dissertgerusa

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENERGIA EP/FEA/IEE/IF GERUSA DE SOUZA CÔRTES MAGALHÃES COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA NO AMBIENTE DE CONTRATAÇÃO LIVRE: UMA ANÁLISE REGULATÓRIO- INSTITUCIONAL A PARTIR DOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA DE ENERGIA ELÉTRICA SÃO PAULO 2009

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Curto-circuito

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ENERGIA

    EP/FEA/IEE/IF

    GERUSA DE SOUZA CRTES MAGALHES

    COMERCIALIZAO DE ENERGIA ELTRICA NO AMBIENTE DE CONTRATAO LIVRE: UMA ANLISE REGULATRIO-INSTITUCIONAL A PARTIR DOS CONTRATOS DE COMPRA E

    VENDA DE ENERGIA ELTRICA

    SO PAULO 2009

  • GERUSA DE SOUZA CRTES MAGALHES

    COMERCIALIZAO DE ENERGIA ELTRICA NO AMBIENTE DE CONTRATAO LIVRE: UMA ANLISE REGULATRIO-INSTITUCIONAL

    A PARTIR DOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA DE ENERGIA ELTRICA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Energia da Universidade de So Paulo (Escola Politcnica / Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade / Instituto de Eletrotcnica e Energia / Instituto de Fsica)para obteno do ttulo de Mestre em Energia.

    Orientador: Profa Dra Virgnia Parente

    SO PAULO 2009

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    FICHA CATALOGRFICA

    Magalhes, Gerusa Comercializao de energia eltrica no ambiente de contratao

    livre: uma anlise regulatrio-institucional a partir dos contratos de compra e venda de energia eltrica / Gerusa Magalhes; orientadora Virgnia Parente So Paulo, 2009.

    140 f.

    Dissertao (Mestrado) Programa de Ps Graduao em Energia EP / FEA / IEE / IF da Universidade de So Paulo.

    1. Energia Eltrica- aspectos econmicos. 2. Contratos. 3. Regulao Econmica I. Ttulo.

  • DEDICATRIA

    Dedico este trabalho ao Cris e ao Arnaldo

  • AGRADECIMENTOS

    Ao companheiro Cristovam Magalhes e ao amigo Arnaldo Farias pelo carinho e apoio incondicional que me deram durante todo o processo de realizao deste trabalho. orientadora e professora Virgnia Parente pelo suporte durante todo o curso de ps graduao. Aos professores Elbia Melo e Ricardo Gorini pelos valiosos conselhos. amiga e parceira de tantos anos de trabalho Miriam Zagatto pela inspirao profissional. Ao amigo e mestre David Waltenberg pelo estmulo na realizao e concluso do mestrado e tambm pelo acolhimento de sempre. Aos colegas da Turma de 2007, cujo apoio foi fundamental para concluso do curso.

  • RESUMO

    MAGALHES, Gerusa. Comercializao de Energia Eltrica no Ambiente de Contratao Livre: Uma Anlise Regulatrio-Institucional a partir dos Contratos de Compra e Venda de Energia Eltrica. 2009. 140p. Dissertao (Mestrado em Energia). Programa de Ps Graduao em Energia. Universidade de So Paulo, 2009.

    O presente trabalho apresenta a anlise dos Contratos de Compra e Venda de Energia Eltrica (CCVEE), principal instrumento que materializa a comercializao de energia eltrica no Ambiente de Contratao Livre (ACL), a partir das lies da Nova Economia Institucional (NEI), notadamente a abordagem da Economia dos Custos de Transao e dos Contratos Incompletos. Desde a abertura da Indstria de Energia Eltrica Brasileira (IEEB) livre comercializao na dcada de 1990, as transaes e os agentes que atuam neste mercado vm crescendo significativamente, consolidando suas transaes de compra e venda de energia eltrica prioritariamente por meio de CCVEE. Ocorre que tais instrumentos sofrem os reflexos da evoluo da regulao da IEEB e tambm esto sujeitos ocorrncia de eventos no previstos poca de sua formatao. No processo de renegociao, adaptao ou discusso de tais CCVEE, os agentes incorrem em diversos custos de transao. Assim, a partir desta abordagem, este trabalho visa avaliar a qualidade dos CCVEE, considerando seus atributos, contradies e perspectivas de evoluo.

    Palavras chave: Comercializao de Energia Eltrica. Ambiente de Contratao Livre. Contratos. Riscos. Regulao Econmica. Nova Economia Institucional. Economia dos Custos de Transao.

  • ABSTRACT

    MAGALHES, Gerusa. Electricity Sale in Free Contracting Ambiance: A Regulatory and Institutional Analysis based on the Contract of Purchase and Sale of Electricity. 2009. 140pages. Dissertation (Master in Energy). Graduate Program in Energy. Universidade de So Paulo (University of So Paulo), 2009.

    This paper presents the analysis of Contracts for Purchase and Sale of Electricity (Contratos de Compra e Venda de Energia Eltrica CCVEE), the main instrument that embodies the sale of electricity in the Free Contracting Ambiance (FCA). Such analysis was based on lessons extracted from the New Institutional Economics (NIS), mainly the approach focused on the Economy of Transaction Costs and Incomplete Contracts. Since the opening of the Brazilian Electric Power Industry (Indstria de Energia Eltrica Brasileira IEEB) to free trade in the 1990s, transactions and agents operating in this market have grown significantly, consolidating their business of purchasing and sale of electricity primarily through CCVEE. However, these instruments suffer the consequences of the evolution of IEEB regulation and are also subject to the occurrence of unanticipated events at the time of their formatting. In the process of renegotiation, adaptation or discussion of such CCVEE, agents deal with various transaction costs. Thus, from this approach, this study aims to evaluate the quality of the CCVEE, considering their attributes, contradictions and perspectives of evolution.

    Keywords: Electricity Sale. Free Contracting Ambiance. Contracts. Risks. Economic Regulation. New Institutional Economics. Economy of Transaction Costs

  • SUMRIO

    INTRODUO

    08

    CAPTULO 1. EVOLUO E REGULAO DA COMERCIALIZAO DE ENERGIA ELTRICA NO BRASIL

    1.1 Breve Histrico da Abertura de Mercado 1.2 Arcabouo Jurdico-Regulatrio da Comercializao Livre e Regulada 1.3 Especificidades da Livre Comercializao 1.4 Dados do Mercado Livre 1.5 Concluses

    14

    14

    21

    26 34 35

    CAPTULO 2. TEORIA DOS CONTRATOS 2.1 Noo de Contratos: Viso Econmica e Jurdica 2.2 Abordagem Institucionalista: Economia dos Custos de Transao e Contratos Incompletos 2.3 Aplicabilidade do Referencial Terico Indstria de Energia Eltrica 2.4 Concluses

    36 36 41

    49

    52 CAPTULO 3. PRINCIPAIS ASPECTOS DA LIVRE CONTRATAO DE ENERGIA ELTRICA

    3.1 Instrumento de Compra e Venda de Energia Eltrica 3.2 Fases de Negociao e Concretizao da Compra e Venda de Energia Eltrica 3.3 Reflexos do Ambiente Institucional 3.4 Riscos Associados Comercializao 3.5 Concluses

    53 53 59

    62 68 80

    CAPTULO 4. DESENHO TPICO DA LIVRE CONTRATAO DE ENERGIA ELTRICA

    4.1 Qualificao das Partes no Instrumento Contratual 4.2 Objeto e Condies de Uso da Energia Eltrica Contratada 4.3 Prazo de Vigncia do Contrato 4.4 Preo da Energia Eltrica Contratada 4.5 Garantias da Contratao

    81 81 84 87 89 91 92

  • 4.6 Penalidades Contratuais 4.7 Mecanismos de Soluo das Controvrsias Contratuais 4.8 Concluses

    93 96

    CAPTULO 5. ANLISE REGULATRIO-INSTITUCIONAL DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE ENERGIA ELTRICA NO AMBIENTE DE CONTRATAO LIVRE

    5.1 Atributos do Contrato de Compra e Venda de Energia Eltrica 5.2 Adaptao do Contrato de Compra e Venda de Energia Eltrica 5.3 Qualidade do Contrato de Compra e Venda de Energia Eltrica 5.4 Concluses

    98

    98 102 106 109

    CONSIDERAES FINAIS

    110

    BIBLIOGRAFIA

    115

    ANEXOS Anexo I Legislao Relevante para a Comercializao Anexo II Clusulas Tpicas dos Contratos de Compra e Venda de Energia Eltrica Anexo III Roteiro de Entrevistas com Agentes Setoriais

    122

    124

    132

  • LISTA DE FIGURAS, TABELAS E GRFICOS

    FIGURAS Figura 1 Bases do Novo Modelo Figura 2 Esquema Contratual Simplificado Figura 3 Tipos Contratuais

    TABELAS Tabela 1 Mudanas na Indstria de Energia Eltrica Brasileira Tabela 2 Sntese Comparativa do ACR e ACL Tabela 3 Evoluo de Agentes da CCEE

    GRFICOS Grfico 1 Consumo do Mercado Livre e do Sistema Interligado Nacional Grfico 2 Evoluo do PLD

  • LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    ACL Ambiente de Contratao Livre ACR Ambiente de Contratao Regulada AMFORP American and Foreign Power Company ANA Agncia Nacional de guas ANEEL Agncia Nacional de Energia Eltrica ASMAE Administradora de Servios do Mercado Atacadista de Energia Eltrica CCD Contrato de Conexo ao Sistema de Distribuio CCEAL Contrato de Compra de Eneriga no Ambiente de Contratao Livre CCEAR Contratos de Compra de Energia do Ambiente Regulado CCEE Cmara de Comercializao de Energia Eltrica CCEI Contrato de Compra de Energia Incentivada CCVEE Contrato de Compra e Venda de Energia Eltrica CCT Contrato de Conexo ao Sistema de Transmisso CDE Conta de Desenvolvimento Energtico CEMIG Companhia Energtica de Minas Gerais CESP Companhia Energtica de So Paulo CHESF Companhia Hidro Eltrica do So Francisco CMSE Comit de Monitoramento do Setor Eltrico CNAEE Conselho Nacional de guas e Energia Eltrica CNPE Conselho Nacional de Poltica Energtica COEX Comit Executivo do MAE COMAE Conselho do Mercado Atacadista de Energia Eltrica COPEL Companhia Paranaense de Energia CRC Conta de Resultados a Compensar CUSD Contrato de Uso do Sistema de Distribuio CUST Contrato de Uso do Sistema de Transmisso ECT Economia dos Custos de Transao ELETROBRS Centrais Eltricas Brasileiras S.A ELETRONORTE Centrais Eltricas do Norte do Brasil S.A. EPE Empresa de Pesquisa Energtica GCE Cmara de Gesto da Crise de Energia

  • GCOI Grupo Coordenador para Operao Interligada GCPS Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas GWh Giga Watt Hora IEE Indstria de Energia Eltrica IEEB Indstria de Energia Eltrica Brasileira kV Kilo Volt

    kW Kilo Watt

    MAE Mercado Atacadista de Energia Eltrica MCSD Mecanismo de Compensao de Sobras e Dficits MME Ministrio de Minas e Energia MRE Mecanismo de Realocao de Energia MW Mega Watt

    MWh Mega Watt Hora

    NEI Nova Economia Institucional

    ONS Operador Nacional do Sistema Eltrico PCH Pequena Central Hidreltrica PLD Preo de Liquidao de Diferenas PROINFA Programa de Incentivo a Fontes Alternativas RENCOR Reserva Nacional de Compensao de Remunerao RESEB Reestruturao do Setor Eltrico Brasileiro REVISE Reviso Institucional do Setor Eltrico RGG Reserva Global de Garantia RGR Reserva Global de Reverso SIN Sistema Interligado Nacional TUSD Tarifa de Uso do Sistema de Distribuio TUST Tarifa de Uso do Sistema de Transmisso

  • INTRODUO

    A Indstria de Energia Eltrica Brasileira (IEEB), a partir dos estudos realizados no mbito do Projeto RESEB, durante a dcada de 1990, passou por profundas alteraes. Diversas medidas institucionais voltadas atrao de investimentos advindos da iniciativa privada foram adotadas, destacando-se, neste trabalho, a flexibilizao da forma de comercializao de energia eltrica entre os agentes participantes desta indstria mediante a criao do mercado livre.

