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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação U Antônio Jorge Pantoja Gualberto Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia Belém 2009

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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação

U

Antônio Jorge Pantoja Gualberto

Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia

Belém 2009

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Dados Internacionais de catalogação-na-publicação (CIP), Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA, Belém- PA.

Gualberto, Antônio Jorge Pantoja

Embarcações, educação e saberes culturais em um estaleiro naval da Amazônia / Antônio Jorge Pantoja Gualberto; Orientadora Denise Simões Rodrigues. Belém: 2009.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém,

2009. 1. Trabalhadores – Educação. 2. Cultura e Educação. 3. Estaleiros. I Título

CDD: 21 ed. 370.1931

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Antônio Jorge Pantoja Gualberto

Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia

Texto de Dissertação apresentado à coordenação do Curso de Mestrado em Educação, Linha de pesquisa: Saberes Culturais e Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Ciências Sociais e Educação da Universidade do Estado do Pará. Orientadora: Profª. Drª. Denise Simões Rodrigues.

Belém 2009

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Antônio Jorge Pantoja Gualberto Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval

da Amazônia

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade do Estado do Pará, linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia.

Data de aprovação: _____ / _____ /_______ Banca Examinadora ____________________________________ - Orientadora

Profª. Dra. Denise Simões Rodrigues Dra. em Sociologia Universidade do Estado do Pará ____________________________________ - Examinador Externo

Prof. Dr. Aldrin Moura Figueiredo Dr. em História Universidade Federal do Pará ____________________________________ - Examinadora Interna

Profª. Dra. Josebel Akel Fares Dra. em Comunicação e Semiótica Universidade do Estado do Pará ______________________________________________ - Examinadora Suplente

Profª. Dra. Nazaré Cristina Carvalho Dra. em Educação Física e Cultura Universidade do Estado do Pará

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A Edna Lemos, minha querida esposa e companheira de muitas lutas; aos filhos Beatriz Samara e Antônio Gabriel, que apesar de pequenos compreenderam e ajudaram com seus afetos nos momentos mais angustiantes desta caminhada.

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AGRADECIMENTOS

A Deus por me conceder sabedoria nesta caminhada.

A minha orientadora, professora doutora Denise Simões, por sua humanidade, carinho, sabedoria e competência, qualidades estas que me auxiliaram nesta caminhada.

Aos meus colegas de curso, Socorro Lima; Giza Bandeira; Viviane Otonelli; Fernando Otávio e Roseane Rabelo.

A todas as pessoas que mantive contato na Cidade de Vigia de Nazaré, sobretudo dos mestres carpinteiros Zuzinha, Joaquim, Dorival, Jacy, Ubiracy, Bolero e Albo, pois eles deram razão a esta pesquisa.

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Sem qualquer dúvida, as embarcações

utilizadas pela população de pescadores nas

regiões da Amazônia, se não são fabricadas

nas comunidades ou vilas onde residem os

componentes desse segmento social, o são em

outras próximas, basicamente com recursos

regionais, isto é, com madeiras nativas da

Amazônia, e o que é mais importante ainda,

com o saber e o savoir-faire de seus

construtores, herdados de seus antepassados.

Lourdes Gonçalves Furtado

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RESUMO

GUALBERTO, Antônio Jorge Pantoja. Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia. 149 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009. A presente pesquisa intitulada “Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia” está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado), da Universidade do Estado do Pará (UEPA), na Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Parte do seguinte problema: como se desenvolve a prática educativa em um estaleiro naval da Amazônia e como ocorre o processo de construção e transmissão dos saberes culturais que perpassam a construção de embarcações? Tem como objetivo geral analisar as práticas educativas desenvolvidas em um estaleiro e o processo de construção e transmissão dos saberes culturais. Trata-se de uma pesquisa de campo, dentro de uma abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso, e também, documental e bibliográfica. O lócus da pesquisa é o Estaleiro Esperança, localizado na Cidade de Vigia de Nazaré, (Pará) cuja história e cultura são marcadas pela vocação naval. Os procedimentos de produção de dados se constituíram a partir de levantamento bibliográfico e documental; observação das práticas educativas realizadas no Estaleiro; entrevistas semi-estruturadas com os mestres artesãos e aprendizes. Teoricamente, a pesquisa situa-se no campo da educação em ambientes não escolares e estrutura-se a partir de categorias como educação (BRANDÃO, 2002, 2007; OLIVEIRA, 2007; FREIRE, 2001), e saberes (CHARLOT, 2007). Palavras-chave: Educação. Embarcações. Saberes Culturais. Educação não Escolar.

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RÉSUMÉ

GUALBERTO, António Jorge Pantoja. Bateaux, Éducation et Savoirs Culturels dans un Chantier naval Naval de l'Amazonie. 149 f. Travail de Dissertation (Diplôme d'études approfondies dans Éducation) - Université de l'État du Pará, de Belém, de 2009.

Présente recherche intitulée « Éducation et Savoirs Culturels dans un Chantier naval Naval de l'Amazonie » est attachée au Programme de Pós-Graduação dans Éducation (Diplôme d'études approfondies), de l'Université de l'État du Pará (UEPA), dans la Ligne de Recherche Savoirs Culturels et Éducation dans l'Amazonie. Partie du suivant problème : comment se développe la pratique éducative dans un chantier naval naval de l'Amazonie et comme il se produit le processus de construction et la transmission des savoirs culturels que perpassam la construction de bateaux ? Il a comme objectif général analyser les pratiques éducatives développées dans un chantier naval et le processus de construction et la transmission des savoirs culturels. Il s'agit d'une recherche de champ, à l'intérieur d'un abordage qualitatif, du type étude de cas. La lócus de la recherche est le Chantier naval Espoir, localisé dans la Ville de Garde de Nazaré (Pará), dont l'histoire et la culture sont marquées par la vocation navale. Les procédures de production de données se sont constituées à partir d'enquête bibliographique ; commentaire des pratiques éducatives réalisées dans le Chantier naval ; entrevues semi-estruturadas avec les maîtres artisans et apprentis. Théoriquement, la recherche se place dans le champ de l'éducation dans des environnements non scolaires et structure à partir de catégories je mange de l'éducation (BRANDÃO, 2002, 2007 ; OLIVEIRA, 2007; FREIRE, 2001), savoirs (CHARLOT, 2007).

Mots-clés: Bateaux. Savoirs Culturels. Éducation non Escolaire.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1: Imagem de satélite de Vigia. ............................................................... 33

Ilustração 2: Diagrama da localização geográfica de Vigia. .................................... 33

Ilustração 3: Mapa rodo-fluvial de Vigia. .................................................................. 34

Ilustração 4: Mapa cartográfico econômico da Zona do Salgado. ........................... 37

Ilustração 5: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Amazonas e Tocantins.

........................................................................................................... 41

Ilustração 6: Fotografia da Capela Nosso Senhor dos Passos. .............................. 43

Ilustração 7: Fotografia do Muro frontal de Vigia na orla do Rio Guajará-Mirim ...... 43

Ilustração 8: Fotos do Msc Albo de boné azul e seus ajudantes nas margens do rio

Guajará-Mirim ..................................................................................... 49

Ilustração 9: Imagem da Ribeira das Naus em Lisboa ............................................ 53

Ilustração 10: Mapa de Alberto Cantino - Planisfério de 1502. .................................. 54

Ilustração 11: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Amazonas e Tocantins

........................................................................................................... 59

Ilustração 12: Imagem de satélite do município de Vigia de Nazaré. ........................ 61

Ilustração 13: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Tocantins ................... 63

Ilustração 14: Fotografia de uma ubá, registrada no Museu das Embarcações

localizado no Mangal das Garças – Belém do Pará ........................... 74

Ilustração 15: Imagem da confecção de uma canoa de um só tronco. ..................... 74

Ilustração 16: Imagem da construção de uma canoa de tábua ................................. 75

Ilustração 17: Registro fotográfico do corte de uma árvore para a construção de uma

canoa .................................................................................................. 76

Ilustração 18: Registro fotográfico de uma ubá construída e colocada em uso. ....... 77

Ilustração 19: Fotografia de uma réplica em miniatura de uma Vigilenga, registrada

no Museu das Embarcações localizadas no Mangal das Garças –

Belém do Pará. ................................................................................... 82

Ilustração 20: Fotografia registrada no Estaleiro Esperança. .................................... 87

Ilustração 21: Fotografia registrada na parte interior de um barco. ........................... 88

Ilustração 22: Fotografia registrada no Estaleiro Esperança. .................................... 89

Ilustração 23: Fotografia registrando o uso do sargento. .......................................... 97

Ilustração 24: Registro fotográfico do início da construção de uma embarcação...... 98

Ilustração 25: Registro fotográfico do início da construção de uma embarcação...... 98

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Ilustração 26: Fotografia do mestre Dorival encaixando uma peça numa em um

embarcação. ..................................................................................... 100

Ilustração 27: Fotografia do mestre Dorival e seu filho Jacy. .................................. 114

Ilustração 28: Fotografia do mestre Dorival e seu filho Juracy. ............................... 116

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

PROBLEMA E OBJETIVOS DA PESQUISA ............................................................. 15

PERSPECTIVAS TEÓRICAS ADOTADA .................................................................. 19

METODOLOGIA DA PESQUISA ............................................................................... 25

SEÇÃO I - EMBARCAÇÃO E PESCA: O PRESENTE E O PASSADO

IMBRICADOS NA CULTURA VIGIENSE ................................................................. 32

1.1 ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DE VIGIA DE NAZARÉ ...................................... 33

1.2 ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DE VIGIA DE NAZARÉ .............................. 42

1.2.1 Embarcações na Europa e no Brasil: A conquista e a colonização da

Amazônia ................................................................................................................. 50

1.2.2 A Cobiça de uma região ................................................................................. 55

1.2.3 Localização estratégica do aldeamento Uruitá na vigilância da capital do

Grâo-Pará ................................................................................................................. 60

SEÇÃO II - EMBARCAÇÃO A SERVIÇO DA EXPANSÃO COMERCIAL, POLÍTICA

E RELIGIOSA PORTUGUESA NA AMAZÔNIA: DAS UBÁ, IGARITÉ ÀS

VIGILENGAS ............................................................................................................ 70

2.1 A CONSTRUÇÃO DE UMA TRADIÇÃO AMAZÔNICA: AS VIGILENGAS .......... 71

SEÇÃO III - ESTALEIRO DE CARPINTARIA NAVAL: UM LOCAL DE

CIRCULAÇÃO DE SABERES .................................................................................. 84

3.1. ESTALEIRO ESPERANÇA: LICEU DE ARTES E DE OFÍCIOS DE

CARPINTARIA NAVAL EM VIGIA .............................................................................. 85

3.2 A CONSTRUÇÃO DE UM OFÍCIO: A DESCOBERTA DO TALENTO NATURAL

PARA A CARPINTARIA ............................................................................................. 91

3.3 O RECONHECIMENTO DE UM MESTRE ALÉM DE POMPÉ ......................... 100

3.4 O AMADURECIMENTO PROFISSIONAL DO MESTRE DORIVAL................... 106

3.5 PRÁTICAS EDUCATIVAS, TRANSMISSÃO DE SABERES E RELAÇÕES DE

TRABALHO: “SE PASSAR OU SE FALTAR ELA TEM DIFERENÇA, TUDO NESTE

MUNDO TEM UMA MEDIDA” ................................................................................. 110

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 120

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 123

GLOSSÁRIO ........................................................................................................... 127

APÊNDICES ........................................................................................................... 128

ANEXOS ................................................................................................................. 143

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INTRODUÇÃO

O interesse pelo estudo das embarcações é de longo tempo e prossegue até

os dias de hoje. Da infância guardo muitas recordações, principalmente daquilo que

expressa à cultura das pessoas que vivem nesta imensa região chamada Amazônia,

onde, geograficamente, é considerada a maior bacia hidrográfica do planeta,

composta por muitos rios, furos e igarapés.

A memória leva-me ao Círio de Nazaré em Belém, não a recordação de adulto

- a procissão per si - mas a de criança: o parque de diversão, os brinquedos de miriti,

entre os quais a cobra e o barco, que ainda me encantam. Quando ganhava esses

presentes minha imaginação dava vida aos mesmos dentro de uma pequena bacia

de madeira cheia de água. Viver nessa região é, portanto, sentir o que os versos do

compositor paraense Ruy Barata nos falam quando retrata a vida do amazônida e

sua relação com os rios: Esse rio é minha rua, minha rua mururé, piso no meio da

rua, deito no chão da maré.

Nesse ambiente de tantos rios, furos e igarapés que são percorridos todos os

dias pelos ribeirinhos como “ruas e avenidas”, num frenesi constante de barcos que

circulam a todo instante, o transporte fluvial revela-se de grande importância. Mais

ainda quando pensamos que, por essas mesmas vias aquosas, passam pessoas e

cargas, sonhos e desejos, imaginação e esperança dos moradores que utilizam

essas “ruas” em seu ir e vir, seja a passeio, seja a trabalho ou outros motivos.

Até os anos de 1980 cruzei muitas vezes essas “ruas” e “avenidas” dentro de

uma embarcação. Fosse apenas para meu entretenimento, seguir em direção a uma

taberna (pequeno comércio) na Ilha do Cumbú1, fosse para participar de festas

carnavalescas em Abaetetuba, Cametá, ou na da Ilha do Marajó onde, durante o

percurso entre as cidades de Soure e Salvaterra, podia-se ouvir um bom carimbó.

Um dia, em viagem pelo rio Tocantins com destino à cidade de Cametá,

sentado ao lado do comandante da embarcação, pude acompanhar de perto os

procedimentos básicos para a condução da mesma. O comandante, com detalhes,

professava seus conhecimentos acerca da navegação marítima e enfatizava com

veemência que os mesmos tinham sido adquiridos na “escola da vida” e não por

meio da “escola do homem” (a universidade). Com orgulho, mostrava-se conhecedor

1 Ilha fluvial que faz parte da cidade de Belém.

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dos rios da Amazônia e narrava com riqueza de detalhes uma de suas odisséias nas

águas turbulentas do Rio Tocantins, num trecho entre Marabá e Itupiranga, ao

atravessar o Lourenção2.

Para o Comandante Oscar da Costa e Silva, o Lourenção era o maior desafio

que a natureza pôs nas águas do Tocantins e o segredo do sucesso para uma

travessia segura era possuir uma embarcação forte, saber fazer a leitura do ritmo

das águas e mirar a pedra chamada de paredão, para desviar-se, logo em seguida,

desse obstáculo.

Coudreau (1980) em sua obra “Viagem a Itaboca e ao Itacaiúnas”, faz

comentários sobre as dificuldades dessa região dizendo:

Prosseguimos rumo à grande queda-d’água. [...] chegamos defronte a uma barragem de rochedos compactos que atravessa todo o rio, de leste para oeste. Essa espécie de muralha formando uma barragem valeu à cachoeira o nome que lhe demos de CACHOEIRA DO PAREDÃO. (COUDREAU, 1980, p. 69)

Atribuo a essas reminiscências da infância o gosto pelas embarcações e

pelos saberes que as envolvem. Na idade adulta, o contato bem de perto com um

estaleiro naval reacendeu meu interesse pelo tema.

Em 2000, atuando como professor de História na Escola Salesiano Nossa

Senhora do Carmo (Belém, PA), houve a oportunidade de visitar, com um grupo de

alunos, um estaleiro naval na cidade de Abaetetuba, município paraense conhecido

como grande produtor de barcos. Nesse local, nos deparamos com alguns mestres

carpinteiros e diversos tipos de embarcações, a maioria para serem reformadas e

uma na fase final de construção. Tanto eu quanto os alunos ficamos instigados em

querer saber sobre o trabalho desses artífices. A pergunta básica era: como se fazia

um barco e quais dificuldades existiam na profissão?

As respostas foram variadas, dependendo, por exemplo, do fim a que se

destinava a embarcação, se era para passageiro, carga ou para a pesca. Dependia,

também, da capacidade, do peso, e do comprimento do barco. Concluímos que as

respostas não eram tão simples como pensávamos, pois, construir uma embarcação

implicava em conhecimentos específicos ligados à geometria, à matemática, à física,

à química, enfim, conhecimentos diversos vivenciados no cotidiano desses mestres

carpinteiros, de acordo com o tipo de embarcação encomendada.

2 Cachoeira no rio Tocantins, próxima ao município de Itupiranga.

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Foi percebida, ainda que de modo informal, a complexidade dos

procedimentos utilizados na construção de um barco e a importância do ofício dos

mestres carpinteiros para a região. Explicando alguns procedimentos dessa

construção, os mestres enalteciam-se a si mesmos como os executores das obras

que ali se encontravam, e por serem os guardiões desses conhecimentos os quais,

com dificuldades, de geração a geração, chegaram até os dias de hoje. Dentre as

dificuldades, os carpinteiros ressaltaram a preocupação quanto à escassez de

encomendas de barcos que diminuem a cada ano, e a falta de aprendizes

interessados em aprender esse ofício.

Essas preocupações foram, posteriormente, confirmadas a partir do estudo de

Lucena (2002, p. 61) que, investigando o uso da etnomatemática na construção de

barcos, registrou a fala de um carpinteiro de Abaetetuba dizendo: “É uma pena que

nessa região ninguém mais queira aprender a fazer barcos”.

Em 2006, de passagem pelo porto de Santarém, foi observado o vai e vem

dos barcos e os detalhes que diferenciavam cada embarcação. Foi inevitável a

comparação das embarcações da Região Tapajônica (Santarém) com as da Região

do Nordeste do Pará (Abaetetuba, Vigia), e de Itupiranga no Sudeste paraense.

Desse modo, constatou-se a existência de uma diversidade de tipos de

embarcações e suas variadas especificidades de estilo e design, pois o ritmo das

águas de cada região da Amazônia apresenta peculiaridades (rios com cachoeiras,

rios próximos ao mar, baias, igarapés), que requerem determinados modelos navais.

