhor deve ser mostrado e tudo o que é de pior deve ser escondido, exatamente como em qualquer outro “cartão postal” do mundo.

Entre as opções de lazer desse cartão postal que é a Paulista, a feira de antiguidades, organizada pela Associação dos Antiquários do Estado de São Paulo – onde encontramos Gustavo e dona Meire – é uma das atrações mais clássicas e atrai cerca de 5 mil visitantes todos os domingos há mais de 25 anos.

Um dos pioneiros a expor na feira do MASP é o senhor Francis-co Romero Pacheco, de 64 anos, proprietário de um estande da feira de antiguidades há 30 anos. Sua aparência séria é um tanto quanto excêntrica, com cabelos longos, até abaixo da cintura, presos por um rabo de cavalo. Decido me aproximar – ainda com um pouco de receio – do proprietário da barraca.

O farto bigode dá um ar de seriedade em sua expressão, junta-mente com o chapéu coco preto, óculos escuros, sobretudo e muitos anéis nos dedos da mão, como um cigano misterioso que exibe suas jóias.

“Aqui tem alguns clientes mais seletos, que geralmente estão in-teressados em ver uma peça antiga, ou fazer uma visita ao museu”, conta Francisco enquanto mexe em um dos anéis dos dedos.

Segundo ele, nos dias de trabalho durante a semana, as pessoas que freqüentam a Paulista não fazem ideia de como ela é aos finais de semana.

“Durante os dias da semana aqui fica um grupo de pessoas que não tem absolutamente nada a ver com o público do domingo”,

“É um lugar privilegiado por esse ponto, principalmente pela cultura e pela quantidade de teatros. Aqui você

está perto do coração de São Paulo”

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observa ele.Francisco é natural de Porto Alegre, e passou boa parte da sua

vida em Londrina, no Paraná. Mudou-se com a família – tradicional de São Paulo, dona de fazendas no Sul – para a capital paulista, aos 16 anos de idade.

“Minha família tinha fazendas no Sul, depois meus pais voltaram pra cá e eu vim com eles. Eu já tive uma agência de turismo em São Paulo, já trabalhei com jardinagem, e daí comecei a trabalhar com antiguidades. Moro próximo a Paulista, paralelo à Rua Oscar Freire. Aqui é um dos lugares com o metro quadrado mais caro de São Paulo, é um lugar onde tem bons restaurantes, bons cinemas, bons colégios. É um lugar privilegiado por esse ponto, principalmente pela cultura e pela quantidade de teatros. Aqui você está perto do coração de São Paulo”, explica ele.

Outro proprietário de barraca é o professor de História da Arte Maurício Eloy, 41 anos, que expõe livros antigos na feira de anti-guidades há cinco anos. Como tudo na Paulista, Maurício também tem sua parcela de excentricidade, e se veste como se tivesse saído de um filme dos anos 60, com um blazer marrom e óculos de grau redondos com armação avermelhada, destacando as sardas do rosto, comuns em ruivos como ele.

Natural do ABC paulista, Maurício sempre teve vontade de con-struir sua vida em São Paulo, mas não tinha condições para isso.

“Eu tinha medo de vir pra cá, encarar São Paulo e tal. E eu tô aqui há sete anos e moro aqui na Paulista. Eu me mudei pra cá com 32 anos. Quando eu vim, eu ainda trabalhava na área de museus, e depois eu parti para a área dos livros”, conta Maurício entregando sua paixão de professor pelos livros.

São Paulo é um lugar que atrai muitas pessoas, principalmente as da região metropolitana da cidade, como Maurício, que é do ABC paulista e sempre quis sair da grande São Paulo e se mudar para perto do coração da megalópole.

“Eu sempre quis morar em São Paulo porque sempre trabalhei aqui, sempre gostei daqui, principalmente da Paulista. Gosto muito de morar em São Paulo e não me mudo daqui! Primeiro: você tem esse percurso todo de lazer e todo tipo de coisa. E a quantidade de

pessoas que você conhece diariamente é gigante”.Maurício conta que, além de professor de História da Arte, tam-

bém é artista plástico e desenvolve uma pesquisa sobre como é o indivíduo por meio do desenho e da pintura.

“Pra mim, estar aqui e ver essas pessoas de um modo geral tam-bém é uma forma de material de pesquisa. E você tem a oportuni-dade de conhecer pessoas do mundo inteiro”, conta ele.

Durante nossa conversa presenciamos, ironicamente, um exem-plo da fala de Maurício, ao sermos interrompidos por turistas de Fortaleza perguntando sobre o valor de um dos livros à venda.

São Paulo se tornou uma opção forte para o turismo e a ho-telaria. Em 2010, a cidade recebeu cerca de 11,7 milhões de visi-tantes – 10,1 milhões de brasileiros e 1,6 milhão de estrangeiros –, tanto para negócios quanto para lazer, registrando um crescimento de 3,54% em comparação a 2009. O turismo passou a movimentar parte da economia da cidade, – conhecida mundialmente como a capital da gastronomia – chegando a cerca de R$9,6 bilhões ao ano em viagens, hospedagens e transportes de turistas.

“Pra mim, a Paulista é o coração da cultura de São Paulo. Aqui é o encontro das pessoas, aqui é tudo próximo. É diferente de outros lugares como o Rio de Janeiro, um dos cartões postais mais lin-dos do mundo. Em São Paulo você se esbarra o tempo inteiro”, diz Maurício atrás da bancada de livros de sua barraca.

Na metrópole, você pode assumir diversos papéis em diferentes contextos e ambientes, e ainda assim manter o anonimato perante outros grupos. Em uma cidade como São Paulo, em um ambiente como a avenida Paulista, percebe-se a possibilidade de desenvolvi-mento de valores, ideias e experiências. São tantos grupos convi-vendo que podemos ser englobados por mais de um e continuarmos mantendo nossa própria identidade. É como se o homem metro-politano fosse um mosaico constituído por diferentes pedaços de valores agregados nesse ambiente tão rico em possibilidades. E o que mais queremos é poder ter mais e mais experiências, agregando uma nova peça a cada dia.

Em espaços como a Paulista, não há como questionar que ainda exista a impessoalidade e o anonimato, porém, ao mesmo tempo ex-

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istem experiências acontecendo a todo o momento nesse ambiente. Quando pergunto a Maurício o que ele espera de toda essa fusão

de valores encontrada na Paulista, ele mostra o lado positivo de suas expectativas;

“Eu acho que aqui ainda vai ficar mais legal”, diz ele, abrindo um sorriso pra lá de otimista. “Porque a Paulista, desde o início, do século 19 pra cá, já tinha esse perfil do lazer, né? Que vem da França e dos impressionistas – ai, olha eu agora dando aula de História da Arte”, brinca Maurício, rindo pela espontaneidade de seu raciocínio no momento. “A Paulista tem isso, muito parecido com o impres-sionismo. Eu acho que o governo e a prefeitura não exploram muito a avenida como ela merece, poderiam usar essa calçada para fazer mil coisas. E ela tem essa disponibilidade”, argumenta ele.

É essa disponibilidade e o conteúdo urbano que faz a Paulista tão diferente das outras avenidas grandes da cidade. Um local que sofreu uma verticalização, que se desenvolveu junto ao crescimento de São Paulo, mas que jamais terá seu simbolismo substituído por outro lugar de cidade. A Paulista é um ícone único.