    A legislao editada durante a citada dcada de 1990 autorizou que consumidores, comercializadores, geradores e distribuidores passassem a comprar e vender energia eltrica em condies livremente negociadas, garantido o livre acesso aos sistemas de distribuio e transmisso. Com isso, o mercado regulado, destinado ao atendimento de consumidores cativos, passou a conviver com o mercado livre, em que consumidores de mdio e grande porte passaram a ter a opo de escolha de seu fornecedor1.

    Para a gesto desse novo modelo setorial, no qual passaram a conviver dois ambientes para a comercializao de energia eltrica, novas instituies foram criadas. Foi constitudo (i) o rgo regulador e fiscalizador das atividades setoriais, a Agncia Nacional de Energia Eltrica (ANEEL); (ii) a empresa para a coordenao da operao dos sistemas interligados, o Operador Nacional do Sistema Eltrico (ONS); e (iii) a instituio encarregada da gesto das transaes comerciais e do mercado atacadista, denominada inicialmente Mercado Atacadista de Energia Eltrica (MAE), sucedido pela Cmara de Comercializao de Energia Eltrica (CCEE).

    A estrutura regulatrio-normativa inicialmente prevista foi revista em 2001/2002. Nesse perodo, o pas enfrentou uma grave crise de racionamento de energia eltrica, o que motivou a realizao de estudos para correo de disfuncionalidades do modelo ento vigente. Das medidas propostas nesta Revitalizao do modelo da IEEB, destaca-se a

    1 Em um primeiro momento, entre 1995/1999, somente estavam autorizados a migrar do mercado

    regulado para o mercado livre os consumidores com carga superior a 10MW e tenso igual ou superior a 69kV. A partir de 2000, esse direito foi estendido aos consumidores com carga igual ou superior a 3MW e tenso acima de 69kV (se conectados antes de 08/07/1995) ou qualquer tenso (se conectados aps 08/07/1995). Esses so os chamados consumidores livres. Foi ainda autorizada tal migrao para os consumidores com carga superior a 500kW e atendidos em qualquer tenso, mas desde que a energia eltrica fosse adquirida de fontes alternativas (elica, biomassa, solar, hdrica inferior a 1MW, pequenas centrais hidreltricas). Esses so os chamados consumidores especiais.

  • previso de que os geradores sob controle estatal, mesmo atuando na livre comercializao, teriam que vender a energia eltrica produzida por meio de procedimentos pblicos e transparentes2. Tambm merece destaque a previso de que as distribuidoras passariam a ser obrigadas a comprar energia eltrica mediante leiles pblicos, restringindo-se a livre negociao3.

    Em 2003/2004, diante de um novo governo federal, alteraes significativas foram feitas no modelo institucional da IEEB. Nessa reforma, que ficou conhecida como o Novo Modelo, o mercado livre passou a ser denominado Ambiente de Contratao Livre (ACL) e ficou circunscrito a (i) agentes geradores; (ii) agentes comercializadores; (iii) agentes importadores e exportadores; (iv) consumidores de grande porte, com carga acima de 3MW e atendidos em tenso superior a 69kV (se conectados antes de 08/07/1995) ou em qualquer tenso (se conectados aps 08/07/1995), assim chamados os consumidores livres, (v) consumidores de mdio porte, com carga acima de 500kW e atendidos em qualquer tenso, mas desde que a energia eltrica por eles adquirida seja proveniente de fontes incentivadas, assim chamados os consumidores especiais4. Ainda nesta reforma foi aprimorado o mecanismo de lastro5 para a comercializao de energia eltrica com a previso de aplicao de penalidades pelo seu descumprimento. Foi tambm prevista a possibilidade de alocao de parte da energia eltrica dos novos empreendimentos hidreltricos para o mercado regulado. E foram disciplinadas regulatoriamente as responsabilidades financeiras do consumidor frente distribuidora pela sua declarao de inteno de migrao para o mercado livre ou de retorno para o mercado regulado.

    Merece destaque o fato de que, desde a criao do mercado livre em 1998, as transaes nele realizadas vm crescendo significativamente. Em 2008, as operaes realizadas no mercado livre responderam por cerca de 53,64% do total de contratos registrados na CCEE, o que corresponde a 279.468GWh no total contabilizado de 521.046GWh de

    2 Art. 27 da Lei n 10.438/2002.

    3 Art. 2 da Lei n 10.604/2004, revogado pela Lei n 10.848/2004.

    4 Art. 15 e 16 da Lei n 9.074/1995; art. 26, 1 da Lei n 9.427/1996; art. 1, 3 da Lei n 10.848/2004 e

    art. 47 e 46 do Decreto n 5.163/2004. 5 O lastro corresponde ao montante de energia eltrica necessrio para garantir o consumo (no caso de

    consumidores e distribuidores) ou a venda (no caso de geradores e comercializadores) da energia eltrica nas transaes comerciais que realizam.

  • energia eltrica transacionada6. Observa-se ainda que o aprimoramento das regras aplicveis comercializao de energia eltrica, com destaque para o ACL, vem sendo amplamente discutido. Neste sentido, cabe destacar a divulgao da Carta de Florianpolis pelas associaes representativas de agentes da IEEB7, na qual so propostas 10 medidas para aperfeioamento do mercado livre, compreendendo formao de preos, venda de sobras de contratos por consumidores livres, criao de novos instrumentos de comercializao, ampliao do mercado livre, acesso isonmico energia eltrica destinada ao mercado regulado e outras sugestes. Isto tambm denota a relevncia do mercado livre na IEEB e fomenta estudos sobre as transaes realizadas entre os agentes neste ambiente de contratao.

    A principal caracterstica do ACL a autonomia que os agentes possuem para negociar as condies da compra e venda de energia eltrica. Estas condies compreendem preos, prazos, montantes de energia eltrica e flexibilidades no seu uso, hipteses de resciso, penalidades e garantias. So condies que, em geral, seguem refletidas em Contratos de Compra e Venda de Energia Eltrica (CCVEE), os quais podem ser de curto, mdio ou longo prazo.

    No obstante a referida liberdade negocial, os CCVEE so contratos que envolvem objeto regulado (energia eltrica), o que determina a observncia das normas da IEEB. Neste sentido, alm das disposies j citadas sobre procedimentos de comercializao, qualificao das partes e mecanismo de lastro, h normas que impem prazos e condies para registro, contabilizao e liquidao das operaes na CCEE, para o aporte de garantias financeiras perante essa Cmara no caso de operaes no mercado de curto prazo. So vrias as regras que incidem direta ou indiretamente sobre o CCVEE.

    O aprimoramento dessas regras da IEEB ao longo dos anos e a ocorrncia de eventos no previstos refletem na formatao inicial dos CCVEE, podendo levar as partes necessidade de adaptao de tais contratos, mediante renegociao ou litgios. Exemplos concretos de impactos sobre os CCVEE so o racionamento de energia eltrica e a

    6 Relatrios de Informaes ao Pblico da CCEE Anlise Anual, 2008, disponvel em www.ccee.org.br,

    acessado em 01/08/2009. 7 Notcia: Agentes livres propem medidas para aperfeioar o mercado. Jornal Energia, 26/11/2009.

  • elevao significativa e inesperada do preo spot, ocorridos, respectivamente, em 2001/2002 e 2008. A ausncia de tratamento contratual prvio sobre tais situaes levou a incertezas e discusses quanto execuo do CCVEE pelas partes contratantes, inclusive no mbito judicial e arbitral.

    O contexto acima descrito, marcado pelo contnuo aprimoramento da legislao setorial e pela imprevisibilidade de eventos com possveis reflexos sobre os CCVEE, bem como pelo elevado nmero de transaes no ACL, justifica a pesquisa e a anlise das relaes contratuais firmadas neste ambiente de contratao, tendo motivado o desenvolvimento do presente trabalho.

    Como questo central, indaga-se se o CCVEE, sendo o principal instrumento das relaes firmadas no ACL, oferece segurana e garantia para os agentes que comercializam energia eltrica neste segmento. Para tanto, considera-se como hiptese a percepo geral de que o CCVEE, no obstante seja criticado pela sua complexidade e detalhamento, de fato propicia a segurana e as garantias desejadas pelos agentes. A investigao da questo central e da hiptese acima delineadas levou avaliao do ambiente institucional da IEEB e dos custos de transao envolvidos na negociao e concretizao da comercializao, bem como da incompletude do CCVEE diante da evoluo normativa e da ocorrncia de contingncias.

    Assim, o objetivo geral deste trabalho avaliar a qualidade do CCVEE como instrumento que materializa a relao de compra e venda de energia eltrica no ACL, a partir da anlise de seus atributos, possveis contradies e perspectivas de evoluo. Para alcanar este objetivo geral, foram percorridos os objetivos especficos (i) de anlise da evoluo da abertura de mercado na IEEB e da regulao incidente sobre o ACL; (ii) de elaborao de breve reviso bibliogrfica sobre a Teoria dos Contratos, adotando-se a abordagem da Nova Economia Institucional (NEI) como marco terico, com nfase na Economia dos Custos de Transao (ECT) e nos Contratos Incompletos; e (iii) de avaliao da contratao de energia eltrica no ambiente institucional da IEEB, considerando-se os reflexos deste sobre as etapas de negociao e concretizao da transao, os riscos envolvidos e o desenho de um CCVEE tpico.

  • A metodologia empregada consistiu na anlise da literatura pertinente ao mbito da regulao econmica no contexto da escola institucionalista, especialmente sua vertente pertinente Teoria dos Contratos. Adicionalmente, foram incorporados a essa literatura trabalhos recentes sobre o tema da comercializao de energia eltrica, bem como a anlise prtica de atos normativos, como leis, decretos, resolues e portarias, sobretudo os que tratam do mercado livre. Foram tambm considerados os relatrios, notas e estudos tcnicos divulgados por consultores e tcnicos do setor ou por instituies setoriais, como o Ministrio de Minas e Energia (MME), a ANEEL e a CCEE.

    As opinies dos agentes setoriais foram apuradas por meio de entrevistas com representantes das associaes de classe de consumidores, geradores e comercializadores, a saber: Associao Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (ABRACE), da Associao Nacional dos Consumidores de Energia (ANACE), da Associao Brasileira dos Agentes Comercializadores de Energia Eltrica (ABRACEEL) e da Associao Brasileira dos Geradores de Energia Eltrica (ABRAGE).

    O presente trabalho est estruturado a partir desta Introduo, que expe os principais aspectos metodolgicos da pesquisa e anlise realizadas, compreendendo ainda cinco captulos e as Consideraes Finais.