Mas restaram algumas perguntas: Se a maioria dos carpinteiros fazia barcos

sem ter frequentado a “escola dos homens”, como foi que adquiriam todos os

conhecimentos necessários à construção de uma embarcação? Como repassavam

esses saberes para as gerações seguintes? E a partir dessas interrogações foi

construída uma possibilidade de obter tais respostas, foi então que surgiu esta

pesquisa que seria norteada pelas seguintes indagações: Que saberes emergem

das práticas cotidianas em um estaleiro naval? Quais os procedimentos utilizados

para a transmissão dos saberes culturais que envolvem as embarcações? Como

esses saberes foram construídos historicamente?

Com a formação de historiador buscou-se leituras de diversas fontes

históricas. A participação em eventos acadêmicos acerca das ações políticas e

religiosas lusitanas no processo de colonização da Amazônia, promovidos pelo

Departamento de História da Universidade Federal do Pará em parceria com o

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Arquivo Público do Pará, subsidiou a pesquisa. E neste último procurou-se a

localização de fontes relativas à história da construção de embarcações na

Amazônia.

A pesquisa acerca da expansão marítima européia no século XVI registra que

os lusitanos, ao se estabelecerem em núcleos de povoamento na região Nordeste

do Pará, ergueram bases para a vigilância dos caminhos que levariam à foz do Rio

Amazonas. A Igreja Católica, inicialmente por meio dos padres jesuítas e dos

capuchos, fundou aldeias missionárias que tinham, dentre seus objetivos, a

catequização dos indígenas habitantes da região (CRUZ, 1973).

O contato entre europeus e indígenas gerou trocas de conhecimentos acerca

dos costumes locais, da fauna e flora amazônica, sobretudo, no que concerne ao

uso da madeira para a construção de embarcações, já que era prática comum dos

nativos a utilização de canoas nos rios e igarapés que entrecortam a região. Tal fato

influenciou os portugueses que, “utilizando-se dos conhecimentos indígenas”

(RODRIGUES, 2000, p.94), passaram a construir pequenas embarcações para o

trabalho de reconhecimento das áreas não desbravadas, como também para a sua

ação catequética.

Os conhecimentos gerados a partir da fusão cultural ocorrida entre

portugueses e, em especial, os índios tupinambá, transformaram o barco em

símbolo de uma cultura miscigenada nesses séculos. E o resultado desse contato

vive-se nos estaleiros ou barracões, onde a despeito das dificuldades que vêm

atravessando ao longo do tempo, sobrevivem na atualidade como espaços

privilegiados onde são fabricados os barcos e canoas da Amazônia.

É dentro desses espaços que o saber fazer de uma embarcação é transmitido

de geração a geração a partir de narrativas orais que traduzem conhecimentos

ancestrais. Como locais de circulação de saberes, os estaleiros assumem, portanto,

a função de uma escola em que os mestres repassam aos ajudantes e aprendizes

os saberes acumulados historicamente. É, exatamente, para a educação que

acontece nos estaleiros ou barracões que se volta esta pesquisa, em especial para a

compreensão dos saberes culturais que perpassam a fabricação de embarcações e

os processos de transmissão desses saberes entre mestres e aprendizes.

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PROBLEMA E OBJETIVOS DA PESQUISA

Ao se adentrar em um estaleiro naval na cidade de Abaetetuba e se conhecer

um pouco do cotidiano vivido pelos carpinteiros, observa-se nos discursos dos

mestres a responsabilidade que se têm em transmitir os saberes adquiridos das

gerações passadas, assim como também as dificuldades de ordem econômica que

enfrentam para manter a atividade, entre estas a falta de encomenda de barcos.

Além disso, foi ressaltada, também, a carência de aprendizes interessados no ofício

de fazer barcos. A fala desses carpinteiros aponta os saberes da carpintaria naval se

restringindo cada vez mais à geração mais velha, que parece temer a perda dessa

tradição frente ao processo da industrialização naval.

O historiador Hobsbawam (1995) ao prefaciar a obra “Ideologia Alemã” de

Karl Marx já apontava para esses aspectos do capitalismo global, que ao adentrar

em setores tradicionais de produção, destrói as bases comunitárias produtivas,

quando diz: “O desenvolvimento definitivo do capitalismo exige, portanto, o mercado

mundial”.

O Brasil, como país integrante da atual ordem capitalista, se insere nas

previsões de Karl Marx. Quando os militares chegam ao poder em 1964

implementam uma política que garante as bases de uma economia de mercado, e

conseguem atrair investimentos estrangeiros para diversos setores da economia

nacional, à exemplo, na Amazônia, dos Grandes Projetos.

A política econômica do Estado brasileiro, a partir da década de 1970, foi

conduzida visando à inserção do Brasil no capitalismo mundial. Esse processo foi

consolidado com a abertura de mercado, na década de 1990, na gestão do então

presidente da república Fernando Collor de Melo, que abriu precedentes para a

entrada de empresas e do capital internacional em diversos setores da economia,

entre eles, a da pesca e a da construção naval.

No caso da Amazônia, essa mundialização tomou corpo a partir dos “Grandes

Projetos” implantados na década de 70 do século vinte pelos governos militares

apoiados pelo capital internacional.

Os investimentos nacionais e internacionais aplicados nos Grandes Projetos

como: a construção da Rodovia Mário Andreazza e estradas vicinais; a implantação

das Indústrias Jarí e Albrás; a construção da Barragem de Tucuruí, entre outras,

propiciaram mudanças na cultura amazônica.

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Esses projetos, além de abrirem a Amazônia à mundialização econômica,

trouxeram consigo novas tecnologias que acarretaram alterações significativas no

campo sócio-cultural dos amazônidas. Como exemplo, a construção da Barragem da

Hidrelétrica de Tucuruí, no final da década de 1970, que inviabilizou uma grande

porcentagem do transporte de passageiros via embarcações no trecho entre o Sul

do Pará e a capital Belém, por causa da barragem erguida no Rio Tocantins.

Em entrevista feita, em julho de 2008, com o Mestre Enoque (um dos poucos

carpinteiros navais da cidade de Itupiranga), ele enfatiza a diminuição da atividade

de construção de embarcações, sobretudo as de passageiros. Em sua fala

demonstra essa preocupação: “[...] de 1980 prá cá não aparece encomenda de

barco grande”.

Além da barragem de Tucuruí, as estradas construídas a partir dos Grandes

Projetos serviram de concorrência à navegação no que tange ao transporte de

passageiros e cargas, de modo que a construção de barcos foi drasticamente

reduzida na região do Sul do Pará.

Na região do nordeste paraense, onde se situa a cidade de Vigia, os impactos

atingiram também a construção de embarcações de atividades pesqueiras, para

Torres (2004):

As últimas três décadas também são apontadas como intensas transformações na atividade pesqueira tanto no mundo como no Brasil. No estado do Pará essa ação desenvolvimentista no setor pesqueiro teve um impacto enorme sobre as áreas tradicionais de pesca, principalmente por estimular o desenvolvimento de uma frota industrial voltada para a exportação internacional (TORRES, 2004, p. 93).

Nesse sentido, estando a Amazônia inserida na lógica do mundo globalizado,

a comunidade dos carpinteiros não passou incólume a esse processo, pois o

desenvolvimento econômico trouxe mudanças significativas nos hábitos locais. Tais

mudanças atingiram o setor da pesca e concomitantemente os estaleiros

estabelecidos na região do Salgado.

Torres (2004) afirma que:

Os pequenos barcos utilizados para a pesca na região não permitiram levar o pescado para mercados consumidores mais distantes, em função do produto ser perecível, também a estocagem de peixes dentro das embarcações era limitada (TORRES, 2004, p. 95).

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Os estaleiros dessa região, além de perderem encomendas devido à

concorrência com as grandes empresas construtoras de barcos de ferro, sofreram

também a concorrência com o transporte rodoviário, pois “a expansão do sistema

rodoviário que ocorre na década de 50, vai se constituir em outra opção para o

transporte do pescado, sobretudo no litoral paraense” (Ibidem).

Para Torres (2004), o sistema viário gerou melhorias para o setor pesqueiro:

Uma vez que são diminuídas as distâncias dos centros pesqueiros com a capital, principal consumidor, além dessa ligação com a capital devido a demanda do pescado, levou à introdução de produtos manufaturados ou industrializados (roupas, rádios de pilha etc.) para as localidades de pesca (TORRES, 2004, p. 95).

Apesar das melhorias ocorridas no setor pesqueiro, o setor naval ribeirinho foi

subestimado, porque assim como “o conhecimento dos pescadores da região

amazônica nesse período foi considerado “rudimentar” e inadequado aos objetivos

de modernização” (Ibidem), consequentemente os barcos construídos nos estaleiros

locais, por não serem “modernos”, também foram considerados inadequados,

gerando desaquecimento na produção de barcos, além da dificuldade de renovação

de mão-de-obra nesse setor.

Portanto, o “novo” traz: ”modernidade”, “dinamismo”, “desenvolvimento”. Essa

dinâmica oriunda do capitalismo, massificada atualmente pela televisão, induz os

mais jovens a viver a lógica do presente contínuo, levando-os a não terem ligação

alguma com o seu passado (HOBSBAWM, 1995):

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à de gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer reclamação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim desse segundo milênio (HOBSBAWM, 1995, p.13).

A população de jovens, uma vez cooptada pelo capitalismo, passa a “migrar

para os centros urbanos, em busca de empregos e educação” (TORRES, 2004,

p.36), deixando de lado ofícios artesanais praticados por muitas gerações, como é o

caso da fabricação de embarcações.

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A consequência disso é a permanência dos mais velhos no ofício e,

concomitantemente, o aumento das dificuldades de renovação dessa mão-de-obra

nos estaleiros, além da perda de uma tradição que é constituidora tanto da história

do Brasil quanto da Amazônia e, em particular, da cidade de Vigia, lócus desta

investigação.

O envelhecimento das gerações mais velhas acarreta, portanto, a perda

significativa dos saberes que perpassam a fabricação de embarcações, pois ao

morrerem, os mais velhos levam consigo tais saberes. Esses saberes não se

circunscrevem apenas às técnicas de construção de uma embarcação, mas estão

atrelados a valores culturais, que contribuem tanto para a perpetuação da tradição

quanto para a formação do cidadão.

Nessa perspectiva, esta pesquisa se voltou para uma análise dos processos

educativos vivenciados em um estaleiro naval da Amazônia, em especial para os

saberes que perpassam a fabricação de embarcações e a forma como são

transmitidos às gerações mais novas.

Ao partir da suposição de que no cotidiano de um estaleiro há educação,

compartilha-se da idéia de Brandão (2007), quando afirma que:

A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade (BRANDÃO, 2007, p. 10).

Em seu agir como educadores, os mestres carpinteiros têm um papel

significativo na sobrevivência dos saberes de construção de barco, pois ao

garantirem a transmissão desses saberes, educam os aprendizes garantindo a

perpetuação, ao menos à próxima geração, desse legado cultural amazônico.

Como base nessas considerações, esta pesquisa estrutura-se tendo como

norte as seguintes questões: Que saberes emergem das práticas educativas em um

estaleiro naval? Que procedimentos são utilizados na organização e transmissão

desses saberes? Que medidas estão sendo tomadas pelos sujeitos, herdeiros desse

legado cultural para a preservação desses saberes? Como contextualizar,

historicamente, a fabricação de embarcações na Amazônia?

A partir dessas questões, o objetivo geral desta pesquisa é analisar as

práticas educativas desenvolvidas em um estaleiro naval semi-artesanal da

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Amazônia, em especial, o Estaleiro Esperança localizado na cidade de Vigia (PA), e

o processo de construção e transmissão dos saberes culturais que perpassam a

construção de embarcações.

Como objetivos específicos a pesquisa propõe-se a:

• Identificar os saberes culturais construídos e repassados pelas gerações

mais velhas às mais novas, no processo de fabricação de embarcações.

• Analisar os procedimentos utilizados pelos carpinteiros na organização e

transmissão dos saberes.

• Verificar as medidas tomadas para a preservação da tradição de

construção de embarcações.

• Contextualizar, historicamente, a presença de embarcações na Amazônia.

O estudo pretende, ainda, verificar a educação que acontece nos estaleiros e

os saberes que são postos em circulação na feitura de embarcações, evidenciar a

existência de processos educativos nesses espaços e, com isso, ampliar a noção de

educação, em geral, circunscrita ao ambiente escolar não formal.

Ao contextualizar, historicamente, a presença de embarcações na Amazônia e

os saberes implicados nesse saber-fazer, esta pesquisa tem a intenção de contribuir

com a ampliação da produção teórica no campo da história da educação voltada

para o estudo dos processos educativos mais amplos, isto é, que ocorrem para além

dos muros da escola, processos esses ainda pouco conhecidos.

PERSPECTIVAS TEÓRICAS ADOTADA

A compreensão, nesta pesquisa, da educação existente no contexto de um

estaleiro naval da Amazônia, funda-se a partir da articulação entre determinados

domínios do conhecimento.

Do ponto de vista da educação, onde se insere prioritariamente esta pesquisa,

apropria-se das contribuições de autores como BRANDÃO (2007), FREIRE (2001),

OLIVEIRA (2007) e CHARLOT (2007).

Brandão (2007), em “O que é educação” e “Educação como Cultura”,

evidencia a importância do que é educação além dos muros escolares, pois para o

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autor, a educação acontece em diversos segmentos de uma sociedade

independentemente de uma instituição escolar.

Ao citar que em qualquer ambiente existe aprendizado, enfatiza a educação

como conhecimento prático do dia-a-dia, que além do aprimoramento dos sujeitos

para a vida, sedimenta a cultura de uma dada sociedade.

A contribuição dessas obras para o desenvolvimento desta pesquisa,

realizada no Estaleiro Esperança, refere-se na compreensão e análise das práticas

educativas oralizadas e transmitidas dentro desse estaleiro nas fases da produção

de um barco: a percepção de que há saberes no campo da matemática, da química,

da física, da geometria, da educação, da administração, da economia, da ética, da

arte e da história, que encontramos de forma sistematizada nas escolas, no entanto,

praticados com segurança na comunidade de carpinteiros.

Oliveira (2007), na obra “Cartografia de Saberes”, reúne uma coletânea de

pesquisas que expressa à vida cotidiana do caboclo amazônico, suas práticas,

educativas e seus saberes acerca da natureza, da culinária, da religiosidade, da

música, dos mitos. Elementos esses que compõem a cultura popular dos

amazônidas.

Na coletânea que compõe essa obra, é verificada a “cultura rural-ribeirinha, à

criatividade de seus habitantes e ao produto de acumulação de suas experiências

sociais” (OLIVEIRA, 2007, p. 31), seja nos saberes relacionados às ervas medicinais

que ajudam na cura de muitas doenças; seja da flora e na produção de artefatos

para o dia-a-dia ou da pajelança.

É na chamada “cultura de conversa” (OLIVEIRA, 2007) que acontece às

transmissões de saberes e que a partir de relações de solidariedade entre as

pessoas é que se garante a preservação de uma tradição cultural. O Estaleiro

Esperança faz parte dessa cultura ribeirinha, onde a oralidade de transmissão de

saberes é difundida e até então perpetuada.

É nessa obra onde encontro referências de saberes amazônidas já

cartografadas, que subsidiam a análise dos conhecimentos não escolares que

perpassam no Estaleiro Esperança. Também há o registro de como esses saberes

ribeirinhos, citados nesta obra, foram acumulados de geração a geração entre as

comunidades de carpinteiros.

Em Freire (2001), a importância de sua obra “Pedagogia da

Autonomia/Saberes necessários à prática educativa” reside na compreensão do

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sujeito inserido em uma sociedade que está em constante processo de

transformação cultural, pois por sermos sujeitos “inacabados” buscamos

constantemente o acabamento no aperfeiçoamento das práticas trabalhistas

vivenciadas no dia-a-dia, seja em um estaleiro naval ou em qualquer outra situação

que ocorra o aprendizado.

No campo do saber, é utilizada a obra “Da relação com o saber” de Charlot

(2007), como base para análise e compreensão dos saberes não escolares que

circulam no estaleiro investigado. Para Charlot (2007):

A relação com o saber é a relação com o tempo. A apropriação do mundo, a construção de si mesmo, a inscrição de uma rede de relações com os outros – “o aprender” – requerem tempo e jamais acabam. Esse tempo é o de uma história: a da espécie que transmite um patrimônio a cada geração; a do sujeito; a da linhagem que engendrou o sujeito e que ele engendrará. Esse tempo não é homogêneo, é ritmado por “momentos” significativos, por ocasiões, por rupturas. Esse tempo por fim, se desenvolve em três dimensões que se interpenetram e se supõe uma à outra: o presente, o passado, o futuro (CHARLOT, 2007, p. 79).

Faz-se a análise das relações sociais estabelecidas entre os sujeitos

envolvidos no ofício de construção de barcos em seu tempo histórico. Busco

também fazer análises das relações entre o saber e o aprender que foram tecidas

historicamente através da cultura de conversa (OLIVEIRA, 2007), entre mestres e

aprendizes.

Em outros campos do conhecimento, a Amazônia é descrita em prosa e verso

por muitos autores, que ao discorrerem em suas obras, seus cantos, poesias e

músicas, escrevem com riqueza de detalhes o movimento das águas dos rios e o vai

e vem dos barcos, expressando, assim, de forma poética as representações

simbólicas dessa cultura cabocla.

Contudo, quando se trata de encontrar obras que retratam especificamente os

estaleiros, no que tange a arte de ensinar e aprender, na construção de barcos,

entre mestres, ajudantes e aprendizes ribeirinhos, o número de obras é bem

reduzido.

Há a inclusão de algumas obras relacionadas à pesca, pois existe uma

relação bem próxima entre os construtores de barcos e as atividades pesqueiras.

Furtado apud Ximenes (1992, p. 32), em sua pesquisa intitulada de “Sem

barco, como pescar?” vem corroborar para análise de alguns pontos que já foram

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abordados acerca da fabricação de barcos, como: tipo de embarcação, se é para o

transporte de carga ou de passageiros; tipo de remo, se é para água salgada ou

para doce; tipo de vela, se é para águas interiores ou para o litoral. Esses exemplos

fornecem pistas para caminhos ainda a serem percorridos, na perspectiva de

mapear os saberes praticados na construção de barcos no Estaleiro Esperança.

