dissertditadura civil militar na região sul gaúcha ação marÃlia silveira final

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  • 8/10/2019 DissertDitadura Civil Militar na Regio Sul Gacha ao Mar lia Silveira final

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

    Instituto de Cincia HumanasPrograma de Ps-Graduao em Histria

    Dissertao

    Ditadura Civil Militar na Regio Sul Gacha :Militncias e Rotas de Exlio

    Marlia Brando Amaro da Silveira

    Pelotas, 2014

    http://www.ufpel.tche.br/
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    Marlia Brando Amaro da Silveira

    Ditadura Civil Militar na Regio Sul GachaMilitncias e Rotas de Exlio

    Dissertao apresentada ao Programade Ps-Graduao em Histria, daUniversidade Federal de Pelotas, comorequisito parcial obteno do ttulo de

    Mestre em Cincias Humanas.

    Orientador: Prof. Dr. Edgar vila Gandra

    Pelotas, 2014

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    Marlia Brando Amaro da Silveira

    Ditadura Civil Militar na Regio Sul Gacha : Militncias e Rotas de Exlio

    Dissertao aprovada, como requisito parcial, para obteno do grau de Mestre em Histria,Programa de Ps-Graduao em Histria, da Universidade Federal de Pelotas.

    Data da Defesa: 15 de abril de 2014.

    Banca examinadora:

    Prof. Dr. Edgar vila Gandra, Doutor em Histria pela Universidade Federal do Rio Grandedo Sul (2004).

    Prof. Dr. Enrique Serra Padrs, Doutorado em Histria pela Universidade Federal do Rio Grandedo Sul (2005).

    Prof. Dr. Renato da Silva Della Vechia, Doutorado em Cincia Poltica pela Universidade Federal

    do Rio Grande do Sul (2011)

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    Dedico este trabalho,

    junto ao de Concluso de Curso,

    todos os que lutam

    por uma sociedade mais justa.

    E para todos os que lutaram para que minha gerao

    s conhecesse a ditadura civil militar

    estudando o passado.

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    Nanci, Eduardo, Camilo, Briza, Digo, Marcelo, Mathias, os pequenos Sabastinho

    e Agathinha e todo o pessoal.

    Agradeo aos companheiros e muito queridos amigos, que me

    acompanharam durante esses anos de universidade. Seguiremos em novas lutas,

    lado a lado, porque nunca deixaremos de acreditar em uma universidade pblica,

    gratuita, de qualidade, democrtica e socialmente referenciada e, muito mais que

    isso, em uma sociedade que ser justa e solidria. Trarei a coragem de cada um

    de vocs como exemplo para a vida. Obrigada aos que me ensinam: Landa e

    demais lutadores da Casa do Estudante, Law, Dani, Hercules, rika, Allan,

    Camila, Fernanda, Tzuzy, Dani Conte e povo de POA, Lua, Vika, Luza e o D.A da

    Letras e todos os queridos do Germinal e demais organizaes. Tambm aocompa, transcritor, corretor e astrnomo Jordo. Obrigada em especial aos que

    nos representam: Antnio Cruz, Fabiane Tejada, Sergio Christino e, mais uma

    vez, a sempre Pr-Rainha, Rosane Brando.

    Um agradecimento especial ao Renato Della Vechia, Alessandra

    Gasparotto e Enrique Padrs por terem to pacientemente colaborado no meu

    processo de aprendizagem. Por esses tenho confessa admirao pelo jeito

    sempre fraterno de ensinar e pela forma com que exercem suas atividadesdocentes, preocupados com as demandas da sociedade.

    Agradeo aos queridos colegas, amigos e orientadores, pela

    conversas srias e por aquelas em mesa de bar, pelas discusses sobre Histria

    e sobre a vida, o universo e tudo mais. Muito desse trabalho tem um pouco de

    cada um. Aproveito para agradecer aos novos colegas desse caminho que se

    apresenta: obrigada pela cooperao, pelo trabalho em grupo e pelas produtivas

    e divertidas conversas.Agradeo ao corpo docente do Mestrado em Histria, como um todo,

    por sua dedicao e pelos espaos de discusso. Agradeo com carinho ao

    professor Adhemar, que me acompanha desde o comeo das minhas pesquisas,

    que, junto a outros caros exemplos, sempre me cativaram com suas formas

    singulares de serem colegas educadores e, em especial, ao meu orientador, prof.

    Edgar Gandra, pela solicitude, conselhos e colaborao que tanto enriqueceram

    meu trabalho. Agradeo, ainda, aos alunos do curso de Cincias Sociais, pelo

    fraterno dilogo com a inexperiente professora.

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    Agradeo CAPS por fomentar a presente pesquisa e s entidades

    mantenedoras de arquivos que tornaram o trabalho possvel, em especial

    solicitude da pesquisadora Ananda Simes.

    Finalizo expressando meu agradecimento aos entrevistados, por

    terem to gentilmente dedicado seu tempo a conversar com a pesquisadora, mas

    acima de tudo, por terem lutado por uma sociedade mais justa e conquistado o

    fim da ditadura civil militar no pas.

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    Resumo

    No presente trabalho intenta-se trazer novos elementos sobre apesquisa em ditadura civil militar focando um tema cuja produo ainda muito

    escassa. Prope-se explorar a forma como o perodo expressou-se, no que

    remete ao Rio Grande do Sul, em cidades do interior onde percebemos uma

    grande particularidade: a organizao das rotas de exlio. Delimitaremos o

    presente trabalho s atividades de oposio ditadura civil militar nas cidades de

    interior e de fronteira, considerando as principais atividades de oposio e,

    tambm, a represso, os apoios ao golpe, dentre diversas particularidades. Focar-se-, mais especificamente, na organizao das rotas de exlio, atividade peculiar

    que envolveu diversos grupos em solidariedade para garantir a vida de militantes

    procurados e, tambm, para a organizao da militncia no exlio. A principal

    fonte ser a memria, tanto dos organizadores das atividades, quanto dos

    transladados para fora do pas. Deter-se- o perodo compreendido entre o ano

    do golpe at o incio dos anos de 1970, em que os grupos de resistncia foram

    duramente combatidos e se encontravam bastante desarticulados.

    Palavras Chave:Ditadura Civil Militar; Ditadura Civil Militar no Rio

    Grande do Sul; Cidades de interior e de Fronteira; Rotas de Exlio.

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    Abstract

    The present paper attempts to bring new elements to civil-military

    dictatorship research focusing at a topic which production is yet scarse. It isproposed to explore the way, concerning the Rio Grande do Sul state, which the

    period was expressed in the countryside cities and we can point it out a certain

    particularity: the organization of the exile's routes. Therefore, we'll limit the present

    paper to the opposing activities against the civil-military dictatorship at the

    contryside and boundary cities accounting opposing activities, repression, the

    coup support, among many other particularities. However, it will focus on the

    establishment of the exile's routes, singular activity which envolved many groupsin symphaty to ensure the life of the wanted militants and, also, to the militancy

    arrengement at the exile. The main source will be the memory from both -

    activities organizers and exileds. It will concentrate on the period counting from the

    year of the takeover until the early 1970s in which resistance groups were starkly

    fought and could be found very disarticulated.

    Key-words: Civil-military dictatorship; civil-military dictatorship in RioGrande do Sul; contryside and boundary cities; exile's routes

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    Lista de Sigla

    9 RI9 Regimento de InfantariaAI ou AI-1 - Ato Institucional n 1, de 9 de abril de 1964

    AI-5 - Ato Institucional n 5, de 13 de dezembro de 1968

    ANCUR - Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados

    APAo Popular

    ARENAAliana Renovadora Nacional

    CFDP - Comisso dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Polticos

    CNV - Comisso Nacional da VerdadeDC - Delegacia de Costumes

    DOPSDepartamento de Ordem Poltica e Social

    EMBRAPAEmpresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria

    FAPFederao Acadmica Pelotense

    FARP - Frente de Ao Revolucionria Popular

    ICH / UFPel - Instituto de Cincia Humanas / Universidade Federal de Pelotas

    ID/3Infantaria Divisionada 3IPEAS - Instituto de Pesquisas e Experimentao Agropecuria do Sul

    IPMInqurito Policial Militar

    JECJuventude Estudantil Crist

    JUCJuventude Universitria Crist

    MDBMovimento Democrtico Brasileiro

    OAB - Ordem dos Advogados do Brasil

    PCBPartido Comunista Brasileiro

    PCBRPartido Comunista Brasileiro Revolucionrio

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    PCdoBPartido Comunista do Brasil

    PRPartido Republicano

    PSDPartido Social Democrtico

    PTBPartido Trabalhista Brasileiro

    SEC - Secretaria de Educao e Cultura

    SNI - Servio Nacional de Inteligncia

    SOPS - Seo de Ordem Poltica e Social

    TFP - Tradio, Famlia e Propriedade

    UCPel - Universidade Catlica de Pelotas

    UEEUnio Estadual de Estudantes (Rio Grande do Sul)

    UFPel - Universidade Federal de PelotasUFRGSUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

    UGESUnio Gacha de Estudantes Secundaristas

    UNE - Unio Nacional de Estudantes

    UPESUnio Pelotense de Estudantes Secundaristas

    URGS - Universidade do Rio Grande do Sul, atual UFRGS

    MASTER - Movimento dos Agricultores Sem Terra

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    Sumrio

    APRESENTAO ............................................................................................... 13

    1. INTRODUO - DITADURA CIVIL MILITAR NA REGIO SUL GACHA:

    CONSIDERAES A CERCA DO TEMA E DA METODOLOGIA ..................... 161.1. Debates e Demandas na Sociedade: ...................................................... 201.2. Histria e Ditadura Civil Militar: ............................................................... 311.3. Histria Oral, Memria e Ditadura Civil Militar: ........................................ 381.4. A Produo Acadmica Sobre o Rio Grande do Sul: .............................. 47

    2. PANORAMA DAS CIDADES DO INTERIOR DO ESTADO ............................ 52

    2.1. Resistncia ao Golpe e Ditadura Civil Militar em Cidades de Interior ..... 542.2. Apoio ao Golpe e Ditadura Civil Militar e Represso aos Opositores ...... 612.3. Resistncia e Represso Durante a Ditadura Civil Militar nas Cidades de

    Pequeno Porte e no Campo ........................................................................... 703. AS PECULIARIDADES DAS CIDADES GACHAS DE FRONTEIRA E AORGANIZAO DAS ROTAS DE EXLIO .......................................................... 76

    3.1. Consideraes Tericas de Nosso Tema ................................................ 783.2. Rotas, Esquemas. De exlio, de Sada, de Entrada. O Que EstamosAnalisando? .................................................................................................... 843.3. Consideraes Histricas e Geogrficas ................................................. 883.4. Como Eram Organizadas as Rotas de Exlio? ........................................ 933.5. Rotas de Exlio e Represso ................................................................. 1253.6. Como Eram Compreendidas as Rotas de Exlio Pela Oposio

    Ditadura? ...................................................................................................... 1324. CONSIDERAES FINAIS: .......................................................................... 135

    LISTA DE FONTES ........................................................................................... 141

    REFERNCIAS .................................................................................................. 144

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    Apresentao

    A presente pesquisa tem como marco inicial a formulao do

    Trabalho de Concluso de Curso de Licenciatura em Histria, pela Universidade

    Federal de Pelotas, no ano de 2010. Detectando como lacuna na produo

    historiogrfica o impacto do golpe e ditadura civil militar nas cidades de interior,

    cujas caractersticas prprias foram negligenciadas em prol de uma indevida

    generalizao de experincias referenciadas nos grandes centros, me dispus,

    poca, a investigar a militncia de oposio ditadura civil militar na cidade de

    Pelotas -RS.