    O Captulo 1 contm o histrico da abertura da IEEB livre comercializao e uma viso geral do arcabouo jurdico regulatrio correspondente, alm de dados que demonstram a evoluo e a relevncia do mercado livre. O Captulo 2 apresenta o referencial terico adotado para fins da anlise da contratao de energia eltrica, tendo sido considerada a Teoria dos Contratos sob a tica da NEI, particularmente os custos de transao e a incompletude dos contratos. Ainda nesse captulo reflete-se sobre a aplicabilidade do referencial terico Indstria de Energia Eltrica (IEE). O Captulo 3 avalia a comercializao de energia eltrica no ACL, considerando-se, para tanto, os instrumentos utilizados, as etapas ex ante de negociao e ex post de concretizao, a influncia do ambiente institucional sobre as transaes e os riscos associados. O Captulo 4 explora a contratao de energia eltrica mediante a anlise do desenho de um CCVEE tpico, compreendendo o exame de clusulas gerais e especficas. O Captulo 5 avana na anlise da qualidade do CCVEE para fins da contratao de

  • energia eltrica no ACL, apresentando as concluses alcanadas. No ltimo captulo so apresentadas as Consideraes Finais.

    Adicionalmente, trs anexos foram inseridos com o objetivo de facilitar e subsidiar a leitura do trabalho. O Anexo I indica as normas especficas e relevantes aplicveis comercializao de energia eltrica; o Anexo II contempla clusulas de um CCVEE tpico, extradas a partir de modelos disponibilizados nas pginas eletrnicas de agentes setoriais que atuam no ACL; e o Anexo III contm o roteiro utilizado para as entrevistas com as associaes representativas dos atores da IEEB.

  • CAPTULO 1. EVOLUO E REGULAO DA COMERCIALIZAO DE ENERGIA ELTRICA NO BRASIL

    Este captulo apresenta um breve histrico da abertura da Indstria de Energia Eltrica Brasileira (IEEB) livre comercializao. Apresenta-se ainda uma viso geral do arcabouo jurdico-regulatrio aplicvel comercializao de energia eltrica, em especial das regras que disciplinam o mercado livre. Ao final so apresentados dados que caracterizam a evoluo e a expressiva participao da livre comercializao no contexto da IEEB.

    1.1 Breve Histrico da Abertura de Mercado

    A IEEB foi inicialmente estruturada e desenvolvida com a forte presena de capital estrangeiro. At a dcada de 1930, a explorao da energia eltrica se dava de forma isolada, em grandes centros urbanos, na maior parte por meio de concessionrias privadas e estrangeiras, como a Light e a AMFORP (Pinto Jr. et. al., 2007, p.200). A partir da dcada de 1930, porm, houve um amplo processo de reordenao institucional comandado pelo Estado, visando a regulamentao e o controle das atividades de tais concessionrias (op. cit., p.201).

    Nas dcadas seguintes, entre 1940 e 1980, o predomnio estatal se acentuou. As preocupaes estavam voltadas expanso do fornecimento para atendimento s presses do parque industrial nacional e presena do poder regulador do Estado, em especial para a formulao do planejamento centralizado (Pinto Jr. et. al., 2007, p.203). As empresas de distribuio, transmisso e gerao de energia eltrica, em sua grande maioria, j pertenciam aos Estados-membros ou Unio. Neste aspecto, o avano estatal nas empresas teria ocorrido em duas frentes: de um lado a Unio criou empresas de gerao e de transmisso, de outro os Estados-membros passaram a explorar as empresas de distribuio (Waltenberg, 2000, p.356).

    No perodo acima indicado, a comercializao de energia eltrica era totalmente regulada e sujeita ao regime tarifrio. Em geral as relaes de suprimento eram

  • estabelecidas entre geradores e distribuidores e as relaes de fornecimento entre distribuidores e consumidores finais, conforme disposto no Decreto n 41.019/19578. As tarifas eram calculadas com base no regime do servio pelo custo, o que permitia o repasse dos custos das empresas concessionrias e garantia a remunerao sobre a base de ativos.

    Essa intensa presena estatal na IEEB permitiu grandes avanos na expanso da gerao, com um aumento estimado da capacidade de fornecimento em mais de 500% (Correia et. al., 2006, p.610). No entanto, diversos fatores levaram ao esgotamento da capacidade de investimento estatal. A crise econmica mundial do incio da dcada de 1980, com a elevao da taxa de juros e a reduo dos fluxos internacionais de crdito, deteriorou significativamente o modo de organizao e o modelo de financiamento da IEEB, baseado essencialmente em captao externa e impostos setoriais (Pinto Jr. et. al., 2007, p.218/219).

    O governo brasileiro utilizava as estatais como instrumento de captao de financiamentos externos e tambm no controle dos preos e tarifas para fins de combate inflao, o que reduziu a rentabilidade das empresas e os recursos para investimentos na IEEB, com o aumento do endividamento a custos exorbitantes (Tolmasquim, Oliveira e Campos, 2002, p.48). A poltica tarifria que vigia poca desestimulava a produtividade das concessionrias, dada a existncia de um mecanismo intrassetorial de repartio de ganhos9, o que acabava por comprometer a eficincia das empresas setoriais (Correia, et. al., 2006, p.610).

    Diante da difcil situao em que se encontrava a IEEB, o Governo Federal passou a estudar medidas que pudessem atrair investimentos privados, acompanhando, inclusive,

    8 Excepcionalmente houve o fornecimento de geradores a consumidores de grande porte localizados na

    Regio Nordeste, mediante cobrana de tarifas, conforme autorizado por meio de portarias ministeriais. A partir da Lei n 10.438/2002 e da Lei n 10.604/2002, foi estipulado que o valor desta contratao seria decomposto em preo e tarifa de uso do sistema de transmisso. Essas contrataes devero vigorar at 30/06/2015, conforme art. 22 da Lei n 11.943/2009. 9 Trata-se de poltica tarifria criada pela Lei n 5.655/1971, regulamentada pelo Decreto n 1.383/1974,

    que previa a repartio entre concessionrios de lucros e prejuzos. A remunerao legal dos concessionrios foi fixada entre 10% e 12%, sendo que as empresas com saldo superior a 12% alocavam seu lucro em um fundo que redistribua recursos a empresas com saldo inferior a 10%. Saldos positivos eram direcionados Reserva Global de Garantia (RGG), posteriormente renomeada Reserva Nacional de Compensao de Remunerao (RENCOR), e os dficits eram registrados na Conta de Resultados a Compensar (CRC). A referida poltica foi eliminada em 1993 com a edio da Lei n 8.631.

  • uma tendncia mundial que apostava na reestruturao de setores de infraestrutura. Joskow (1996, p.341; 2003, p.1) observa que durante da dcada de 1990 vrios pases desenvolvidos e em desenvolvimento promoveram reestruturaes buscando melhorar o desempenho no setor de energia eltrica. Segundo o autor, as medidas adotadas estavam voltadas privatizao, reestruturao e reforma regulatria, o que envolvia a venda de empresas estatais, a separao de segmentos potencialmente competitivos (gerao, comercializao) de monoplios naturais (distribuio, transmisso), a criao de mercados atacadistas, rgos reguladores e operadores independentes, alm de outras aes (1996, p.342; 2003 p.3/5).

    No caso brasileiro, entendeu-se que a iniciativa privada deveria ser chamada para contribuir com a IEEB, dando-se incio aos estudos das linhas mestras do processo de reestruturao do modelo institucional (Waltenberg, 2000, p.357). Entre 1986 e 1988, o grupo de trabalho REVISE sob a coordenao da Eletrobrs levantou informaes e trabalhou na reviso institucional dos servios de eletricidade, no entanto, aps dois anos de discusso no houve convergncia sobre as medidas que deveriam ser adotadas (Leite, 2007, p.291).

    No obstante, no perodo entre 1988 e 1995, foram editados sucessivos atos legais que deram o suporte necessrio ao incio das reformas da IEEB. A Constituio Federal, aprovada em 1988, consagrou a livre concorrncia e a livre iniciativa como valores fundamentais e previu que os servios e instalaes de energia eltrica passariam a ser explorados mediante concesso, permisso ou autorizao, sendo adotado o regime de concesso ou permisso no caso de servios pblicos10. A Lei n 8.631, editada em 1993, eliminou a poltica da equalizao tarifria, que obrigava os concessionrios que atuavam na IEEB a partilhar lucros e dficits. A Lei n 8.987, aprovada em 1995, regulamentou as concesses de servios pblicos e estabeleceu parmetros para a poltica tarifria e a prestao de servios adequados, regulamentando o art. 175 da Constituio Federal.

    Ainda em 1995 foi editado um marco fundamental para a reforma da IEEB: a Lei n 9.074. Esta norma legal, ao criar a figura do consumidor livre e do produtor

    10 Art. 1, IV, art. 21, XI, b, art. 170, IV e art. 175.

  • independente de energia eltrica e estabelecer o direito de livre acesso aos sistemas de transmisso e de distribuio, deu origem ao mercado livre e competitivo de energia eltrica. De acordo com o art. 15 da citada norma legal, a abertura de mercado pela livre opo de consumidores seria gradual. Inicialmente, entre 1995 e 1999, somente consumidores com carga superior a 10MW e com nvel de tenso superior a 69kV poderiam atuar no mercado livre; a partir de 2000, o referido limite de carga foi reduzido para 3MW, mantida a exigncia de nvel de tenso igual ou superior a 69kV para consumidores conectados antes de 08/07/1995. No caso de uma nova unidade, conectada a partir de 08/07/1995, somente seria exigida carga mnima de 3MW.

    O arcabouo jurdico-normativo acima delineado representou o despertar para a realidade e para o amplo reordenamento que ainda ocorreria na IEEB (Paixo, 2000, p.54). Em 1996, o Governo Federal contratou uma consultoria internacional especializada que, associada com empresas brasileiras e em parceria com diversos tcnicos do setor, avaliou os pontos crticos do modelo e props medidas para a reformulao da IEEB, o que ficou conhecido como Projeto RESEB.

    Em linhas gerais, as principais medidas propostas foram as seguintes: (i) privatizao de empresas estatais para a alavancagem destas pelo ingresso de capital privado; (ii) criao da Agncia Nacional de Energia Eltrica (ANEEL), responsvel pela fiscalizao e regulao das atividades de energia eltrica; (iii) criao do Mercado Atacadista de Energia (MAE), atual Cmara de Comercializao de Energia Eltrica (CCEE), para o registro, contabilizao e liquidao das operaes de compra e venda de energia eltrica, inclusive aquelas realizadas no mercado livre; (iv) criao do Operador Nacional do Sistema Eltrico (ONS) com a finalidade de operar, de forma coordenada, os recursos energticos e o sistema de transmisso interligado; (v) reduo gradual da energia eltrica contratada sob a forma regulada (Contratos Iniciais), com a correspondente liberao desta energia para a comercializao no mercado livre; (vi) alterao do regime econmico-financeiro das concesses de servio pelo custo para servio pelo preo com a adoo da regulao por incentivos (Paixo, 2000; MME, 2001). Algumas destas ideias j estavam refletidas na Lei n 9.074/1995 e outras vieram consolidadas nas Leis n 9.427/1996 e n 9.648/1998.