As demais obras existentes retratam assuntos que envolvem as práticas do

fazer na pesca; da navegação fluvial; do barco na vida do ribeirinho; de situações

sócio-econômicas dos sujeitos envolvidos nesses setores produtivos da região, onde

a presença desse meio de transporte é vital.

Essas obras contribuem para as análises levantadas no campo pesquisado

com a finalidade de se chegar aos objetivos e responder as questões norteadoras

dessa pesquisa, as quais perpassam todo o processo da construção de uma

embarcação num estaleiro, em Vigia de Nazaré.

Isaac (2005), estudando o potencial pesqueiro do Pará, no litoral nordeste do

Estado, destaca a cidade de Vigia de Nazaré como uma região dotada de

conhecimentos específicos na arte de pescar e na construção de embarcações,

motivando a preservação dessa tradição na região. Para o autor, a atividade

pesqueira e os barcos caminham juntos, em uma simbiose, sustentando o

crescimento econômico do município de Vigia.

Torres (2004), em sua obra “Envelhecimento e pesca”, analisa o processo de

envelhecimento das comunidades pesqueiras na cidade de Curuçá (PA). O autor

aponta a falta de aprendizes como gerador do déficit na ampliação da mão-de-obra

pesqueira na região, e a consequente concentração e permanência desse ofício nas

mãos das gerações mais velhas.

Nesta obra, ao associar as dificuldades vividas pelos trabalhadores da pesca

com as dos construtores de barco, o autor fornece subsídios para a compreensão

das dificuldades enfrentadas também em estaleiros navais semi-artesanais da

Amazônia. Ao se utilizar dessa comparação, evidenciam-se as dificuldades que o

setor da carpintaria naval semi-artesanal apresenta na atualidade, tanto de ordem

econômica - como a falta de encomendas, quanto de ordem social - o

envelhecimento das gerações mais velhas e a falta de novos aprendizes. Tudo isso

como consequência da mundialização da economia.

Lucena (2002), em sua dissertação de mestrado intitulada “Carpinteiros

Navais de Abaetetuba: Etnomatemática navega pelos rios da Amazônia”, aborda

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especificamente as técnicas de construção de embarcações na cidade de

Abaetetuba-Pa. Sob a ótica da etnomatemática emergente, que procura estabelecer

um diálogo entre a ciência e os saberes da tradição, retrata o estado da arte da

carpintaria naval em Abaetetuba.

A importância dessa obra está na indicação dos caminhos percorridos pela

autora em sua investigação a qual, a partir da observação do cotidiano dos mestres

na construção de barcos, aponta para um estilo de pensar que envolve a utilização

de recursos matemáticos, com organização criteriosa de idéias, estimativas, códigos

próprios e rigor lógico, características que pertencem à Matemática desenvolvida na

academia. E esses recursos são, também, utilizados pelos trabalhadores do

Estaleiro Esperança a partir da cultura de conversa no ato de construir barcos.

Ximenes (1992), ao organizar a obra “Embarcações, Homens e Rios na

Amazônia”, apresenta uma coletânea de textos de pesquisas desenvolvidas por

estudantes ligados ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade

Federal do Pará (UFPA), em que são apresentadas as bases históricas da

importância do uso do barco na vida dos amazônidas e descrições de técnicas

utilizadas na construção dos mesmos.

Esses estudos têm corroborado para esclarecer o que já foi produzido em

obras científicas sobre embarcações, que apontam para os aspectos físicos (formas)

das embarcações das regiões estudadas.

Rodrigues (2000), em sua obra “500 anos de trânsito no Brasil: convite a uma

viagem”, destaca a história do Brasil, não sob aspectos políticos e econômicos, mas

enfocando o transporte de pessoas e cargas no continente brasileiro. Nessa obra,

desvela o deslocamento de pessoas durante o período pré-cabralino até a

construção de estradas de rodagens. Enfoca desde as pequenas embarcações

feitas pelos índios, até o aprimoramento das mesmas que gerou a construção de

diversos modelos de barcos relacionados culturalmente com uma dada região.

A importância desta obra revela-se no aprofundamento das noções de

transporte praticados no Brasil desde os tempos pré-cabralinos, como também por

ela fazer uso de iconografias que representam modelos de barcos de seu tempo

histórico, que contribuíram para devida análise e compreensão dos modelos de

barcos produzidos na atualidade, no Estaleiro Esperança, lócus da pesquisa.

Na medida em que esta pesquisa define como um de seus objetivos a

contextualização das embarcações na Amazônia e os saberes que perpassam sua

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fabricação, faz-se necessário, também, as fontes históricas sobre a Amazônia e o

Pará, especificamente.

A obra de Azevedo (1999), “Os Jesuítas no Grão-Pará suas Missões e a

Colonização” parte de documentos oficiais para discorrer sobre a história da

Amazônia no contexto da colonização. O autor enfoca as ações do Estado

Português e das Ordens Religiosas que aqui mantiveram contato com as diversas

tribos indígenas das margens dos rios, litoral e meio da floresta. Sua relevância está

no que tange a análise do contato cultural entre colonizador e colonizado que, ao

longo dos séculos, produziu uma cultura específica nessa região – a cultura cabocla

– sendo elemento dessa cultura, a fabricação de embarcações que ganharam

características específicas ao longo do tempo.

Raiol (1970), em “Obras de Domingos Antonio Raiol – Barão de Guajará”,

dedica um capítulo sobre a História Colonial do Pará desde as primeiras ações

políticas e religiosas envolvendo portugueses e índios tupinambá da Região do

Salgado. Em seu texto observa-se as expressões dos nativos que nominavam

lugares, árvores, frutas, animais, rios que ajudam a reconstruir o cenário histórico da

região de Vigia, para onde se volta esta pesquisa.

Em “História de Belém”, Cruz (1973) trata, basicamente, da história política e

econômica do Pará do período colonial, fornecendo bases para a investigação da

história das embarcações e seu processo de construção no passado a partir de

documentos oficiais que registram a solicitação de envio de carpinteiros para o Grão-

Pará, bem como a fundação do primeiro estaleiro da região.

Bettendorff (1627 – 1698), na obra “Crônica da Missão dos Padres da

Companhia de Jesus no Estado do Maranhão”, tendo como consultor o historiador

paraense Vicente Sales, editada em 1990, enfoca as narrativas dos padres jesuítas

em suas missões de catequese na região do Nordeste Paraense.

Essa obra nos fornece uma boa dimensão da utilização de canoas entre os

índios da Amazônia. Um dos exemplos é a ajuda indireta de muitos índios na ação

missionária, que ao utilizarem suas canoas transportando os padres, serviam como

remadores, e auxiliavam indiretamente no processo de catequese.

A utilização das narrativas descritas pelo Padre Jesuíta João Daniel (1722-

1776) em sua obra “Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas”, nos oferece

detalhes minuciosos da vida dos indígenas e caboclos na Amazônia em tempos da

colonização e sua relação com seu meio ambiente.

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Outra obra importante para a compreensão da realidade social dos

amazônidas é a de Veríssimo (1970), que enfatiza os aspectos econômicos,

ambientais e sociais como formadores de uma cultura cabocla – miscigenada.

E no desvelar da história de nosso passado que se pretende encontrar pistas

que nos conduzam a afirmar a tradição cultural de construção de barcos na atual

cidade de Vigia.

As obras citadas, ainda que não enfoquem diretamente a questão da

educação, possibilitam a compreensão dos saberes culturais que perpassam o

saber-fazer de uma embarcação, além de contribuírem para evidenciar os estaleiros

como espaços significativos de aprendizagem. Dentre as principais contribuições

teóricas trazidas por essas obras, destacam-se:

• A compreensão das práticas culturais desenvolvidas nos ofícios de

comunidades tradicionais, seja na pesca e, sobretudo, na carpintaria naval;

• A importância do diálogo e da tradição oral na transmissão dos saberes no

cotidiano dos construtores;

• O aprimoramento das técnicas de construção de embarcações;

• A contextualização das embarcações e o processo histórico da formação

dos saberes que envolvem sua fabricação;

METODOLOGIA DA PESQUISA

Esta pesquisa, de natureza qualitativa, caracteriza-se como de campo,

documental e bibliográfica. É de campo dado à necessidade de se coletar os dados

no ambiente natural em que ocorre o processo de construção de embarcações no

Estaleiro Naval Esperança, na cidade de Vigia.

Esta pesquisa possui um caráter qualitativo, em razão da subjetividade e

simbolismo presentes na feitura de uma embarcação. Saberes existentes entre os

sujeitos e sua relação com o mundo, com o objeto (embarcação), e consigo mesmo.

Charlot (2007), ao comentar a relação entre sujeito e o saber, diz:

Não há sujeito de saber e não há saber senão em uma certa relação com o mundo, que vem a ser, ao mesmo tempo e por isso mesmo, uma relação com o saber. Essa relação com o mundo é também relação consigo mesmo e a relação com os outros. Implica uma forma de atividade e, acrescentarei, uma relação com a linguagem e uma relação com o tempo (CHARLOT, 2007, p. 63)

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Com isso foram analisados os saberes que são difundidos por uma educação

não escolar no estaleiro estudado como um fato construído historicamente.

Na obra de Minayo (2007), que ao descrever sobre a abordagem qualitativa

sustenta essa pesquisa, diz:

Ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes. (MINAYO, 2007, p. 21)

Para essa pesquisa de campo, utiliza-se como técnica a observação, que

auxilia na coleta de dados visuais e dados verbais, sobre os procedimentos técnicos

utilizados pelos carpinteiros nas etapas na construção de barcos, que são difundidos

a partir da “cultura de conversa” (OLIVEIRA, 2007).

Durante essa etapa, foi utilizado um caderno de campo para o registro das

atividades desenvolvidas pelos trabalhadores no estaleiro; um gravador, para o

registro das falas dos mestres carpinteiros, dos trabalhadores da calafetagem,

ajudantes e do aprendiz. Esse recurso técnico facilita a coleta de informações não

visualizadas que são expressas e com denominações próprias na arte do fazer um

barco.

A máquina fotográfica permite a captação das ações durante a construção de

um barco, e com esse registro tem-se os dados coletados para análise. O uso das

fotografias nesse estudo se faz necessário para o registro mais abrangente das

atividades realizadas na construção de barcos, com o objetivo de captar a forma e o

jeito como essa construção está sendo desenvolvida pelos mestres, calafetes e

ajudantes no estaleiro. Logo, o registro fotográfico é importante, pois capta cenas

que muitas vezes escapam numa observação visual. Para Flick (2004):

Elas permitem gravações detalhadas de fatos, além de proporcionar uma apresentação mais abrangente e holística de estilos de vida e condições. Possibilitam o transporte de artefatos e a apresentação destes como retratos, e também a transgressão de limites de tempo e espaço. Podem captar fatos e processos que sejam muito rápidos ou complexos para o olho humano, por último, são menos seletivas do que as observações. (FLICK, 2004, p. 162)

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Utiliza-se também como técnica de coleta de dados as entrevistas abertas e

semi-estruturadas, que partem de um roteiro de perguntas abertas, que estimulam

respostas espontâneas. Como exemplo segue algumas perguntas realizadas com o

mestre Zuzinha, Dorival, Jacy, Juracy, que trabalham no Estaleiro Esperança:

Qual seu nome?

Qual a data do seu nascimento?

Qual sua escolaridade?

Com você aprendeu ofício de construir barcos?

Qual era o nome de seu pai?

Qual a escolaridade de seu pai?

Com que ele aprendeu o ofício de carpinteiro naval?

Você tem filho? Quantos?

Eles aprenderam o ofício de carpinteiro?

Como era o dia-a-dia no estaleiro de seu pai?

Existia alguma festa na entrega do barco?

Através das entrevistas passa-se a ter maior aproximação com os sujeitos da

pesquisa, penetrando no universo de valores e significados que fazem parte do seu

meio social no desenrolar do ofício.

O conjunto de respostas verbalizadas são gravadas e armazenadas em mini

fitas k7 de um aparelho portátil de gravação, para serem posteriormente descritas e

analisadas.

Esse tipo de técnica ajuda na aproximação entre os sujeitos investigados que

a partir de perguntas abertas relacionadas aos objetivos específicos e das questões

norteadoras desta pesquisa, desvelam-se os dados subjetivos que perpassam entre

os sujeitos envolvidos na construção de barcos.

Esses dados subjetivos que ocorrem no ato de construir uma embarcação,

não são possíveis de serem captados, somente pela técnica de observação, pois

apresentam valores, atitudes, opiniões, os quais estão na memória do mestre, e

muitas vezes são externados ou não, durante a construção do barco, que podem se

materializar no ato de uma entrevista.

Para a análise do material coletado os procedimentos da Análise Qualitativa

do Conteúdo priorizam as entrevistas e os registros fotográficos.

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Na concepção de Flick (2004), devemos:

Analisar a situação da coleta de dados (como foi produzido o material? Quem participou dessa produção? Quem estava presente na situação da entrevista? De onde vem os documentos que vão ser analisados? Etc.)”. (FLICK, 2004, p. 202)

Esta pesquisa também se caracteriza como documental, pois para

entendermos a tradição de uma sociedade, em especial a de Vigia, que se

especializou em construção de barcos de pesca, faz-se necessário revisitar

documentos históricos conservados em órgãos públicos que subsidiaram a análise

acerca desse legado cultural.

O revisitar desses documentos históricos teve como objetivo analisar o legado

histórico da tradição de construção de barcos e a relação dessa tradição na

formação da sociedade vigiense.

Esta pesquisa caracteriza-se também como uma pesquisa bibliográfica, dada

a contribuição de diversas obras, seja de relatos de viagens ou de estudos

científicos de autores que tratam de assuntos que envolvem as embarcações

ribeirinhas em seus aspectos gerais.

As obras citadas acima subsidiaram a análise do processo histórico que

sedimentou em Vigia a tradição de construção de barcos de pesca, como também

no tratamento dos dados coletados nessa pesquisa, realizada entre o ano de 2008 a

2009, no Estaleiro Esperança em Vigia.

O locus da pesquisa é o Estaleiro Naval Esperança, com característica de

produção semi-artesanal, que no processo de produção de uma embarcação utiliza-

se tanto de equipamentos modernos como: máquina de corte da madeira bruta;

motosserra; lixadeira elétrica, como também manual na utilização do gramíneo, que

mede a espessura da madeira a ser cortada; da plaina manual; de serrotes; do

cavalete que ajuda a posicionar a prancha de madeira para ser trabalhada; a queima

da madeira para ser curvada. Recursos esses utilizados para a fabricação de peças

que vão compor a estrutura de uma embarcação.

A escolha do Estaleiro Esperança teve como critério a situação de legalidade,

pois dos três estaleiros existentes na cidade é o único que possui autorização da

Capitania dos Portos do Pará para funcionar. É também o segundo estaleiro mais

antigo em funcionamento, onde a tradição ribeirinha de construção de barcos de

pesca ainda se preserva.

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A cidade de Vigia é considerada tradicional na construção de barcos. Na obra

de Furtado apud Ximenes (1992, p.32), que escreve sobre a prática pesqueira desta

cidade, no título de seu trabalho levanta uma questão: “Sem barco, como pescar?”,

ou seja, as relações entre a pesca e a construção de barcos estão imbricadas.

Portanto, barco e pesca fazem de Vigia um grande pólo pesqueiro do Estado do

Pará (ISSAC, 2005).

A cidade de Vigia, onde está localizado o Estaleiro Esperança, é um município

que compõe a Região do Nordeste do Pará, banhada pelo Rio Guajará-Mirim.

Segundo o censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), coletado

em 2007, a população dessa cidade está estimada em 43.847 habitantes, sendo que

a maioria vive no meio urbano.

A escolha dessa cidade deve-se ao seu legado histórico iniciado com a

colonização portuguesa no século XVII, precisamente no ano de 1615, com a

fundação de um aldeamento chamado pelos Tupinambá de Uruitá

(LOUREIRO,1987, p. 51). No século XVIII, o governo construiu um posto com vigias,

para controlar a ação de contrabandista naquela região. Esse posto passou a ser

referência desse lugar, portanto, tornou-se conhecida com o nome de Vigia, devido à

função que lhe coube na História.

Além desse legado histórico, outro fator de destaque é seu caráter religioso,

pois a cidade primeiramente surgiu de um aldeamento missionário, como notificou a

pesquisadora Loureiro. A região vai ganhar maior proporção religiosa, devido às

narrativas orais difundidas no século XVIII sobre o naufrágio de uma embarcação

portuguesa, que por “intercessão de Nossa Senhora de Nazaré foram salvos seus

tripulantes (Ibidem, p.61).

Então, a relação histórica desenvolvida a partir do aldeamento, do posto

fiscal, da religião e da pesca, transformou a cidade de Vigia, com seus 393 anos de

existência, em um município de expressão religiosa, por ter o Círio mais antigo do

Norte do Brasil; de grande expressão pesqueira (o segundo maior do Estado), e de

construção de barcos.

Os sujeitos que fazem parte dessa pesquisa correspondem a 03 membros da

comunidade de carpinteiros que desenvolvem os serviços da carpintaria naval no

Estaleiro Esperança, são eles: O Sr. Dorival Dantas, marajoara 65 anos de idade,

conhecido por Bigaiu. Sua escolha deve-se por ser um dos mais velhos carpinteiros

ainda na ativa, como também seus filhos Jacy Dantas e Juracy Dantas, que se

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constituem como herdeiros dos saberes adquiridos de seu pai.