“Lembra quando falaram que a Berrini iria substituir a Paulista? Substituiu? Claro que não. Lá só passam carros. Aqui não, passam pessoas”, destaca Maurício. “Passam carros? Passam, mas passam muitas pessoas. O metrô seria a veia da Paulista. Ele te entrega para a avenida. Eu me lembro de uma vez em que passei o Ano Novo com uma moça, uma japonesinha que eu conheci, a gente passou o Ano Novo aqui e depois fomos para outro lugar. Olha, fiquei até vermelho falando disso!”, diz Maurício rindo, entregando um dos momentos marcantes que teve na avenida Paulista.

Assim como Maurício, muitas outras pessoas que sentem a Pau-lista como um ícone especial de São Paulo também tiveram momen-tos marcantes e boas lembranças nela. O réveillon na Paulista é uma das grandes atrações de São Paulo, tornando-se quase uma tradição para os paulistanos. No ano passado, a virada do ano reuniu mais de 2,5 milhões de pessoas na avenida para assistir a diversos shows e à queima de fogos de artifício, tradicional em todos os anos.

Além do réveillon, a avenida também é palco de diversos eventos importantes da cidade, como a Parada GLBT (lésbicas, gays, bissex-

uais, transgêneros, travestis e transexuais) que reuniu três milhões de pessoas em 2010, e a tradicional Corrida de São Silvestre, que registrou 21 mil inscritos em sua última edição.

E é exercitando o papel de um local que agrega diferentes valores que a Paulista faz de sua mistura o símbolo do mosaico cultural que é a cidade de São Paulo. É nessa mistura que a metrópole se torna um estilo de vida, sua população é composta por um número el-evado de indivíduos socialmente heterogêneos.

Mas, embora o indivíduo se encontre em uma proximidade física em um lugar repleto de pessoas, a individualidade ainda reina ab-soluta na vida do homem urbano. Os contatos são muitas vezes superficiais e impessoais, mantendo-se certo distanciamento entre as relações humanas. Ao mesmo tempo em que a avenida Paulista oferece um contato com diversos indivíduos, esses contatos podem ser breves e passageiros, colocando em falta as relações intrínsecas.

O cosmopolitismo oferece a possibilidade de diferentes mo-dos de vida em diferentes grupos sociais, levando a uma maior tol-erância às diferenças entre os indivíduos, algo que só é possível em metrópoles e megalópoles como São Paulo.

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A Selva de PedraRostos, vidas e sonhos

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E 65DiverCIDADEAs cenas propostas durante o dia-a-dia na Paulista são

únicas. É exatamente por essa característica que as metrópoles tem o seu diferencial, proporcionando diferentes experiências em ações corriqueiras, como

o simples fato de caminhar por uma região da cidade, como acon-tece na Paulista.

E foi uma dessas cenas tão incomuns que me chamou a atenção enquanto passava pela avenida, quase na esquina com a Brigadeiro, numa manhã fria de terça-feira. Era horário comercial, em torno de 10h30, muita gente andando nos dois sentidos da calçada, e tudo o que se conseguia ouvir era o barulho dos carros, a voz de pessoas conversando pelo celular – parecendo sempre resolver coisas impor-tantes – e o barulho das solas de sapato pelo chão de concreto da calçada. A vida na avenida não parava por nada.

Em meio a todas as pessoas passando, vi uma cena inusitada, talvez a mais inusitada que eu já tenha visto até hoje e a qual me marcou profundamente. Uma mulher de cabelos escuros, vestida com uma calça preta, muito bem cortada e uma blusa social, estava agachada no meio da calçada enquanto todas as pessoas continuavam seu caminho pela avenida. Quando me aproximo para ver o motivo pelo qual uma moça tão bem vestida como ela estaria agachada no meio da calçada da Paulista, avisto a tal cena inesperada.

Percebo que ela está agachada passando uma pomada no joelho de um homem, que à primeira vista parece ser um pedinte, que está sentado no chão com roupas gastas junto a uma caixa de papelão onde as pessoas depositam suas doações.

Fico observando de longe para tentar entender o que acontece, e percebo que ela – ainda agachada – conversa muito com o homem, sorrindo juntos como se já se conhecessem.

Depois de algum tempo de conversa entre os dois, ela dá um último sorriso, passa a mão sobre sua cabeça, se levanta e começa a andar. É nesse momento que a abordo e pergunto sobre a cena que acabei de presenciar e que parecia tão imperceptível para as outras pessoas que passavam ao redor deles.

Em meio a todas as pessoas passando, vi uma cena inusitada, talvez a mais inusitada que eu já

tenha visto até hoje.

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“Eu sempre vejo ele por aqui, porque eu trabalho ali na FGV (Fundação Getúlio Vargas), ali em baixo”, aponta ela. “Aí eu sempre venho conversar com ele, mas na verdade eu mais escuto do que qualquer outra coisa”, diz ela sorrindo com simpatia olhando dis-tante o homem que acabara de ajudar.

Uma cena dessas em um ambiente tão impessoal e individualista como a Paulista durante seu horário comercial, cheia de horários, pressa e interesses, se torna algo raro aos olhos de quem passa e percebe o que está acontecendo.

“Ele tá aqui todos os dias e vem de super longe. É casado, tem mulher, tem filho e tal. Ele gosta de falar com alguém, pois tem problemas como todo mundo tem e eu converso com ele sempre”, explica ela.

Essa simpática moça é Ana Maria, natural de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, mora em São Paulo há 8 anos e trabalha na Paulista há um bom tempo. Ana é daquele tipo de pessoa que parece contagiar a todos em sua volta com sua luz, seus sorrisos e simpatia. Um traço característico adquirido durante sua vida no in-terior do estado, que trouxe para São Paulo um pouquinho mais da proximidade “caipira”.

Quando pergunto a ela porque estava passando pomada no jo-elho do tal homem sentado na calçada, ela me responde:

“Ele me disse que aquele machucado no joelho foi no metrô, porque ele é deficiente, o pessoal não o vê e passa por cima. E tá tudo inchado, meio em carne viva”, conta ela com uma cara que mistura pena e dor. “Daí eu comprei uma pomada e fui passar nele. Só que tem que passar a cada 8 horas, eu só preciso lembrá-lo disso, porque é homem, né... não lembra”, ri ela falando da comum de-satenção masculina com horários de remédios.

Perceber que uma moça jovem como Ana se preocupa com os problemas de um, até então, desconhecido me faz acreditar que ainda existe uma bondade gratuita nas pessoas, mesmo em cidades grandes como São Paulo. Pessoas que se ajudam pelo simples fato de se sensibilizarem com os problemas de outra, se tornando próxi-mas, mesmo que por 5 minutos.

Fico curiosa para saber mais sobre essa adorável moça do inte-

rior de São Paulo e pergunto a ela porque decidiu deixar sua vida há 443 km de distância da capital e mudar-se para lá.

“Eu vim pra São Paulo porque eu não tinha condições de estudar lá na minha cidade, eu ganhava super pouco e trabalhava muito. Daí eu vim pra cá pra buscar coisas novas, consegui fazer faculdade e agora tô na pós-graduação. Eu faço Gestão de Pessoas e quero ver se faço mestrado em Psicologia Social. Entrei como prestadora de serviços aqui na FGV e agora sou gerente de uma área da funda-ção”, explica ela cheia de orgulho pelo que conseguiu conquistar até então.

Ana Maria foi para São Paulo em busca de oportunidades mel-hores, assim como 90% das pessoas que migram para a capital pau-lista. Teve sorte – e empenho – e obteve sucesso em sua tentativa, alcançando seus objetivos e trabalhando em uma das avenidas mais importantes do país.