  • Ocorre que diversos fatores levaram implantao incompleta da reforma pretendida: empresas foram privatizadas antes mesmo que o arcabouo jurdico regulatrio estivesse consolidado11; a gerao, segmento que passou a ser competitivo, permaneceu predominantemente sob domnio estatal; houve letargia na conduo de liberalizao dos grandes consumidores e na regulamentao do mercado atacadista, ambiente criado para a promoo da concorrncia (Correia, et. al., 2006, p.611/613).

    Assim, muito embora a reforma da IEEB contemplasse todos os ingredientes previstos na literatura (um regulador, um operador de sistema independente, um mercado atacadista, livre acesso, contratos bilaterais), a falta de alinhamento entre a regulao, o processo de reestruturao e as modificaes pretendidas levou a uma reforma incompleta, resultando em problemas no mercado atacadista e em uma grave crise de racionamento (Arajo et. al., 2007, p.5/6).

    No caso do mercado atacadista, suas operaes foram paralisadas logo aps o incio de seu funcionamento em 2000. Conflitos entre os membros do MAE quanto s regras do mercado, as quais eram elaboradas pelos prprios agentes como uma forma de autoregulao, titularidade dos excedentes da UHE Itaipu e contabilizao no mercado de curto prazo da energia eltrica da Usina Nuclear Angra II, travaram as operaes de contabilizao e liquidao do MAE por mais de um ano12 (Leite, 2007; Arajo et. al., 2008).

    O racionamento de energia eltrica, em 2001, tambm afetou a comercializao de energia eltrica e levou a sociedade, o governo e os agentes setoriais a repensar as bases do modelo institucional. Foi instituda a Cmara de Gesto da Crise de Energia Eltrica (GCE) que, por sua vez, criou o Comit de Revitalizao13 com a atribuio de analisar o modelo e propor medidas de aperfeioamento da IEEB e correo de disfuncionalidades (Tolmasquim, Oliveira e Campos, 2002, p.68). Nesses trabalhos, dos pontos discutidos sobre o modelo institucional da IEEB, destacaram-se a ausncia de planejamento determinativo da expanso do setor; a premissa de que o prprio mercado

    11 Caso da Escelsa, distribuidora no Estado do Esprito Santo, e da Light, distribuidora no Estado do Rio

    de Janeiro, que foram respectivamente privatizadas em 1995 e 1996, antes da implantao do rgo regulador, a ANEEL, que veio a se efetivar somente em 1997. 12

    A primeira contabilizao ocorreu somente em 2002 e a liquidao financeira parcial dos valores j contabilizados foi feita em 2003. 13

    Conforme Resoluo GCE n 18/2001.

  • promoveria a expanso setorial; e a possibilidade de self-dealing entre empresas distribuidoras, geradoras e comercializadoras do mesmo grupo empresarial14.

    Alm dos trabalhos do Comit de Revitalizao, a Agncia Nacional de guas (ANA), por meio da Comisso de Anlise do Sistema Hidrotrmico, coordenada pelo seu ento diretor geral Jerson Kelman, realizou estudos para identificar as causas de racionamento. Tais estudos indicaram que lacunas nas atribuies e atuao do Conselho Nacional de Poltica Energtica (CNPE) e do Ministrio de Minas e Energia (MME), alm de dificuldades de regulao pela ANEEL, desobedincia a contratos vigentes e uma legislao incompleta e insuficiente contriburam para o desequilbrio entre a demanda e a oferta na IEEB.

    As proposies resultantes das discusses acima serviram de base para a elaborao das Leis n 10.438/2002 e n 10.604/2002, que previram a obrigatoriedade de realizao de procedimentos pblicos e transparentes para a comercializao de energia eltrica pelas geradoras estatais e eliminaram a possibilidade de as distribuidoras negociarem a compra de energia eltrica livremente a partir de 01/01/2003, ficando obrigadas a participar de leiles15.

    Em 2003, diante do novo Governo Federal, cogitava-se uma reforma substancial da IEEB16. O MME divulgou as propostas de aperfeioamento do modelo, inicialmente em julho de 2003 (Proposta de Modelo Institucional do Setor Eltrico) e, aps amplo debate com agentes do setor e outros interessados, em documento final de dezembro de 2003 (Modelo Institucional do Setor Eltrico).

    As propostas ali contidas, na viso de Leite (2007, p.878), no consistiam apenas em aperfeioamentos do modelo institucional ento existente, mas sim na redefinio do prprio modelo da IEEB, haja vista as divergncias profundas entre a viso do governo anterior, que apostava no mercado, e do novo governo, que confiava na ao estatal. De

    14 Os trabalhos do Comit de Revitalizao resultaram em quatro Relatrios de Progresso, que apontaram

    cerca de 33 medidas para a correo do modelo institucional. 15

    Conforme art. 27 da Lei n 10.438/2002 e art. 2 da Lei n 10.604/2002, revogado posteriormente pela Lei n 10.848/2004. 16

    Durante a campanha presidencial foi veiculado documento elaborado pelo Instituto da Cidadania, que previa a extino do mercado atacadista de energia; o resgate do planejamento integrado; o retorno do regime tarifrio do servio pelo custo; a restaurao do carter pblico do ONS; e o direcionamento da energia mais barata para o mercado cativo, alm de outras medidas.

  • fato, o modelo da IEEB foi substancialmente revisto com a edio das Leis n 10.847/2004 e n 10.848/2004, regulamentadas pelos Decretos n 5.081/2004, n 5.163/2004, n 5.175/2004, n 5.177/2004 e n 5.184/2004.

    Os pilares desta nova reforma compreenderam (i) a criao de ambientes separados para as atividades de comercializao: o Ambiente de Contratao Regulada (ACR) e o Ambiente de Contratao Livre (ACL); (ii) a proibio de venda de energia eltrica por distribuidora a consumidores livres a preos negociados e o aprimoramento da obrigatoriedade de compra da energia eltrica por meio de leiles no ACR; (iii) a possibilidade de outorga da concesso/autorizao para explorao da gerao conjuntamente com a venda de energia eltrica s distribuidoras no ACR, mediante celebrao de contratos de longo prazo; (iv) a alterao de regras de governana17 setorial, com o reforo das competncias do Poder Executivo e do Poder Concedente na IEEB, em especial para outorgar concesses, permisses e autorizaes e realizar o

    planejamento centralizado; e (v) a criao de instituies tcnicas especializadas com a finalidade de contribuir para o planejamento setorial: a Empresa de Pesquisa Energtica (EPE) e o Comit de Monitoramento do Setor Eltrico (CMSE).

    Em relao ao mercado livre, como visto, houve a criao de um ambiente especfico, denominado ACL, tendo sido preservadas as regras gerais relacionadas sistemtica de contrataes bilaterais, garantia de livre acesso, qualificao para migrao do mercado regulado para o mercado livre e participao dos agentes no mercado livre. No obstante, conforme observa Santana (2006, p.10/11), a reforma institucional mencionada acima, uma vez implementada, tornou a maior parte da contratao regulada e reduziu a abrangncia da livre contratao, apostando na governana pela hierarquia e no pelo mercado. Correia et. al. (2006, p.626) tambm reconhece que a contrarreforma resgatou o planejamento estatal centralizado e interrompeu o programa de privatizaes, mas ainda assim entende que h perspectivas de consolidao do mercado de energia eltrica, inclusive com o amadurecimento do mercado livre.

    17 O termo governana utilizado neste trabalho para qualificar o modo de organizao que suporta e

    condiciona as transaes realizadas entre os agentes; compreende as instituies que fornecem as regras formais e as informaes que incentivam o cumprimento de contratos (Santana, 2006; Williamson 2005).

  • A evoluo do modelo setorial, acima relatada, pode ser sintetizada conforme a Tabela 1 abaixo.

    Tabela 1 Mudanas na Indstria de Energia Eltrica Brasileira Modelo Antigo

    (at 1995) Modelo

    RESEB/Revitalizao (1995 a 2003)

    Novo Modelo (2004)

    Recursos pblicos Recursos pblicos e privados Recursos pblicos e privados Empresas verticalizadas Empresas segmentadas por

    atividade Empresas segmentadas por

    atividade Empresas predominantemente

    estatais Abertura e nfase na

    privatizao das empresas Convivncia entre empresas

    estatais e privadas Monoplios

    Competio inexistente Competio na gerao e

    comercializao Competio na gerao e

    comercializao Consumidores cativos Consumidores livres e cativos Consumidores livres e cativos

    Tarifas reguladas em todos os segmentos

    Preos livremente negociados na gerao e comercializao

    Preos negociados no ACL e menor tarifa obtida em leilo

    no ACR Mercado regulado Mercado livre e regulado Mercado livre e regulado

    Planejamento determinativo Grupo Coordenador do

    Planejamento dos Sistemas (GCPS)

    Planejamento indicativo Conselho Nacional de

    Poltica Energtica (CNPE)

    Planejamento centralizado com o apoio da EPE e do

    CMSE

    Contratao: 100% do mercado

    Contratao: 85% do mercado (at agosto/2003) e

    95% do mercado (aps setembro/2003)

    Contratao: 100% do mercado

    Sobras/dficits do balano energtico rateados entre

    compradores

    Sobras/dficits do balano energtico liquidados no

    MAE

    Sobras/dficits do balano energtico liquidados na

    CCEE ou entre distribuidoras mediante MCSD18

    Fonte: Adaptado do Caderno Viso Geral das Operaes na CCEE, 2009.

    1.2 Arcabouo Jurdico-Regulatrio da Comercializao Livre e Regulada

    Como visto anteriormente, o modelo da IEEB passou por diversas modificaes que influenciaram o regime da comercializao da energia eltrica. At 1995, perodo que antecedeu o estabelecimento do mercado livre, as relaes eram reguladas e sujeitas ao regime tarifrio. Aps 1995, com a criao do mercado livre, foi conferido aos agentes setoriais liberdade para negociar e transacionar a energia eltrica. Em 2002, aps uma

    18 Trata-se do Mecanismo de Compensao de Sobras e Dficits (MCSD), segundo o qual os

    distribuidores compradores podem efetuar a cesso das suas sobras contratuais para outros distribuidores. Para tal efeito, so celebrados termos de cesso entre distribuidores compradores e geradores vendedores. A CCEE realiza o processamento do MCSD.

  • grave crise de racionamento, algumas medidas foram tomadas para corrigir disfuncionalidades do modelo, tendo sido preservado o mercado livre. Em 2004, diante de um novo governo federal, as transaes de energia eltrica passaram a ser realizadas em dois ambientes: no ACR, ambiente dos contratos regulados no qual as concessionrias de distribuio adquirem a energia eltrica de que necessitam por meio de leiles regulados; e no ACL, ambiente dos contratos livremente negociados entre geradores, comercializadores, consumidores livres e especiais19. A Figura 1 ilustra os ambientes de contratao previstos no modelo institucional vigente:

    Figura 1 Bases do Novo Modelo Fonte: MME, O Novo Modelo do Setor Eltrico, 2003.

    As transaes realizadas no ACR e no ACL obedecem a lgica e apresentam dinmica distintas quanto aos agentes que participam de cada ambiente, bem como quanto s formas de contratao e de competio (Pinto Jr. et. al., 2007, p.224).

    No ACR, as contrataes resultam de leiles realizados pela ANEEL, com o apoio da CCEE, conforme as regras e diretrizes do MME, para aquisio de energia eltrica pelas distribuidoras de empreendimentos existentes e novos. Para os empreendimentos existentes, os leiles so realizados com 1 ano de antecedncia (A-1) e, para os novos empreendimentos, os leiles so realizados com 3 ou 5 anos de antecedncia (A-3 e A-

    19 As principais regras do ACR constam dos arts. 11 a 46 do Decreto n 5.163/2004 e do ACL constam

    dos arts. 47 a 55 do mesmo decreto.