    Essa rica experincia permitiu apontar diversas caractersticas muito

    especficas a municpios de interior e de fronteira, mas, principalmente, permitiu

    perceber que essa regio teve papel protagonista em atividade peculiar de

    oposio: o estabelecimento de rotas de exlio. Muito importante para as

    organizaes de oposio ditadura em todo o pas, essa tarefa tambm

    recebeu, como veremos, pouco estudo.

    Motivada pela defasagem da produo, seja referente s cidades do

    interior, seja s rotas de exlio, me dispus a propor o presente trabalho, no intuito

    de deixar uma contribuio para o tema, ainda carente de novas pesquisas e

    reflexes mais aprofundadas.

    Intento considerar as peculiaridades das cidades de interior e defronteira no Estado do Rio Grande do Sul1, cuja dinmica indissocivel da

    organizao das rotas de exlio. A presente pesquisa tratar, portanto, de estudar

    a tarefa peculiar da militncia de oposio ao golpe e ditadura civil militar nas

    cidades de interior e de fronteira, de organizao das rotas de exlio, abordando,

    1Eventualmente se optar por referimos ao territrio, s caractersticas prprias dele ouaos seus habitantes por gacho(s). Embora essa palavra no se reduza ao territrio em

    questo (podendo referir-se aos uruguaios ou argentinos), estaremos usando o termogacho como similar a sul-rio-grandense.

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    para isso, diversos outros aspectos fundamentais para nossa discusso.

    Tendo j recolhido uma serie de informaes e fontes em meu

    trabalho de concluso de curso, pude, ainda, contar com a colaborao de

    diversos militantes dos movimentos sociais - meio em que me insiro - para a

    efetivao de contatos que possibilitaram uma maior complexificao das fontes

    orais, centrais no trabalho.

    Escolhi compartimentar o resultado desse perodo de pesquisa no

    formato de quatro sesses, que, atravs de diferentes propostas, intentam

    colaborar com a releitura e ampliao crtica do objeto de pesquisa em apreo.

    Em nossa Introduo, Ditadura Civil Militar na Regio Sul Gacha:

    consideraes a cerca do tema e da metodologia, faz-se a apresentao dotrabalho e das diversas consideraes que devemos ter em horizonte quando

    trabalhamos com um tema ainda to vivo e controverso. Ponderaremos os

    debates e reivindicaes da sociedade ante ao tema, a responsabilidade dos

    pesquisadores e as contribuies que podemos deixar. H, tambm, a defesa de

    algumas das opes metodolgicas e tericas, todavia, essas encontrem-se, por

    opo narrativa, diludas ao longo do trabalho, sempre que se fez necessrio

    introduzir ou retomar conceitos.No captulo que se segue, Panorama das Cidades do Interior do

    Estado, o esforo foi traar consideraes que permitissem ter um quadro geral

    das especificidades das cidades do interior do Rio Grande do Sul no perodo:

    como a ditadura se expressou, atingiu militantes e a sociedade como um todo,

    quais as declaraes e aes de apoio e repdio, como foi combatida, entre

    outras questes.

    Com uma grande dificuldade de encontrar bibliografia de suporte, foinecessrio construir um dilogo com os poucos trabalhos pertinentes ao tema,

    complementando e problematizando com fontes disponveis, como matrias de

    jornais e entrevistas. O intuito foi contemplar municpios de diferentes localidades

    e atividades econmicas, alm das demais particularidades. Consideramos ainda

    as diferenas existentes entre cidades de mdio e pequeno porte, tendo um

    subcaptulo em especfico para tratar dessa ltima, considerando o porte de um

    municpio como uma categoria que articula extenso territorial e densidade

    demogrfica.

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    1. Introduo - Ditadura Civil Militar na Regio Sul Gacha: consideraes a

    cerca do tema e da metodologia

    A pesquisa sobre Ditadura Civil Militar no Brasil atualmente pode ser

    considerada de privilegiada produo, em certa medida, por ser mobilizadora da

    opinio pblica e suscitar debates, no s no meio acadmico, mas na sociedade

    como um todo, haja vista a demanda dos meios de comunicao, o relativo

    sucesso de vendas de livros sobre o perodo2 e, tambm, as sucessivas

    manifestaes pblicas de parcela da populao organizada.

    Porm, essa produo centra-se na investigao sobre o eixo So

    Paulo/ Rio de Janeiro ou, eventualmente, nas capitais de outros Estados. No

    entanto, mais recentemente tm se questionado os limites de representatividade

    dessa produo que tende a generalizar algumas experincias e no abranger

    diferentes formas de mobilizao, luta, resistncia e represso. Percebe-se entre

    os pesquisadores uma preocupao em abordar novos focos, para que a maior

    complexificao nos possibilite entender as diversas formas com que a ditadura

    civil militar se expressou e foi combatida no Brasil. Diversas iniciativas, dentro e

    fora da academia, tm se voltado para uma pesquisa que busca novos temas.

    Sobre o Rio Grande do Sul, podemos apontar algumas

    peculiaridades que resultam em caractersticas especficas para o perodo de

    ditadura civil militar. A localizao, por exemplo, que faz limite com Uruguai e

    Argentina, cujos desdobramentos sero apontados ao longo do trabalho, sendo o

    principal foco de nossa pesquisa a organizao de rotas de exlio atravs da

    fronteira uruguaia.

    2Em especial os que foram mais promovidos pela grande mdia: em uma semana, osdois primeiros livros da coleo de lio Gaspari, (Coleo As Iluses Armadas, So

    Paulo: Companhia das Letras, 2002-2004) venderam cerca de 100 mil exemplares.Segundo.: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,lancamentos-literarios-recentes-se-dedicam-a-ditadura-militar-no-brasil,803015,0.htm.Acessado 01/11/2012.

    http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,lancamentos-literarios-recentes-se-dedicam-a-ditadura-militar-no-brasil,803015,0.htmhttp://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,lancamentos-literarios-recentes-se-dedicam-a-ditadura-militar-no-brasil,803015,0.htmhttp://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,lancamentos-literarios-recentes-se-dedicam-a-ditadura-militar-no-brasil,803015,0.htmhttp://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,lancamentos-literarios-recentes-se-dedicam-a-ditadura-militar-no-brasil,803015,0.htm
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    Tambm peculiar ao Estado o papel protagonista de articulador da

    Campanha da Legalidade, que garantiu a posse do presidente Joo Goulart, em

    1961 e postergou a iniciativa de golpe dos setores mais reacionrios do pas.

    percebido, igualmente, um forte apelo s reformas de base. Constitua-se, ento,

    um Estado marcado por diversas experincias de mobilizao legalista,

    organizada em defesa do cumprimento de mandato do presidente Joo Goulart3.

    Houve, portanto, uma importante organizao no Rio Grande do sul contra o

    golpe militar em 1964 e, tambm, grandes expectativas de diversos setores da

    populao na defesa do governo Jango.

    J tendo sido constatadas, at mesmo atravs das memrias dos

    militantes4, as tarefas especficas desenvolvidas no Rio Grande do Sul,especialmente as conexas ao interior e fronteira, ainda assim, o estudo dessas

    peculiaridades no foi esgotado pela academia.

    O objetivo desse trabalho ser o de pesquisar as atividades da

    militncia de cidades do interior e de fronteira com o Uruguai, na organizao da

    resistncia ao golpe e ditadura civil militar, dando nfase s atividades prprias

    dessa regio, de organizao das rotas de exlio.

    Como veremos, essas rotas no s garantiram salvaguardar a vidade muitas pessoas, como constituram-se, elas prprias, como uma forma de

    oposio ditadura civil militar e como uma possibilidade para a organizao da

    militncia e das lutas. Portanto, no s garantiu a integridade fsica de

    perseguidos, como, tambm, permitiu, em certa medida, a reorganizao da

    oposio fora do pas.

    Devemos, no presente trabalho, ultrapassar a compreenso da

    fronteira como constituda pelas cidades limtrofes do pas, incluindo tambmcidades cujas dinmicas prprias se inserem nas peculiaridades da regio e que

    devem ser compreendidas como parte desse cenrio. Embora eventualmente seja

    necessrio fazer meno nossa fronteira limtrofe, ou seja, aos nossos limites

    polticos com os demais pases, a fronteiras deve ser compreendida como

    3Essas peculiaridades aparecem, por exemplo, apontadas no prefcio da coleo:PADRS, Enrique et all (org.)A Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul(1964 - 1985): Histria e Memria. Vol. I-IV. POA: Corag, 2009.4

    Por exemplo, como apontado no relato em Koutzii, Flvio. Trajetrias. In.: PADRS,Enrique; et all (org.).A Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul. Vol. III-Conexo Repressiva e Operao Condor. POA: CORAG, 2009, p.111.

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    fronteira zona, onde ocorrem permanentes trocas (culturais, econmicas,

    estatais...)5. Pretende-se, pois, uma vez que temos essa compreenso, inserir em

    nossas anlises, mesmo que tangencialmente, essas trocas, ocorridas nesse

    espao. Essa compreenso nos permite ainda, incluirmos em nossa pesquisa

    cidades que no compe o limite do pas, mas, ainda assim, fazem parte desse

    cenrio. Eventualmente, analisaremos ainda, cidades que fogem dessa

    perspectiva, a fim de conseguirmos compor um cenrio do perodo e dialogar com

    os acontecimentos de todo o Estado.