A partir da seleção desses sujeitos, foi possível observar a “cultura de

conversa” (OLIVEIRA, 2007) desenvolvida entre os trabalhadores do Estaleiro

Esperança na arte de fazer um barco, sobretudo, atentar para os saberes difundidos

entre aqueles que atuam neste local de trabalho

Charlot (2007):

Não há saber que não esteja inscrito em relações de saber. O saber é construído em uma história coletiva que é a da mente humana e das atividades do homem e está submetido a processos coletivos de validação, capitalização e transmissão. Como tal, é o produto de relações epistemológicas entre os homens. Assim sendo, as relações de saber são, mais amplamente, relações sociais. Essas relações de saber são necessárias para constituir o saber, mas, também, para apoiá-lo após sua construção: um saber só continua válido enquanto a comunidade científica o reconhecer como tal, enquanto uma sociedade continuar considerando que se trata de um saber que tem valor e merece ser transmitido (CHARLOT, 2007, p. 63)

As observações e coleta de dados foram iniciadas e concluídas. Registrada

todas as etapas: o contrato da encomenda (barco); a preparação dos moldes; o

tempo a ser empregado nessa encomenda; as dificuldades que são apresentadas no

decorrer da construção, entre outras. E no dia-a-dia, na arte de fazer o barco, é que

se encontram pistas que levam a conhecimentos técnicos aplicados e verbalizados

em linguagem própria do senso comum, no estaleiro.

As observações e entrevistas, que foram realizadas até o esgotamento das

indagações, subsidiaram o texto.

Convém afirmar que ao se envolver a partir das observações e entrevistas no

dia-a-dia dos trabalhadores da carpintaria naval, é sentir um pouco a realidade vivida

pelos mestres, ajudantes, calafetes e aprendizes, quando desenvolvem seu ofício. A

dinâmica que lá existe provém de ações oriundas de práticas memorizadas por

décadas e reelaboradas a partir do tempo histórico vivido daqueles que

encomendam ou reformam o barco.

Portanto, o conjunto de técnicas aplicadas nesta pesquisa produziu uma

quantidade de dados orais, resultado das entrevistas e conversas realizadas com os

sujeitos da pesquisa. Também visuais, devido ao uso da fotografia, que permitiram

fazer análises do objeto investigado, o que é comum nas pesquisas qualitativas e

das leituras de documentos oficiais da época da colonização e das bibliografias

consultadas.

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A etapa final da pesquisa consistiu no mapeamento dos saberes que estão

presentes no estaleiro naval, os quais são oralizados e transmitidos no dia-a-dia dos

homens que constroem os barcos. Saberes esses que emergem das práticas

educativas cotidianas. Esse mapeamento identificou os saberes e práticas

educativas entre os sujeitos envolvidos na arte da carpintaria naval, que visa à

compreensão dos saberes produzidos e transmitidos no cotidiano do fazer uma

embarcação.

A partir do que foi exposto, a dissertação encontra-se organizada em três

seções a seguir:

A primeira seção intitulado de “Embarcações e Pesca: o presente e o

passado imbricados na cultura vigiense”, faz um levantamento histórico, geográfico

na formação da cultura da cidade de Vigia.

A segunda seção intitulada de: “Embarcações a serviço da expansão

comercial, política e religiosa portuguesa na Amazônia: ubá, igarité e vigilengas”,

analisa a utilização das embarcações indígenas e caboclas no processo de

conquista e colonização da Amazônia, como também a construção de uma tradição

voltada para a carpintaria naval.

A terceira seção intitulada de: “Estaleiro de carpintaria naval: um local de

circulação de saberes” discorre sobre o processo de construção de saberes voltados

para a arte da carpintaria naval iniciados pelo mestre Dorival Dantas na Ilha do

Marajó e sedimentados em Vigia de Nazaré.

Os resultados obtidos na pesquisa são de grande importância para estudos

acadêmicos no campo do saber e do registro da própria história da Amazônia.

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SEÇÃO I

EMBARCAÇÃO E PESCA: O PRESENTE E O PASSADO IMBRICADOS NA

CULTURA VIGIENSE

“A história é uma ciência, mas uma ciência que tem como

de suas características, o que pode significar sua

fraqueza mas também sua virtude, ser poética, pois não

pode ser reduzida a abstrações, a leis, a estruturas”

(BLOCH, 1997, p.19).

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Baia do Marajó Rio Açaí

Vigia

Rio Guajará Miri

01

02

1.1 ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DE VIGIA DE NAZARÉ

Vigia de Nazaré é um município localizado na Mesorregião do Nordeste

Paraense, e Microrregião do Salgado, banhada pelo Rio Guajará-Mirim. Limita-se ao

norte pela Baía do Marajó e o município de São Caetano de Odivelas, a leste pelos

municípios de São Caetano de Odivelas e Castanhal, ao sul pelo município de Santo

Antônio do Tauá e a oeste pelos municípios de Colares e da Baía do Marajó.

A imagem de satélite, o diagrama e o mapa abaixo nos oferecem a posição

geográfica exata da cidade de Vigia de Nazaré, no Estado do Pará. É nesta região

onde se desenvolve a pesquisa sobre os saberes práticos aplicada na construção

naval, precisamente no Estaleiro Esperança, um dos mais antigos na tradição de

construção e reparos de barcos de pesca dessa micro-região amazônica.

Ilustração 1: Imagem de satélite de Vigia. Ilustração 2: Diagrama da localização geográfica de Vigia. Fonte: CD Brasil, 2009.

A ilustração 1, fotografada por satélite nos permite verificar com fidelidade os

aspectos físicos do território vigiense. Observa-se sobretudo o principal rio dessa

região – o Guajará Mirim – e os igarapés que formam os braços fluviais e ajudam a

rasgar o continente. Esse rio e os igarapés exerceram no passado colonial, como

também em tempos atuais, uma importante via de acesso marítimo que ligava Vigia

a Belém, capital do Grão-Pará e para as demais cidades da Amazônia Ocidental.

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Ilustração 3: Mapa rodo-fluvial de Vigia. Fonte: CD Brasil, 2009.

Na ilustração 2, o diagrama fornecido pela Embrapa, expressa o

posicionamento geográfico do município de Vigia no mundo, com Latitude 0º52’30”

ao sul e Longitude 48º07’30” a oeste.

A ilustração 3, possibilita ter uma macro-visão do diagrama onde situa-se a

cidade de Vigia. A partir dele, observamos a divisão territorial-política de cada

município, sobretudo a rede rodoviária da Região Nordeste do Estado do Pará que

interliga os municípios por terra, como também os principais rios que compõem essa

região considerados pelos caboclos como ruas e avenidas, pois nelas transitam

costumeiramente os barcos num constante vai e vem, seja no transporte de carga ou

de pessoas.

Atualmente, o município é constituído pelos distrito de Vigia (sede), composta

por 08 bairros: Centro, Arapiranga, Castanheira, Vila Nova, Sol Nascente, Novo

Horizonte, Santa Rita, Amparo e por mais três vilas: Santa Rosa, Penhalonga e

Porto Salvo. As localidades mais afastadas da sede como Santa Rosa, Pelhalonga e

Porto Salvo, desenvolvem atividades econômicas voltadas mais para a agricultura,

cultivando culturas como a do mamão, maracujá, pimenta-do-reino, coco, mandioca,

hortaliças e legumes.

Segundo o censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),

coletado em 2007, a população dessa cidade está estimada em 43.847 habitantes,

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que estão subdivididas em diversos setores da economia local, sendo que 82%

desta população concentram-se no meio urbano, desenvolvendo atividades

trabalhistas, sobretudo em setores do comércio e de serviços gerais.

Apesar dos dados do IBGE indicarem que o principal setor da economia que

emprega a mão-de-obra local seja o de serviços e do comércio, a região onde se

localiza a cidade de Vigia tem tradição no setor da pesca, sobretudo a pesca

artesanal, que não é mencionado em detalhes por esse órgão.

Contudo, diversas pesquisas acadêmicas as quais estudam a ictologia

marítima da região, principalmente a microrregião onde deságua o Rio Amazonas, o

Rio Tocantins e o litoral leste paraense, apontam a importância da pesca artesanal

para a sociedade que vive nesse meio ambiente.

A obra de Veríssimo (1970), “A Pesca na Amazônia” é uma das pesquisas

pioneiras sobre o assunto da pesca e a relação entre o homem e o seu meio

ambiente. Ele comenta que:

O peixe foi sempre, então como hoje, mais ainda então que hoje, na Amazônia, o principal desse alimento. A sua abundância, a habilidade que os índios tinham em pescá-lo, foram parte nessa obra verdadeiramente admirável da fácil penetração portugueses sertões amazônicos adentro (VERÍSSIMO, 1970, pg. 90).

Estudos mais recentes apontam também para a relação existente entre a

pesca, barco e sociedade. O trabalho de Loureiro (1987), que através do “Inventário

Cultural e Turístico do Salgado”, destaca o legado histórico dessa região e sua

importância na pesca. Em Issac (2005), que ao pesquisar “Atividade pesqueira no

município de Augusto Correa” (na Região do Salgado), além de aprofundar nos

aspectos relacionados à pesca nesse município, enfatiza também a tradição que a

Cidade de Vigia tem em construção de barcos pesqueiros. E, finalmente Torres

(2004), em o “Envelhecimento e Pesca”, destaca a pesca e os pescadores na

desembocadura do Rio Amazonas.

Há também outros trabalhos sobre a atividade pesqueira que fazem análise

econômica do Estado do Pará, como órgão público SEPOF (Secretaria do Estado de

Planejamento, Orçamento e Finanças) que destaca a pesca artesanal na região de

Vigia, sua importância econômica e social para a sociedade local. Estes dados, de

2006, foram consultados e respaldaram as informações sobre pesca levantadas

neste trabalho.

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Em se tratando a área estudada, esse zoneamento ratifica os indicadores do

IBGE, destacando que a maioria da população economicamente ativa, que vive na

Região do Salgado, concentra-se no terceiro setor da economia. Entretanto, esse

órgão estadual evidencia a atividade pesqueira nessa região, e ainda ressalta que é

um dos principais segmentos econômicos que cresceram no âmbito da economia

local nos últimos tempos, vindo a corroborar com os dados apresentados por

Veríssimo no final do século XIX e por outros pesquisadores no século XX e XXI.

Em 2008, a SEPOF apresentou o mapeamento das atividades econômicas

dos municípios que congregam o Estado do Pará, subdivididos em zonas dentro das

microrregiões (Ilustração 4).

Na parte leste do Estado do Pará, encontramos nesse zoneamento

econômico dezoito municípios, e cada um com suas especificidades na economia

local, entre eles o município de Vigia.

A cidade de Vigia, além de fazer parte com os demais municípios que

congregam essa zona econômica, ancorada a uma economia, segundo o SEPOF,

ligada ao Terceiro Setor (Comércio e Serviços Gerais), aponta a grande

expressividade no setor da pesca.

Outro quesito importante mencionado pela SEPOF sobre as atividades

econômicas desenvolvidas em Vigia é a existência de estaleiros de produção naval,

ratificando a cidade de Vigia como produtora de barcos no Estado do Pará, que

dentre as demais cidades inseridas nesse zoneamento, somente Vigia e Colares

possuem produção naval.

Outros dados que mencionam a importância do setor pesqueiro em Vigia é do

Centro de Estudo em Economia e Meio Ambiente da Fundação Universidade do Rio

Grande, os quais destacam o município de Vigia com o terceiro maior número de

pescadores associados a Colônia de Pescadores, com 1.997 associados, abaixo

apenas de Belém, com 3.188 pescadores e Abaetetuba com 2.990.

Se a cultura da sociedade vigiense está alicerçada na pesca e produção

naval, um dos fatores para essa tradição cultural está na posição geográfica onde se

estruturou historicamente esse município. A cidade tem localização privilegiada, pois

está próxima a desembocadura de duas grandes bacias Hidrográficas do Brasil, a

Bacia Amazônica e a Araguaia-Tocantins, como também próximo ao litoral oceânico,

ou seja, faz parte de uma região que é rica em fauna ictiológica marítima

(VERISSÍMO, 1970, p. 05).

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Lavoura Temporária Lavoura Permanente Pecuária de pequeno porte Agroindústria animal Comércio Serviços de Educação e saúde Agricultura e pesca Construção Naval Oleiro

Ilustração 4: Mapa cartográfico econômico da Zona do Salgado. Fonte: SEPOF/DIEPI, 2009.

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Veríssimo (1970) já destacava em finais do século XIX essa riqueza marítima,

quando cita a geografia da região e o pescado que nela abunda, afirmando que a

costa chamada da Vigia e a fronteira, a leste de Marajó, entre Soure e o Cabo

Maguari, são o principal campo das pescarias de tainhas e na Contracosta, a da

gurijuba (VERÍSSIMO, 1970, p. 61).

Aponta também, além importância da pesca na vida dos amazônidas, a

cultura indígena da pesca, como elemento formador da cultura cabocla, quando diz:

A pesca e os produtos da pesca na Amazônia, desde os mais antigos tempos de que temos notícias, não serviram sòmente à alimentação, senão a usos da economia doméstica e industrial. Os processos culinários indígenas, adotados e naturalmente melhorados pelo conquistador, são fundamentalmente os mesmos hoje usados. (VERISSÍMO, 1970, p. 99)

Esses estudos que Veríssimo realizou no passado ainda são válidos, pois

muitos órgãos e instituições que estudam a pesca na atualidade manifestam a

importância do setor pesqueiro dessa região e a relação que a pesca tem com a

sociedade local, entre eles a SEAP (Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca).

Em seus relatórios, a SEAP ressalta o potencial pesqueiro do Norte do Brasil,

ratificando assim na atualidade o que Veríssimo escreveu em seus estudos sobre a

pesca na Amazônia nos finais do século XIX, quando destaca que a Região

Amazônica é rica em recursos ictológicos, sendo a pesca um dos elementos

constituidores da cultura dos amazônidas, quando diz:

A hidrologia da bacia Amazônica configura-se como um imenso complexo de rios, igarapés, lagos, canais furos nos quais abriga cerca de 20% de toda água doce da terra. A pesca é uma das atividades mais importantes nessa região, constituindo-se em fonte de alimento, comércio, renda e lazer para a grande parte de sua população (SANTOS apud SEAP, 2006).

Desta região onde a pesca artesanal tem destaque desde tempos remotos,

hoje são capturadas na desembocadura do Rio Amazonas, Rio Pará e do Rio

Tocantins, além das águas oceânicas, “toneladas e toneladas de espécies como a

pescada amarela, as sardas, cavalas e bonitos, os Bagres, a gurijuba, o bandeirado

Bagre, a curvina entre outros”3.

A quantidade de pescado, sobretudo de pescada amarela e gurijuba realizada

nessa região, historicamente é a base econômica da cidade de Vigia, transformado

3 CEEMA, 2009.

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em divisas econômicas através da venda do peixe in-natura que são

comercializados para a indústria de pesca localizada na própria cidade e, sobretudo

nas indústrias da capital do Estado, Belém do Pará.

Porém, não é somente a comercialização deste pescado em si que gira o

comércio em Vigia, mas um órgão extraído desses dois peixes, que é chamado

popularmente pelos pescadores de “a grude”4.

Esse órgão da gurijuba é retirado ainda em alto mar, que depois de esticado e

secado ao sol é comercializado, compondo assim, parte da economia do município,

movimentado mensalmente milhares de reais no comércio local. Essa atividade

econômica complementar da pesca começa com a contratação dos barcos feitos

pelos atravessadores que financiam a viagem pagando uma quantia estipulada

previamente com o dono do barco, que irão fornecer o produto.

A pesquisadora Rosália Cotrim, do Centro de Pesquisa e Extensão Pesqueira

do Norte (CEPNOR), afirma que “o emprego dessas membranas são tantos que

ainda não foi possível catalogar todos”5.

O conhecimento, a importância e utilização “da grude” desses peixes, como

produto de colagem, já era conhecido entre os pescadores de Vigia no final do

século XIX. Veríssimo (1970) ressalta em sua obra que:

A gurijuba, semelhante a um grande bagre, de pele amarelaça, cresce até 1 a 1,20 m. Fornece não só a carne para a alimentação das populações daquela orla marítima, e submarítima, até a cidade do Pará, onde encontra igualmente grande consumo, como principalmente o “grude”, ou cola, de exportação considerável e vantajosa. Nas grandes canoas chamadas vigilengas, talvez porque na ribeira da Vigia fossem de primeiro construídas, saem eles, canoeiros habilíssimos e ousados, ao alto-mar (VERISSÍMO, 1970, p. 61).

O Teatro da Paz construído no esplendor da Belle Époque, em finais do

século XIX, é um exemplo da utilização do “grude” da gurijuba como cola. Segundo

diz o conteúdo do site do Theatro: “O hall de entrada é composto por materiais

4 A Grude é um órgão interno dos peixes, mais precisamente a bexiga natatória, uma bolsa de mau

aspecto, com a textura semelhante à de uma lula. Esse órgão controla o nível de flutuação da gurijuba e da pescada. Cheia de ar, essa vesícula faz o peixe se aproximar da superfície. Vazia, permite que alcance as profundezas do oceano. [...] Um quilo de grude vale até 90 reais. Num exemplar de tamanho médio, o grude pesa 250 gramas. Ou seja, vale mais que o peixe. Em 2001, a exportação de grude atingiu mais de 200 toneladas pelos portos do Pará e Amapá. Esse negócio movimentou três vezes mais dinheiro que o comércio normal de gurijuba e pescada-amarela nesses portos. Nos grandes centros capitalistas, essa matéria-prima extraída da gurijuba e da pescada amarela, é processada e transformada em manufaturas, como: cola de grande resistência, em lâminas de gelatina, em cosméticos, em filmes fotográficos e instrumentos musicais. (REVISTA VEJA, 2002)

5 Revista Veja, 2002.

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decorativos importados da Europa. [...]. Pisos em pedras portuguesas formando

mosaicos e colados com o grude da gurijuba”.6

A imagem de satélite (Ilustração 5), nos dá um panorama aéreo desse

reservatório ictiológico, rico em fauna marítima que move economicamente a cidade

de Vigia, região essa que motivou os vigienses a criarem a vigilenga, que:

Apesar de constituírem barcos de pequenas proporções como poucos metros de comprimento, são relativamente muito superiores ao casco e a montaria, suportando em média 4 a 10 toneladas de peso. Este porte maior torna-se impositivo dado que a pesca dessas espécies se processa barra-fora, em direção ao litoral norte (LOUREIRO, 1985, p. 32).