  • 5). Neste ltimo caso, alm da venda da energia eltrica, o agente recebe a outorga para a explorao da gerao concesso ou autorizao e tambm a licena ambiental prvia do empreendimento. O critrio para julgamento nos leiles do ACR a menor tarifa oferecida pelos geradores e os instrumentos contratuais resultantes das transaes, os Contratos de Compra de Energia do Ambiente Regulado (CCEAR), so padronizados e veiculados nos prprios leiles.

    J no ACL, as contrataes so livremente negociadas. Isso significa que as partes desfrutam de total liberdade para ajustar montantes, preos, prazos e flexibilidades para o uso da energia eltrica contratada em face das suas necessidades20, alm de outras condies. Essa negociao resulta nas especificaes contidas nos Contratos de Compra e Venda de Energia Eltrica (CCVEE). As principais caractersticas e diferenas da comercializao feita em cada ambiente, ACR e ACL, seguem sintetizadas na Tabela 2.

    Tabela 2 Sntese Comparativa do ACR e ACL ACR ACL

    Agentes Participantes

    Vendedores: geradores novos ou existentes (empresas com ativos de gerao, que exercem tal atividade sob regime de servio pblico, produo independente ou autoproduo, ressalvada, neste caso, a necessidade de autorizao prvia da ANEEL para a comercializao de excedentes).

    Compradores: distribuidores (concessionrios ou permissionrios de servios pblicos de distribuio de energia eltrica).

    Vendedores: comercializadores (empresas que no possuem ativos de gerao, mas podem adquirir energia eltrica de geradores e outros comercializadores para revenda) e geradores (empresas com ativos de gerao, que exercem tal atividade sob regime de servio pblico, produo independente ou autoproduo, ressalvada, neste caso, a necessidade de autorizao prvia da ANEEL para a comercializao de excedentes).

    Compradores: consumidores livres (carga superior a 3MW e tenso superior a 69kV, se conectados antes de 08/07/1995 e carga superior a 3MW e atendidos em qualquer tenso, se conectados aps referida data); consumidores especiais (carga superior a 500kW, atendidos em qualquer tenso).

    Os consumidores especiais somente

    20 As flexibilidades consistem em limites mximos e mnimos estabelecidos para o uso da energia eltrica

    contratada e permitem a melhor acomodao do contrato, tendo em vista as necessidades do comprador.

  • podem adquirir energia eltrica no ACL de fontes incentivadas, a saber: micro e pequenas centrais hidreltricas, elica, biomassa, solar, com potncia injetada igual ou superior a 50MW, e hdricas entre 1 e 50MW.

    Preos Menor tarifa oferecida pelo vendedor.

    Livremente negociados21.

    Registros Aprovaes

    Registro na CCEE automtico; homologao pela ANEEL.

    Registro obrigatrio na CCEE.

    Flexibilidades Sazonalizao e modulao da energia negociadas, observando-se a curva de carga da distribuidora e respeitados os limites previstos no CCEAR.

    Sazonalizao e modulao da energia so negociadas livremente.

    Lastro Obrigao apurada na CCEE; os vendedores podem demonstrar seu cumprimento com base na gerao prpria e contratos de compra; os compradores devem demonstr-lo por meio de contratos de compra. A complementao ex post difcil porque as distribuidoras esto sujeitas a limites de contratao. O clculo do lastro da distribuidora considera o ano civil.

    Obrigao apurada na CCEE; os vendedores podem demonstrar seu cumprimento com base na gerao prpria e contratos de compra; os compradores devem demonstr-lo por meio de contratos de compra. A complementao ex-post por meio de contratos permitida. O clculo do lastro considera mdia mvel.

    Garantias As partes celebram contratos de constituio de garantia, que vinculam as receitas da distribuidora.

    Livremente negociadas, podendo servir ao cumprimento do contrato ou somente dos pagamentos devidos. Podem ser utilizadas fiana bancria, seguro garantia, nota promissria e outras. O registro do contrato na CCEE tambm tratado como uma garantia contratual.

    Disponibilidade Novos empreendimentos hdricos so propostos pelo governo, que pode definir que parte desta

    No h regra que determine a alocao de energia para o ACL. Os vendedores/geradores dispem de

    21 Os agentes que comercializam energia eltrica no ACL esto sujeitos a diversos encargos setoriais.

    Geradores sob regime de servio de pblico, por exemplo, devem arcar com o pagamento da Reserva Global de Reverso (RGR) e com a Taxa de Fiscalizao da ANEEL; comercializadores pagam a Taxa de Fiscalizao da ANEEL; os consumidores livres e especiais respondem pelo pagamento da Conta de Desenvolvimento Energtico (CDE), Programa de Incentivo s Fontes Alternativas (Proinfa) e Conta de Consumo de Combustveis dos Sistemas Isolados (CCC-Isolados). O pagamento destes encargos, no caso dos consumidores que esto no ACL, no feito por meio do preo da energia eltrica, mas das tarifas de uso dos sistemas de distribuio e de transmisso (TUSD e TUST), cujo pagamento obrigatrio.

  • energia nova seja alocada no ACL22.

    liberdade para decidir se desejam comercializar no ACL ou no ACR.

    Migrao para o ACL e Retorno

    para o ACR

    Para retornar para o ACR, os consumidores livres e especiais devem comunicar distribuidora essa inteno, respectivamente, com 5 anos e 180 dias de antecedncia.

    Para migrar para o ACL, os consumidores livres e especiais devem respeitar as condies previstas em seus contratos de fornecimento celebrados com as distribuidoras locais.

    Acesso Geradores e distribuidores no ACR devem contratar o acesso das redes em que esto conectados e pagar as tarifas (TUSD e TUST) e os encargos de conexo correspondentes.

    Geradores e consumidores livres no ACR devem contratar o acesso das redes em que esto conectados e pagar as tarifas (TUSD e TUST) e os encargos de conexo correspondentes. Os comercializadores no esto sujeitos a isso porque no possuem ativos de produo ou de consumo.

    Fonte: Elaborao prpria a partir dos atos legais e regulamentares que disciplinam a matria: Leis n 9.074/1995, n 9.427/1996, n 10.848/2004; Decretos n 2.655/1998 e n 5.163/2004.

    Os CCEAR e CCVEE so os principais tipos contratuais firmados no mbito do ACR e do ACL, respectivamente. H ainda outros instrumentos na IEEB que viabilizam transaes de energia eltrica, sobretudo no ambiente regulado, conforme explicitados a seguir:

    Contratos de Energia de Reserva, originados em leiles regulados e celebrados entre a CCEE e geradores de fontes incentivadas (biomassa, elica, pequenas centrais hidreltricas, solar);

    Mecanismo de Compensao de Sobras e Dficits (MCSD), que enseja cesses e redues de CCEAR mediante termos de cesso celebrados entre distribuidores e geradores;

    Contratos de Suprimento dos Sistemas Isolados23, negociados entre as distribuidoras que ali atuam e geradores;

    Contratos de Leiles de Ajustes, celebrados entre distribuidores e geradores existentes ou comercializadores;

    Contratos de Gerao Distribuda, oriundos de chamada pblica realizada pela distribuidora para contratao de energia eltrica de geradores conectados

    22 Pela estrutura dos leiles do ACR, em especial pela garantia de recebveis, os empreendimentos novos

    tm preferido comercializar no ACR. 23

    As contrataes nos Sistemas Isolados eram feitas diretamente entre a distribuidora e o gerador. Com a edio da Medida Provisria n 466/2009, a contratao da energia eltrica passar a ser feita por meio de licitao, realizada pela ANEEL conforme diretrizes do MME.

  • diretamente em seu sistema com capacidade de at 30MW, no caso de hdricas, ou com eficincia energtica superior a 75%, no caso de trmicas, salvo aquelas movidas a biomassa ou resduos;

    Contratos dos Pequenos Distribuidores, assim entendidos aqueles com mercado inferior a 500GWh/ano, que no so obrigados a participar do ACR para compra de energia, mas realizam licitaes pblicas prprias;

    Contratos de Importao e Exportao, realizados a partir de autorizaes emitidas pelo Poder Concedente e ANEEL;

    Contratos do Proinfa, firmados em decorrncia da Lei n 10.848/2004, entre a Eletrobrs e os geradores de fontes alternativas (biomassa, pequenas centrais hidreltricas, elicas);

    Contratos Bilaterais firmados antes de 16/03/2004, entre distribuidoras, geradores e comercializadores, ainda sob o regime de livre negociao.

    As contrataes acima, juntamente com os CCEAR e os CCVEE, formam o conjunto de relaes contratuais da IEEB. A existncia de dois ambientes para tais contrataes comentada e criticada pelos agentes setoriais, que entendem que existiria apenas um mercado de energia eltrica com duas formas de negociao e contratao. Na viso da ABRACE, h um mercado de energia eltrica com dois ambientes que se diferenciam pela natureza e destinao da compra da energia eltrica: uma ao servio pblico, outra ao mercado livre. No geral, as condies aplicadas em um segmento se refletem no outro. A ANACE tambm destaca a simbiose entre ACR e ACL, ressaltando que um ambiente no pode viver custa do outro.

    1.3 Especificidades da Livre Comercializao

    As transaes realizadas no ACL, como visto, pressupem liberdade de negociao das partes envolvidas. Trata-se de ambiente do mercado, ... no qual se realizam as operaes de compra e venda de energia eltrica, objeto de contratos bilaterais livremente negociados, conforme regras e procedimentos de comercializao especficos.24 (destacamos).

    24 Decreto n 5.163/2004, art. 1, 2, inciso II.

  • Observa-se, assim, que a liberdade de comercializar no prescinde de regulao. Os agentes que atuam no ACL devem observar em seus contratos bilaterais as normas setoriais em vigor, inclusive a regulao especfica, que indica o contedo mnimo desses instrumentos: montantes, prazos, preos e garantias financeiras25. As principais normas que dispem sobre o ACL e servem de referncia para a celebrao dos CCVEE, so as Leis n 9.074/1995 e n 10.848/2004, o Decreto n 5.163/2004 e as Resolues ANEEL n 281/1999, n 109/2004, n 247/2006 e n 376/200926, bem como as Regras e Procedimentos de Comercializao da CCEE. O Anexo I deste trabalho indica breve relao das principais normas aplicveis atividade de comercializao, com nfase para o mercado livre.

    1.3.1 Caracterizao dos Agentes Participantes do ACL

    Podem atuar no ACL consumidores livres e especiais, comercializadores, geradores, exportadores e importadores (art. 47 do Decreto n 5.163/2004).

    Os consumidores livres so aqueles que possuem carga superior a 3MW e tenso acima de 69kV, se conectados antes de 08/07/1995, e aqueles com carga superior a 3MW e atendidos em qualquer tenso, se conectados aps 08/07/1995 (art. 15 e 16 da Lei n 9.074/1995). Estes limites de carga e de tenso podem ser reduzidos a critrio do Poder Concedente. Tambm esto inseridos no ACL os consumidores especiais. Fazem parte desta categoria os consumidores ou conjunto de consumidores reunidos por comunho de fato e de direito, que possuam carga acima de 500kW e atendidos em qualquer tenso. Ressalte-se que a energia eltrica adquirida por estes deve advir de fontes incentivadas, entendendo-se como tal os empreendimentos com potncia igual ou inferior a 1MW e entre 1 e 50MW, inclusive com caractersticas de pequena central hidreltrica (PCH), biomassa, solar, elica (art. 26, 5 da Lei n 9.427/1996 e art. 47, nico do Decreto n 5.163/2004).