“Pra mim, a Paulista representa uma conquista na minha vida”, confessa ela um pouco emocionada. “Gosto de trabalhar aqui. Eu me lembro da primeira vez que vim aqui, olhei todos esses prédios, todas essas pessoas e falei ‘é aqui que eu quero morar, é aqui que eu quero trabalhar! ’ Eu olho pra tudo isso e vejo que consegui chegar onde eu queria, mesmo morando sozinha aos 21 anos, vindo do interior sem conhecer muita gente”.

Tentar a vida em São Paulo não é nada simples, ainda mais para uma mulher jovem e sozinha. Os medos são muitos e a insegurança se torna uma companhia diária até que se encontre o caminho entre os tantos possíveis dentro dessa cidade. E depois de um dia cansativo de trabalho, ainda é preciso chegar em casa e ligar a televisão para ouvir algumas vozes para suprir o silêncio de se morar sozinho.

“Toda a minha família está em Rio Preto, então quando quero visitá-los preciso encarar 6 horas de viagem até lá”, conta ela referin-do-se a um dos preços que paga por estar sozinha em São Paulo.

Segundo a Fundação de Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), entre 2000 e 2010, o estado de São Paulo recebeu 47.946 mi-grantes por ano, passando a população de 36,974 milhões em 2000 para 41,252 milhões de habitantes em 2010. Tal número parece alto, mas quando comparado aos dados das décadas de 70 e 80, o cresci-

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mento de migrantes daquela época era cerca de 6,4 vezes maior. Graças a essa migração nas últimas décadas, São Paulo tem como

principal característica a reunião de indivíduos de diversas regiões do país em uma única cidade. Isso sem contar o fenômeno do início do século, quando os imigrantes da Itália, Japão, Portugal e Espanha vieram para a capital paulista, transformando partes da cidade em bairros tradicionais, como a Liberdade, o Bexiga e a Mooca. Nesses bairros pode-se sentir um pouco mais da cultura desses países, de sua culinária e matar um pouco da saudade que muitos sentem de seus países de origem.

“A Paulista tem um pouquinho de todo canto de São Paulo. Ela é de fácil acesso, tem um metrô legal, tem galerias, locais voltados para a cultura. A Paulista é um lugar que consegue reunir um pouco de cada parte de São Paulo em um único lugar”, conta Ana Maria.

Quando pergunto a ela como foi sua adaptação no grande cen-tro, Ana Maria fala sobre o principal ponto de se morar em uma metrópole:

“Por São Paulo ser uma cidade onde ninguém olha pra ninguém, um lugar onde as pessoas se atropelam, o que mais me marca é essa relação que eu tenho com o Pulga – apelido que ela dá ao deficiente com quem estava conversando na calçada. O legal é poder encontrar alguém que realmente te olhe e converse com você. Isso é muito comum no interior, mas aqui não”.

O olhar é uma espécie de linguagem que engloba um univer-so vasto de sentidos e memórias, que por muitas vezes substitui a própria comunicação verbal com muito mais profundidade e sensi-bilidade. É como se realmente nossos olhos fossem a janela da alma, e tudo o que se quer em meio a tantas pessoas desconhecidas é um olhar amigo, um olhar conhecido, de alguém de quem se gosta e se preocupa conosco.

“O que mais dá pra perceber quando você vem do interior pra cá são as pessoas, porque no interior elas são mais acolhedoras. A violência também existe, mas isso tem em todo lugar”, explica Ana.

A proximidade é talvez uma das coisas que as pessoas do interior e das cidades menores mais sentem falta quando vem para a metró-pole. A violência é comum em todo lugar, mas encontrar relações

como a de Ana Maria e Pulga é cada vez mais raro em São Paulo. Talvez pela falta de tempo, pela pressa cotidiana, ou até mesmo pelo medo de dar algum tipo de liberdade a desconhecidos. Quando pergunto a ela se existe a possibilidade de querer voltar a morar no interior, perto de sua família e amigos, ela me responde:

“Não pretendo voltar para o interior. Pra mim, o interior agora é só para passear. Quando você se acostuma com uma metrópole como São Paulo, você não consegue mais ter o ritmo de uma cidade do interior”.

É como se a metrópole envolvesse a pessoa e o ritmo da vida fosse ditado pelo fluxo do movimento da cidade. Qualquer outro lugar do mundo não é suficiente para suprir as necessidades que temos, como São Paulo o faz.

“E eu acho que São Paulo vai ficar cada vez mais cheio de gente. Mas um desejo meu é que as vias melhorem e de adaptem aos cadei-

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rantes e idosos. Tem muita coisa pra melhorar ainda. Eu espero que São Paulo seja um lugar mais pensado para as pessoas”.

O Governo do Estado de São Paulo mantém a Secretaria de Direitos da Pessoa com Deficiência, um órgão que busca se tornar referência mundial em articulação, implementação e monitoramento da inclusão social de pessoas com deficiência até o ano de 2015.

O Brasil tem hoje 24,6 milhões de pessoas com deficiência. So-mente no Estado de São Paulo, são cerca de 4,2 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. Já a cidade de São Paulo conta ao todo com 15 mil ônibus, mas somente 4 mil adaptados para os de-ficientes, o que acaba tornando o caminho do cadeirante cada vez mais difícil.

Mas após conversar com Ana Maria e saber sobre sua vinda para São Paulo e suas experiências na capital, eu não poderia deixar de me aproximar do tal “Pulga” para saber um pouco mais sobre sua história, ali na Avenida Paulista. Ao me aproximar dele pude reparar que seu corpo sofria de grandes atrofias musculares, com pernas e pés atrofiados e uma mão muito torta. Ele só consegue se mover com a ajuda de seu braço direito.

Com uma aparência simples, roupas gastas, olhos estrábicos e verdes, daqueles verdes claros, que muitas vezes se confundem com o azul, pés descalços e mãos calejadas de tanto suportar o peso do corpo, Pulga pode ser facilmente confundido com um mendigo, à primeira vista, por quem não conhece sua história.

Eliomário Elias de Souza – até então conhecido por mim apenas como “Pulga” – tem 34 anos e está na avenida Paulista em busca de ajuda para conseguir comprar a bateria de sua cadeira de rodas.

“Se eu conseguir a bateria da minha cadeira eu vou dar um jeito de arrumar alguma coisa pra fazer”, diz ele.

Quem passa pela Paulista e vê Eliomário sentado no chão, em frente a uma caixa de papelão com os dizeres “Preciso de sua ajuda. Qualquer quantia me ajudará muito! Deus te abençoe”, acha que ele é só mais um entre os outros mendigos que ficam por ali tentando ganhar a vida de alguma forma. Ninguém imaginaria que esse mes-mo homem é casado, pai de família e com um filho de 4 anos; uma vida tão semelhante à de tantas outras pessoas que também passam

por ali, bem ao lado dele.Quando lhe pergunto por que escolheu justamente a avenida

Paulista para pedir ajuda, ele responde:“Aqui o pessoal tem mais carinho. Como você viu, ela (Ana Ma-

ria) se preocupa comigo, igual a muitos que passam por aqui, enten-deu? Eu tenho amizade com todo mundo aqui”.

A Paulista é uma avenida humanizada, e tem essa cara de “lugar-acolhedor-de-São-Paulo”, onde todo mundo pode se encontrar e querer se sentir um pouquinho mais humano e protegido da indifer-ença tão comum da cidade grande.