Esse tipo de embarcação específica da região foi muito utilizada pelos

pescadores locais até aproximadamente a segunda metade do século XX, para irem

mar a fora em busca da gurijuba e tainha.

Em finais do século XX, esse tipo de embarcação entrou em desuso, pois a

introdução do motor nas novas embarcações construídas propiciou maior autonomia

na navegação como também na redução do tempo para o retorno e comercialização

do pescado, pois a vigilenga (barco composto por duas velas latinas - triangulares)

dependia do vento para sua locomoção, onerando por vezes algumas empreitadas.

Portanto, esse veículo passou a ser menos produtivo, não satisfazendo mais as

necessidades do mercado da pesca em constante crescimento nesse período.

As transformações técnicas, cujos estaleiros em Vigia passaram a

implementar, estão associadas a dinamização das forças capitalistas na região,

difundidas, sobretudo, entre as décadas de 1964 a 1985, transformando a vigilenga

símbolo cultural de Vigia em peça de museu.

Como consequência da dinâmica capitalista, a produção de barcos em Vigia

foi alterada, dada as exigências do desenvolvimento do mercado (MELLO, 2001, p.

34). A utilização do motor foi a maior dessas modificações, que ao atender as

exigências do mercado mundial, fez do município de “Vigia o segundo maior

produtor de pescado do Brasil” (IBAMA, 2006), que somado a outras microrregiões

do Estado, transforma o Pará importante produtor de pescado do Brasil.

6 Theatro da Paz, 2009.

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Ilustração 5: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Amazonas e Tocantins.

Fonte: CD Brasil, 2009.

A imagem de satélite acima destaca a localização espacial de Vigia.

Observamos que essa região é geograficamente estratégica para a pesca. Em

tempos passados, com os colonizadores portugueses do século XVII, ergueram essa

cidade para monitorar o trânsito de embarcações que vinham da Europa, em que

faziam escala marítima entre São Luiz, Bragança à Belém. E no presente, uma das

principais economias do pescado no Brasil.

Veríssimo (1970) já apontava em sua obra no século XIX (1895) a riqueza que

é essa região onde se encontram o Rio Amazonas, Rio Pará e o Rio Tocantins com o

Oceano Atlântico, ao dizer:

Ou são pròpriamente amazônicas, feitas nas águas do Amazonas e seus inumeráveis tributários, correntes ou lagos, ou marítimas ou submarítimas, conforme são feitas em pleno mar ou nas regiões das fozes do Amazonas e do Pará, até onde se faz sentir a influência da água salgada e até onde chegam os representantes da fauna pròpriamente marinha. Há aí uma região neutra, em que as espécies marinhas e fluviais se confundem, ou pelos menos se encontram, e os ribeirinhos das baías formadas pelo Rio Pará comem delas pescados o cumuri, que é do mar, e o tucunaré, que é do rio. A tainha representa bem esta neutralidade, vivendo tanto na costa marítima, como aqui nesta água semi-salgada e subindo mesmo as doces do Tocantins, até Cametá, a mais de 300 km do mar. (VERISSÍMO, 1970, p. 13)

Rio Amazonas

Rio Pará

Ilha do Marajó

Oceano Atlântico

Rio Tocantins

Vigia

Belém

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A localização de Vigia na convergência entre o Rio Pará e o Tocantins,

somado processo histórico cultural que constituiu essa cidade, de certa forma

condicionaram boa parte dos habitantes a desenvolverem a cultura da pesca em

seus diversos fins, seja para o consumo próprio ou comercial e até como moeda

corrente (Ibidem, p. 11).

Se hoje a cidade de Vigia tem um grande destaque na economia pesqueira no

Estado do Pará, é devido a sua localização geográfica e seu legado histórico-

cultural, que se remonta desde ao processo de colonização portuguesa do século

XVII.

1.2 ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DE VIGIA DE NAZARÉ

Visitar a cidade de Vigia no primeiro decênio do século XXI é voltar ao

passado caminhando por suas ruas estreitas, passando próximo aos prédios

públicos como o Trem de Guerra, “casa quartel do tempo da Cabanagem”

(LOUREIRO, 1987, p.57) e das diversas igrejas construídas na época da

colonização no século XVIII, como a Igreja da Madre de Deus, descrita pela

antropóloga Loureiro, como:

[...] Talvez, a única no Brasil, munida de vinte e duas colunas laterais, de origem toscana. Peças em ouro e prata compõem sua riqueza interior, onde realçam imponentes crucifixos e originais imagens Rocca. Na Sacristia, admiráveis pinturas ornam o forro (LOUREIRO, 1987, p.52).

A Igreja Matriz de Nossa Senhora de Nazaré é outro monumento histórico

desta cidade que tem um “estilo Barroco” (Ibidem) e a Capela do Senhor dos Passos

(Ilustração 6). Esta foi “construída em pedras superpostas e sem reboco, causa

profunda impressão de primitivismo e originalidade” (Ibidem). Ambas construídas no

século XVIII, que abrigaram e serviram ao longo desses séculos, como locais de

grandes debates religiosos, políticos e administrativos entre os membros da

sociedade vigiense. Esses locais públicos foram o alicerce na constituição da base

cultural, histórica e política desse município, como também da Região Amazônia,

pois do núcleo missionário chamado pelos Tupinambá de Uruitá, ergueu-se a cidade

de Vigia, parte integrante de um mega projeto da coroa portuguesa para a conquista

da Amazônia.

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Ilustração 6: Fotografia da Capela Nosso Senhor dos Passos. Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

Saindo da Capela do Senhor dos Passos indo no sentido norte da cidade,

chegando até as margens do Rio Guajará-Mirim, é sentir a nostalgia de um passado

em tempo presente, pois assim os colonizadores utilizaram essa via marítima para

monitorar a entrada de embarcações estrangeiras que ameaçassem a capital do

Grão-Pará. Ocorreu também o ir e vir dos missionários Jesuítas que se locomoviam

em pequenas embarcações para catequese dos indígenas tanto no Marajó, quanto

nos sertões da Amazônia.

Ilustração 7: Fotografia do Muro frontal de Vigia na orla do Rio Guajará-Mirim Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

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Apesar das estradas rodoviárias se constituírem nesse primeiro quartel do

século XXI como o meio principal de transporte de carga ou de passageiros, o ir e vir

de pequenas, médias e grandes embarcações no rio Guajará-Mirim, vindas do

Marajó ou da Zona Costeira, persistem ratificando a base economia do município,

que desde sua origem estava voltada para a pesca. Esse frenesi de embarcações

em frente da Cidade de Vigia faz-nos aflorar as reminiscências desse passado cujas

embarcações foram fundamentais para a conquista do Vale Amazônico e para a

Catequese.

Prado Júnior (1992) em sua obra “Formação do Brasil Contemporâneo”

comenta a importâncias dessas vias marítimas para os colonos na conquista da

Amazônia, quando diz:

[...] para as distâncias enormes que cobrem seus trajetos, contados por centenas e centenas de léguas, de que meios de transporte e condução dispunham os colonos? É para a navegação, particularmente à fluvial, que estavam melhor aparelhados (PRADO JÚNIOR, 1992, p. 258).

Hoje, as diversas embarcações que circulam pela desembocadura do Rio

Tocantins até ao delta do Amazonas, contornando a Ilha do Marajó, vão em busca da

pesca de espécie como a gurijuba e a pescada amarela que tem um maior valor

comercial. Outras trafegam a grande avenida marítima “Rio Guajará-Mirim”,

entrando em “ruas e travessas”, ou seja, nos furos e igarapés. Outras descem o rio

rumo a Boca da Laura (nome dado pelos pescadores locais do final do rio Guajará-

Mirim), passando pela Baía do Sol (Ilha de Mosqueiro) até alcançar o Furo do

Maguari (Ilha de Outeiro), contornando por Icoraci, seguindo para Belém para

descarregar e ver o peso da mercadoria (peixe), e comercializá-lo, para depois

retornar para Vigia pela mesma via marítima.

O movimento observado na orla da cidade é a rotina de muitos pescadores

que comercializam o peixe em Belém e que fomentam a economia do município,

transformando a cidade de Vigia em segunda maior produtora de peixe no Estado do

Pará. Com isso, observa-se o trafego intenso de barcos e pescadores no rio

Guajará-Mirim e em sua ribeira, como também nos três únicos estaleiros existentes

para fazerem serviços gerais nas embarcações.

No Estaleiro Esperança localizado num furo do Rio Açaí (esse rio é um braço

do Guajará-Miri), precisamente na Boca do Cebolinha (pequeno furo que faz acesso

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ao rio açaí), houve a oportunidade de se conhecer o senhor Gervásio, pescador

dessa região que estava fazendo reparos em sua embarcação com o Mestre Jacy,

carpinteiro, um dos sujeitos desta pesquisa. Ao ser indagado sobre seu ofício de

pescador ele destacou que desde garoto aprendeu esse ofício com seu pai.

Ao ser instigado novamente, agora sobre o percurso que fazia para

comercializar o peixe, o senhor Gervásio comentou que era muito frequente seu ir e

vir pelo rio Guajará-Mirim, hoje não tanto, mas:

De primeiro só descarregava em Belém, eu pescava lá fora e descarregava no Ver-o-Peso pro balanceio. Agente vai daqui chega lá confronte a Boca da Laura pra ir pra Belém, agente leva cinco a seis horas, conforme a maré. Era só caminho pra Belém, eu não pescava aqui.7

É na ribeira desse corredor marítimo que se observa centenas de

embarcações atracadas, com suas bandeiras em vermelho, preto e branco, muitas

esperando o momento de partir para mais um dia de trabalho na pesca. Outras

passando por alguns ajustes e diversas sofrendo limpeza e reparos, pois sem essas

precauções o molusco marinho chamado de turu8, muito comum nessa região, ao se

alimentar de madeira, perfura até a mais resistente espécie de árvore utilizada na

quilha e do quebra-mar.

Segundo o mestre Jacy, assim como outros do ofício, falam que para

combater o turu, “a única coisa que tem que fazer é quando o barco chegar de fora

duma viagem tem que dá o fogo na madeira prá matar ou trocar a tábua estragada”.

Chegar de viagem e fazer uma limpeza geral ou um reparo na embarcação na

orla do rio Guajará-Mirim é uma prática comum entre os pescadores com seus

barcos. Por isso é comum ouvir o barulho de motosserras, serrotes, martelos, além

das conversas e gargalhadas, entre outros. É nesse local que muitas decisões são

tomadas entre os atores envolvidos nesse segmento social de Vigia. Portanto, é em

frente da cidade onde observamos um grande movimento de pessoas entre jovens e

adultos envolvidos nas atividades de reparos de embarcações e a preparação

destas para a pesca.

Diante dessa imagem, observa-se que mesmo com a crise que atravessa

7 Entrevista com o pescador Gervásio, no dia 25.04.2009, de 55 anos de idade, natural da cidade de Bragança, mora há 15 anos em Vigia, no ofício da pesca que aprendeu desde garoto com o seu pai.

8 O Turu como um molusco marinho que adere ao costado das embarcações que além de prejudicar o seu deslizamento, provoca perfurações na madeira, pondo em risco sua estrutura, além de favorecer as infiltrações. A Enciclopédia Agrícola Brasileira, 2009.

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esse setor produtivo, a presença de diversas pessoas na orla do Rio Guajará Mirim

é constante, constituindo-se em um exército de mão-de-obra de reserva, para

eventuais trabalhos em pequenos serviços de restaurações de embarcações.

A cidade de Vigia não passa incólume a esse processo, mesmo porque é

constatado um número inexpressivo de estaleiros, num total de apenas três destes

que atualmente mais fazem reparos do que constroem embarcações. Isso passa a

ser um paradoxo para uma cidade ranqueada como uma das primeiras na economia

pesqueira e com uma produção de barco aquém da produção pesqueira.

Os mestres Jacy, Dorival, Joaquim e Zuzinha atribuem às dificuldades para se

encomendar9 uma embarcação dada a escassez da madeira, do preço da madeira e

a falta de capital entre os pescadores.

Contudo, sabemos que esse desaquecimento na produção de barcos de

madeira está atrelado a inserção da Amazônia à mundialização do capitalismo,

sobretudo na década de 50. Segundo o sociólogo Alex Fiúza de Mello, o capitalismo

mundial ganha força na região quando:

Generalizado para toda Amazônia, iniciado na década de 50, mas sedimentado a partir dos anos 60 para o interior do Pará (quando está praticamente completado o complexo rodoviário) e nos anos 70, para o interior do Amazonas, quando então estava aberta a Transamazônica (MELLO, 2001, p. 48).

A penetração desse capital externo vai facilitar a vinda de companhias ligadas

ao setor naval a produzir embarcações “mais apropriadas e seguras” – grifo meu – e

de maior rentabilidade, para as empresas locais e nacionais ligadas a pesca.

Partindo dessa dinâmica capitalista que vai atingir todos os setores da

estrutura econômico-social em Vigia, o sociólogo já anunciava em sua pesquisa as

causas da diminuição da produção no setor da carpintaria naval, que se observa

nesse primeiro decênio do século XXI, quando se refere a um relatório, resultado de

um estudo feito pelo governo federal em 1979, que menciona as condições de

trabalho no setor pesqueiro do Estado do Pará que mais prevalecem.

O conteúdo desse documento oficial refere-se às embarcações produzidas no

Estado do Pará, dizendo que:

9 Encomendar significa fabricar uma embarcação.

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As embarcações utilizadas são inteiramente de madeira, em geral movida a remo ou a vela, cuja construção não se destina, originariamente, a atividade pesqueira (a que então se destinar-se-i-a? e é executada em pequenos estaleiros, com ferramentas rudimentares [...] Sua pequena e débil estrutura impede que tenham um raio de ação além das margens costeiras, não apenas pela impossibilidade de grande capacidade de carga transportáveis, mas pela própria estrutura que não suporta navegação em águas turbulentas e de grande maresia (MELLO, 2001, p. 56).

O relatório técnico do governo federal na época abriu precedentes para a

dinamização do setor de produção naval industrial, como também de importação de

embarcações vindas do sul do país, para poder melhor atender a demanda de

pescado que gerasse mais rendimentos a esse setor capitalista, como também a

cobrança de impostos.

Esse tipo de política desenvolvida veio a favorecer as corporações com maior

volume de capital de giro, causando, aproximadamente em pouco mais de vinte

anos, a diminuição de encomendas dentro dos setores tradicionais da carpintaria

naval em Vigia e em outras localidades da Amazônia, pois esse setor não se

enquadrava no “espírito do empreendedor moderno que o governo militar

preconizava como ícone da modernização da região” (LOUREIRO, 2009, p.59),

gerando assim diminuição de estaleiros em nossa região.

De acordo com Loureiro (2009), observa que os governantes ao conceberem

o planejamento para a região, visualizam seus habitantes como:

[...] primitivos, tribais e atrasados, o modelo de desenvolvimento em curso na Amazônia não os valoriza. Como consequência desse e de outros pressupostos e preconceitos do gênero, é que os índios, os negros e os caboclos se tornaram “invisíveis” no conjunto das políticas públicas. Não foram no passado, e não são tratados, ainda hoje, como atores sociais importantes no processo de mudança em curso (LOUREIRO, 2009, p. 106).

O resultado desse tipo de política que exclui as comunidades tradicionais da

carpintaria naval é a constante diminuição de encomendas, pois elas não se

enquadravam nesse novo modelo de economia. Hoje na cidade de Vigia existem

apenas 03 estaleiros que constroem embarcações para a pesca. O Estaleiro

Esperança, que é o lócus dessa pesquisa, sendo que ao longo das investigações

realizadas foi constatada a produção de uma embarcação construída pelo mestre

Jacy com a ajuda de outros profissionais. Contudo, muitos reparos em embarcações

foram constatados.

Mas, apesar da constatação das dificuldades mencionadas no setor da

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carpintaria naval em Vigia, o movimento de embarcações que atracam para reparos

na Ribeira do Rio Guajará-Mirim é grande. Expressivo também é o número de

pessoas que transitam em busca de trabalho, seja uma lavagem no casco, uma

pintura, um ajuste qualquer ou até mesmo a recuperação completa de um barco.

Com isso, levanta-se a questão de que essas pessoas em suas devidas

categorias, entre mestres ou calafetes e/ou seus aprendizes constituem-se

inconscientemente como um núcleo de resistência no ofício da carpintaria diante das

dificuldades cujos estaleiros passam hoje nesta cidade.

O movimento de pessoas transforma aquele local numa grande oficina a céu

aberto e porque não dizermos numa “escola técnica” a céu aberto! Lá o conteúdo

principal é a verbalização e o repasse de técnicas de gerações passadas, que a

partir da “Cultura de Conversa” (OLIVEIRA, 2007), se constrói toda uma relação de

ensino-aprendizagem entre os sujeitos. Além da conversa e “vê” o que o outro faz,

da observação do mais novo naquilo que o mais velho desenvolve no ofício, seja no

reparo de uma embarcação ou no debate realizado entre as categorias de

trabalhadores (carpinteiros e pescadores) são formas de aprendizado que se fazem

presentes nessa escola.

Quando se refere que esse espaço é um Liceu10 natural a céu aberto, diz-se

assim, por não ter muros e delimitações espaciais, nem regras institucionais de uma

escola regular. Nesse sentido, soma-se a idéia de Brandão (2007) sobre escola e/ou

espaço escolar, quando diz:

Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante [...] Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo (BRANDÃO, 2007, p.9)

10 Liceu: Estabelecimento de ensino secundário e/ou profissional (DICIONÁRIO AURÉLIO, 2000, p.

426)

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Ilustração 8: Fotos do Msc. Albo de boné azul e seus ajudantes nas margens do rio Guajará-Mirim Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

Alguns mestres carpinteiros que transitam por este ambiente, ao expor sua

experiência aos curiosos que estão por lá, seja para fazer reparos e limpezas em

embarcações, contribuem de certa forma para um aprendizado àqueles que

observam, constituindo-se assim em educadores nesse espaço aberto.