    25 Decreto n 5.163/2003, nico do art. 47, e Resoluo ANEEL n 109/2004 (Conveno de

    Comercializao da CCEE), art. 4, 3. 26

    A referida norma revogou a anterior, a Resoluo ANEEL n 264/1998.

  • Cabe observar que, nas relaes do ACL, os consumidores atuam somente na posio de compradores27. A regulao ainda apresenta os conceitos (i) de consumidor potencialmente livre, aquele que, a despeito de preencher as exigncias para se tornar livre, permanece atendido no mercado regulado (inciso XI do 2 do art. 1 do Decreto n 5.163/2004, com redao dada pelo Decreto n 5.249/2004) e (ii) de consumidor parcialmente livre, aquele que opta por contratar apenas parte de suas necessidades no ACL, remanescendo a outra parte atendida no ACR, pela distribuidora local, sob as mesmas condies reguladas aplicveis aos demais consumidores cativos (Resoluo ANEEL n 376/2009).

    Os demais agentes comercializadores, geradores, importadores, exportadores necessitam de outorga emitida pelo Poder Concedente ou pela ANEEL para realizar suas respectivas atividades e atuar na compra e venda da energia eltrica (arts. 5 a 8 da Lei n 9.074/1995 e art. 26 da Lei n 9.427/1996)28.

    1.3.2 Migrao para o ACL e Retorno para o ACR

    A migrao do mercado regulado (ACR) para o mercado livre (ACL) deve respeitar as condies dos contratos de fornecimento porventura vigentes, que contm prazos e termos de resciso (art. 15 da Lei n 9.074/1995). Caso no haja prazo de vigncia no contrato de fornecimento, o consumidor regulado pode se tornar livre no ano subsequente ao da sua declarao distribuidora e desde que essa declarao seja feita em at 15 dias antes da data estabelecida para que a distribuidora apresente sua Declarao de Necessidade de Compra (art. 15, 4 da Lei n 9.074/1995 e art. 49, caput e 1 do art. 49 do Decreto n 5.163/2004).

    27 A Resoluo ANEEL n 456/2000, que trata do fornecimento a consumidores regulados, faz meno

    possibilidade de revenda de energia por consumidores mediante expressa autorizao federal, mas no h notcia de que esta disposio tenha sido aplicada. No perodo do racionamento, ocorrido em 2001, admitiu-se que os consumidores pudessem comercializar seus excedentes de energia eltrica, conforme Resoluo GCE n 13/2001. 28

    Os geradores recebem concesso, autorizao ou registro, conforme capacidade do empreendimento, tipo de fonte e destinao da energia. Os geradores com capacidade at 50MW, inclusive com caractersticas de PCH, importadores e exportadores, bem como agentes comercializadores so autorizados pelo Poder Concedente diretamente ou pela ANEEL, mediante delegao do Poder Concedente. Por fora do Decreto n 4.932/2003, alterado pelo Decreto n 4.970/2004, referida atribuio atualmente exercida pela ANEEL.

  • Na viso do regulador29, o aviso de sada de um consumidor do ACR para o ACL deve ser considerado uma declarao firme, pois desencadeia um processo amplo que afeta as decises de negcios e a gesto dos contratos feita pela distribuidora. Em razo disso, caso a migrao para o ACL no se conclua por motivo no imputvel distribuidora, o consumidor deve ressarci-la pelo prejuzo incorrido, apurado a partir da energia fornecida pela diferena entre o Preo de Liquidao de Diferenas (PLD)30 mdio mensal e o custo mdio da aquisio de energia pela distribuidora divulgada nos reajustes tarifrios, quando positivo (art. 6, 1 e 2 da Resoluo ANEEL n 376/2009).

    J o retorno do consumidor livre ao ACR pode ser realizado desde que dentro de determinadas condies. O consumidor deve comunicar distribuidora esta inteno com no mnimo cinco anos de antecedncia, prazo este que pode ser reduzido a critrio da distribuidora31. Igualmente pelos reflexos que pode acarretar, a regulao prev que na desistncia de retorno para o ACR, o consumidor dever pagar a multa rescisria do contrato de compra de energia regulado, que dever ser firmado com a distribuidora logo aps o aviso de retorno (art. 9 da Resoluo ANEEL n 376/200932).

    Portanto, as opes de migrao para o ACL e de retorno para o ACR implicam a assuno de responsabilidade pelo ressarcimento de eventuais prejuzos causados distribuidora em razo do seu descumprimento pelo consumidor.

    1.3.3 Mecanismos de Celebrao do CCVEE

    A regra geral que os CCVEE so livremente estabelecidos, o que pressupe uma negociao direta entre as partes envolvidas. Porm, na hiptese de o agente vendedor ser empresa estatal, sob controle federal, estadual ou municipal, a contratao deve ser feita mediante (i) leiles exclusivos para os consumidores ou por estes promovidos; (ii) oferta pblica para atendimento expanso da demanda de consumidores; (iii) leiles, chamadas ou ofertas pblicas junto a outros agentes vendedores e exportadores (art. 27

    29 Nota Tcnica n 070/2009-SEM/ANEEL.

    30 Trata-se do preo do mercado spot.

    31 Art. 15, 8 da Lei n 9.074/1995 e art. 52 do Decreto n 5.163/2004. O prazo de retorno, no caso de um

    consumidor especial, de 180 dias. 32

    Originada aps a Audincia Pblica n 036/2008 e conforme Nota Tcnica n 070/2009-SEM/ANEEL.

  • da Lei n 10.438/2002, alterada pela Lei n 10.604/2002 e art. 54 e incisos do Decreto n 5.163/2004).

    A referida obrigao foi recomendada pelo Comit de Revitalizao (MME, 2002), que entendeu necessrio assegurar que a energia eltrica de geradores estatais pudesse ser negociada de forma transparente, isonmica e equilibrada junto aos demais agentes, evitandose o exerccio de poder de mercado por tais empresas. Em razo disso, empresas de grande porte sob controle federal, como o caso da Companhia Hidro Eltrica do So Francisco (CHESF), Centrais Eltricas do Norte do Brasil S/A. (ELETRONORTE) e Furnas Centrais Eltricas S/A (FURNAS), e sob controle estadual, como a Companhia Energtica de So Paulo (CESP), a Companhia Energtica de Minas Gerais (CEMIG) e a Companhia Paranaense de Energia (COPEL), so obrigadas a vender a energia eltrica oriunda das usinas que exploram mediante tais procedimentos.

    1.3.4 Livre Acesso Sistmico

    Os instrumentos bilaterais firmados para a comercializao da energia eltrica no compreendem sua entrega fsica, que contratada separadamente. Observe-se, neste sentido, que o conceito subjacente s reestruturaes empreendidas na IEEB que a energia eltrica consiste em uma commodity, podendo ser separado o produto do seu transporte (Souza, 2002, p.39). Por conta disso, foi garantido o livre acesso aos sistemas de distribuio e de transmisso para os agentes que atuam no ACL (6 do art. 15 da Lei n 9.074/1995).

    Os usurios acessantes e as concessionrias acessadas so obrigados a celebrar Contratos de Uso e de Conexo ao Sistema de Distribuio (CUSD e CCD) ou ao Sistema de Transmisso (CUST e CCT), dependendo da rede em que esto conectados33. No segmento da distribuio, o CUSD e o CCD so negociados diretamente entre as partes, respeitados os Procedimentos de Distribuio. No segmento

    33 Estes contratos disciplinam o uso e a conexo aos sistemas eltricos de distribuio e de transmisso,

    detalhando questes tcnicas e financeiras. O usurio do sistema de transmisso deve celebrar o CUST e o CCT com a transmissora acessada, no caso de instalaes de transmisso classificadas como rede bsica; enquanto o usurio do sistema de distribuio deve celebrar o CUSD e o CCD com a distribuidora acessada, quando o acesso se d nos sistemas de distribuio. Na hiptese de enquadramento como demais instalaes de transmisso, o usurio deve celebrar o CCT com a transmissora e o CUSD com a distribuidora. Isto est previsto nas Resolues ANEEL n 281/1999 e n 68/2004.

  • da transmisso, o CCT pode ser negociado, respeitados os Procedimentos de Rede, mas o CUST segue o modelo aprovado pela ANEEL e assinado com o ONS, que atua como delegatrio das empresas transmissoras34.

    O acesso aos sistemas gera a obrigao de pagamento do custo correspondente mediante tarifas de uso dos sistemas de distribuio (TUSD) ou de transmisso (TUST) e encargos de conexo, sendo as tarifas homologadas pela ANEEL e os encargos negociados entre as partes. Destaca-se ainda a previso de desconto na TUSD e na TUST na comercializao entre consumidores especiais, comercializadoras e fontes incentivadas, sempre que esta for a origem da gerao. Esse desconto, que chegou a 100% no passado, est hoje estabelecido em 50% e tem o seu valor efetivo apurado na CCEE35.

    Pela legislao setorial, as referidas tarifas de uso servem como veculo de arrecadao para diversos encargos setoriais. o caso do PROINFA, CDE e CCC-Isolados, que so cobrados dos consumidores que migram para o ACL por meio daquelas tarifas.

    1.3.5 Obrigaes Regulatrias na ANEEL e na CCEE36

    As transaes realizadas no ACL no se sujeitam homologao ou aprovao da ANEEL. A nica exigncia que os CCVEE firmados sejam mantidos pelas partes disposio do regulador, mesmo aps o seu encerramento, pelo prazo mnimo de cinco anos (1 do art. 4 e art. 5 da Resoluo ANEEL n 323/2008). J na CCEE, o registro da transao realizada (prazos, volumes, condies de sazonalizao ou modulao) obrigatrio, sujeitando as partes estrutura bsica de contabilizao e liquidao que ocorre naquela Cmara (Resoluo ANEEL n 109/2004, que aprovou a Conveno de Comercializao, e nas Regras e Procedimentos de Comercializao).

    34 Os chamados consumidores potencialmente livres tambm so obrigados a separar seus contratos,

    porm, neste caso, a compra de energia mantm-se com a distribuidora local. 35

    Conforme 1 do art. 26 da Lei n 9.427/1996 e Resoluo ANEEL n 77/2004. Cabe observar que esse desconto no alcana as usinas hdricas entre 1 e 50MW. 36

    Esta subeseo aborda as principais obrigaes resultantes do processo de contabilizao e liquidao feito na CCEE, sem pretender ser exaustiva pela complexidade e detalhamento de cada etapa do referido processo. Informaes adicionais sobre as Regras e Procedimentos de Comercializao da CCEE constam da sua pgina eletrnica (www.ccee.org.br).

  • Em linhas gerais, o referido processo envolve a contabilizao dos montantes contratados e da medio do consumo e da gerao aferidos, apurando-se as sobras e dficits dos agentes para posterior liquidao no mercado de curto prazo ao preo spot, o chamado PLD. O pagamento dos crditos e dbitos oriundos dessa apurao, objeto de liquidao financeira no mercado de curto prazo, assegurado mediante uma estrutura de garantias. Todo este processo de contabilizao e liquidao resulta em uma srie de obrigaes aos agentes da CCEE. Seus principais aspectos so destacados a seguir.