    Pretende-se tambm questionar as dinmicas estabelecidas entre as

    militncias das cidades, organizaes e exilados. Ainda, prope-se discutir a

    relao entre as possibilidades de resistncia e represso aos militantes e, maisamplamente, a relao entre as especificidades da represso na fronteira e o

    cotidiano da populao.

    Focaremos, portanto, nas rotas estabelecidas entre o Brasil e o

    Uruguai, estabelecendo como local de nossa pesquisa, para isso, o Estado ao

    extremo sul do pas, o Rio Grande do Sul. Mais especificamente, nos

    debruaremos sobre trajetos estabelecidos atravs dos municpios de Pelotas ou

    de Rio Grande em direo a Jaguaro ou Santa Vitria do Palmar e Chu (atento parte de Santa Vitria do Palmar, o municpio foi emancipado apenas em

    1995) e, tambm, abordaremos experincia de passagem por meio s

    propriedades rurais, podendo abarcar ainda outros municpios limtrofes, para

    alm dos supracitados.

    Deter-nos-emos ao perodo que se inicia em 1964, ano do golpe,

    para entendermos as primeiras atividades de resistncia e as primeiras aes de

    represso que resultaram na busca pelas passagens de exlio, at meados dadcada de 1970, perodo em que as organizaes de esquerda no pas se

    desmantelaram ao mximo, devido forte represso resultante das polticas de

    19686.

    5O debate j bastante desenvolvido na Histria. Pode ser encontrado, ainda,sistematizado em PUCCI, Adriano Silva. O Estatuto da Fronteira Brasil/Uruguai. Braslia:FUNAG, 2010.6Sobre fragmentao da esquerda, ver: GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. SP:tica, 1987.

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    Para melhor sistematizao de nosso conhecimento, apresento a

    seguir mapa poltico atual do Rio Grande do Sul7, com as cidades que

    estudaremos8.

    7Que se difere do mapa poltico do perodo por conter cidades que, na poca, no eramindependentes. Proponho que se analise mapa atual pois as mudanas no interferemem nosso resultado e, considerando de forma didtica, possibilitam que melhor noslocalizemos. Marco, ainda, um caminho utilizado, como veremos, costeando o litoralcompreendido entre as praias do Cassino e do Hermenegildo.8Retirado e adaptado pela autora de

    ftp://geoftp.ibge.gov.br/mapas_tematicos/politico/unidades_federacao/rs_politico.pdf.Acesso: 25/11/2013.

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    1.1. Debates e Demandas na Sociedade 9:

    Estando apresentado nosso objeto, devemos tecer diversas

    consideraes que nortearo nosso estudo. Tema marcante da Histria do Tempo

    Presente10 no Brasil, o estudo sobre Ditadura Civil Militar requer que

    consideremos os debates e demandas sociais sobre o assunto, mantendo sempre

    como horizonte de nossa pesquisa as preocupaes sobre o papel do historiador,

    com especial cuidado a esse tema to caro e vivo atualmente. Neste momento

    do texto, dedicaremos nossa ateno entendermos como o assunto discutidona sociedade, quais so suas demandas e as diversas (e divergentes) tomadas

    de posio, para podermos entender qual o papel e responsabilidades do

    historiador ao enfrentar esse tema. Para tanto, devemos retomar o fim da ditadura

    civil militar e nosso perodo de repblica democrtica mais recente.

    Temos que considerar, por exemplo, imprecises causadas por falta

    de polticas de transio, que, entre outras funes, apuraria os acontecimentos.

    Trabalhamos com vrios dados baseados em estimativas que destoam entre siconsideravelmente. Por exemplo, embora j seja possvel fazer algumas

    aproximaes sobre dados de atingidos pelo perodo, ainda assim, apenas

    chegaremos a dados mais precisos - mas, ainda assim, carentes de absoluta

    preciso - aps o encerramento das atividades da Comisso Nacional da

    Verdade, quase trs dcadas depois do fim do regime. Sabemos, entretanto, que

    9Parte da discusso aqui apresentada, em especial sobre a criao da ComissoNacional da Verdade, foi enviada para publicao no I Congresso Internacional deDireitos Humanos: Emancipao e Ruptura, promovido pela UCS/ Caxias do Sul, em 29 a31 de agosto de 2012.10Termo refere-se histria mais atual, como resume Ferreira Para alguns trata-se doperodo que remonta ltima grande ruptura; para outros trata-se da poca em quevivemos e de que temos lembranas, ou da poca cujas testemunhas so vivas e podemsupervisionar o historiador e coloc-lo em cheque (FERREIRA, Marieta. Histria dotempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrpolis, v.94, n 3, p.111-124, maio/jun.,2000). Estamos compreendendo aqui como Histria do Tempo Presente pois trata-se deum perodo muito atual de nossa histria, certamente um grande marco, estando no sos protagonistas vivos (militantes de oposio ao perodo, familiares de mortos e

    desaparecidos, tanto quanto militares e civis apoiadores do golpe), mas, tambm, por serum tema que influencia diretamente a gerao que sucede essa e que cobra, tambm,respostas.

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    Apartada da discusso na sociedade e ignorando suas demandas,

    nossa Lei de Anistia16, criada nesse contexto, embora, efetivamente, tenha tido

    um saldo positivo para a militncia da poca, em longo prazo, serviu aos militares,

    acima de tudo. Permitiu a volta dos exilados e a soltura de diversos presos

    polticos, mas, mesmo tendo excludo dos anistiados os militantes que cometeram

    os chamados crimes de sangue17, permite, at hoje, que se encubra os

    torturadores, assassinos e sequestradores, que agiram em nome do Estado. A lei

    ainda empecilho Justia e um dispositivo para apartar a sociedade do direito

    Memria e Verdade sobre o perodo.

    Essas reivindicaes, que cada vez mais ganham fora entre os

    militantes de Direitos Humanos no Brasil - por Verdade, Memria e Justia-, sodireitos defendidos principalmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial e

    foram internacionalmente assegurados s sociedades que passaram por perodo

    de conflito, principalmente atravs dos protocolos I e II de 1977, adicionais

    Conveno de Genebra de 1943, tornados responsabilidade do Estado Brasileiro

    a partir de decreto, em 199318.

    Porm, com o intuito de deixar intocados os crimes cometidos

    durante o perodo ditatorial, as leis que se seguiram, justificadas pelo mito dareconciliao nacional, promoveram a impunidade e instauram, no Brasil, o

    silncio. Podemos falar, at um perodo muito recente, que em nosso pas e nos

    vizinhos, tivemos aes estatais para o esquecimento. Conforme Padrs e

    Gasparotto:

    No caso das ditaduras do Cone Sul, a questo do esquecimentorelaciona-se a uma ao institucional de esquecimento organizadoe induzido, ou seja, de polticas estatais oficiais que impem adesmemria de cima para baixo. O desconhecimento de parte

    de um passado, diante dos pactos de silncio oficiais e institudose da inacessibilidade das fontes, impedem a elaborao e seleode lembranas. O esquecimento um exerccio mental que,individualmente, funciona como uma espcie de filtro que permiterestringir certas lembranas ao essencial. Entretanto, oesquecimento organizado e induzido um fenmeno de controlesocial e de sonegao coletiva de um passado especfico, o que

    16BRASIL. Lei n 6.683/1979.17Conforme BRASIL.Lei no6.683/1979,artigo 1, 2: Excetuam-se dos benefcios daanistia os que foram condenados pela prtica de crimes de terrorismo, assalto, sequestro

    e atentado pessoal.18Tornados responsabilidade do Estado brasileiro atravs de: BRASIL, decreto n849/1993.

    http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%206.683-1979?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%206.683-1979?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%206.683-1979?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%206.683-1979?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%206.683-1979?OpenDocument
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    impede a elaborao, consolidao e transmisso de umamemria e identidade comum19.

    Portanto, se em um primeiro momento, a luta por anistia e fim da

    ditadura civil militar envolveu uma parcela significativa da sociedade, aps, com

    uma poltica institucional de esquecimento, essa discusso deixou as ruas e

    passou a ser, por um longo perodo, uma reivindicao mais restrita aos familiares

    dos mortos e desaparecidos ou aos militantes atingidos.

    Pressionado por um grupo cada vez menor numericamente, as

    aes do Estado para o perodo passaram a ser uma serie de medidas de

    reparao, tratadas no mbito privado, bem longe de atender ao direto

    Memria, Verdade e Justia, ou entend-los como direito de toda a sociedade.

    Essas leis de reparao, alm de todas as suas restries, so,

    ainda, tardias. O Estado reconheceu os desaparecidos polticos do perodo como

    mortos apenas no governo Fernando Henrique Cardoso, com a Lei dos

    Desaparecidos20, contemplando apenas 136 nomes. Apesar de finalmente o

    Estado tomar para si a responsabilidade pelas agresses que cometeu contra

    seus cidados, o nmero de desaparecidos pelo qual o Estado se responsabilizou

    muito aqum do que se espera apurar atualmente na Comisso Nacional da

    Verdade.

    Foi, tambm, criada a Comisso de Mortos e Desaparecidos

    Polticos, como ficou conhecida, para avaliar os pedidos de bitos e indenizaes,

    igualmente previstos na lei. Essa comisso acabou por juntar muita informao,

    diversas vezes publicizadas21. Todavia, a Lei dos Desaparecidos foi muito

    criticada, por suas limitaes, algumas heranas da Lei de Anistia, mas tambm,

    porque legava aos familiares dos desaparecidos o nus da prova da participaodo Estado no desaparecimento de seu parente, desresponsabilizando o Estado

    por buscar e fornecer informaes.

    19GASPAROTTO, Alessandra; PADRS, Enrique Serra. A Ditadura civil-militar em salade aula: desafios e compromissos com o resgate da histria recente e da memria. IN:BARROSO, Vera Lcia; PEREIRA, Nilton Mullet; BERGAMASCHI, Maria Aparecida;GEDOZ, Sirlei; PADRS, Enrique Serra. (Org.). Ensino de Histria- DesafiosContemporneos. Porto Alegre: EST, 2010.20BRASIL, Lei n 9.140/1995.21Acompanhe o sitehttp://www.desaparecidospoliticos.org.br/,organizado pelacomisso, junto ao Centro de Documentao Eremias Delizoicov.

    http://www.desaparecidospoliticos.org.br/http://www.desaparecidospoliticos.org.br/
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    Tem-se tambm a criao da Comisso da Anistia22, que atua

    analisando os pedidos dos atingidos pela ditadura civil militar. Para essa foram

    encaminhados milhares de casos para apreciao e, deles, cerca de 35 mil foram

    os anistiados, embora menos da metade tenham sido indenizados23.