Como um dos exemplos encontrado nessa ribeira, a do mestre carpinteiro

Albo, que é natural de Bragança, hoje aposentado, mas sua experiência no ofício da

carpintaria naval faz dele uma pessoa muito procurada pelos pescadores de Vigia.

Apesar de não ter um local próprio para fazer os reparos quando solicitado, o

mestre diz que “não mais preciso de um local, quando a maré está na vazante faço

os serviços aqui mesmo. E como sou conhecido, tenho muito serviço”. Assim é a

vida de muitos trabalhadores que estão envolvidos na carpintaria naval em Vigia na

atualidade, como a do mestre Dorival, Jacy e Juracy, sujeitos principais desta

pesquisa, que ora estão no Estaleiro Esperança construindo ou fazendo reparos em

embarcações ou na escola a céu aberto, fazendo os reparos solicitados.

O cotidiano vivido na atualidade por esses homens cujo ofício está atrelado a

pesca e embarcação, é testemunho de um passado que alicerçou a tradição de

produção de embarcações para diversos fins nessa região. Essa produção originou-

se a partir de conhecimentos indígenas e europeus, que a princípio destinou-se a

fabricação de barco para a patrulha marítima e para a ação catequética em tempos

de colonização, posteriormente utilizou-se para a pesca e carregamento de produtos

agrícolas ou de “drogas do sertão”.

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1.2.1 Embarcações na Europa e no Brasil: A conquista e a colonização da

Amazônia

A Expansão Marítima Européia iniciada pelos portugueses no século XV foi

resultado de diversos fatores históricos, entre eles, o Movimento das Cruzadas,

iniciado no século XI, na Europa. As Cruzadas tinham como destino à região da

Palestina, libertar e retomar o controle da Terra Santa de Jerusalém, que estavam

nas mãos dos árabes desde o século VII.

Esse processo expansionista estava de certa forma ligado à luta entre a Europa cristã e o mundo árabe. Muito antes da tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em maio de 1453, os portugueses já tinham declarado uma espécie de “guerra santa” contra os seguidores da religião criada pelo profeta Maomé no século VI (BUENO,1998, p. 47).

Apesar de ser um movimento também de caráter religioso organizado pela

Igreja Católica, e que embora não tenha conseguido libertar a Palestina do domínio

muçulmano, “as cruzadas permitiram a conquista de diversas regiões, além de

desalojar a supremacia árabe sobre o Mediterrâneo” (VICENTINO & DORIGO, 1998,

p. 38), que há séculos estava nas mãos dos árabes, passando então a ser

controlado pelos mercadores das cidades italianas católicas.

Não se compreende a expansão marítima somente por esses fatos, mas os

resultados dessa investida católica à Terra Santa, com apoio de diversos setores da

sociedade da época, entre eles os mercadores, propiciaram grandes mudanças

históricas para a Europa, no campo social, político e religioso, como afirma o

Historiador Vicentino (2001):

Não foram somente essas expedições, ocorridas ao longo de quase 200 anos, que levaram ao renascimento comercial da Europa, mas elas, certamente, contribuíram para sua dinamização. As cruzadas tiveram, contudo, um papel significativo na mentalidade européia. O espírito delas seria importante na motivação, por exemplo, da reconquista cristã na península ibérica aos árabes muçulmanos e das grandes navegações que levaram a descoberta da América (VICENTINO, 2001, p.129)

Como exemplos de mudanças políticas ocorridas na Europa, a partir do

movimento cruzadista, têm-se a unificação do reino de Portugal em 1183, ocorrida

em meio à chamada Guerra de Reconquista, com a expulsão dos muçulmanos do

sul de Portugal, e, em 1492, a unificação da Espanha, que também está associada à

expulsão dos árabes da Região de Granada.

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O surgimento dessas duas monarquias católicas, uma vez unificadas em

torno de seus reis, com o apoio de diversos setores da sociedade, como dos

religiosos e dos mercadores, possibilitou investimentos por parte dos comerciantes

para o desenvolvimento de novas técnicas de navegar, a fim de encontrarem novas

rotas comerciais marítimas, além do interesse de propagação da fé cristã ao mundo

desconhecido.

Sobre os grupos sociais envolvidos nessa epopéia marítima, Fausto (1999)

esclarece que eles não estavam interessados somente em questões econômicas,

mas que também tinham gosto pela aventura. Segundo o autor:

Pela menção dos grupos interessados, podemos perceber que os impulsos para a aventura marítima não eram apenas comerciais. Não é possível tentar entendê-la com os olhos de hoje, e vale a pena, por isso, pensar um pouco no sentido da palavra aventura. Há cinco séculos, estávamos muito distantes de um mundo inteiramente conhecido, fotografado por satélites, oferecido ao desfrute por pacotes de turismo. Havia continente mal ou inteiramente desconhecido, oceanos inteiros ainda não atravessados. As chamadas regiões incógnitas concentravam a imaginação dos povos europeus, que aí vislumbravam, conforme o caso, reinos fantásticos, habitantes monstruosos, a sede do paraíso terrestre (FAUSTO, 1999, p. 23).

Fausto (1999) nos fornece um desses exemplos de aventura quando fala

sobre uma expedição marítima portuguesa no século XV com destino às Índias:

Em 1487, quando deixaram Portugal encarregados de descobrir o caminho terrestre para as Índias, Afonso de Paiva e Pero da Covilhã levaram instruções de Dom João II para localizar o reino de Preste João. A lenda do Preste João, descendentes dos Reis Magos e inimigo ferrenho dos muçulmanos, fazia parte do imaginário europeu desde pelo menos meados do século XII. Ela se constituiu a partir de um dado real - a existência da Etiópia, no leste da África, onde vivia uma população negra que adotara um ramo do cristianismo (FAUSTO, 1999, p. 24).

Para ir além-mar, em busca de novas rotas marítimas e do desconhecido, o

príncipe português Infante Dom Henrique, criou em 1417 a Escola de Sagres, a qual

segundo Bueno (1998, p. 58) “existiu apenas no sentido filosófico da palavra”.

Entretanto, foi um centro de sábios de diversos campos do saber, reunidos em torno

do desenvolvimento da arte de navegar, por isso atraiu para a região de Algarves:

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O astrônomo Abraão Zacuto e o matemático José Vizinho, todos judeus fugidos das perseguições de Castela – desenvolveu ou aperfeiçoou tabelas matemáticas com a declinação dos astros e admiráveis instrumentos de navegação, entre os quais o quadrante, o astrolábio, a agulha de marear (espécie de bussola), a belestrilha e o noturlábio (um tipo de astrolábio usado à noite, com a luz das estrelas), além de aprimorar os rudimentares portulanos, antigos mapas náuticos feitos pelos árabes em peles de carneiro ou em pergaminhos (BUENO, 1998, p. 73).

A iniciativa de Dom Henrique com a criação da chamada Escola de Sagres

ajudou a aperfeiçoar os instrumentos náuticos já existentes, como o quadrante e o

astrolábio, que permitiam conhecer a localização de um navio pela posição dos

astros.

Essa escola permitiu também o desenvolvimento das caravelas, tipo de

embarcação mais apropriada para as longas distâncias, com sistema de velas que

aproveitassem as correntes marítimas e de vento – a caravela de velas latinas

(Bueno, 1998, p. 70). Para Dom Henrique “cada passo sobre o desconhecido era um

convite para ir além” (ibidem).

Esse tipo de tecnologia permitiu a conquista do além-mar pelos portugueses,

pois as barcas utilizadas nesta época para a pesca no oceano usavam velas

redondas. A segurança e a autonomia desse tipo de embarcação eram rudimentares,

diferentes das velas latinas, que deram mais condições aos navegadores

portugueses em sua expansão marítima, rumo ao desconhecido. Segundo Bueno

(1998):

As velas latinas por serem de panos triangulares, de borda rígida, capazes de gerar uma força propulsora na direção oposta à do vento – o que permitia a execução da manobra que, em linguagem náutica, se chama de “bolinar” (BUENO, 1998, p.70).

O aperfeiçoamento dessas tecnologias possibilitou a invenção da caravela

pelos lusitanos que foi difundido pela Escola de Sagres, desencadeando em

Portugal “um grande impulso à indústria naval, propiciando o surgimento de uma

elite de carpinteiro e calafetes, trabalhando afanosamente e produzindo navios cada

vez melhores, os quais iriam revolucionar a economia” (ibidem).

A xilogravura abaixo expressa a quantidade de caravelas aportadas na

Ribeira das Naus em Lisboa, assim como de pessoas entre mestres, calafetes e

ajudantes, envolvidas na construção das embarcações. Isto também evidencia uma

grande área de circulação de saberes envolvidos na arte de construir embarcações,

em Portugal, do Período Moderno.

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Ilustração 9: Imagem da Ribeira das Naus em Lisboa Fonte: Xilogravura (BUENO, 1998, p.71)

No século XVI, precisamente em 1508, nesse estaleiro “somavam mais de

300 mestres que labutavam na Ribeira das Naus, em Lisboa” (BUENO, 1998, p.71),

numa clara alusão à complexidade que envolvia a construção de uma embarcação.

Um século depois, a Ribeira das Naus já ”produzia 800 navios de 500t por ano”

(ibidem).

O aperfeiçoamento e inovações técnicas do transporte marítimo, ocorridas a

partir do século XV, tornaram os países ibéricos11 os primeiros a cruzarem o Mar

Tenebroso, hoje, Oceano Atlântico. Portugal seguiu rumo às Índias no sentido Leste,

e a Espanha partiu rumo à Oeste, também com o objetivo de chegar às Índias.

Em outubro de 1492, “Cristovão Colombo, navegador Genovês, a serviço da

Espanha, chegou à ilha de Guanaani” (VICENTINO, 1998, p. 56), chamada por ele

de San Salvador, inaugurando a tão sonhada rota comercial para as Índias.

Contudo, Colombo não chegou às Índias, e sim a um “Novo Continente

chamado posteriormente de América” (ibidem). Esse fato marca o início de disputas

pela hegemonia política e econômica entre Portugal e Espanha por essa área

desconhecida e não mencionada nos mapas antigos.

Antes mesmo da chegada oficial da esquadra portuguesa comandada por

Pedro Álvares Cabral, em 1500, ao Novo Continente, foi estabelecida entre os dois

11 Portugal e Espanha.

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reinos, em 1494, uma linha demarcatória denominada de Tratado de Tordesilhas,

para resolver o litígio político que estava se constituindo entre Portugal e Espanha,

pois os portugueses tinham “amplos conhecimentos náuticos sobre o hemisfério sul

e até mesmo o conhecimento das terras brasileiras” (DORIGO, 1998, p.58).

Skidmore (1998) situa basicamente essa linha que cortava a América,

dizendo:

No mapa atual a linha imaginária vai da foz do Amazonas até o litoral do atual estado de Santa Catarina, dando aos portugueses dramaticamente menos território do que é hoje o Brasil. O que ninguém poderia ver, é claro, pois a área era quase completamente desconhecida. De todo modo, os portugueses deveriam explorar essa imprecisão pelos séculos seguintes, forçando cada vez mais para oeste (SKIDMORE, 1998, p.25)

Resolvida essa questão política, o reino português só oficializou a “descoberta

do Brasil” em 1500, com a chegada de Pedro Álvares Cabral, iniciando assim, o

processo de conquista portuguesa na América, a partir da linha demarcada em 1494.

Pelo acordo, as terras portuguesas na América restringiam-se aos limites do Tratado

de Tordesilhas, como demonstra o mapa abaixo manuscrito em 150212:

Ilustração 10: Mapa de Alberto Cantino - Planisfério de 1502. Fonte. Almanaque CNT, 2009.

Portanto, o domínio português só se concretizou com a chegada da esquadra

12 Segundo o Almanaque virtual (2009), é o primeiro registro da linha demarcatória feito em 1502, é um dos mais antigos da cartografia marítima portuguesa, aparentemente desconhecido, coloca o

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marítima portuguesa comandada por Pedro Álvares Cabral em 1500 e a dilatação do

território que compreende hoje a Amazônia, a partir da União Ibérica, decorrida entre

os anos de 1580 a 1640.

1.2.2 A Cobiça de uma região

A conquista e a ocupação portuguesa na Região Amazônida só aconteceram

a partir do século XVII, também movida a fatores de ordem política e econômica,

oriundos de disputas de outras nações, como a França, Inglaterra e Holanda pela

partilha do comércio mundial, até então monopolizado pelos países ibéricos.13

A contestação ao Tratado de Tordesilhas se materializou com as diversas

investidas de invasões desses países nas colônias portuguesas e espanholas na

América.

A investida lusitana à oeste do Tratado de Tordesilhas para o controle da

Região Amazônica só foi possível devido a um fato político ocorrido na Europa em

1580 - a União Ibérica. Fato esse que alterou os rumos da política externa e interna

portuguesa em sua única colônia na América – Brasil, além da contestação do

Tratado de Tordesilhas pelas novas nações, sobretudo a França.

Vicentino (2001), ao tecer comentário sobre a União das Coroas Ibéricas

aponta os novos rumos que o Império Lusitano vai enfrentar, sobretudo em sua

colônia na América. Segundo Vicentino (2001):

A União Ibérica (1580–1640), período em que Portugal e suas colônias estiveram sob domínio espanhol, atraiu para o Brasil os inimigos europeus dos castelhanos, descontentes com sua hegemonia, sobretudo franceses e holandeses (VICENTINO, 2001, p. 220).

O fato histórico que causou a União das Coroas Ibéricas foi a morte do Rei de

Portugal, Dom Sebastião, na Batalha de Alcácer- Quibir (1578), contra os mouros na

África, deixando o trono português sob a administração do seu Tio avô, Cardeal Dom

Henrique, que possuía uma idade bastante avançada, não deixando nenhum

herdeiro ao trono português.

Esse fato fez com que Portugal e Espanha entrassem “em uma união política

meridiano de origem a 370 léguas marítimas a oeste das ilhas de Cabo verde.

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que durou sessenta anos, a qual, por causa da falta de um herdeiro real em

Portugal, a Espanha tomou formalmente a Coroa Portuguesa” (SKIDMORE, 1998,

p.27). Esse episódio levou ao estabelecimento da União Ibérica que a partir do

Tratado de Tomar, em 1581, Felipe II, rei da Espanha, passou a governar também o

Estado Português e suas colônias.

Como consequência desse arranjo político internacional, Portugal passou a

ter os mesmos inimigos políticos da Espanha em terras americanas. França,

Holanda e Inglaterra passaram a fazer investidas de ocupações militares na América

Portuguesa, sobretudo na conquista do Vale Amazônico.

A real ameaça na Região Norte ocorreu quando os franceses fundaram em

1612 a cidade de São Luiz (hoje capital do Estado do Maranhão), dando origem a

França Equinocial, além de muitos corsários (navios) ingleses e holandeses que

penetravam a oeste da linha imaginária do Tratado de Tordesilhas, a partir da

desembocadura do Rio Amazonas e do Tocantins em busca de riquezas, como

cacau, baunilha, madeira e outras, que as contrabandeavam para a Europa.

Os franceses, holandeses e ingleses já estabeleciam contatos com algumas

tribos ao longo da costa norte do Brasil e no delta do Rio Amazonas, como afirma

Cruz (1973), citando a presença holandesa quando diz:

Mantinham os holandeses o maior número de fortificações. As suas instalações fabris no Pará datavam dos fins do século XVI ou princípios do século XVII. Na margem “esquerda do Xingu, afluente meridional do Amazonas” haviam construído dois Fortes, denominados ORANGE e NASSAU. Com eles protegiam plantações e lugarejos onde viviam. (CRUZ, 1973, p. 230)

Seguindo os mesmos objetivos “os ingleses cujas pretensões militares e

iniciativas econômicas eram mais modestas, erigiram – nas terras da margem

guianesa do Amazonas, depois chamada de Macapá, o Forte de TUCUJUS”

(Ibidem). A corrida para o controle da Amazônia já começara, fazendo Portugal

adotar uma política interna agressiva além da linha de Tordesilhas, a partir da União

Ibérica.

Esses fatos históricos marcaram decisivamente a política do Estado

português em relação a Amazônia. A linha imaginária de Tordesilhas, que dividia a

posse das terras na América em 1494, passa não mais a existir, proporcionando a

13 Portugal e Espanha.

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Portugal uma política interna de expansão e povoamento na região, além expulsão

dos estrangeiros, que se encontravam estabelecidos nos leitos dos rios a oeste da

Linha de Tordesilhas.

O primeiro ato dessa política portuguesa na Amazônia foi a expulsão dos

franceses em 1615 de São Luiz do Maranhão. Em seguida foi a ação militar

portuguesa chefiada por Francisco Caldeiras Castelo Branco, que “partiu de São

Luís do Maranhão em 25 de dezembro de 1615, chegando a Belém no dia 12 de

janeiro de 1616” (CRUZ, 1973, p. 14), em busca do Vale Amazônico, a fim de marcar

presença militar num local seguro e estratégico.

Raiol (1970), aponta a saga dos portugueses na fixação e defesa do território

lusitano no norte da colônia portuguesa na América, quando cita os primeiros passos

dados para a conquista do Vale Amazônico:

Passado os baixos da Tigioca, Castelo Branco aproou a uma enseada, chamada hoje da Barreta, na entrada da atual cidade da Vigia; daí navegou sempre ao nascente, perto de terra, e passou sem nenhum contratempo pela costa ocidental de uma ilha, ora denominada de Colares, indo ter à baía a que posteriormente deram o nome de Sol. Era bastante aprazível e espaçosa, de terras altas e arejadas; mas pareceu-lhe não ser apropriada para assento da colônia, por não ter ancoradouro abrigado (RAIOL, 1970, p. 256).

Raiol (1970), considera o ponto de partida para a fundação do primeiro forte

militar na Amazônia “partiu da escolha de Castelo Branco, o ponto mais alto da

margem oriental de Saparará” (RAIOL, 1970, p. 261), hoje Baia do Guajará. Castelo

Branco “construiu um fortim chamado de Santo Cristo e começou o povoamento

nessa região, que chamou de Nossa Senhora de Belém” (ibidem).