    O Mercado de Curto Prazo serve para a liquidao das sobras e dficits dos agentes. A CCEE tem a atribuio de aferir os montantes registrados frente aos montantes medidos de gerao e de consumo. As diferenas apuradas so contabilizadas neste mercado de curto prazo ao PLD, que estabelecido a partir de modelo computacional. Somente sobras e dficits so contabilizadas e liquidadas no mercado de curto prazo, pois os montantes contratados bilateralmente so faturados e liquidados nos termos previstos no prprio CCVEE.

    Essas operaes liquidadas no mercado de curto prazo so objeto de Garantias Financeiras. Os montantes contabilizados neste segmento so liquidados em um processo multilateral, por meio de uma instituio financeira perante a qual os agentes da CCEE mantm contas correntes e aportam garantias para honrar o pagamento dos valores devidos. A estrutura dessas garantias financeiras foi revista em 2008, tendo em vista o elevado ndice de inadimplncia apurado no ms de Janeiro de 2008. A sistemtica anterior de garantias, na viso do regulador37, no agregava segurana s operaes de curto prazo. A nova sistemtica prev que devem ser considerados os requisitos (consumo/venda) e os recursos (contratos/gerao) dos agentes para o horizonte de seis meses, compreendendo o ms anterior, o ms em curso e os prximos quatro meses. Isto permite CCEE calcular a expectativa de exposio de agente no mercado de curto prazo e determinar o valor da garantia que deve ser aportada ex ante, conferindo mais robustez s operaes do mercado de curto prazo38.

    37 Nota Tcnica n 202/2008-SEM/ANEEL e Nota Tcnica n 242/2008-SEM/ANEEL.

    38 A proposta da ANEEL foi consolidada aps Audincia Pblica n 046/2008 e resultou na Resoluo

    ANEEL n 336/2008.

  • No tocante aos encargos devidos no mbito da CCEE, merecem destaque: (i) os Encargos de Servio de Sistema (ESS), valores que se destinam recuperao dos custos incorridos pelos geradores na manuteno da confiabilidade e da estabilidade do sistema para o atendimento do consumo, sendo rateado entre os agentes de consumo da CCEE proporcionalmente ao consumo medido; (ii) as Perdas da Rede Bsica, que ocorrem da gerao ao consumo, por meio dos sistemas de transmisso, e que so rateadas entre os agentes mediante a aplicao de fatores de perdas. Tais fatores so calculados de forma a dividir igualmente as perdas verificadas em determinado submercado entre a produo e o consumo (50% para cada categoria); e (iii) o Excedente Financeiro, que tem por finalidade mitigar o risco de exposio que ocorre quando a venda de energia eltrica registrada em submercado distinto ao da localizao da gerao.

    H ainda o Mecanismo de Realocao de Energia (MRE), criado para o compartilhamento dos riscos hidrolgicos entre os geradores, garantindo-lhes a energia eltrica at o limite da garantia fsica independentemente dos montantes efetivamente despachados pelo Operador Nacional do Sistema Eltrico (ONS).

    Ainda perante a CCEE, os agentes esto obrigados a demonstrar Lastro Contratual para Cobertura do Consumo e da Venda, sob risco de pagamento de penalidade no caso de insuficincia desse lastro. O Decreto n 5.163/2004 determinou que toda transao de energia e de potncia deve ser 100% lastreada em gerao prpria ou de terceiros, neste ltimo caso mediante a celebrao de contratos bilaterais. Essa obrigao aferida mensalmente e, no caso da energia eltrica, deve considerar os montantes comercializados nos ltimos doze meses. A insuficincia de lastro, alm de sujeitar os agentes exposio no mercado spot, resulta na aplicao de penalidades, as quais so revertidas para a modicidade tarifria. A sistemtica de apurao das exposies, execuo de garantias, aferio de insuficincia de lastro e aplicao da correspondente penalidade constam das Regras e Procedimentos de Comercializao da CCEE.

    Vale observar que a exigncia de lastro no regra nova. Inicialmente foi disciplinada como uma garantia para os consumidores que optavam pelo mercado livre: os vendedores deveriam ter cobertura mnima de 85% da venda e contratos de compra com durao mnima de dois anos (Resoluo ANEEL n 249/1998, art. 5 e art. 6 c/c art. 12

  • da Lei n 9.648/1998 c/c art. 12 do Decreto n 2.655/1998). No entanto, por conta das discusses internas do MAE, no houve a aplicao efetiva da regra. Em 2003, o nvel de cobertura da comercializao passou para 95% e a aferio consideraria contratos com prazo mnimo de seis meses (Resoluo ANEEL n 91/2003 e n 352/2003). As disposies vigentes sobre lastro determinam que 100% das operaes comerciais estejam respaldadas em gerao prpria ou de terceiro, neste caso mediante contratos de compra. Detalhes sobre este tratamento constam dos arts. 3 e 2 do Decreto n 5.163/2004.

    1.4 Dados do Mercado Livre

    As transaes no mercado livre vm crescendo significativamente desde a criao desse ambiente em 1998. Em 2008, os contratos bilaterais responderam por cerca de 53,64% do total de contrataes, o que corresponde a 279.468GWh no total contabilizado de 521.046GWh; no ano anterior, 2007, esse percentual foi mais elevado, correspondendo a 53,64%39. Os consumidores que atuam no ACL respondem por cerca de 25% do total consumido, como ilustra o Grfico 1:

    Grfico 1 Consumo do Mercado Livre e do Sistema Interligado Nacional

    39 Relatrio de Informaes ao Pblico da CCEE Anlise Anual, Ano 2007 e Ano 2008.

  • Fonte: Antonio Machado. Repensando o Mercado Livre e as Regras do PLD. 10 Encontro Internacional de Energia. (http://www.ciespsul.com.br/energia/telas/pdfs/06/Antonio-Fraga-Machado.pdf,

    acessado em 01/11/2009).

    Na CCEE, entidade responsvel pelo registro das transaes feitas tanto no mercado livre quanto regulado, o nmero de consumidores livres cresceu significativamente. O nmero total de agente da CCEE saiu do patamar de 58 membros em 2000 para 929 agentes em 2008, sendo 648 consumidores livres, uma representatividade superior a 50%. A Tabela 3 aponta para o aumento expressivo do nmero de consumidores livres:

    Tabela 3 Evoluo de Agentes da CCEE Classe 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

    Autoprodutor 0 3 8 11 11 14 15 21 23 Comercializador 5 18 31 35 41 47 44 48 55

    Distribuidor 35 39 41 42 42 43 43 43 43 Gerador 15 19 19 20 20 22 27 30 29

    Importador 1 1 1 1 1 1 1 1 1 Prod.Independ. 2 15 26 37 45 65 83 88 130

    Cons.Livre 0 0 0 0 34 470 613 684 648 Total 58 95 126 146 194 662 826 915 929

    Fonte: Relatrios de Informao ao Pblico CCEE, 2007 e 2008.

    preciso ressaltar que a elevao substancial do nmero de consumidores livres nos anos de 2004 a 2005 no decorreu apenas do crescimento do nmero de transaes no mercado livre, mas da alterao das regras de modelagem e de representao de tais agentes perante a CCEE. Isto porque, at 2004, os consumidores livres podiam ser modelados como carga dos geradores, comercializadores e distribuidores. Com a alterao das regras aplicveis no mbito da CCEE40, os consumidores livres passaram a ter seus dados obrigatoriamente registrados e modelados em seu prprio nome.

    Dados da CCEE relativos ao ms de julho de 2009 ainda indicam que 70% do consumo de energia eltrica considerados os consumidores livres e especiais ocorre na Regio

    40 A Conveno de Comercializao da CCEE, aprovada em 2004 nos termos da Resoluo ANEEL n

    109/2004, estabeleceu que os consumidores livres e especiais so membros obrigatrios da CCEE, admitida a representao para efeito de contabilizao e liquidao (art. 11, 1, VI e 2). Essa representao tem natureza operacional como indica o Procedimento de Comercializao PdC.AG.01 Adeso CCEE (item 10.7).

  • Sudeste e que as contrataes de longo prazo realizadas por tais agentes acima de quatro anos respondem por cerca de 65% do total contratado41.

    1.5 Concluses

    O descritivo da evoluo da abertura do mercado brasileiro livre comercializao e da regulao correspondente objetivou explicitar os atributos prprios do modelo institucional da IEEB. Verifica-se que, aps um longo perodo de explorao estatal, a IEEB foi reestruturada para permitir a competio na comercializao, tendo enfrentado, ao longo de 10-13 anos aps a abertura, exerccio do poder de mercado de agentes, grave crise de racionamento e alteraes significativas no modelo institucional inicialmente adotado. Nessa evoluo, no obstante tenha sido preservado o mercado livre, constata-se que a regulao sobre o ACL foi intensificada e aprimorada, exercendo, assim, um papel fundamental na formatao e efetivao das transaes nele realizadas.

    A regulao e sua evoluo refletem nos contratos bilaterais, tanto na fase inicial de sua elaborao, quanto na fase posterior de sua execuo, levando, em algumas situaes, necessidade de adaptao dos CCVEE firmados no ACL, que, naturalmente, no conseguem antever e disciplinar todas as contingncias. A abordagem da Nova Economia Institucional (NEI), particularmente a vertente da Economia dos Custos de Transao (ECT) e dos Contratos Incompletos, oferecem o referencial terico adequado para a anlise dessas contrataes, como se identificar no Captulo 2 seguinte.

    41 Apresentao Panorama e Perspectivas do Mercado de Comercializao de Energia no Atual Contexto

    Econmico. Superintendncia de Estudos de Mercado da ANEEL, 09/09/2009.

  • CAPTULO 2. TEORIA DOS CONTRATOS

    Este captulo apresenta o referencial terico utilizado para pesquisa e anlise das contrataes de compra e venda de energia eltrica realizadas no mercado livre, considerada a literatura da Nova Economia Institucional (NEI), especificamente a teoria da Economia dos Custos de Transao (ECT) e dos Contratos Incompletos. Destacam-se ainda as caractersticas da Indstria de Energia Eltrica (IEE) e a aplicabilidade do referencial terico abordado a essa indstria.

    2.1 Noo dos Contratos: Viso Econmica e Jurdica

    Os contratos so vistos pela teoria econmica como instrumentos que permitem trocas

    eficientes nas transaes entre as partes e visam transferir riscos, distribuir ganhos e economizar custos de transao (Masten, 1999, p.26). A funo econmica de um contrato permitir trocas justas e distribuir os ganhos advindos dessa troca, considerando-se, para tanto, a alocao dos riscos envolvidos (Santos, 2004, p.237). A diferena entre o contrato e uma mera transao reside no fato de que o primeiro reflete uma promessa imbuda de coero, resguardada pelo ambiente institucional, sendo da essncia do contrato a possibilidade de ser cobrado e exigido, o que torna factvel os investimentos e as trocas (Masten, 1999; Zylberstjan e Stjan, 2005).

    Essa noo econmica dos contratos e as teorias correlatas vm evoluindo ao longo dos anos. Na viso neoclssica, as partes podem realizar acordos ideais porque possuem informaes perfeitas e disponveis, ou seja, chegam ao equilbrio timo da relao em um mundo sem imperfeies (Masten, 1999, p.27). Neste caso, pertinente o Paradigma de Arrow-Debreu42, segundo o qual os contratos representam arranjos timos, alcanados com base em informaes perfeitas e atitudes positivas dos agentes, ou seja, os contratos celebrados no representam a realidade (Zylberstjan e Stjan, 2005, p.105).