    Considerando que as aes amparadas na Lei dos Mortos e

    Desaparecidos poderiam ser movidas exclusivamente por um familiar e, tambm,

    que a Comisso da Anistia centra-se, sobretudo, em indenizaes, percebemos

    que as medidas do Estado atendiam uma dvida perante aos atingidos,

    individualmente, porm no visavam reparar sua dvida com a sociedade como

    um todo.

    Entretanto, ultimamente, no Brasil, cada vez mais os temas ligadosao perodo da ditadura civil militar tem voltado pauta na sociedade. Se

    raramente no perodo anterior o tema chamou ateno, mesmo dentro da

    academia, em 2004 - considerando que efemrides sempre causam um impacto

    em eventos e, mesmo, na produo - pudemos notar que seminrios, palestras,

    encontros, aconteceram em diversos lugares e foram sucesso de pblico, tanto

    quanto o foram as publicaes, alm de ser um tema explorado por diversos

    meios de comunicao, muito diferente do que poderamos diagnosticar paraperodos anteriores, em que os pesquisadores no eram to numerosos, nem

    conseguiam mobilizar tanta ateno.

    Percebemos, tambm, uma grande presso de rgos de Direitos

    Humanos para que se apurem os fatos e um nmero mais expressivo de

    pesquisadores do tema engajados, que tm participado de aes pblicas de

    denncia. Um exemplo mais expressivo da atuao desses pesquisadores foi

    participando da reivindicao pela abertura dos arquivos da ditadura, queganhou fora, sobretudo, no meio acadmico. Pauta finalmente atendida, como

    veremos, pela lei que regulamenta o acesso informao pblica no Brasil24.

    22Criada por: BRASIL. Medida Provisria n 2.151/2001. Destinada a apreciar pedidos deindenizao por pessoas impedidas de exercer atividades econmicas por motivospolticos. A Comisso da Anistia tambm realiza aes mais pblicas, como asCaravanas da Anistia - sesses itinerantes de apreciao de requerimentos dereparao. Porm seu foco a reparao pecuniria.23Dados at o ano de 2011, segundo MEZAROBBA, Glenda. Entre Reparaes, Meias

    Verdades e Impunidade: o difcil rompimento com o legado da ditadura no Brasil. SUR:Revista Internacional de Direitos Humanos, So Paulo, v. 7, n. 13, dez. 2010.24Lei conhecida como Lei de Acesso Informao: BRASIL. Lei N 12.527/2011.

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    Cada vez mais o tema move a discusso na sociedade, cria polmicas e

    demandas ao Estado.

    notvel, igualmente, a ao da Ordem dos Advogados do Brasil,

    questionando o Supremo Tribunal Federal sobre a validade da Lei de Anistia.

    Apesar de o supremo ter definido que no era seu papel tomar posio sobre a

    demanda, o questionamento suscitou diversas polmicas que ainda produzem

    impasses no mbito jurdico, propondo reinterpretaes e, mesmo, a anulao da

    lei. Percebemos que, de forma geral, o judicirio brasileiro , ainda, muito

    conservador.

    O Brasil no obteve avanos significativos na rea criminal:

    amparados na Lei de Anistia (muito embora apresente possveis brechas,diversas imprecises e inmeros questionamentos sobre validade e alcance)

    nenhum dos crimes, mesmo considerados de lesa-humanidade, foram passveis

    de punio.

    Algumas foram, ainda, as tentativas de responsabilizar o Estado na

    obteno de informao, averiguao dos acontecimentos e apurao de

    culpados, principalmente pelos familiares dos mortos e desaparecidos polticos.

    Aps esgotar as possibilidades via ao judicial dentro do pas, os familiares dedesaparecidos na regio do Araguaia recorreram Comisso Interamericana de

    Direitos Humanos e, em 2010, aps julgamento na Corte Interamericana de

    Direitos Humanos, o Brasil foi condenado. Segundo a deciso da Corte:

    [...] Os representantes ressaltaram que, apesar de reconhecer arecente boa vontade do Estado brasileiro ao adotar medidas aesse respeito, principalmente a recuperao da memria dasvtimas da ditadura militar no pas, estas so insuficientes,inadequadas e no esto em consonncia com os parmetros

    determinados pelo Sistema Interamericano em matria dereparao de graves violaes de direitos humanos.25[...] Declara, por unanimidade, que [...] 3. As disposies da Lei deAnistia brasileira que impedem a investigao e sano de gravesviolaes de direitos humanos so incompatveis com aConveno Americana26, carecem de efeitos jurdicos e nopodem seguir representando um obstculo para a investigaodos fatos do presente caso, nem para a identificao e puniodos responsveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante

    25CORTE Interamericana de Direitos Humanos - Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha

    do Araguaia) vs. Brasil Sentena de 24 de Novembro de 2010. P. 9326A Conveno Americana diz respeito ao tratado assinado pelo Brasil em 1992:BRASIL.Decreto N 678/1992.Nota da autora.

    http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%20678-1992?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%20678-1992?OpenDocument
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    impacto a respeito de outros casos de graves violaes de direitoshumanos consagrados na Conveno Americana ocorridos noBrasil.27

    Mesmo as medidas que mais avanaram no Brasil foramconsideradas insuficientes, inadequadas. Das diversas medidas impostas pela

    corte, que tratam tanto do direito justia quanto memria e verdade

    (prevendo responsabilizao do Estado na apurao dos fatos e audincias

    pblicas, por exemplo), foi imposto ao Brasil, entre outros, que procure os restos

    mortais dos militantes e camponeses mortos nos confrontos da Guerrilha do

    Araguaia, e, tambm, que se penalize os autores dos crimes de violaes graves

    aos direitos humanos, pois, tendo cometido crimes de lesa-humanidade, nopoderiam ser acobertados por anistia ou qualquer outro dispositivo legal.

    Torna-se, portanto, insustentvel para o pas manter sua posio de

    no tratar o assunto, em prol da reconciliao nacional. Portanto, mais

    recentemente, uma serie de medidas tm sido desenvolvidas, sendo a mais

    expressiva e polmica, a criao da Comisso Nacional da Verdade, demanda

    antiga das entidades de direitos humanos. Importante colocar que o processo de

    elaborao da lei e da criao da Comisso Nacional da Verdade foi marcado poruma srie de disputas e controvrsias.

    Em, 2008 a 11 Conferncia Nacional de Direitos Humanos aprovou

    a proposta de criar uma Comisso da Verdade e da Justia. No entanto, na

    elaborao do texto final do Programa Nacional de Direitos Humanos 3, lanado

    em dezembro de 2009 pelo Governo Federal, o projeto sofreu alterao, e foi

    retirado o termo justia, que afastou ainda mais do horizonte a possibilidade de

    uma resposta penal aos envolvidos em crimes contra os Direitos Humanos.

    Reafirmava-se no Brasil o propsito de se promover a reconciliao nacional ao

    invs de, promover a consolidao da democracia, como propunham militantes

    por Direitos Humanos, em manifesto28.

    27CORTE Interamericana de Direitos Humanos - Caso Gomes Lund e outros (Guerrilhado Araguaia) vs. Brasil Sentena de 24 de Novembro de 2010. P. 114.28 Conforme Manifesto em favor da alterao de texto do PL 7.376/2010, amplamentedivulgado e que pode ser consultado em:http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php/direto-dos-movimentos/888-movimentos-

    e-sociedade-civil-exigem-alteracao-do-texto-da-comissao-da-verdade. Acessado em18/08/2012.

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    H, evidentemente, desdobramentos da forma com que foi criada a

    Comisso:

    Tal conformao de foras implicou na retomada de discusses a

    princpio superadas entre quem historicamente reivindica aformao dessa comisso, como, por exemplo, a retomada dadiscusso sobre a necessidade de investigaodos dois lados.Significou, tambm, uma maior limitao das possibilidades detrabalho da comisso - sendo, como vimos, a impossibilidade depenalizao dos responsveis o limite mais criticado por diversosmilitantes pelos direitos humanos. Temos, portanto, uma comissomais limitada em seus poderes e, alm disso, uma vez que retomadiscusses j superadas, tambm retardatria em darandamento em suas aes, urgentes em serem efetivadas, umavez que tem to curto prazo para realizar seus trabalhos29.

    Vemos desenhados diversos limites que se pe no Brasil para

    avanar em verdade e memria, porm, maiores so os para se avanar em

    justia, todavia, devemos ressaltar que os resultados reais da CNV s se

    desenhar melhor aps apresentao de seus trabalhos realizados, com seus

    rumos ainda em disputa.

    Outra mostra evidente de um maior engajamento de diversos

    setores da sociedade e discusso em torno do tema a formao de diversos

    Comits por Verdade, Memria e Justia - que, embora possa colaborar com a

    CNV, no tem vnculos com o Estado brasileiro, pois se trata de uma iniciativa

    civil.

    Outra ao civil que ganhou bastante notoriedade foi a realizao,

    em nosso pas, da experincia argentina dos ditos escrachos. Promovidos por

    movimentos sociais ligados luta por Direitos Humanos, a principal ideia fazer

    denncias e promover a condenao social, uma vez que negada a condenao

    jurdica.Entre as diversas manifestaes da sociedade civil e, tambm, o

    relativo sucesso do tema quando abordado pela grande mdia, podemos

    considerar que o debate mobilizador da sociedade e causa uma forte disputa da

    29SILVEIRA, Marlia; GASPAROTTO, Alessandra; VECHIA, Renato.A Criao da

    Comisso Nacional da Verdade e a Luta por Verdade, Memria e Justia no Brasil.Espao Plural, Ano XIII, N 27, 2 Semestre 2012. P. 94.

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    opinio pblica, o que explica a constante cobrana por polticas de memria, em

    algum grau atendidas por programas como o Memrias Reveladas30.

    tambm um avano que, conforme vimos, tenhamos superado os

    entraves para o acesso informao, apoiados no direito assegurado pela

    Constituio Federal, que prev que:

    todos tm direito a receber dos rgos pblicos informaes deseu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, quesero prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade,ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindvel seguranada sociedade e do Estado31.