“Eu comecei procurando alguma coisa pra fazer aqui, porque aqui tem muitas empresas, gente que conversa. Daí eu queria ar-rumar um bico, né? Mas como eu estava com a minha cadeira que-brada eu falei ‘eu vou a luta, não vou roubar de ninguém!’”, explica ele, contando sua história nesse lugar.

Eliomário vai de longe para a Paulista todos os dias em busca de ajuda para comprar a bateria de sua cadeira de rodas. Quando per-gunto por que Ana Maria passava pomada em seu joelho – como se eu não soubesse de nada –, ele conta um pouco mais sobre o trajeto que percorre até chegar à Paulista.

“Eu venho de metrô pra cá, venho me arrastando e me apoiando nessa mão – diz ele mostrando a mão direita para mim. Eu deixo o horário de pico acabar, pra eu poder vir. Mas é que muita gente quer entrar na pressa nos vagões e passa por cima de você. E na escada rolante é metal, ela tem quina. Então, conforme eles passam por cima de mim, eu acabo batendo o joelho na quina da escada. Esse é o meu joelho de apoio pra andar. Então, como eu bati ele na quina, acabou machucando”, conta, mostrando o joelho inchado e muito roxo, como se as batidas já tivessem se tornado constantes em seu trajeto diário para a avenida.

Para Eliomário, as pessoas da Paulista o tratam muito melhor do que as outras pessoas que ele enfrenta pelo seu caminho no metrô, até chegar na avenida. É como se ele se tornasse imperceptível perante a pressa das pessoas que passam. Mas na Paulista as coisas parecem ser diferentes pra ele.

“O que importa pra mim é o carinho do pessoal aqui. Eu não

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venho aqui pra atrapalhar ninguém, como você vê escrito ali – apon-ta ele para os dizeres da caixa de papelão em sua frente –, eu não peço pra ninguém, a pessoa põe o dinheiro se ela quiser. Não adianta eu ficar te incomodando, porque você vai ver a minha situação”.

Eliomário prefere não pedir ajuda diretamente para não amolar a vida de ninguém que passa por ali, até por saber que quem passa por ele consegue ver seu problema físico e sabe que espera a ajuda de bom coração.

Assim como boa parcela da população que vive em São Paulo, Eliomário era do Nordeste. “Eu sou baiano, sou da mesma terra da Ivete Sangalo!”, conta ele sorrindo pra mim, cheio de orgulho de seu estado. Ele diz que foi para São Paulo aos 22 anos, na época em que sua mãe adoeceu na Bahia e ambos tiveram que vir para a capital paulista, onde o restante dos irmãos já morava.

“Eu cheguei aqui e gostei do lugar, aqui o deficiente tem mais carinho das pessoas. Ela mesma (referindo-se novamente a Ana Ma-ria), quando for mãe ela não vai ser mãe, vai ser uma rainha. Ela é uma grande mulher”, diz Eliomário, admirando sua amiga Ana Maria.

O carinho com que Ana Maria trata Eliomário, ali no chão da calçada da Paulista, o faz se sentir especial e querido pelas pessoas ao seu redor, e não um peso ou um “objeto” que atrapalha o cenário da avenida. Como qualquer outro ser humano, ele tem os mesmos sonhos e objetivos que muita gente tem.

“Eu tinha um sonho de construir uma família também, acho que é o sonho que todo homem tem. Quando eu vim pra cá eu não tinha benefício nenhum”, referindo-se ao dinheiro que recebe do governo. “Foi um colega meu que conseguiu pra mim. Porque não tem como eu sobreviver aqui sem o benefício, mas se eu voltasse pra minha cidade, lá na Bahia, seria pior. Lá o deficiente não tem chance nenhuma. Aqui em São Paulo, o deficiente tem mais chance, pelo menos”, explica ele sobre sua atual situação.

São Paulo é uma das cidades do país mais adaptadas para os deficientes, entretanto acontecem casos como o de Eliomário; as pessoas, literalmente, passam por cima dele no transporte público, como se fosse uma espécie de animal que ninguém quer dar atenção

“Só vou te fazer uma pergunta: você acha que com 510 reais você sobreviveria?”

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e que chutam para o lado. Para ele, ainda assim São Paulo é melhor do que a Bahia, mas nem por isso existem menos problemas.

“Só vou te fazer uma pergunta: você acha que com 510 reais você sobreviveria? – pergunta Eliomário, olhando para mim e aguardando minha resposta. É o meu caso, entendeu? Eles – diz ele se referindo à polícia – pegam no pé porque veem a pessoa aqui pedindo ajuda, daí eles vão ver, o prefeito vai ver, porque vocês tão colocando na mídia – conta ele olhando para o gravador que estou segurando em uma das mãos –, e ele não tá nem aí pra você, ele não tá nem aí pra sua família. Ele tá preocupado com o bolso dele. Filmaram um rapaz ali – aponta ele para a avenida Brigadeiro Luís Antônio –, e o pessoal começou a pegar no pé. Depois de uns dias, tiraram o rapaz dali”.

A fiscalização na Paulista é bem rígida quando se trata de qualquer forma de mendicância, como se a principal – e mais imponente – avenida de São Paulo não tivesse lugar para esse tipo de gente. A luta de Eliomário para sobreviver na metrópole não é fácil, e ainda assim ele me surpreende mais uma vez durante a nossa conversa:

“Antes eu não tinha ninguém, então a minha aposentadoria dava pra me manter. Mas agora eu tenho família. Acho que todo mundo quer uma companheira, você quer um companheiro também, né?”, pergunta ele para mim enquanto balanço a cabeça afirmativamente, concordando com a sua pergunta. “Tem eu e minha esposa, e agora eu vou te dar mais uma surpresa – diz ele sorrindo pra mim –, ela também tem deficiência e nós temos um filho saudável de 4 anos. Eles são tudo o que eu tenho na vida. E ela nem sabe que eu tô aqui pedindo essa ajuda”, confessa Eliomário.

Naquele momento me emociono profundamente com a história dele e sua luta diária para conseguir realizar seu sonho de conseguir o dinheiro para as baterias de sua cadeira de rodas. Sonho que poderia ser realizado num estalar de dedos por muitos dos empresários que passam por ali. E, ainda assim, se machucando no metrô e sofrendo para se locomover, Eliomário não desiste de ir todos os dias para a Paulista, e faz questão de manter sempre um sorriso no rosto.

Pergunto a ele o que diz todos os dias para à esposa ao sair de casa pela manhã, e ele responde:

“Eu falo pra ela que eu vou atrás de alguma coisa, algum bico”,

explica. “Deus nunca me deixou na mão e nem vai me deixar, porque ele é meu grande pai e eu tenho muita fé nele”, diz ele muito reli-gioso com e suas crenças.

Eliomário acorda todos os dias e inventa uma desculpa para a esposa, para poder ir até a Paulista mostrar um pouco de sua história para as pessoas que passam por ela, tentando pedir ajuda para re-solver os seus problemas, que não são poucos, e mesmo assim ainda é otimista e tem fé em um final feliz para sua própria história. É perceptível que a família é o pilar central da vida de Eliomário, assim como na de muitas outras pessoas.

“Eu conheci minha esposa há 8 anos, quando fui passear na casa de um colega meu. Ela tava lá, e os irmãos dela foram. Pra mim, não são meus cunhados, são meus irmãos. Tenho muito carinho por todos eles, e eles não sabem que eu faço isso – referindo-se a pedir dinheiro na Paulista –, e eu também não quero que saibam. Eu quero poder dar o melhor pro meu filho e pra minha esposa, porque eles foram o presente que Deus deu pra mim”, diz ele emocionado com o que me conta.