A construção do forte, a princípio chamado de “Santo Cristo”, que deu origem

a cidade de Nossa Senhora de Belém, foi o ponto de partida para a construção de

outros fortes, no objetivo de obstruir a entrada e pretensões estrangeiras no outro

lado do foz do rio Amazonas.

O conhecimento cartográfico lusitano desta região lhe permitia criar

estratégias militares, em contornar a grande ilha (Marajó) que viesse a combater

seus inimigos, uma dessas estratégias era o conhecimento da existência do contato

que o rio Amazonas fazia com o rio Pará.

O Padre Jesuíta João Felipe Bettendorff que iniciou sua missão catequética

na Região do Grão-Pará em 1660, faz menção à existência da conexão entre esses

dois rios, quando diz:

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A’ vista do Grampará, atravessando em canoa umas seis para sete legoas para a bando do Norte, por caudalosa concorrência de rios que em grã parte descem com os braços e bocainas do rio Amazonas, se dá com uma Ilha chamada Grande do Joannes [...] Na travessia do Pará a Joannes estão também varias ilhotas, das quaes uma chamada ilha Redonda á vista da cidade, em qual melhor que em nenhuma parte estaria uma fortaleza para impedir aos inimigos a entrada que por junto della se faz. Para esse intento tem-se feito uma bela fortaleza de pedra e cal [...] têm suas peças cavalgadas para impedir com balas o caminho das naus (BETENDORFF, 1660-1698, p. 25).

Esse fragmento escrito pelo Padre Betendorff na segunda metade do século

XVII, já aponta para as intervenções militares portuguesas para o controle da grande

foz do rio Amazonas. E para isso teria que contornar a Ilha do Marajó, em seguida

estabelecer bases militares e catequéticas, como aconteceu em 1615 em São Luis,

em 1616, em Belém e posteriormente em Macapá entre os anos de 1617 a 1624,

com o objetivo de consolidar por definitivo o controle da entrada do rio Amazonas, ou

seja, do extremo norte.

Para estabelecer o controle desse extremo norte, muitas foram às batalhas

travadas contra os ingleses, holandeses e franceses. Em todas as batalhas, foram

utilizadas as embarcações que transportavam militares, religiosos e índios

catequizados.

Conhecedores da geografia local, os índios foram muito importantes para

conduzirem em suas embarcações e/ou em embarcações lusitanas, os missionários

e militares portugueses para os confrontos contra os estrangeiros. Em decorrência

dessas ações os lusitanos fundaram o Fortim do Cabo Norte, hoje localizado na

cidade de Macapá.

As disputas garantiram a coroa portuguesa, o controle dos rios, furos e

igarapés que compõem a desembocadura do Amazonas, da Ilha do Marajó,

completando-se com o Tocantins, já controlados logo após a expulsão dos franceses

de São Luis do Maranhão.

O controle desses rios que contornam o Marajó, gerou uma nova função aos

mesmos. Esses foram transformados em vias marítimas para o trânsito de

embarcações lusitanas que ligassem o Cabo Norte (Amapá) a cidade do Pará

(Belém), concomitantemente a São Luiz do Maranhão, fechando assim o cerco

contra as pretensões estrangeiras.

Em suas crônicas descritas no século XVII, Bettendorff (1990) menciona ao

rei português a extensão dessa conquista, quando diz:

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Fortim do Cabo Norte (Macapá)

Foz do Rio Amazonas

Vigia

Belém do Grão-Pará

Um grande mapa, novo e bello, do grande rio das Amazonas, delineado e feito pelo Padre Aluizio Coarado Pheiel, insigne mathematico, para ahi ver as terras e rios que tinha, desde o Pará até o marco do cabo do Norte, pela costa, sita aquém do rio de Vicente Pison, e pelo rio das Amazonas arriba até onde chega o districto destas conquistas do estado do Maranhão. Alegrou-se Sua Magestade muito com o mappa (BETTENDORFF, 1990, p.402).

A imagem de satélite abaixo nos dá um panorama do mapa descrito por

Bettendorff no século XVII, por onde as navegações portuguesas passaram a

adentrar por entre os rios e igarapés, além da costa atlântica, transportando os

missionários e militares portugueses dentro de suas embarcações, constituindo-se

assim, como as principais vias de acesso para o controle do extremo Norte até ao

Maranhão.

Ilustração 11: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Amazonas e Tocantins Fonte. Brasil Turismo, 2009.

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Durante esse processo de conquista do Cabo Norte, Belém se constituiu

como base militar. Assim também outras localidades na região do nordeste do Pará

exemplo de Caeté, hoje Bragança e Uritá, hoje Vigia de Nazaré, como ponto de

apoio de vigilância nessa região, pois a localização geográfica dessas duas últimas

cidades servia “como inexpugnável fortaleza aos inimigos se por aquela parte

intentassem entrar” (DANIEL, 2004, p.112).

1.2.3 Localização estratégica do aldeamento Uruitá na vigilância da capital do

Grâo-Pará

O núcleo de povoamento que originou Vigia erguido as margens do Rio

Guajará-Mirim, não foi mero acaso dos conquistadores portugueses, nem somente

pela ação dos missionários da Companhia de Jesus entre outras ordens religiosas.

Mas foi fruto também de consequências das disputas políticas e econômicas

internacionais, onde países como Inglaterra, sobretudo França e a Holanda,

potências marítimas e econômicas do século XVII, ameaçavam o controle da colônia

portuguesa na América, na região hoje conhecida por Amazônia.

Para isso, a utilização do “grande rio” (PRADO JUNIOR, 1991, p. 69) –

Amazonas – e outros foram fundamentais como vias de locomoção para a criação

de núcleos de povoamento que dessem bases aos colonizadores portugueses para

futuras empreitadas militares e religiosas à conquista do extremo norte e do oeste

amazônico.

O núcleo onde se constituiu a cidade de Vigia provém da passagem da

esquadra militar portuguesa comandada por Francisco Caldeiras Castelo Branco,

que ao adentrar pelo furo14 que comunica o Rio Guajará-Mirim a Baía do Marajó, na

Costa Atlântica, fez o reconhecimento de uma aldeia indígena estabelecida naquele

local, chamada de Uruitá15, dando origem mais tarde a cidade de Vigia.

Mas os planos militares portugueses eram de encontrar um local apropriado

que desse suporte as investidas mais a oeste, no objetivo de erguer um fortim16 em

14 Corrente natural de água que flui com continuidade desembocando no mar, rio ou em um lago.

Dicionário virtual, 2009. 15 José Ildone descreve em sua obra a palavra Uruitá como de origem língua tupi-guarani, cujo seu

significado é cesto de pedra (Uru = cesto, Itá = pedra). 16 Fortaleza militar para a proteção de um lugar estratégico de uma cidade ou região.

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Localização do Estaleiro Esperança

local mais próximo ao vale do rio Amazonas, principal alvo de pretensões

estrangeiras da época.

A importância da localização de Vigia para os planos de conquista dos

portugueses está em sua posição geográfica, e da existência de uma grande via

marítima fluvial – o Rio Guajará-Mirim. Esse rio passou a ser uma via estratégica aos

militares portugueses que favorecia a comunicação via embarcações por dentro do

continente. A imagem de satélite abaixo nos dá uma visão precisa de Vigia,

localizada próxima ao furo que faz a comunicação marítima entre o rio Guajará-

Mirim e a baía do Marajó, e na parte inferior a comunicação com Belém.

Ilustração 12: Imagem de satélite do município de Vigia de Nazaré. Fonte: Google, 2009.

Vigia

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No século XVIII, o Padre João Daniel ao tecer comentários em sua obra

“Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas” descreveu essa região, dizendo:

O grande iguarapé da Vigia, a quem podíamos chamar rio capaz dos maiores navios. Principia este pouco acima do cabo da Tigioca por uma boca, em que entra o mar a formar este grande esteiro. Tem bem no meio da boca um grande penhasco [...] servindo como inexpugnável fortaleza aos inimigos se por aquela parte intentassem entrar. [...] Perto de sua foz, ou boca de norte, tem para a parte de leste a vila da Vigia de Portugueses em bela situação, gozando ainda da vista, e ventos do mar, e de muita fartura de peixe, que o mesmo mar lhe comunica. (p.112) [...]. Está vila da Vigia como cercada de água; porque pela gente tem o iguarapé com largura de léguas, como uma pequena baía. (DANIEL, 2004, p.112-113).

Tirando proveito da geografia local, os colonizadores passaram a ocupar

locais estratégicos utilizando como base os princípios jurídicos do Uti Possidetis17, e

com bases em Vigia, partiram para novas conquistas à oeste, além do Tratado de

Tordesilhas. Essas conquistas não seriam mais mar a fora, e sim rio adentro, no

objetivo de vencer as tormentas naturais; o desconhecido em águas continentais do

Rio Amazonas e seus afluentes, além da Bacia do Tocantins.

Apesar das dificuldades impostas pela natureza, além das limitações técnicas

de navegar para o interior, os lusitanos transformaram os rios furos e igarapés em

grandes vias marítimas, edificando ao longo destes, povoações e fortins, à exemplo

de Cametá, Gurupá entre outras, estabelecendo assim a regularidade do vai e vem

das embarcações, que foram fundamentais nessa epopéia marítima lusitana para o

controle do Amazonas.

A segunda imagem de satélite abaixo, nos mostra a localização da cidade de

Vigia e as vias marítimas e fluviais (indicadas por setas) que se entrecruzam nessa

região, que corroboraram para o desenvolvimento das navegações interiores para a

conquista do Vale Amazônico.

17 Uti Possidetis é o Princípio de Direito Internacional muito usado na época dos descobrimentos, cuja

natureza era garantir o domínio das terras descobertas à coroa que, efetivamente, as ocupassem. (INTERCONECT, 2009).

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Ilustração 13: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Tocantins Fonte. Google, 2009.

Essas vias no passado foram largamente utilizadas pelos colonizadores e

missionários, transformando a cidade de Vigia como uma das guardiães da capital

do Pará.

Daniel (2004), ao se reportar da localização geográfica que está inserida a

cidade de Vigia, comenta:

[...] Porém as maiores e melhores fortalezas que defendem a cidade do Pará, e seu estado, são os muitos baixos que têm desde esta sua barra até a altura no cabo da Tigioca, onde os mais peritos palinuros ficam titubeando, e por isso entram e saem sempre, com o prumo na mão e o credo na boca (mais seguros irão, se forem com ele no coração), ancorando de noite, e levando-se só com as marés de dia. [...] e daqui procede o serem tantos os naufrágios, e tão frequentes apesar da perícia dos melhores práticos (DANIEL, 2004, p. 389).

Loureiro (1987) também destaca em sua obra a importância de Vigia, como

guardiã da capital do Grão Pará, quando comenta que:

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No século XVIII, o governo tendo necessidade de criar um posto alfandegário que controlasse a ação dos contrabandistas, escolheu as margens do Rio Guajará-Mirim, onde edificou um posto guarnecidos de vigias de observação que permitiram a denominação pela qual passou a ser conhecida: Vigia (LOUREIRO, 1987, p. 51)

Esse posto passou a ser referência lusitana desse lugar, e a localidade recebe

o nome de Vigia, devido o vai e vem de embarcações utilizadas pelos portugueses

no tocante a verificar as ações estrangeiras no litoral dessa região, como também o

rio Guajará-Mirim, transformado em um grande corredor fluvial de comunicação com

Belém.

Esse corredor fluvial se constituiu como importante via de acesso às

embarcações vindas, seja de São Luiz, Bragança ou de Portugal que pretendiam

seguir para Belém ou as cidades mais a oeste do Amazonas, como também rumo ao

extremo norte, contornando a Ilha do Marajó para chegar em Macapá.

Para Daniel (2004), a importância desse rio se constitui devido às barreiras

naturais impostas aos navegadores:

[...] Porque os navegantes temendo a braveza do mar no descoberto das costas buscam sempre o asilo dos igarapés, que quer dizer caminho de canoas, por mais seguros. Não tem este perigo o grande igarapé da Vigia, a quem poderíamos chamar rio capaz dos maiores navios. Desde a vila de Curuçá até Vigia há vários esteiros destes [...]. E posto que em parte são largos, e fundos, capazes de maiores embarcações (DANIEL, 2004, p.112).

O trânsito de embarcações passou a ser intenso na medida em que os

colonizadores chegavam à região. Mas para adentrarem por esse rio Guajará-Mirim,

as canoas indígenas tiveram um papel fundamental nesse processo de colonização,

pois foi na escassez de embarcações européias que esse veículo marítimo serviu

como apoio marítimo aos portugueses, dando suporte para a colonização: aos

padres em suas missões catequéticas e administradores lusitanos que aqui

chegavam.

Fazendo uso com regularidade as ubá18 e as igarités19, que “apesar de

rudimentares” (RODRIGUES, 2000, p. 94), os portugueses as utilizaram para

explorar, proteger e conhecer melhor os rios, furos e igarapés, como também para

ação militar na submissão de tribos arredias.

18 Nome indígena de canoa feita de um Tronco só de árvore. 19 Nome indígena de canoa grande feita de um tronco só de árvore

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Prado Júnior (1992), ao enfatizar o uso dessas embarcações indígenas para o

uso militar, comenta:

Organizada a “expedição”, ela segue fortemente guarnecida, porque é sempre de temer a hostilidade de tribos selvagens; os Muras, entre outros, se destacam nesse terreno [...] E assim vai a frota de canoas, igaras, igarités, úbas, navegando rio acima (PRADO JÚNIOR, 1992, p.214).

As missões catequéticas, que partiam rumo ao Rio Amazonas e seus

afluentes, assim como no Rio Pará e Tocantins, serviram-se desse tipo de

embarcação, levando constantemente um “altar portátil” (BETTENDORFF, 1990, p.

100), se constituindo como veículo principal dessas missões religiosas de ação

catequética na Amazônia.

Portanto, a relação histórica desenvolvida a partir do aldeamento, do posto

fiscal, da religião e da pesca, transformou a cidade de Vigia de Nazaré, atualmente,

com seus 393 anos de existência, em um município de característica pesqueira, da

carpintaria naval e religiosa, tríade que se constituiu ao longo de seu processo

histórico cultural.

O caráter religioso da cidade ganhou maior proporção religiosa, dado ao

período de muitas viagens marítimas feitas pelos portugueses para suas possessões

além-mar, muita dessas, interrompidas por naufrágios, sobretudo na região (Cabo do

Tigioca) onde se localiza Vigia, ceifando a vida de muitos navegadores. Daniel

(2004, p. 388) comenta que “[...] daqui procede o serem tantos os naufrágios, e tão

frequentes apesar da perícia dos melhores práticos”.

As narrativas orais foram diversas sobre os naufrágios de embarcações

portuguesas difundidas na região a partir da fundação do núcleo populacional que

originou a cidade de Vigia.

Segundo os habitantes da época, o sinistro só podia ser evitado se a

tripulação tivesse “o credo na boca [...] mais seguros se forem com ele no coração”

(DANIEL, 2004, p. 388), para acontecer de imediato a “intercessão de Nossa

Senhora de Nazaré” (LOUREIRO, 1987, p.61).

O culto a Nossa Senhora dos Navegantes provém da região de Nazaré, em

Portugal. A visitação dos navegadores portugueses em Nazaré era costumeira, pois

antes de se fazer qualquer viagem, recorriam a esse local para pedir benção e

proteção a suas embarcações.

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O antropólogo Ubiratan do Rosário comenta em sua obra sobre o navegador

português Vasco da Gama que:

Vasco da Gama dera um grande exemplo. Antes de viajar para o Oriente, correra ao santuário. Lá depositara um colar e levara outro. Em meio ao temporal, vendo-se perdido, invocou o nome da santa. Atirou ao mar o colar pedindo o milagre que veio (ROSÁRIO, 1993, p. 125)

Rosário (1993), ressalta que as práticas religiosas difundidas entre os

moradores de Vigia estão relacionadas à mentalidade dos navegadores europeus e

o sinistro a qual eles passavam, ao longo das viagens marítimas, narrados

costumeiramente quando chegavam à região.

Para os colonizadores e membros da Igreja Católica erradicados na região, os

quais utilizavam as embarcações rio a dentro para colonização e catequese, como

também para o trabalho da pesca artesanal desenvolvida pelos brasileiros nascidos

em Vigia, a necessidade do auxilio sobrenatural era de suma importância, pois o

“naufrágio regional é a tragédia amazônica por excelência, assim como para o

navegante lusitano dos séculos XVI, XVII e XVII” (Ibidem, p.124).

“Considerava o naufrágio oceânico a última das tragédias” (Ibidem, p. 124). E

por isso o pedido de interseção divina de Nossa Senhora dos Navegantes, para que

as tormentas do revolto do encontro das águas oceânicas com as dos rios Tocantins

e Pará não viessem atormentar os tripulantes em suas viagens em pequenas e

frágeis embarcações. Por isso a “santa das águas”20 era clamada em rezas, antes,

durante e depois de uma viagem.

Rosário (1993) descreve esse sentimento vivido entre a população local, que

em suas embarcações desafiavam a morte, dizendo:

Tanto lá como cá, desenvolvia o homem a cultura material no sentido de adaptar-se materialmente a esse desafio hídrico. No sentido tecnológico, o português mercantilista aprimorava o veleiro, com ele todo o acervo da tecnologia náutica Os colonos ou colonizados vigienses, seguindo a trilha do mesmo desafio – e numa mescla de tecnologias européia e nativa, entre o veleiro e a leve ubá do índio – engendravam as vigilengas, com que se tornaram os vikings da costa grão-paraense, num tempo que só a navegação aquática era o meio exclusivo de comunicação no mundo amazônico. (ROSÁRIO, 1993, p.125)

20 Expressa utilizada pelo Antropólogo Eraldo Maués quando se refere a Nossa Senhora de Nazaré, padroeira de Vigia.

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Essas narrativas estão relacionadas também ao caráter religioso das

campanhas portuguesas além-mar, e nos rios da Amazônia. Daniel comenta que as

embarcações portuguesas quando entravam, sobretudo:

No cabo da Tigioca, onde os mais peritos palinuros ficam titubeando, e por isso entram e saem sempre, com o prumo na mão e o credo na boca (mais seguros irão, se forem com ele no coração). [...] e daqui procede o serem tantos os naufrágios, e tão freqüentes apesar da pericia dos melhores práticos (DANIEL, 2004, p. 388).