    Temos ento a Lei de Acesso Informao32, que regulamenta a

    consulta aos documentos pblicos. Embora no trate exclusivamente dos

    arquivos da ditadura civil militar, mas, mais amplamente, de publicizar e dar

    transparncia s aes do Estado, indiretamente, disponibiliza os arquivos da

    ditadura, at ento em parte no disponveis para consulta, uma vez que retira

    restrio documentao e s informaes relacionadas aos Direitos Humanos

    no pas. Trata-se de mais um avano, pressionado por esse novo momento que o

    Brasil experimenta, que permite mais amplamente a pesquisa no assunto,

    entendendo as violaes cometidas poca como crimes contra toda asociedade e, portanto, tendo medidas reparatrias de carter pblico.

    Deve-se, no entanto, fazer a ressalva de que os pesquisadores

    ainda encontram muitos entraves, mesmo com a lei, para acessar os arquivos,

    impostos, em boa medida, pelas prprias entidades mantenedoras, tambm pelas

    sucessivas administraes que negligenciaram a conservao dessa

    documentao, ou, mais, por decises de descarte desse material.

    Mostrou-se, por exemplo, tarefa impossvel de concluso alocalizao do arquivo da 18 Regio do SOPS (Sees de Ordem Poltica e

    Social, uma das sees do DOPS no interior do Estado). Essa regio inclua a

    cidade de Pelotas como sede e abarcava tambm as cidades de Pedro Osrio,

    30Projeto institucionalizado pela Casa Civil da Presidncia da Repblica um centro dedocumentao e informao sobre as dcadas de 1960 a 1980.31BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Inciso XXXIII, Captulo I.

    1988.32BRASIL. Lei N. 12.527/2011.

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    Piratini, Canguu e So Loureno do Sul. Embora tenha-se sido dirigido pedido de

    localizao Brigada Militar, o paradeiro segue desconhecido.

    Mais que isso, o arquivo do DOPS/RS foi incinerado em 1982.

    Entretanto, os arquivos de dez das vinte e quatro sees foram encontrados e

    hoje esto disponibilizados para consulta no Acervo de Luta Contra a Ditadura, no

    Arquivo do Estado33. Esses arquivos foram consultados para nosso trabalho e

    permitiram analisar aes repressivas especificamente coordenadas para o

    controle da fronteira e o translado de materiais e militantes.

    Vemos, portanto, que alguns avanos se desenham, principalmente

    por verdade e memria, muito embora estando longe de permitir terminar nosso

    processo de transio para uma democracia efetiva, includente e apartada deresqucios desse passado recente.

    A inoperncia do Estado, principalmente no mbito da justia, tem

    como reflexo um pas marcado pelo cotidiano desrespeito aos direitos humanos,

    em um aparato repressivo que no se livrou das prticas de tortura (todavia no

    mais aplicada como poltica de Estado), por exemplo. Alm disso, por no ter

    efetuado uma reforma em importantes instituies, segundo Mezarobba, ainda

    temos vrios legados presentes. Podemos citar o claro monoplio dos grandesmeios de comunicao em nosso pas, a represso a manifestaes, a

    criminalizao dos movimentos sociais, e, justamente, o constante desrespeito

    aos direitos humanos:

    Se ainda h muito que fazer para o cumprimento efetivoespecialmente dos deveres de verdade e justia, tambmpermanece em aberto o dever do Estado brasileiro de reformarimportantes instituies, tornando-as democrticas e accountable.Ainda que no restem dvidas acerca de importantes avanos,

    sobretudo nas reas social e econmica, registrados a partir daredemocratizao, segue precrio, por exemplo, o respeito aosdireitos civis, como atestam os no apenas altos, mas em algunscasos crescentes, ndices de violncia registrados. Evidnciatrgica disso que continua em uso, contra presos comuns, em

    33So os SOPS sediados nas cidades de Alegrete, Cachoeira do Sul, Caxias do Sul,Cruz Alta, Erechim, Lajeado, Lagoa Vermelha, Osrio, Rio Grande e Santo ngelo. Paramais, consultar: FERNANDES, Ananda.Arquivos Repressivos da Polcia Poltica: o casodo Departamento de Ordem Poltica e Social do Rio Grande do Sul. In.: ALVES, Clarissa;PADRS, Enrique (ORG.). II Jornada de estudos sobre ditaduras e direitos humanos: h

    40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai (2 : 2013 : 24 a 27 abr.: Porto Alegre, RS).Anais [recurso eletrnico].Porto Alegre: CORAG, 2013.

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    delegacias e presdios de todo o pas, o suplcio da tortura.34

    Percebe-se, portanto, a atualidade da temtica na sociedade, que

    demanda por respostas, motivando trabalhos acadmicos - como o nosso - a sesomarem no debate. tambm um indicativo de diversas preocupaes, como

    veremos, de cunho terico, metodolgico - e at tico - que estaro no horizonte

    de nossa pesquisa.

    Devemos ter em horizonte que h uma serie de pontos que

    necessitam definio, para alm de apenas a pesquisa em si, pois, ao contrrio

    de alguns nichos da histria, nosso tema pode suscitar argumentos que

    combatem a democracia e os direitos humanos e criminalizam posies etrajetrias, uma vez que, como vimos, h uma lacuna na elucidao do debate

    perante a sociedade, que refletir em nossas preocupaes acadmicas.

    34

    MEZAROBBA, Glenda. Entre Reparaes, Meias Verdades e Impunidade: o difcilrompimento com o legado da ditadura no Brasil. SUR: Revista Internacional de DireitosHumanos, So Paulo, v. 7, n. 13, dez. 2010. P. 20.

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    1.2. Histria e Ditadura Civil Militar:

    Devemos nos deter um momento para entendermos a forma com

    que esse tema, que, como vimos, est to presente na sociedade, se reflete na

    academia. Devemos analisar como a nossa produo est sendo afetada pelas

    discusses, geradas inclusive fora da academia e traarmos algumas

    preocupaes que deve ter em mente o pesquisador.

    Podemos, por exemplo, projetar que algumas imprecises sero

    corrigidas aps a publicizao dos trabalhos da Comisso Nacional da Verdade,tanto quanto ser possvel que novos temas sejam abordados pela academia. O

    importante trabalho de colher informaes, processar o enorme volume de

    documentao recentemente posto consulta, colher um grande nmero de

    depoimentos, organizar um acervo que ser disponvel - em parte, inclusive pela

    internet - certamente dar maior subsdio aos pesquisadores, alm de possibilitar

    que tenhamos dados mais concretos a respeito dos atingidos. Alm de termos

    uma investigao mais sria por parte do Estado a respeito dos mortos emdecorrncia da Guerrilha do Araguaia, poderemos somar aos relatrios oficiais

    tambm os camponeses atingidos pela represso, ou, mesmo, o extermnio

    executado contra povos indgenas, em especial durante a construo da rodovia

    transamaznica - dados que apenas recentemente tm sido trazido

    conhecimento35.

    Tambm podemos projetar o impacto da j referida nova Lei de

    Acesso Informao. Segundo discorre Rodeghero, podemos perceber como aproduo acadmica adquiriu caractersticas especficas ao tentar superar os

    35Enquanto o Dossi de Mortos e Desaparecidos Polticos no Brasil identifica 379atingidos (CFMDP. Dossi Ditadura: Mortos e Desaparecidos Polticos no Brasil (19651985). SP: Editora Oficial, 2009.), segundo tm-se divulgado na mdia, podemos somarao nmero de mortos mais de 1.000 camponeses, e cerca de 1.500 indgenas (segundodiversas notcias, como COSTA, Gilberto. Jornal Agncia Brasil. Braslia, 27/09/2012.Disponvel em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-27/sdh-identifica-cerca-de-12-mil-camponeses-mortos-e-desaparecidos-entre-1961-e-1988 acessado em

    01/05/2013 e Site do MPF:http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahui,acessado em 01/05/2013).

    http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-27/sdh-identifica-cerca-de-12-mil-camponeses-mortos-e-desaparecidos-entre-1961-e-1988http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-27/sdh-identifica-cerca-de-12-mil-camponeses-mortos-e-desaparecidos-entre-1961-e-1988http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-27/sdh-identifica-cerca-de-12-mil-camponeses-mortos-e-desaparecidos-entre-1961-e-1988http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-27/sdh-identifica-cerca-de-12-mil-camponeses-mortos-e-desaparecidos-entre-1961-e-1988
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    entraves impostos pela dificuldade de acesso informao:

    [...] no cotidiano da pesquisa histrica pesquisadores e estudantesde Histria tm descoberto novas fontes, abrindo portas paraestudos posteriores apesar da demora governamental na

    liberao de arquivos: o que se v na busca de documentaogerada no mbito das universidades e do movimento estudantil;na busca de registros sobre o funcionamento das AuditoriasMilitares;na explorao de registros de atuao de advogados depresos polticos ou com pronturios do Presdio Central; napesquisa sobre rgos de imprensa alternativa;na elaborao dehistrias a partir de depoimentos oraisou, ainda, na constituiode acervos desses depoimentos; na anlise de monografiasescritas no seio da Academia da Brigada Militar; na consulta aosAnais da Assembleia Legislativa e das Cmaras de Vereadores;na busca de papis pessoais dos militantes junto a famlias demortos e desaparecidos; no acompanhamento da trajetria deintelectuais que se colocaram numa posio combativa; nocruzamento de diversas fontes para reconstituir um objetoparticular, etc. Estas descobertasno tiram a importncia de seinvestir na luta pela abertura de arquivos oficiais. Apenas mostramque a no abertura dos mesmos no tem sido razo forte osuficiente para inviabilizar a pesquisa36.

    Para suprir a falta de arquivos, os historiadores que se debruaram

    sobre o tema passaram a recorrer s diferentes fontes. Percebemos, ento, que

    so vrias as pesquisas at aqui desenvolvidas e, com a abertura dos arquivos, atendncia , longo prazo, diversificar-se ainda mais a produo.

    Uma grande fonte poder ser o material que ser disponibilizado

    pela Comisso Nacional da Verdade, por exemplo. Evidentemente, necessrio

    relativizar as expectativas que podem ser criadas com a nova lei, considerando

    que, como j referenciado, os pesquisadores ainda enfrentam barreiras (no

    oficiais) para acessar a fonte, dificultados, agora, no mais por recursos

    jurdicos, mas, muitas vezes, pelas prprias instituies que abrigam os acervos,

    alm da dificuldade de saber o real paradeiro - ou mesmo existncia - da fonte.