Enquanto estou agachada na calçada conversando com El-iomário – já que ele não pode ficar em pé por conta de sua deficiên-cia –, um jovem rapaz bem vestido passa, deposita algumas moedas dentro da caixa de papelão ao lado de Eliomário e diz, com uma voz humilde de quem sabe que tem problemas muito menores do que os do homem sentado no chão: “Não é muito, mas é de coração, viu?” e Eliomário responde: “Que Deus te abençoe e vá com Deus”, como quem profetiza uma oração como forma de agradecimento para aqueles que o ajudam de bom coração.

Eliomário nasceu com deficiência por conta de uma queda que sua mãe sofreu enquanto ainda estava grávida de 9 meses. O tombo fez com que o parto fosse complicado e ele nasceu com estrabismo e músculos atrofiados, o que dificulta sua movimentação.

“Tem gente que sobrevive daquilo – o benefício dado pelo gov-erno. Sabe quanto é as baterias que eu preciso? – pergunta ele pra mim – 1200 reais. Eu não posso deixar o meu filho com fome pra comprar bateria. Daí eu falei ‘vou à luta’, e com o dinheiro que eu ganhar eu vou me manter”.

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De acordo com a Constituição brasileira, o governo deve garantir um salário mínimo às pessoas portadoras de deficiência e idosos que comprovem não terem meios para se manter. Além do benefício, os deficientes também têm isenção de impostos sobre veículos e direito de eliminação de barreiras arquitetônicas.

De repente, um senhor calvo, bem vestido e com aparência simpática passa por nós e diz em um tom alto que me faz assustar um pouco:

“Esse cara aqui – apontando para Eliomário – é corintiano roxo, ele não vale nada! Não conversa com ele não!” e ri passando a mão na cabeça de Eliomário, que também ri da brincadeira do homem e diz: “Só Deus pra dar a riqueza pra nós”.

A riqueza de Eliomário é esse carinho que recebe na avenida mais importante de São Paulo, sendo tratado como gente de verdade e não como um peso que ocupa espaço na escada rolante do metrô. E é por conta desse carinho que ele se sente tão acolhido nesse lu-gar.

“Minha esposa tem paralisia e tem 25 anos, ela vai fazer 26 no dia 28 agora”, conta ele, sorrindo por saber que a data do aniversário da esposa está se aproximando. “E ela é paulistana. Eu gosto daqui de São Paulo, mas sabe por que eu comecei a gostar? Tem uma moça que é dos Estados Unidos, e quando ela vem aqui na Paulista ela senta aqui no chão comigo – diz ele apontando a mão deformada pelos músculos atrofiados para o chão da calçada. Isso é pra você ver como todo mundo gosta de mim aqui. Pra mim, o mais impor-tante é o carinho e não o dinheiro deles”, entrega o homem.

O melhor exemplo desse carinho é a história de Ana Maria e Eliomário. Uma mulher que já tem problemas suficientes por morar sozinha em uma cidade como São Paulo e estar longe de sua família, ainda assim arruma tempo para conversar e se importar com a vida de uma pessoa simples como Eliomário, que para muitos que pas-sam por ali é apenas mais um mendigo que todos fingem não ver.

Quando conversei com Ana Maria, antes de conhecer a história de Eliomário, ela havia me contado sobre o problema da cadeira de rodas dele, e promete a si mesma que vai tentar ajudá-lo.

“Ele tem uma cadeira de rodas, mas que precisa de bateria para

“Eu não posso deixar o meu filho com fome.”

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funcionar. E eu já tentei procurar a bateria pra ele, mas eu ainda nem tive muito tempo pra ver isso... mas eu vou ver!”, promete ela.

Relações como essa passam a se tornar cada vez mais raras em metrópoles como São Paulo, onde ninguém olha pra ninguém, a não ser para a pressa dos próprios sapatos.

A Paulista concentra pessoas de todos os tipos, não apenas de diferentes tribos e estilos, mas de diferentes classes sociais e de pon-tos divergentes da capital. Como área comercial e centro financeiro que é, pessoas de todos os cantos da cidade se encontram ali para trabalhar. Desde empresários da alta cúpula até mesmo pessoas sim-ples, como as 4 simpáticas faxineiras que conheci durante o horário de almoço na Paulista.

Maria José, de 48 anos, e Susilei, de 41, trabalham como faxinei-ras do banco Itaú na avenida Paulista. Maria – nascida em São Paulo – está na Paulista há mais tempo que Susilei.

Durante o horário de almoço, o fluxo pelas calçadas da avenida parece duplicar. Todos saem para aproveitar o horário livre do al-moço e fazerem suas refeições nos tantos restaurantes da Paulista e suas travessas, e para colocar a conversa em dia, seja descansan-do nos bancos do Parque Trianon ou debaixo de alguma árvore da avenida.

Quando passo próxima à escadaria do prédio da Gazeta, avisto as duas faxineiras sentadas perto de um banco de ponto de ônibus enquanto descansavam no horário de almoço. Consigo perceber que trabalham na área de limpeza pelas suas roupas. Ambas vestiam ig-ualmente uniformes, com touca branca, calças jeans e sapatos pre-tos.

Ao me aproximar para conversar, percebo que se sentem um pouco retraídas e tímidas. Se recusam – a princípio – a responder às minhas perguntas. Depois de conversar com as duas e explicar que seria somente um bate-papo gravado com áudio apenas, sobre a opinião delas sobre o local, elas me dão mais abertura para iniciar a conversa.

Susilei conta que nasceu na Bahia e veio sozinha para São Paulo, aos 22 anos, para morar na casa do irmão, que já estava na cidade há algum tempo. O motivo foi o mesmo de muitos que vão do Nor-

deste para São Paulo: a busca por emprego e melhores condições de vida.

“É ‘bão’ trabalhar aqui. Tem bastante movimento, né?”, diz ela.Elas me contam que entram às 5h20 da manhã do trabalho, e que

isso requer um certo sacrifício, para estarem lá no horário.“Saio de casa às 3h30 da madrugada, que é quando eu pego o

1º ônibus, que sai lá de Guaianases – distrito no extremo leste de São Paulo. Depois eu pego mais duas conduções, uma lotação e um metrô. Demora quase 1 hora e meia pra chegar aqui”, conta Maria José.

Quando pergunto se às 5h20 da manhã já tem movimento pela avenida, ela ri e nem pestaneja para responder:

“Iiiiih, já tem!”, diz ela rindo. “Às 5h20 tem gente chegando pra trabalhar, gente passando, é bastante movimentado aqui, viu? Isso daqui deve ter movimento a noite inteira! Ainda mais naquela rua ali, né? – diz Maria José apontando para a Rua Augusta. Ali acho que o pessoal não dorme. É todo dia. Tem uns barzinho noturno ali, ai minha filha”, conta ela rindo da diferentes figuras que aparecem pela famosa e indiscreta Augusta.

Já Susilei sai de casa às 4h da manhã, um pouco mais tarde do que sua colega Maria José. E conta que quando quer chegar um pouco mais rápido ao trabalho evita a baldeação no metrô e pega 3 ônibus.

“Quando eu cheguei aqui pela primeira vez eu achei que fosse ser o paraíso”, confessa ela, com uma voz desapontada. “Por que todo mundo falava que a Paulista era o cartão postal de São Paulo, mas

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eu não vi nada do que o pessoal fala. Achei um bairro normal. Na verdade, eu acho que lá na Bahia tinha lugar melhor”, diz ela demon-strando como gosta de seu estado de origem.