    42 Essa teoria considera a existncia de um agente leiloeiro, que detm e disponibiliza as informaes

    relevantes para as partes, facilitando as decises de troca entre os agentes. Como os participantes compartilham as mesmas informaes, possvel obter a alocao tima dos recursos.

  • Segundo North (1990, p.19), a linha neoclssica falha ao ignorar a motivao dos agentes e a necessidade de compreenso do ambiente, partindo do pressuposto de que o comportamento do agente racional, suas preferncias so estveis e o mercado est em equilbrio. O autor pondera que quanto mais complexa e peculiar a transao, mais incerto seu resultado.

    Uma nova abordagem surgiu com Coase (1937, p.34/39), que, em estudo sobre a Natureza da Firma, apontou que preciso considerar a realidade das firmas nas anlises econmicas. Nesse trabalho, Coase destacou a existncia de custos para a negociao e a celebrao de contratos no mercado, bem como a dificuldade de se antever e especificar as obrigaes das partes nos contratos de longo prazo.

    A partir das ideias de Coase, Williamson (2005, 2003, 2002, 1998, 1996) desenvolveu a Economia dos Custos de Transao (ECT), teoria que considera que os agentes tm custos para celebrar, monitorar e renegociar contratos, os quais, na presena de incerteza, sero necessariamente Contratos Incompletos. Para Williamson (2003, p.920) a essncia da contribuio de Coase foi migrar da viso ortodoxa baseada na cincia da escolha (lens of choice science of choice) para a cincia do contrato (lens of contract science of contract) para efeito de anlise das transaes econmicas. Enquanto a viso ortodoxa enfatiza a alocao de recursos pelo mercado, a cincia do contrato volta-se para o desenho contratual, compreendendo o esforo das partes no alinhamento de incentivos e na escolha de estruturas de governana (Williamson, 2003, p.920/921; 2002, p.172).

    Essa abordagem est inserida no mbito da Nova Economia Institucional (NEI), escola que destaca o papel e a importncia das instituies e das organizaes na economia (Williamson, 1998, p.75). A NEI traduz-se em uma empreitada interdisciplinar que avalia o ambiente institucional (rules of the game), que abrange normas, contratos e direitos de propriedade; e o ambiente da governana (play of the game), que compreende mercados, firmas e formas hbridas (op. cit., p.75; Williamson, 2005, p.385).

  • H ainda outras abordagens que fornecem elementos para a anlise dos contratos, como a Teoria da Agncia e a Anlise Econmica do Direito (Law and Economics). Segundo a Teoria da Agncia, mesmo na presena da assimetria de informaes na celebrao dos contratos, o desenho contratual timo permitir a alocao de riscos e a diviso de resultados de forma eficiente, inexistindo, assim, preocupao com aspectos ps-contratuais (Zylberstjan e Stjan, 2005, p.108). J a abordagem da Anlise Econmica do Direito enfatiza o ordenamento pblico em contraste com o ordenamento privado. Enquanto o ordenamento pblico prioriza o papel dos tribunais na escolha e na aplicao dos contratos, o ordenamento privado aposta na soluo dos conflitos por meio das organizaes (op. cit., p.13 e 109).

    Nesse aspecto, as lies de Williamson so elucidativas. O autor (1996, p.407), ao comparar a linha da Law and Economics com a abordagem da Law, Economics and Organization, observa que a primeira trata dos contratos como regra legal apenas passvel de execuo pelos tribunais; enquanto a segunda aposta na negociao entre as partes, colocando os tribunais como ltimo recurso. Outro aspecto apontado por Williamson (op. cit., p.395) diz respeito noo do contrato-lei na Law and Economics e do contrato-moldura na Law, Economics and Organization. A primeira abordagem est inserida na tradio clssica, segundo a qual o contrato reflete uma promessa que, quando quebrada, deve ser sanada pelos tribunais. Na segunda abordagem o contrato oferece uma moldura para as transaes entre as partes, o que leva anlise dos ajustes por elas desejados ao firmar o instrumento.

    Portanto, a Teoria dos Contratos comporta diferentes abordagens, tendo sido escolhida, para fins deste trabalho, a escola institucionalista, particularmente os elementos da ECT e dos Contratos Incompletos, que seguem aprofundados no item 2.2 adiante.

    As linhas da teoria econmica, acima referenciadas, tm reflexos na abordagem jurdica dos contratos. Os contratos so definidos pela teoria jurdica como acordos de vontade que visam adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos (Pereira, 2009, p.7). A teoria jurdica reconhece que os contratos desempenham funo econmica, na medida em que promovem circulao de riqueza, previnem riscos e solucionam controvrsias (Gomes, 2009, p.22/23).

  • A concretizao dos contratos exige (i) objeto lcito, possvel e determinado, (ii) agentes capazes e (iii) consentimento vlido das partes envolvidas (Wald, 2009, p.235). Desses elementos, o consentimento assume especial relevncia, pois, tratando-se de negcio jurdico bilateral, a concordncia entre as partes fundamental, de modo que o contrato se perfaz quando h declaraes de vontade vlidas, eficazes e coincidentes (Gomes, 2009, p.12 e 53).

    O aspecto coercitivo do acordo de vontades materializado no contrato tambm destacado no plano jurdico. A obrigatoriedade de cumprimento da avena, segundo Pereira (2009, p.13), da essncia do contrato e reflete a irreversibilidade da declarao de vontade da parte. Esclarece o autor que a ordem jurdica confere s partes liberdade para desenhar o contrato, porm, uma vez definidos seus termos, as partes ficam a eles vinculadas, assumindo ento os riscos decorrentes.

    Nessa linha, Gomes (2009, p.38) destaca o princpio da fora obrigatria dos contratos, segundo o qual a regra contratual faz lei entre as partes. Isso significa que, se o contedo do contrato foi celebrado de forma vlida, ele passar a ter fora obrigatria e no poder ser revisto ou alterado por terceiros, mas somente pelo acordo das partes. Este princpio, no entanto, no absoluto, sendo possvel falar em reviso ou at mesmo trmino da relao contratual na ocorrncia de fatos imprevisveis que comprometam o adimplemento da obrigao, bem como no caso de desequilbrio econmico que acarrete onerosidade excessiva para uma das partes (op. cit., p.41 e 48). A relativizao da fora obrigatria dos contratos est associada evoluo do fenmeno da contratao. Tambm Gomes (op. cit., p.17 e 18) explica que a interveno do Estado na economia reduziu a liberdade de atuao do indivduo e o poder de autodeterminao individual, de modo que o contrato deixou de ser o reflexo mximo da autonomia das partes. Para o autor, esta alterao acarretou a reconstruo do prprio sistema contratual, uma vez que passou a ser admitido que o contrato transcende vontade das partes. Os limites contratuais da autonomia privada so a ordem pblica e os bons costumes, mas o exerccio do direito de contratar est circunscrito pelos princpios da boa f e da funo social do contrato (op. cit., p.19), incorporados no ordenamento jurdico brasileiro na reviso do Cdigo Civil Brasileiro realizada em 200243.

    43 Cdigo Civil Brasileiro

    Art. 421. A liberdade de contratar ser exercida em razo e nos limites da funo social do contrato.

  • Sobre a evoluo da noo contratual, Wald (2009, p.220/230) esclarece que o contrato foi visto durante muito tempo como um instrumento intangvel, imutvel e necessariamente justo pelo fato de decorrer de um acordo de vontades, mas, com o tempo, surgiram limitaes liberdade de contratar. Para o autor, o contrato ganhou flexibilidade para adequar-se ao interesse social e ao interesse comum das partes, respeitados os princpios da funo social e da boa f contratual. O contrato deixou ento de ser um instrumento que representa interesses antagnicos e passou a ser concebido como uma parceria. Tal concepo nova para os juristas clssicos e decorre da lgica econmica de que os contratos esto sujeitos descontinuidade, incerteza e s mudanas do ambiente em foram celebrados.

    2.2 Abordagem Institucionalista: Economia dos Custos de Transao e Contratos Incompletos

    A NEI destaca o papel das instituies no exame das transaes e dos custos associados, sendo pertinente aprofundar os conceitos de custos de transao, estruturas de governana, instituies e contratos incompletos.

    A ECT elege a transao como unidade de anlise e reconhece a existncia de custos para sua realizao, os quais podem ser reduzidos mediante a adoo de mecanismos de governana que minimizem os conflitos entre as partes e permitam a realizao de ganhos mtuos (Williamson, 2005, p.371; 1998, p.75; 1996, p.393).

    Os custos de transao existem porque os agentes econmicos tm racionalidade limitada e agem de modo oportunista, visando maximizar sua satisfao. Esta racionalidade limitada e oportunismo, pressupostos da ECT, resultam das incertezas, complexidades e assimetria de informao, elementos que impedem aos agentes antecipar todas as contingncias e formatar contratos completos (Williamson, 2005; Fagundes, 1997).

    Art. 422. Os contratantes so obrigados a guardar, assim na concluso do contrato, como em sua execuo, os princpios da probidade e da boa-f.

  • A racionalidade limitada reside na incapacidade do agente coletar, processar e antecipar todas as informaes e contingncias necessrias tomada de deciso e confeco do contrato; enquanto o oportunismo44 revela que os agentes buscam o interesse prprio, valendo-se da assimetria e do privilgio de informao para obter vantagens competitivas (Williamson, 2003; Ibanez, 2003).

    A informao tida como elemento fundamental, sendo a assimetria prejudicial em qualquer momento da transao. Na etapa ex ante, pode gerar problemas de seleo adversa (adverse selection), dificultando a celebrao do acordo; na etapa ex post, pode acarretar risco moral (moral hazard)45, prejudicando o verdadeiro conhecimento da conduta da outra parte na execuo do contrato ex post (Sztajn, Zylbersztajn e Furquim, 2005, p.122/123).

    Na presena de tais pressupostos, que demandam adaptaes contratuais (pela racionalidade limitada) e do ensejo a comportamentos estratgicos das partes (pelo oportunismo), h risco de quebra do pacto contratual (Williamson, 2002, p.174). Diante disso, as partes tm dispndios para obter informaes e negociar contratos, chamados custos ex ante, bem como para monitorar, gerir, renegociar e realinhar os contratos, chamados custos ex post (Williamson apud Fagundes, 1997, p.10).

    Tais custos esto presentes em todas as etapas da transao: primeiro, a busca de informao sobre preo, mercadoria e comportamento dos agentes; segundo, a negociao para definio das intenes e limites da transao; terceiro, a formalizao do contrato, inclusive com os registros e garantias legais; quarto, o monitoramento contratual para verificar o cumprimento do contrato; e quinto, a correta aplicao do contrato com a cobrana de indenizao no caso de prejuzos por inadimplncia da outra parte (Pinheiro e Saddi, 2005, p.62).

    A intensidade dos custos de transao acima mencionados influenciar a realizao da transao, o desenho dos contratos e a escolha do mecanismo de governana.

    44 Lemes (2007, p.164) esclarece que o oportunismo a que se refere a literatura econmica tratado sob a

    tica jurdica como a violao do princpio da boa f contratual. 45

    A seleo adversa (adverse selection) ocorre quando uma das partes possui informao privilegiada, mas no compartilha ex ante com a outra parte, o que prejudica o acordo; o risco moral (moral hazard) ocorre no cumprimento do contrato, quando, por fora de assimetria de inf