    Quando tratamos de um tema to recente de nossa histria, torna-se

    importante, tambm, refletir sobre as diversas consideraes tericas atualmente

    discutidas no mbito da academia. Para alm da j superada discusso sobre a

    legitimidade da Histria do Tempo Presente e do necessrio afastamento para

    36RODEGHERO, Carla. Reflexes sobre histria e historiografia da ditadura militar: o

    caso do Rio Grande do Sul. In: IX Encontro Estadual de Histria, 2008, POA. Vestgios doPassado: a histria e suas fontes. Anais IX Encontro Estadual de Histria. POA:ANPUHRS, 2008. v. 1. P. 6-7.

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    uma perspectiva histrica, devemos considerar outras implicncias dessa

    aproximao na produo.

    Hobsbawm faz importantes consideraes em relao sua

    experincia de escrita sobre o sculo XX37, que tm tantas questes em aberto,

    conflitos a serem resolvidos e protagonistas ainda vivos, grande parte atuantes,

    disputando as interpretaes do passado38, pois temos no Brasil ainda vivos os

    reflexos da ditadura civil militar.

    Assim como nos alerta Hobsbawm sobre os perigos da pouca

    problematizao ao tratar sobre o nazismo, temos a mesma preocupao em

    nossas discusses. Portanto, longe de ser uma "reabilitao de um sistema

    infame"39, tratar o golpe como civil e militar, questionando a responsabilidade detodas as parcelas da populao e trazendo problematizaes s questes que

    so sucessivas vezes retomadas na sociedade ver o perodo com a

    complexidade que esse requer. Como Fico nos prope refletir:

    A condenao do mal um trusmo; explica pouco. Por isso, importantedesmontar simplismos e esteretipos decorrentes dessa tendncianatural. Entretanto, a busca por explicaes complexas, refinadas,no pode ser confundida com o que poderamos chamar de

    humanizao do algoz. Se todas as interpretaes sopossveis, o historiador deve legitimar a leitura da represso?Esse um dos riscos implcitos na atuao do historiador comoperito, mas compreender o passado no significa justific-lo40.

    Cabe, portanto, ao historiador, longe de qualquer simplificao, fazer

    um trabalho que esteja de acordo com a complexidade do assunto, de forma

    responsvel, compreendendo o papel poltico que o historiador deve ter, em

    nosso caso reforando os direitos humanos, a democracia e as lutas sociais no

    pas.

    necessrio tambm que historiadores proponham pesquisas que

    dialoguem com os debates que esto sendo feitos na sociedade (como os vistos

    at aqui), tentando colaborar com novas perspectivas.

    37Quando discute os problemas que detectou ao escrever o livro: HOBSBAWM, Eric.AEra dos Extremos. SP: Companhia das Letras, 1995.38Como o prprio autor se identificou em HOBSBAWM, Eric. O Presente Como Histria.In.: __ Sobre Histria. SP: Companhia das Letras, 1998.39

    Idem. P. 252.40FICO, Carlos.Histria do Tempo Presente, Eventos Traumticos e Arquivos Sensveis.VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 28, n 47. P .43-59, jan/jun 2012. P. 48.

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    Muitos so os debates ainda vivos hoje e, cada vez mais, em

    disputa, uma vez que volta pauta esse tema. Dando seguimento discusso,

    problematiza Fico, sobre retomadas de polmicas at ento superadas, na

    Comisso Nacional da Verdade:

    Por exemplo, os debates sobre a Comisso da Verdade, no Brasil,tm suscitado a questo de que os dois lados deveriam serinvestigados. a mesma tese que, na Espanha, chamada deequivalencia e, na Argentina, de dos demonios, isto , aviolncia da represso comparar-se-ia violncia da esquerda.Por que esse argumento, aparentemente sbrio, falso? H umaresposta formal: as comisses da verdade so criadas para apurarcrimes cometidos pelo Estado, no por pessoas. Mais importante,entretanto, o seguinte: o Estado brasileiro, mesmo durante oregime autoritrio, poderia ter combatido a luta armada sem apelarpara a tortura e o extermnio. Alm disso, muitos ex-integrantes daluta armadaao menos os que sobreviveram j foram julgadose punidos.41

    Podemos endossar os argumentos de Fico, afirmando que no s a

    ditadura poderia acabar com a guerrilha urbana sem utilizar a prtica de tortura e

    assassinato, como, ainda, devemos atentar que a violncia, a tortura, a priso, o

    desaparecimento, no foram utilizados exclusivamente contra os guerrilheiros, ou

    seja, no se tratou de combater violncia com violncia - o que, todavia, no se

    justificaria e igualmente perverso e condenvel -, mas, tambm, contra crticos

    ao governo, inclusive os que no participavam da luta armada, mesmo em

    perodo anterior aos chamados anos de chumbo.

    preciso expor, acima de tudo, que tratou-se de uma reao contra

    a ditadura civil militar, cujas aes ganharam tons gradativamente mais

    agressivos. Conforme nos alerta Foley e Edwards, ao estudarem associaes e

    Civil Societys, essa , inclusive, uma caracterstica geral s sociedades que so

    submetidas a Estados antidemocrticos:

    Where the state is unresponsive, its institutions are undemocratic,or its democracy is ill designed to recognize and respond to citizendemands, the character of collective action will be decidedlydifferent than under a strong and democratic system. Citizens willfind their efforts to organize for civil ends frustrated by state policy- at some times actively repressed, at others simply ignored.Increasingly aggressive forms of civil association will pring up, andmore and more ordinary citizens will be driven into either activemilitancy against the state or self-protective apathy. Thebreakdown of the tutelary democracies and authoritarian states of

    41Idem P. 48-49.

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    Latin America in the 1970s and 1980s attests to what more thanone observer has euphemistically called "the dangers of excludingreformists from power." In such settings, all of civil life maybecome polarized, as Samuel P. Huntington pointed out long ago(though the solutions he advocated proved elusive); and evenPutnam's choral societies and bowling leagues - even nuns andbishops! - may become "subversive"42.

    Onde o Estado indiferente, suas instituies soantidemocrticas, ou sua democracia fragilmente projetada parareconhecer e responder as demandas dos cidados, o carter daao coletiva vai ser decididamente diferente do que sob um fortesistema democrtico. Os cidados acharo seus esforos paraorganizaes de fins civis frustrados pela polcia do Estado - emalguns momentos ativamente reprimidos, em outros simplesmenteignorados. Gradativamente, formas mais agressivas de

    associaes civis iro surgir e, cada vez mais, cidados comunssero levados ou para a militncia ativa contra o Estado ou parauma apatia auto protetora. A quebra da tutela democrtica e dosestados autoritrios na Amrica Latina nas dcadas de 1970 e1980 comprovam o que mais de um observador eufemicamentechamou de operigo de excluir os reformistas do poder.Nestescenrios, toda a vida civil pode tornar-se polarizada, como SamuelP. Huntington apontou h muito tempo (atravs de soluesdefendidas por ele, as quais revelaram-se evasivas); E at mesmoas sociedades de coral e as ligas de boliche de Putnam - atmesmo freiras e bispos! - podem tornar-se subversivos43

    Esse trecho, alm de permitir que se questione o limite de nossa

    democracia, que no responde s demandas da sociedade por Memria, Verdade

    e Justia, expe, tambm, a necessidade de que se faa a diferenciao entre um

    Estado que, acima de tudo, no pode atentar contra a vida de seus cidados e

    uma sociedade que reage com uma oposio que, gradativamente (a depender

    da poltica do Estado e da ao policial) torna-se cada vez mais agressiva.

    H muito que as teses que defendem a dupla culpabilidade do golpe

    so refutadas por diversos pesquisadores. So muitos os argumentos que

    corroboram: seja por terem sido os legalistas os atingidos massivamente, em um

    primeiro momento, ou porque parte significativa da esquerda defendia a

    democracia - como a experincia chilena da via democrtica - ou, ainda, porque

    parte desses militantes que partiram para a luta armada o fizeram aps esgotadas

    todas as demais vias de resistncia, inclusive, referncias tericas para a

    42

    FOLEY, Michael; EDWARDS, Bob. The Paradox of Civil Society. Journal ofDemocracy, 1996. P. 0743Traduo da autora.

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    esquerda de todo o mundo, defendiam que se esgotasse as possibilidades legais

    de luta antes de um enfrentamento armado. Longe de defendermos que a

    esquerda tenha prticas como sequestro ou qualquer uso de violncia, ainda

    assim, necessrio que percebamos a diferena entre repressores e reprimidos.

    Outra polmica, mais especfica ao meio acadmico, sobre a qual

    devemos nos posicionarmos, diz respeito a compreendermos o papel que o

    historiador poderia ter ao integrar a Comisso Nacional da Verdade. Essa

    discusso, em especfico, deve ser aqui reassumida para que possamos discutir a

    necessidade de se retomar, em qualquer pesquisa, o papel poltico do

    pesquisador. Discusso que muitas vezes pouco explcita, porm, nos muito

    cara, por estar ligada s nossas responsabilidades perante a sociedade.Primeiramente, o prprio sentido de verdadesignifica um problema

    ao historiador, mas, se entendermo-lo como um termo que impele apurao dos

    fatos, at ento negado s vtimas e sociedade e no como uma verdade

    imposta e absoluta, podemos compreender que o historiador poderia desenvolver

    trabalho nesses parmetros. Porm, diversos foram os profissionais que, sendo

    referncia na pesquisa do tema, no souberam compreender a importncia de

    historiadores na comisso44

    .Ora, cabe retomar que o oficio do historiador no circunscrito

    exclusivamente arquivos, p e escrita. Cabe retomar que o historiador deve ter

    um comprometimento com a sociedade - o que, obviamente no inclui ignorar

    fontes, deixar de fazer um trabalho crtico e, menos ainda, falsificar a histria . O

    historiador tem um papel poltico, cujas delimitaes so sempre rediscutidas,

    mas assumido, desde que deixamos de nos balizarmos pelo to antigo

    historiscimo. Podemos, portanto, nos apropriarmos da reflexo proposta porRamirez, ao pensar a historiografia das ditaduras civis militares nos pases do

    Cone Sul:

    O ofcio de historiar se amarra s necessidades polticas e com otempo em que ele est inserido. Novos ares trouxeram novosproblemas, novas crticas a posturas tericas e metodolgicas quetinham se convertido em paradigmas, possibilitando assim quevoltssemos ao passado enxergando-o desde outrasperspectivas, a quais revelam novas facetas e ajudam a repensaras nossas velhas prticas. A histria do Tempo Presente e a

    poltica, entrando pela janela, no tm efeitos ruins, ao contrrio,44Podemos citar, por exemplo, a posio do pesquisador Carlos Fico.