Quando pergunto a ela porque acha que a Bahia seria melhor do que São Paulo, ela responde:

“Por que lá – na Bahia – pelo menos os bairros tem praia em vol-ta! Aqui se você quer ir pra praia tem que ir lá pelos lados da baixada santista”, conta Susilei, não conseguindo esconder a saudade que sente das praias de sua terra natal.

Quando questiono se ela não tem vontade de voltar a morar na Bahia, para ficar mais próxima de sua família e parentes, ela pensa um pouco e fala:

“Não tenho vontade de voltar pra Bahia pra morar lá, mas se eu pudesse iria todo ano pra passear. Aqui pelo menos tem emprego, lá, nem isso”.

Susilei não gosta de São Paulo. Não tem jeito. Para ela, São Paulo tem suas infinitas dificuldades, mas ainda assim oferece emprego. Mesmo que seja obrigada a acordar às 4h da manhã para conseguir atravessar a cidade em 3 conduções para chegar a tempo no tra-balho. E a vida de transporte público não é fácil, principalmente para moradores dos distritos mais distantes de São Paulo, como é o caso de Maria José e Susilei.

“De manhã, o transporte é ótimo, não tem trânsito, não tem muita ‘muvuca’, mas pra voltar, ui, menina”, solta Maria José, com seu jeito divertido de contar histórias. “A gente sai daqui às 14h20 e chega em casa 16:30h, dependendo do trânsito, até umas 17h. E quando sai daqui às 6 horas da tarde, piorou então!”, conta Maria José.

O transporte público da metrópole paulista é um dos serviços mais críticos decorrentes da super população da cidade. Segundo dados da Secretaria Municipal de Transportes, cerca de 14.990 mil ônibus e micro-ônibus circulam por São Paulo todos os dias, le-vando em torno de 9,6 milhões de passageiros.

“Eu já sai daqui às 21h e não é mais tranqüilo, é ‘muvuca’ do mesmo jeito. Às 18h nem se fala, porque é horário de pico. Nesse horário ninguém passa, os ônibus não andam”, explica Susilei.

Maria José e Susilei fazem parte da parcela que acorda a aveni-da Paulista todos os dias mesmo antes do sol raiar, assim como os porteiros dos edifícios, cozinheiros, donos de banca de jornal e fun-cionários do metrô.

“Bem cedinho, o movimento é moderado, depois de umas 8h da manhã começa a ficar mais cheio, que nem tá agora. Mas eu até que gosto de morar aqui. Na verdade, não tenho escolha!”, diz Susilei rindo, por se contentar com a única opção que Deus lhe deu.

“Se eu pudesse, eu ia pra Fortaleza, Campos do Jordão”, diz Ma-ria José, se imaginando morando em outras cidades do país, mel-hores do que São Paulo, na opinião dela. “Nas cidades do interior é mais seguro, a qualidade de vida melhor, até o ar é melhor. Aqui é muito violento, né? Mas tem muito movimento, é legal quando tem eventos. Que nem quando teve a parada gay!”, ri Maria José enquan-to entreolha para Susilei, ambas achando muita graça nas diferenças vistas na avenida durante a Parada GLBT que reúne milhares de pessoas todos os anos.

Quando pergunto a elas se foram até a Paulista acompanhar a Parada Gay de perto, elas dão risada e dizem:

“Eu vi pela televisão, porque eu não me arrisco a vir pessoal-mente. Mas parecia ser muito legal! A corrida de São Silvestre é legal também. No final do ano tem o palco que montam aqui pra fazer a virada do ano. Atrai bastante gente de todo lugar da cidade”, explica a divertida faxineira Maria José.

Ao conversarmos sobre a violência presente na Paulista, e se elas se sentem seguras na via mais importante de São Paulo, as duas faxi-neiras apresentam uma visão um pouco diferente da maioria.

“Eu não acho a Paulista mais segura que outros lugares de São Paulo. Vira e mexe tem gente falando que foi assaltado aqui. Aqui em frente mesmo – aponta ela para um local alguns metros à frente –, os caras tomam a bolsa dos outros. Acho que com o passar dos anos vai ficar tudo a mesma coisa. Pra melhorar, só se for milagre”, diz Maria José incrédula.

É com visão pessimista – ou talvez realista – que elas enxergam o futuro da maior cidade do país para aqueles que, assim como elas, dependem da segurança e do transporte público do governo.

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Após conversar com Maria José e Susilei, continuei andando pela calçada da Paulista ainda durante o período do almoço. As pessoas começavam a sair dos restaurantes para conversarem e descansarem antes de voltarem ao trabalho.

Andando um pouco mais, encontrei mais uma dupla de faxineiras sentadas. Ambas observavam o movimento das pessoas que passa-vam, ainda aproveitando o que restava do horário livre do almoço.

Isabel – 33 anos – e Arlene – 34 – trabalham como faxineiras no banco HSBC, ali na Paulista. Isabel, assim como Susilei, tam-bém nasceu na Bahia e veio para São Paulo em busca de melhores condições de vida.

“Eu vim para São Paulo com 12 anos e trabalho aqui na Paulista. Gosto de trabalhar aqui. Mas acostumei, né? No começo, não gos-tava não”.

Isabel diz que gosta de São Paulo porque já se acostumou com a cidade. Como se não houvesse nada que não fosse possível se acos-tumar. Nada que não fosse completamente substituível. Para quem vem de longe, a única opção para se adaptar à metrópole é essa: se acostumando.

“Eu não gostava muito daqui por que tudo era muito longe pra mim. Eu entro as 8h, daí eu tenho que sair de casa umas 5h40 e pego 3 ônibus. É bem cansativo às vezes”, conta ela.

Já sua colega Arlene sai ainda mais cedo de casa, às 5 horas da manhã:

“Eu saio da minha casa às 5h e pego 2 ônibus pra chegar até aqui. Daí depende, porque quando tem trânsito, às vezes só chega aqui às 9h. E o ônibus vem cheio. Pra voltar é pior ainda, porque eu saio às 5 horas da tarde. Às vezes consigo chegar em casa só às 9h ou 10h da noite”, explica Arlene, que passa pelo mesmo problema que os outros 9,6 milhões de usuários do transporte público da cidade de São Paulo.

“Pra vir até aqui demora muito, é muito longe, é muito cheio”, reclama Arlene.

Mas São Paulo é assim: cheia. Cheia de gente, cheia de carros, cheia de trânsito, cheia de sonhos e cheia de caos. A cidade-metró-pole não para de encher, e não se sabe até quando ela irá agüentar.

“Às vezes, fico esperando até 40 minutos no ponto de ônibus pra conseguir pegar o que eu preciso”, fala Arlene, comentando os problemas que enfrenta em São Paulo. “E tem motorista que não para!”, diz ela nervosa com a falta de consideração dos motoristas. “Esses dias, eu fiquei com uma raiva; sai daqui era umas 5h da tarde, porque eu vou até a Brigadeiro – avenida que cruza a Paulista – an-dando, de lá eu pego um ônibus pra ir até o parque Dom Pedro e de lá eu ainda pego outro. Menina – diz ela olhando pra mim com jeito de quem iria me contar uma coisa que eu não acreditaria –, eu sai do Parque Dom Pedro era 7 horas da noite! Fiquei revoltada! O ônibus não passava, e quando chegou o motorista ainda desceu, saiu pra conversar e demorou uns 10 minutos pra sair ainda”, desabafa Arlene em meio a nossa conversa.

E, então, faço a pergunta crucial a ela e a todos aqueles que de-pendem de transporte público em São Paulo: “E quando chove?”

“Ah, menina, daí para tudo”, conta Arlene, como se eu já não soubesse sua resposta. “Tem gente que chega em casa 11h da noite. Eu mesma já cheguei em casa às 11h, saindo daqui as 5h. Porque choveu, daí a Avenida do Estado ficou toda parada. Semana passada mesmo – lembra ela –, passei tanta raiva! Cheguei em casa às 10h da noite saindo daqui às 4h30 da tarde!”

Arlene conta muito de suas experiências em São Paulo com o transporte e com o caos que é essa cidade, enquanto Isabel fica mais retraída, ouvindo as histórias e reclamações de Arlene e concordan-

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do com o que a colega de trabalho diz. Assim como ela, Isabel tam-bém sofre com as condições de transporte e com a vida na capital paulista.

“Eles falam que vai melhorar, né?”, questiona Arlene. “Não sei quando. Eu acho que não melhora não, tem construção que tá para-da a tanto tempo em um monte de lugar aí. Aqui as coisas tão mais pra piorar, isso sim”, diz ela, um tanto quanto desacreditada das conhecidas – e gastas – promessas do governo.

A Paulista é considerada um dos locais mais seguros e policiados de São Paulo, mas para as duas faxineiras ainda é uma região de risco.

“Acho que nenhum lugar daqui tem segurança. Já vi assalto aqui, sim. O homem pediu a bolsa e as coisas da moça e ela teve que dar. Desespero, né?”, conta Isabel, com pena da cena que viu ali, colocando-se no lugar da moça que sofreu o assalto.

“Outro, que eu vi, tomou o carro da moça e fez ela descer. E era a moça que trabalha lá no banco, a gente conhece ela. E era uns ‘muleque’, num era nem homem grande. Botou a arma na cabeça dela e mandou descer. E aí ela perdeu o carro dela, coitada”, lamenta Isabel.

Mesmo com todos os problemas e dificuldades enfrentadas diari-amente na metrópole, ainda assim a violência e a criminalidade são realidades que a maioria da população tenta superar com o famoso “jogo de cintura” brasileiro, juntamente com as diferenças que a ci-dade abriga.

“Achei legal aqui, né? Aqui tem muita gente diferente, uns é doi-do, uns é maluco” – ri Isabel, falando sobre as diferentes caras e jeitos que vê todos os dias passando pela Paulista. Onde, para ela, a diferença é maluca, doida, como quem não liga para o que vão pen-sar sobre a falta de lucidez.

“Até comentei com ela – diz Arlene se referindo à colega Isabel –, aqui só tem louco. O povo anda de todo jeito, às vezes tá um frio e tem gente de shortinho curto”, conta ela, rindo, ao lado da colega de trabalho.

Quem trabalha na avenida é exposto ao constante estresse e ris-cos de um lugar que reúne 1,5 milhão de pessoas todos os dias, mas

“Ela – como se ele falasse de uma bela moça formosa

– tem todo um desenho perfeito.”

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que, por outro lado proporciona essa visão tão diferente das mistu-ras que podem ser encontradas na rotina já pálida e desgastada.

“Aqui é o lugar mais louco de São Paulo”, essa é a definição da Paulista feita por Gustavo Guerra, mais um dos que trabalham – e adoram – esse lugar.

“Trabalhar aqui é um sonho realizado”, conta Gustavo, um bo-nito rapaz de olhos claros, 28 anos, e que trabalha na Fiesp – um dos cartões postais mais conhecidos de São Paulo.

Encontrei-o sentado no vão livre do MASP, o lugar preferido para quem quer passar um tempo livre um pouco longe do tumulto dos dias úteis na avenida, apreciando uma linda vista de São Paulo e pegando um pouco de sol, especialmente nas tardes frias de Julho.

“Eu adoro a Paulista, acho que é o lugar mais louco de São Paulo. Tem cara de primeiro mundo, é animal. A Paulista representa o fu-turo, o desenvolvimento, a oportunidade, paisagismo, arquitetura, não sei cara, é o primeiro mundo aqui. Parece outro país assim, sabe?”, deslumbra-se o jovem Gustavo.

Muitas pessoas, como ele, têm como sonho trabalhar na Paulista, o maior centro empresarial do país, onde tudo se faz e acontece. É certo status alguém dizer que trabalha na avenida Paulista, seja lá o que se fizer nela. Na Paulista se está entre pessoas importantes, que fazem coisas importantes em um lugar considerado importante. Não há como isso passar despercebido.

“Ela – como se ele falasse de uma bela moça formosa – tem todo um desenho perfeito, um recuo. Por que você vai a algumas avenidas de São Paulo que, cara – fala Gustavo com o típico sotaque pau-listano –, tem a avenida e o prédio já tá quase na rua. Aqui os prédios são maravilhosos, tem o recuo, tudo é muito bonito”.

Trabalhar em um lugar bonito e atraente é uma das coisas que todo mundo sempre quis. Por isso, a Paulista é tão almejada por quem sonha trabalhar (ou já trabalha) em São Paulo.

“Eu prefiro o interior a São Paulo. Eu já morei em Piracicaba, Águas de São Pedro, acho que o lugar mais legal de se morar no Bra-sil seria o Nordeste. Eu adoro São Paulo, mas é muito estresse, muito barulho. Morar aqui compensa pra quem quer trabalhar, porque é a cidade das oportunidades, né? É aqui que começa tudo, cara”.

Paulista sempre foi sinônimo de novidade, de tendência, de in-ovação, características já presentes desde o seu projeto, feito pelo engenheiro Joaquim Eugênio de Lima, com o objetivo de criar uma avenida destinada ao lazer.

“Eu acho que a Paulista é a Ipanema de São Paulo”, define Gustavo. E talvez essa seja uma das melhores definições já feitas até hoje para a avenida.

“Aqui é um lugar onde você se movimenta pra fazer as suas obrigações, mas também pode tomar um sol, como a gente tá fazen-do agora, tem gente sentada ali no parque, lendo revista. Você pode ver gente de todo tipo”. Inclusive pessoas que moram em bairros mais distantes do centro e que vem até a Paulista pelo simples fato de admirarem um ambiente diferente.

Esse é o caso de Augusto Scanavini e sua esposa Ana. Ambos foram até a avenida para levar o pequeno Luigi – filho do casal – para passear e conhecer o local.

“Moro em Santana. É muito difícil eu vir pra Paulista, eu vim pra cá por causa dele – apontando para o filho que brincava na área do vão livre do MASP. Ele queria passear de metrô, é louco por trem. Daí falei que ia trazer ele na Paulista pra dar uma andada e con-hecer”, conta o pai.

Criar os filhos em São Paulo não é uma tarefa fácil para os pais. Escolas caras, custo de vida elevado, falta de segurança e, por con-seqüência, de liberdade também. Hoje em dia as crianças de classe média crescem cada vez mais sozinhas, atrás do vidro e do metal das janelas dos condomínios fechados.

“Viver em São Paulo? – diz Augusto, repetindo a pergunta que acabara de fazer a ele. Para a qualidade de vida, não. Interior é muito mais sossegado, principalmente com filho. Eu me mudaria daqui de São Paulo”.