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    podem trazer um novo ar que renove nossa disciplina.45

    A reflexo no estranha aos historiadores, mas precisa ser

    sistematicamente retomada, principalmente quando tratamos com Histria doTempo Presente e temos um tema que cada vez mais gera discusses e

    posicionamentos na sociedade. , portanto, fundamental ao historiador, e essa

    a principal reflexo proposta por esse subcaptulo, ter claro seu papel e o papel

    de sua pesquisa na sociedade.

    45

    RAMIREZ, Hernn.Poltica e Tempo Presente na Historiografia das Ditaduras do ConeSul da Amrica Latina. Revista Tempo e Argumento. Florianpolis, v. 4, n1. Jan/Jul,2012. P. 88.

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    1.3. Histria Oral, Memria e Ditadura Civil Militar:

    J consideramos previamente os vrios desafios que encontrar o

    historiador ao tratar de nosso tema, tanto quanto, todo o cuidado e

    responsabilidade perante as demandas sociais. Mas como responder s

    perguntas que nos propomos estudar? Como veremos, so vrios os motivos

    pelos quais optou-se investigarmos atravs da memria os nossos

    questionamentos, utilizando-nos de memrias escritas e, principalmente, de

    entrevistas. Portanto, cabe tambm, exercer uma reflexo a respeito da memriae da Histria Oral.

    No nos deteremos aqui em fazer uma defesa da Histria Oral. J

    consolidada na Histria e o debate que a descredibilita , cada vez mais,

    superado. Cabe sim considerarmos as peculiaridades da Histria Oral para o

    estudo da Ditadura Civil Militar e, mais detidamente, para nosso trabalho.

    A Histria Oral tem significativos mritos, dos quais nos valeremos

    para realizarmos nossas pesquisas. Refletindo sobre, Philippe Joutard, ressaltaque algumas caractersticas, por diversas vezes vistas como demritos da

    Histria Oral, deve ser considerada, ao invs, atributos positivos. Frisa, tambm,

    as principais contribuies dessa metodologia:

    Os que contestam a fonte oral travam combates ultrapassados.Em contrapartida, como em todo fenmeno que atinge amaturidade, o risco de perda de vitalidade, de banalizao real.(...) preciso saber respeitar trs fidelidades inspirao original:ouvir a voz dos excludos e dos esquecidos; trazer luz as

    realidades "indescritveis", quer dizer, aquelas que a escrita noconsegue transmitir; testemunhar as situaes de extremoabandono.46

    Vemos ento que, alm de reafirmar a consolidao da Histria Oral

    e ressaltar suas peculiaridades - mesmo as vistas como demrito - tomando-as

    como positivas, o autor tambm levanta trs consideraes diretamente ligadas

    ao nosso tema:

    46

    JOUTARD, Philippe. Desafios Histria Oral do Sculo XXI. In.: FERREIRA, Marietade Moraes (org.). Histria Oral: desafios para o sculo XXI. RJ: Editora Fiocruz/ Casa deOswaldo Cruz / CPDOC - Fundao Getlio Vargas, 2000. p. 33.

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    1) Ouvir a voz dos excludos e esquecidos. Retomamos, ento,

    que no Brasil, por muito tempo, vigorou uma poltica de esquecimentoimposta

    pelo Estado. Mesmo hoje so raros os espaos pblicos dedicados memria ou,

    mesmo, ao debate dos atingidos pela nossa ditadura. Os arquivos oficiais so,

    ainda, de difcil acesso, nossa histria foi esvaziada de protagonistas. A prpria

    Histria Oral se fortaleceu no Brasil em torno de nosso tema ainda no perodo (e

    devido ao perodo) ditatorial47e, como vimos, a memria foi importante ferramenta

    militante de denncia das atrocidades ocorridas.

    Reforamos aqui os excludos e esquecidos, que geralmente no

    aparecem em fontes mais convencionais e, que quando aparecem, muitas vezes

    so tratados de forma pejorativa, distorcida ou secundria. Considerando nossocaso, h dificuldade em acessar as fontes oficiais que tratam dos articuladores

    das rotas de exlio e de quem as utilizavam. Os meios de comunicao de massa

    os tratavam, na maioria das vezes, como terroristas e apresentam uma verso

    muito simplista do perodo. H, ainda, outras fontes que podem nos ajudar a

    compreender essas rotas (como panfletos e jornais de esquerda do perodo), que

    serviro de fonte secundria. Essas fontes, todavia, no representam nossos

    investigados em primeira pessoa: suas vozes, pontos de vista, narrativas,experincias, impresses. Esse o papel da Histria Oral.

    2) A Histria Oral deve, ainda Trazer luz as realidades

    indescritveis e testemunhar as situaes de extremo abandono. O autor

    exemplificou referenciando os perseguidos pelo nazismo. Ns podemos fazer

    direta ligao com os perseguidos pelas ditaduras civis militares (mesmo que a

    represso no seja o maior foco de nosso trabalho) e, tambm, com as

    experincias advindas das incertezas do perodo, experimentadas por quemorganizava as rotas de sada e por quem as utilizava.

    Ou seja, podemos constatar que a Histria Oral uma fonte

    importante para nosso tema, como uma alternativa falta de arquivos oficiais,

    mas, mais que isso, a Histria Oral que nos permite investigar os

    47MEIHY, Jos Carlos. Desafios da Histria Oral Latino-Americana: O Caso do Brasil. In.

    In.: FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Histria Oral: desafios para o sculo XXI. RJ:Editora Fiocruz/ Casa de Oswaldo Cruz / CPDOC - Fundao Getlio Vargas, 2000: p.86.

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    questionamentos propostos e se apresenta como mais adequada nossa

    pesquisa.

    Mas com o que estamos trabalhando, ento? Nossas fontes

    principais so as entrevistas, mas, de forma mais geral, estamos trabalhando com

    a memria dos militantes do perodo, incluindo, tambm, os livros de memrias.

    Temos ento um problema: entre histria e memria, quais as

    aproximaes, quais as diferenas, quais as nossas responsabilidades? Histria

    e memria no so a mesmas coisa, esse debate bastante conhecido na

    Histria. Temos que considerar que nossos entrevistados do-nos a narrativa de

    seu entendimento sobre os fatos, que divergem entre si, podem ter

    inconsistncias, lacunas, silncios. Essas so suas memrias, o que se escolheulembrar, esquecer, suas releituras do passado... A Histria trabalhar a partir

    dessas memrias.

    Para alguns pesquisadores, essa , na verdade, uma importante

    contribuio do historiador. Segundo Jourtad historiadores acreditam que a

    melhor homenagem que se pode prestar memria dos excludos transformar

    sua memria em histria48.

    claro que se pode questionar os limites de nossas entrevistas etrabalhar com Histria Oral pode ser visto como um pisar em ovos, tanto quanto

    se pode questionar o uso dos livros de memrias, que, passando por um

    processo um pouco diferenciado da entrevista, permite a elaborao e

    reelaborao da memria e, por diversas vezes, a releitura do passado, durante a

    escrita. Os autores que trabalham com as fonte, como Hall, nos alertam para

    diversos perigos do uso "inocente" da fonte: algumas incoerncias cronolgicas

    das entrevistas, a transferncia de opinies pessoais do presente para o passado,a pouca reflexo sobre a histria durante a entrevista49...

    Temos que relembrar, porm, que todas as fontes tm seus vcios,

    pontos de vista, etc. Como bem nos alerta Aspsia Camargo: [...] a histria oral

    legtima como fonte porque no induz a mais erros do que outras fontes

    48JOUTARD, Philippe. Desafios Histria Oral do Sculo XXI. In.: FERREIRA, Marietade Moraes (org.). Histria Oral: desafios para o sculo XXI. RJ: Editora Fiocruz/ Casa de

    Oswaldo Cruz / CPDOC - Fundao Getlio Vargas, 2000, p. 3749HALL, Michael. Histria Oral: os Riscos da Inocncia. In.: CUNHA, Maria. O Direito Memria, Patrimnio Histrico e Cidadania. SP: DPH/SMC,1992.

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    documentais e histricas50. Ou seja, o documento oral e a memria so

    portadores de subjetividade, assim como qualquer outra fonte o . Desacreditar a

    memria enquanto fonte descartar uma rica possibilidade de complexificar

    nosso entendimento sobre o perodo estudado, deslegitimando uma das principais

    formas de se fazer ouvir os excludos e esquecidos.

    Por muito tempo se trabalhou essas memrias como verses

    possveis para a histria e, at mesmo, essa expresso j vem sendo

    questionada. Alberti Verena, uma das maiores referncias em Histria Oral no

    pas, indica novos rumos para um problema que muito j vem incomodando

    historiadores - como incomodou-me ao trabalhar com a fonte - superando a viso

    de verso, ao pensar a3 edio do livro Manual de Histria Oral, que estavaprevisto para ser impresso ainda em 2013:

    [...] estou tendendo a modificar o Manual de histria oral. Onde hverso,prefiro escrever entrevista,narrativaou relato.Comisso, quero evitar que se tome versocomo algo muito particular,como em Essa a minha verso dos fatos(frase que tambmtem um tom de reivindicao da verdade), ou ento como algomenor, suscetvel de erro, como em Ah,isso a verso dele!51[...] A entrevista de histria oral sem dvida contingente ummomento nico, com circunstncias nicas, que produz aquele

    resultado nico, como ocorre com muitos documentos e fontes nahistria. Mas esse seu carter particular ao extremo, como soparticulares as cartas de Joel Rufino a seu filho, no impede quetomemos a entrevista de Justo Evangelista e as cartas de JoelRufino como documentos de uma realidade social, seja dasituao poltica, sob a ditadura, em 1973, seja do racismo noBrasil. Nesse sentido, dizer que a entrevista de Justo Evangelista uma verso dos fatos que ocorreram com ele pode acabardesviando nosso olhar daquilo que ela documenta e do que elaefetivamente : uma narrativa de experincias de vida produzidano contexto de uma entrevista de histria oral. E enquanto talque nos cabe analis-la.52

    Percebe-se, portanto, que no s se deve superar as vises que

    relegam a Histria Oral como puro subjetivismo sem comprometimento com o

    fato, como essa autora tambm evidncia caractersticas positivas, prprias da

    fonte.