“Depois que a gente tem filho, a gente muda a visão. Antes a gente pensava em lugares para sair, baladas, era outro estilo de vida. Quando o Luigi nasceu, a nossa ideia mudou. Passamos a ter outra visão da vida, outros valores”, explica Ana, complementando a fala do marido.

Quando pergunto por que escolheram trazer o pequeno Luigi

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justamente para a Paulista, a mãe me responde: “É um lugar diferente. Ela não se diferencia só em São Paulo,

mas em todo o Brasil. De dia de semana aqui é loucura, uma cor-reria de lá pra cá, e de fim de semana é mais tranqüilo, se torna um ponto cultural para as pessoas. Mas a gente vem pouco pra cá, né? – pergunta ela ao marido. É que às vezes acaba não sobrando tempo mesmo”.

Tempo. O que mais falta na metrópole global tão cheia de pes-soas e informações. O tempo é algo raro pra quem vive ali, já que se perde muito dele tentando chegar aos destinos dentro da cidade mercada pelo caos (tão apreciado por muitos).

Segundo pesquisa feita no “Dia Mundial Sem Carro”, o paulista-no gasta em média 2 horas e 42 minutos para fazer todos os seus deslocamentos diários, como ir ao trabalho ou para a escola. Tempo normalmente gasto em uma viagem de 297 km, a 110km por hora, podendo-se ir de São Paulo até Araraquara, no interior do estado, por exemplo.

Para que pagar um preço tão alto? “Porque São Paulo tem tudo o que eu preciso e mais um pouco”, argumenta o estudante de 19 anos Luca Parise, bem em baixo do vão livre do MASP numa tarde de sexta-feira.

Luca nasceu na França e veio para o Brasil com 3 anos de idade, mas se considera 100% brasileiro, mesmo com a brancura européia, os cabelos louros e os olhos azuis.

“Amo morar em São Paulo. É uma cidade onde tudo o que quero fazer eu acho aqui. Não moro perto da Paulista, mas eu gosto tanto daqui que venho quase sempre só pra passear por aqui. Hoje, por exemplo, vim encontrar um amigo e tirar algumas fotos”, fala ele empunhando a câmera profissional nas mãos.

Luca chamou minha atenção exatamente por estar tirando fotos do cotidiano da avenida, em horário comercial, numa tarde de sexta-feira. Como se tivesse ido até lá apenas para registrar e apreciar as diferentes cenas que seriam criadas em frente aos olhos dele.

“Aqui em volta da Paulista você acha o que você quiser, desde um lugar mais refinado até um boteco. Eu vejo a Paulista como um corte da sociedade. O que eu mais gosto daqui é a biodiversidade.

Você vê uma galera perdida, uns caras normais, uns caras de terno e gravata, você vê de tudo aqui. Se você for à Faria Lima, que também é uma avenida grande, você não vai ver mendigos andando de skate, e aqui você vê. E aqui você vê tudo, exatamente tudo”, conta o pa-risiense apaixonado por São Paulo.

Em meio a nossa conversa no vão livre do MASP, pergunto como ele passou a enxergar a avenida com mais romantismo e humanismo do que outras pessoas que encaram a Paulista como apenas mais uma avenida grande.

“Percebi que esse lugar era bizarro, no bom sentido – ri ele – quando eu tava saindo de um bar aqui perto, era 6 horas da manhã, e eu vi um mendigo com roupas importadas, completamente chiques. E era ‘mendigão’ mesmo, fedido, barba por fazer. E ele tava andan-do de skate. Isso 6 horas da manhã de um domingo. E eu achei bi-zarro, achei engraçado”, diz Luca relembrando uma das cenas mais marcantes que viu na Paulista até hoje.

Todo mundo que sente um certo carinho pela avenida símbolo de São Paulo já passou ou viu alguma cena ou momento marcante nela. Quando pergunto a ele como seria se ele tivesse que morar em outro lugar, ele responde:

“Pra eu morar em outro lugar teria que ser uma cidade maior que São Paulo. Eu sou muito mimado com São Paulo, aqui tem tudo”, confirmando o típico pensamento metropolitano de quem não troca a cidade grande por nada.

Entretanto, mesmo amando a cidade de São Paulo como ela é, Luca também enxerga as deficiências de uma cidade que parece não se preocupar com sua população. Uma questão que nunca passa des-percebida aos olhos.

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“Acho o transporte público fraquíssimo aqui. Por exemplo, só em 2010 que abriu a primeira linha de metrô que vem da Faria Lima, que é outro pólo comercial, até a Paulista. Se fosse em qualquer outro lugar do mundo, duas avenidas dessa dimensão já estariam ligadas há muito mais tempo”, explica ele.

O metrô de São Paulo tem 70,6 km de extensão e transporta di-ariamente mais de 3 milhões de passageiros em 5 linhas diferentes: vermelha, azul, lilás, amarela e verde, esta última se tornando a veia principal de São Paulo, passando bem debaixo da Paulista.

A linha verde foi inaugurada em 1991 e transporta passageiros da Vila Madalena até a Vila Prudente, passando pelas 4 principais esta-ções da Paulista: Consolação, Trianon MASP, Brigadeiro e Paraíso, trecho mais antigo da linha, com 20 anos já completos.

“O ônibus aqui também é muito ruim”, avalia Luca.“Muitas vezes você é obrigado a pegar carro e pagar estaciona-

mento aqui, que é uma fortuna. Acaba sendo deplorável a situação do transporte”, diz ele.

A questão do transporte é um dos inúmeros problemas da metró-pole de São Paulo e todo mundo já está cansado de saber disso. É muita gente para pouco espaço. E é difícil acreditar em uma mel-hora.

“Eu tenho a impressão que a Paulista tá bem saturada, não tem mais o que mudar nela. Poderiam melhorar o policiamento, porque já teve muito amigo meu que foi assaltado e deu problema. Mas, mesmo assim, eu acho a Paulista um lugar seguro, tanto que eu ven-ho aqui tirar fotos com a minha câmera que eu comprei há 1 mês e não fico com medo. Acho que ela é bem policiada, comparado ao restante de São Paulo. Mas, claro, poderia ser mais policiada, mais limpa, muito mais bem tratada”, opina Luca.

Muito mais, a Paulista podia ser muito mais. Mais limpa, mais segura, menos homofóbica, mais abrangente.

Enquanto o trânsito da cidade se move a 11 km/h, existem pais, mães e filhos esperando para chegar em suas casas depois de mais um dia de trabalho na metrópole. São diversos papéis em um único cenário, muitas faces em um mesmo espetáculo que se repete todos os dias aos olhos de quem sabe ver. Tantas histórias distintas entrela-

çadas indiretamente. Quantos “Josés” devem existir por aí, vindos do Nordeste e tra-

balhando em alguma banca de jornal para ganhar a vida. Quantos “Eliomários” também não precisam de ajuda para conseguir sobre-viver de uma forma decente. Talvez até com um simples estalar de dedos de um dos tantos empresários que passam ao seu lado pela Paulista todos os dias.

Histórias tão próximas e tão distantes separadas pela impessoali-dade e pelo anonimato da megalópole. Personagens que só se tem o prazer de conhecer em meio a um ambiente caótico e apressado, onde cada conversa feita com calma é um prazer a ser degustado.

Ser cosmopolita é isso: agregar funções, personalidades, histórias. O “urbanóide” é feito como um boneco de retalhos, com um pouquinho de cada coisa que se vê pela cidade e que, no fim, renova um pouco mais da sua personalidade.

O urbano não para nunca, apenas se transforma.

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