    50CAMARGO, Aspsia. Apresentao da primeira edio. In: ALBERTI, Verena. Manualde histria oral. 2 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. P.1351ALBERTI, Verena. De verso a narrativa no Manual de Histria Oral. In.: Histria

    Oral, v. 15, n. 2, p. 159-166, jul.-dez. 2012. P. 163.52Idem. P. 165.

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    Mas, ento, como deve proceder o pesquisador? O prprio autor

    anteriormente referenciado, Joutard, nos indica o caminho a seguir: Se

    quisermos tirar melhor partido da pesquisa oral e extrair toda sua riqueza, no

    poderemos deixar de utilizar plenamente os procedimentos histricos53. Utilizar a

    Histria Oral no um mero transcrever de fontes, como se essa guardasse a

    verdade a ser revelada - assim como qualquer fonte no o . Nosso dever

    compreendermos a memria como uma fonte com todas as suas peculiaridades e

    submet-las aos mtodos prprios do fazer do historiador. O olhar crtico, sem

    deslegitimar a fonte, deve estar sempre presente em nossa anlise.

    Devemos, mais que isso, ressaltar os melhores aspectos dessa

    fonte, incluindo os que, por muitos, so vistos como demrito. Como, com todasua experincia, nos alerta Portelli:

    [...] se torna problemtico o conceito de verdade. Nosso problemano se limita a aliar nosso compromisso como historiador objetividade daquilo que realmente aconteceu [...] muitoaconteceu na mente dessas pessoas em termos de sentimentos,emoes, crenas, interpretaes - e, por esse motivo, at mesmoerros, invenes e mentiras constituem, sua maneira, reasonde se encontra a verdade [...] a constatao de que noestamos mais lidando com fatos concretos (e que falta nos

    fazem!), mas com elementos mutveis, como subjetividade,memria e narrativas de histrias (...)54.

    Como defende Portelli e pode ser percebido em diversas pesquisas,

    so ricos os trabalhos que conseguem, mais do que ignorar, interpretar as falhas

    de uma entrevista, com seus silncios, enganos...

    Claro que, ainda, alguns trabalhos sobre Histria Oral podem

    resultar negativamente. o caso de pesquisas que superdimensionam o papel da

    memria, no conseguindo interpretar a fonte, seja por transcrev-la comoverdade absoluta, seja por no conseguir entend-la em suas sutilezase suas

    entrelinhas.Em nosso trabalho deve-se ter cuidado pois muito dito sem ser

    explicitado, o que prprio de quem trata de temas to presentes e ainda

    polmicos, como vimos.

    53JOUTARD, Philippe. Desafios Histria Oral do Sculo XXI. In.: FERREIRA, Marietade Moraes (org.). Histria Oral: desafios para o sculo XXI. RJ: Editora Fiocruz/ Casa deOswaldo Cruz / CPDOC - Fundao Getlio Vargas, 2000. P. 37.54PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexes sobre atica na histria oral. In: Revista Projeto Histria n 15. SP: PUC, 1997. P. 25.

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    Retomando a discusso previamente apresentada, ainda nesse

    captulo introdutrio55, no caso de nosso tema, a memria e a Histria Oral

    tambm podem ser superdimensionados, considerando que, mais que em

    Verdade e, muito mais que em Justia, em Memria que o Estado tem investido,

    para tentar responder s demandas internas e externas ao pas. Ora, mesmo com

    algumas medidas de memria (medidas recentes, portanto, h certa dificuldade

    de medir seu alcance a logo prazo, faa-se essa ressalva), sem uma poltica sria

    tambm para Justia (pois j estamos avanando tambm, em polticas para

    Verdade), muito nos falta para uma verdadeira consolidao da democracia,

    enquanto muito ainda persiste como herana de nossa Ditadura Civil Militar. Por

    outro lado, no possvel pensar um processo de transio, sem que um dospilares seja as polticas de memria. Considero que esse debate final cabe

    enquanto balizador dos limites da contribuio do historiador e da histria oral.

    Dialoga com as preocupaes j previamente apresentadas e cabe ainda como

    um apontamento das lacunas que nossa pesquisa deixa.

    Portanto, para analisar nosso objeto, colhi 10 entrevistas, tentando

    diversificar organizao de origem, cidades de atuao e experincias - embora

    isso tenha se mostrado uma dificuldade56

    . Tive acesso tambm s entrevistas dosSrs. Carlos Alberto Franck, Ari Costa e entrevistado que no ser identificado57,

    gentilmente cedidas pelo pesquisador Prof. Dr. Renato da Silva Della Vechia e

    pelo Ncleo de Documentao Histrica da UFPel, respectivamente.

    As entrevistas por mim coletadas partiram da pergunta sobre como

    comeou a militncia - que normalmente leva a uma reflexo do perodo de

    infncia e adolescncia e das relaes familiares - questionando o cotidiano da

    atuao poltica e as questes especficas da rota de exlio. O entrevistado foiconduzido a focar-se em nosso tema, sem ser desencorajado a somar narrativa

    55Refiro-me s discusses apresentadas no subcaptulo Debates e Demandas naSociedade(P.19 - 28).56Algumas dessas fontes j haviam sido previamente colhidas e discutidas em meuTrabalho de Concluso do Curso de Licenciatura em Histria pela Universidade Federalde Pelotas (SILVEIRA, Marlia.A Resistncia ao Golpe e Ditadura Militar em Pelotas.UFPel, 2009. Trabalho de Concluso de Curso).57FRANK, Carlos Alberto.Sem Ttulo. Pelotas, 2001. Entrevista concedida Renato da

    Silva Della Vechia, Entrevistado 01. Sem Titulo. Pelotas, _. Entrevista concedida Beatriz Ana Loner e COSTA, Ari. Sem Ttulo. Pelotas, 1992. Entrevista concedida MariaAmlia da Silveira e

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    as leituras do perodo e o cenrio mais amplo. Primando por um procedimento

    menos formal, com entrevistas que, por algumas vezes, mais lembram uma

    conversa, tentou-se garantir um ambiente mais acolhedor para que o entrevistado

    pudesse tratar do tema, muitas vezes bastante traumtico e de difcil narrativa.

    O resultado foi mais de 750 minutos de entrevistas, com diversos

    elementos que muito contribuem para o debate, todavia tambm se possa

    perceber a dificuldade de se falar no tema, em que muitas coisas s podem ser

    ditas com gravador desligado, especialmente para garantir a privacidade de

    alguns dos envolvidos.

    Essas entrevistas ficam, tambm, como contribuio para quebrar o

    silncio, uma vez que todos os aportes nesse sentido ajudam a estabelecer umrumo uma democracia mais efetiva, pois necessrio que nunca esquea, que

    nunca mais acontea58.

    Foram consultados, tambm, as memrias dispostas em livros de

    autobiografias sobre o perodo59:

    A Guerrilha Brancaleone, que conta um pouco da trajetria do Sr.

    Cludio Gutierrez, militante do colgio Jlio de Castilhos e da dissidncia do PCB.

    Nesse livro possvel percebermos a atuao do movimento estudantil e,tambm, de militantes que no tinham uma atuao orgnica em alguma corrente.

    Deu-nos importantes pistas para podermos problematizar a relao entre

    militantes de diferentes vertentes do movimento e como se constitua as redes de

    colaboradores de fora das organizaes. O autor deixa tambm como

    contribuio para nosso estudo uma entrevista concedida para execuo do

    presente trabalho, enriquecendo-nos ainda mais a pesquisa no campo.

    Agora Eu..., autobiografia sobre as perseguies ao militarreformado Athaydes Rodrigues, militante do PR, apresenta um panorama da

    cidade de Rio Grande. Seu relato possibilita a compreenso da atuao -

    principalmente institucional - em cidades de interior e de fronteira, tanto quanto

    58 Frase retomada diversas vezes por defensores dos Direitos Humanos no Brasil.59Respectivamente: GUTIRREZ, Cludio Antnio Weyne. A guerrilha Brancaleone.Porto Alegre: Proletra, 1999; RODRIGUES, Athaydes.Agora Eu... Pallotti: POA, 1980;FREI BETTO. Batismo de Sangue. RJ: Bertrand, 1987; VARGAS, ndio. Guerra Guerra,Dizia o Torturador. Rio de Janeiro: Codecri, 1981; SIRKIS, Alfredo. Os Carbonrios. So

    Paulo: Global, 1994 e FERRER, Eliete (Org.). 68 a gerao que queria mudar o mundo:relatos. Braslia: Ministrio da Justia, Comisso de Anistia, 2011.

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    exps aes repressivas contra esses militantes, j nos primeiros dias aps o

    golpe. Em sua narrativa possvel explorar os dilemas impostos aos indivduos e

    as diversas disputas e reacomodaes de foras nas cidades do interior.

    Batismo de Sangue,memrias do militante organizador de rotas de

    exlio e, tambm, perseguido poltico, Frei Beto. Partindo desse relato

    percebemos as diversas disputas internas da igreja e como se configurava a

    perseguio e o apoio. Contrastando com outros relatos podemos perceber as

    peculiaridades das cidades de interior, to balizadas pelas discusses feitas

    dentro da igreja. Percebemos tambm como se organizava o esquema de rotas,

    suas diversas possibilidades e as relaes estabelecidas seus organizadores.

    E, uma vez que ele mesmo procurou apoio para refugiar-se da represso, temos,tambm uma importante exposio da constituio das teias de solidariedade sob

    a tica de quem as necessitou us-la, apesar de ter sido preso antes de cruzar a

    fronteira.

    Os Carbonrios narra as experincias desde o movimento estudantil

    luta armada, de Alfredo Sirkis, militante da VPR. Essas memrias nos possibilita

    discutir algumas opes postas para a juventude do perodo, tanto quanto

    diversos mecanismos coercitivos ao movimento estudantil.68 a gerao que queria mudar o mundo: relatos publicao do

    projeto Marcas da Memria, da Comisso de Anistia, esse livro rene 175 relatos

    de militantes no combate ditadura civil militar, extrapolando o perodo de 1968 e

    contando, ainda, com sees especficas sobre memrias do exlio. Partindo

    principalmente d