Pois é fato que “os traiçoeiros arrecifes de Tijioca, meio submersos” (AVÉ-

LALLEMANT, 1980, p. 29), colocavam em risco as embarcações que transitavam

entre São Luiz a Belém do Grão Pará. Essa dificuldade natural levava os homens da

época a se “recorrerem aos poderes supra-humanos, sobrenaturais” (Rosário, 1993,

p.125), onde buscava no culto a Nossa Senhora o socorro divino, a fim de evitar o

pior - o naufrágio.

O antropólogo Maués (1995), ao mencionar em sua obra o surgimento do

Círio de Nazaré em Vigia e ou Belém, acrescenta que além do naufrágio, como

considerada por Rosário de “tragédia amazônica”, outro fator na atualidade deve ser

incorporado são “as tensões e conflitos sociais por que hoje passa a população

regional, a noção de naufrágio metafórico, simbólico, tem certamente grande

validade no plano da religiosidade popular” (MAUÉS, 1995, p.395).

Das “tragédias amazônicas” do passado às “tensões sociais” do presente, que

geravam e geram dificuldades entre os amazônidas, e que não são resolvidas num

plano temporal, mas que se recorre ao espiritual, constituiu-se como elemento

formador da base cultural religiosa desse município.

Bettendorff (1990), ao se referir em suas narrativas sobre as cidades

fundadas pelos portugueses no atual Nordeste Paraense, descreve Vigia como uma

cidade de importância religiosa quando diz:

Segue-se para a mesma banda do Pará a Capitania de Jorge Gomes Alemó, mas como este quebrou no negocio por certas razões, achou o governador Gomes Freire de Andrade que a Villa da Vigia, que tinha mandado fazer, estava nas terras d’El-Rei, nem nunca teve aldeã, e consequentemente nem Missionário e a tirou delle; e parece nunca mais se tornou a pôr em pé, suposto que os moradores da Villa gozam dos bons ares do mar, com seus peixes, ostras, caranguejos, e da fartura da terra pelo mantimento que produz em abundancia, estão sujeitos ao Pará, e o que lá tem de melhor é a imagem Milagrosa de Nossa Senhora de Nazareth, que todas as partes se frequenta dos romeiros, que vão lá fazer suas romarias e novenas (BETTENDORFF, 1990, p. 21,22).

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Essas narrativas do passado ratificam a cultura religiosa desta cidade. Ontem

eram pouco mais de centenas de pessoas que se deslocavam de outros municípios

para fazerem suas preces e romarias. Hoje são milhares de romeiros de diversos

cantos do Estado do Pará e de outros Estados vizinhos, que em procissão

percorrendo as principais ruas, num mesmo ritual que se sedimentou há séculos,

buscando no plano espiritual a benção de Nossa Senhora para ajuda e proteção

num futuro que está por vir.

No segundo semestre de todos os anos, a “santa das águas” (Ibidem, 1995,

p. 394) é aclamada por milhares de pessoas no Estado do Pará. Segundo o

noticiário21 local, foram esperados no dia 14 de setembro de 2008, cerca de 150 mil

romeiros de todos os cantos do estado, para fazerem homenagem a santa,

transformando as ruas da cidade em rios de gente, “quase tão grande quanto os rios

amazônicos” (MAUÉS, 1995, p. 394).

A procissão ganha força com a multidão de romeiros ao longo das ruas,

comemorando mais um ano de ação de graça alcançada ou de pedidos para uma

nova benção. Nessa romaria, “a presença do carro dos Anjos e dos Milagres e etc. –

são barcas” (MAUÉS, 1995, p.395), ou seja, os barcos são referências na procissão,

mesmo porque foram eles que originaram o chamado Círio de Nazaré na cidade de

Vigia.

As embarcações sempre tiveram muita importância na sociedade vigiense,

por isso, consideramos que a figura do barco é o elemento principal e

desencadeador da cultura religiosa desses amazônidas que vivem na Região do

Salgado, que ao serem aprimorados a partir de elementos culturais advindos de

colonizadores e dos índios, aprimoraram a cultura da pesca e concomitantemente a

construção de embarcações que se adequasse a Região Amazônica, à exemplo das

vigilengas, específicas de Vigia.

Nesse sentido, pesquisas como a de Furtado apud Ximenes (1992), sobre as

embarcações da Amazônia, ressaltam a importância do barco na cultura da pesca

nessa região. Seu trabalho intitulado de “Sem barco, como pescar?” faz a descrição

de embarcações utilizadas pelos pescadores, entre elas, a canoa pesqueira, a

montaria, o reboque, a lancha e o casco, além de “traçar uma etnografia da

organização social das pessoas envolvidas na atividade da pesca e da construção

21 Jornal Diário do Pará on-line, domingo, 14.09.2008

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naval” (FURTADO apud XIMENES, 1992, p.32), nas regiões estudadas, entre elas a

Região do Salgado, onde se encontra a cidade de Vigia.

O trabalho de Furtado apud Ximenes (1992) faz-nos remontar ao objeto

comumente utilizado há muitos séculos entre os nativos da Amazônia - a canoa

pesqueira - chamada pelos índios de ubá e igarité. Essas igarités, “canoa grande

(igara, canoa; eté, grande)” (VERÍSSIMO, 1970, p. 61), eram comumente utilizadas

pelos indígenas da Amazônia para diversos fins, seja para a pesca ou guerra e para

os missionários jesuítas, na expansão do catolicismo na Amazônia, e aos

colonizadores, à conquista da região.

A obra “Cartografia Brazilica, ou Relação Histórico-Geográfico do Reino do

Brasil” 22, impresso no século XVII, descreve a utilização das canoas pelos indígenas

para diversos fins. Como exemplo cita:

Os Nhengahybas, principaes senhores desta Ilha, e christianizados em parte pelo Jezuita Antonio Vieyra, eram hábeis marinheiros, assim como os das margens dos rios convizinhos; e possuíam vastíssimo numero de canoas, denominadas em linguagem do paiz igara, donde se lhes derivou o apellido d’Igaruânas, isto He, gentes que andam sempre em canoas [...] Debaixo do nome Igaruânas eram comprehendidos também os Tupinambás, os Mammayamás, os Guayanás, os Juruúnas, os Pacayás, e outros. Tinham Igáras pequenas para a pescaria, e passagem d’hum para outro lugar vizinho; e grandes de quarenta a cinqüenta pés de comprimento, inteiriças, cavadas com machado de pedra, e fogo para a guerra, ás quais davam o nome de Maracatim, vocábulo composto de maracá, nome d’hum instrumento de cabaça com seixos, ou legumes seccos dentro, e tim, que propriamente significa nariz, e translatamente bico das aves, e ainda a prôa das embarcações: porque estas canoas tinham na proa uma grande vara em forma de gorupé, ao qual amarravam os maracás, e com os cordéis os faziam chocalhar com grande ruído igualmente bellico, e horrível [...] (CARTOGRAFIA BRAZILICA, OU RELAÇÃO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO DO REINO DO BRAZIL – XVII, p.295 ).

Portanto, a utilização dessas embarcações foram primordiais para o sucesso

português na conquista do Vale Amazônico. Para o pesquisador Teixeira (1992, p.

22), elas também eram “produzidas com tecnologia”, mas que passaram por

alterações técnicas a partir da colonização portuguesa na América ocorrida no

século XV e na Amazônia a partir do século XVII, fomentando a tradição da

carpintaria naval em Vigia.

22 Obra consultada em Books Google, 2009.

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SEÇÃO II

EMBARCAÇÃO A SERVIÇO DA EXPANSÃO COMERCIAL, POLÍTICA E

RELIGIOSA PORTUGUESA NA AMAZÔNIA: DAS UBÁ, IGARITÉ ÀS

VIGILENGAS

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2.1 A CONSTRUÇÃO DE UMA TRADIÇÃO AMAZÔNICA: AS VIGILENGAS

Antes da chegada dos portugueses na Região Amazônica, a região já era

habitada por diversas tribos indígenas, no entanto os Tupinambás que foram

encontrados no norte do Brasil a partir do século XVII, segundo os estudos de

Cunha, não eram povos autóctones, pois:

Não há nenhum sítio datado atribuindo aos tupinambá, entre o foz do Amazonas e o Rio Grande do Norte da região, apenas crônicas que falam de uma ocupação tupi tardia no Pará e do Maranhão, por índios do nordeste que fugiam da opressão colonial (CUNHA, 2006, p. 382)

Contudo “esses povos nativos se concentravam na foz do Rio Amazonas, do

Rio Pará e parte do nordeste do atual Estado do Pará, onde se situam algumas

cidades na atualidade, como Colares e Vigia” (RAIOL, 1970, p. 271).

Essa região por fazer parte de uma grande bacia hidrográfica encoberta por

uma vasta vegetação, é possuidora de diversidade de tipos de árvores, peixes e

animais. Essa magnitude natural propiciou aos povos nativos a utilização dos

recursos da natureza para seu usufruto, que ao transformarem a árvore em canoa,

desenvolveram a cultura da pesca, como também do transporte fluvial que facilitava

seu deslocamento para áreas afins, sobretudo as interiores, seja na resistência à

colonização ou da própria garantia alimentar à sobrevivência de sua tribo.

Os estudos de Veríssimo (1970) já classificavam no século XIX a Bacia Fluvial

Amazônica como:

A mais vasta e mais caudalosa do mundo, é também a mais rica em peixes de infinita variedade. Luís Agassiz, que especialmente estudou a fauna ictológica, encontrou ao nada menos de 1.800 espécies, mais que as então conhecidas da bacia do Oceano Atlântico, o dobro do Mediterrâneo, já então larga e profundamente estudada (VERÍSSIMO, 1970, p. 05)

A fauna ictológica, a abundância de madeira que encobriam os rios, desde a

região do delta do Rio Amazonas, do Rio Pará à desembocadura do rio Tocantins, a

diversidade de animais para a caça e de frutos, fazia dos povos moradores dessa

região a estarem em constante deslocamento em busca de alimentação. Os rios, os

furos e os igarapés sempre foram as principais vias de acesso dos povos indígenas,

que se deslocavam por esses caminhos fluviais em busca de caça, da pesca e

coleta de frutos.

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Atribuímos a riqueza natural dessa região como uma das razões do constante

deslocamento dessas tribos indígenas da desembocadura do rio Amazona, Pará e

Tocantins. Esses indígenas, por serem até então senhores da floresta e das águas,

constituíam-se como principais conhecedores dos movimentos das águas, pois eram

grandes remadores, pescadores e carpinteiros; da floresta, por conhecerem diversas

espécies de árvores e plantas medicinais, pois detinham o conhecimento da flora da

região, a qual era utilizada para diversos fins, seja na feitura de um simples banho

com ervas ou na utilização de tipos de madeira na construção de uma ubá.

Outra explicação sobre esse deslocamento indígena é citado por Raiol (1970).

Segundo ele:

Acreditamos que a causa da mudança fosse naturalmente a convicção em que estavam de ficarem estragadas e estéreis as terras que nesse período ocuparam, estando costumados a plantar as suas roças perto de casas; pelo que procuravam sempre nôvo solo, em condições favoráveis em qualquer outro lugar, que lhe facilitasse de mais a mais o transporte e fabricação dos produtos, o que era muito razoável (RAIOL, 1970, p. 271).

A busca constante por nova área de plantio, assim como também “o meio

aquático e piscoso fêz deles comedores de peixe e pescadores. Sedentário lavrador

à beira-rio [...] ou meio nômade, extrator de produtos naturais” (Veríssimo, 1970, p.

09), transformando os tupinambá, grupo indígena residente nessa região na época

da colonização, em uma sociedade seminômade.

O uso das ubá para o deslocamento das tribos era comum entre eles, além de

outras serventias, seja para o deslocamento em busca de caça e coleta de frutos;

seja para guerra; seja para pesca, pois o “indígena da Amazônia é principalmente

ictiófago e, conseqüentemente, pescador” (VERÍSSIMO, 1970, p. 07); seja para o

transporte, que ao penetrar na mata com sua canoas, garantia o carregamento do

pescado, da caça e dos frutos coletados, para sua sobrevivência e de seus

descendentes, como também na busca de locais para a fixação temporária da tribo.

Veríssimo (1970) descreve o ir e vir dos indígenas em suas canoas entre os

rios, furos e igarapés na Amazônia dizendo que:

Os indígenas adentram em infinitos cursos d!água da rêde fluvial amazônica e tanto quanto eles a penetram. Uma ou outra picada, angusta e mal aberta, pouco segue além da beirada em que o espera a sua canoa ou onde eleva a sua barraca; quando não serve apenas para comunicar duas correntes ou dous lagos, uma corrente e um lago – água em todo o caso – e por sobre elas “varrer”, como eles dizem, a maneira embarcação (VERÍSSIMO, 1970, p. 07 e 08)

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Contudo, para transformar uma árvore em uma ubá eram necessários além

dos saberes ambientais, que iam desde a escolha da espécie de madeira ao seu

comprimento e largura ideal, também os saberes tecnológicos indígenas aplicados

na construção desse tipo de embarcação primitiva da Amazônia.

Ao falar da abundância de espécies de madeira na Amazônia, que fomentava

a construção desse tipo de embarcação, Daniel comenta que: “Não se admira

menos a riqueza do rio máximo Amazonas na multidão, variedades, e preciosidade

dos paus que por todo o vasto, e dilatado distrito das suas matas se criam, e se

perdem” (DANIEL, 2004, p. 474).

Entre as madeiras bem utilizadas pelos colonizadores e indígenas na

construção de embarcações destacavam-se a tabajuba23, muito resistente para

navegação de carga; angelim24, muito resistente, porém pesado; itaíba25, sua

importância reside em não afundar num naufrágio; maçaranduba26, de grande

utilidade para a calafetagem dos barcos; bacuri27 , apreciada por melhor ser curvar

ao fogo e a copaíba, por ser uma árvore oleosa de muita resistência, sobretudo para

áreas onde existe o bicho turu.

Daniel (2004) ao fazer comentários sobre a utilização da madeira pelos

indígenas na construção de uma canoa inteiriça de aproximadamente 80, 90 a 100

palmos, ressaltava que:

Eram grandes cascas de pau, ou algum tronco de pau aberto por dentro com fogo; nem tinham instrumentos de ferro para mais fábrica, punham algumas rodelas na popa, e proa, e ficavam com a sua embarcação feita com pouco mais materiais, e com estes barcos viviam, como ainda hoje vivem contentes os selvagens, porque não necessitam de barco de cargas, mas só quando lhe basta para navegar (DANIEL, 2004, p. 509).

Pela ilustração 1428 abaixo capturada no museu de embarcações amazônidas

localizado no Mangal das Garças, em Belém do Pará, nos dá a imagem de uma ubá,

comumente utilizada pelos indígenas na Amazônia:

23 Significa pau-de-fogo, muito utilizada para produzir embarcações inteiriças, isto é, feitas de uma só

tábua, ou pau escavado, na produção de barcos de grande carga. 24 Significa pau de muita duração e mais utilizados pelos indígenas na construção de embarcações

inteiriças 25 Significa pau de ferro, por sua dureza, solidez e fortidão, muito utilizada pelos indígenas para

construírem embarcações que não afundavam quando alagadas. 26 Árvore que fornece a resina ou breu para a calafetagem. 27 Madeira muito preciosa para a embarcação, abre melhor ao fogo. 28 Fotografia registrada no Mangal das Garças em 23 de junho de 2009.

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Ilustração 14: Fotografia de uma ubá, registrada no Museu das Embarcações localizado no Mangal das Garças – Belém do Pará Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto

Também a ilustração 15, descrita por Theodore de Bry29 corrobora com a

narrativa feita pelo Padre João Daniel quando se refere aos procedimentos utilizados

pelos indígenas na construção de uma embarcação.

Ilustração 15: Imagem da confecção de uma canoa de um só tronco. Fonte: Bridgeman, 2009.

29 Bry, 2009.

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A ilustração 15, mostra em segundo plano a árvore sendo abatida com o fogo

e manejada pelos indígenas, em seguida, no primeiro plano, são aplicados os

procedimentos técnicos na madeira extraída, como: a queima do tronco para facilitar

na raspagem da parte queimada, para criar uma cavidade em côncavo de

considerável profundidade, que dê a característica e forma de uma embarcação,

chamado pelos indígenas da Amazônia de ubá.

Outro registro de imagem de construção de uma ubá é observado na obra de

Cunha (2006), que descreve a fabricação de uma canoa na Amazônia Ocidental

Andina, a partir da Aquarela de Francisco Requeña y Herrera entre 1778-85, como

demonstra a pintura abaixo:

Ilustração 16: Imagem da construção de uma canoa de tábua Fonte: Cunha, 2006.

Contudo, entre a descrição feita pelo Padre João Daniel e da xilogravura de

Theodore de Bry, que mostra a construção de uma canoa a partir das práticas e

instrumentos nativos para a escavação do tronco, na aquarela de Francisco

Requeña, já é constatada mudanças significativas no tratamento da madeira para

fazer uma embarcação, a exemplo da tábua cortada (técnica européia) e o

curvamento da mesma com o fogo, procedimento muito utilizado pelos indígenas e

assimilado pelos colonizadores.

Já no século XIX, o pesquisador francês Henri Coudreau, também fez o

registro em sua pesquisa desse tipo de embarcações, que era muito comum na

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Amazônia. E para isto, ele utilizou uma máquina fotográfica na captura dos

procedimentos que se empregavam na construção de uma ubá.

Na ilustração 1730, Coudreau registra a árvore encontrada e logo abatida com

machados, por quatro homens.

Ilustração 17: Registro fotográfico do corte de uma árvore para a construção de uma canoa Fonte: Coudreau, 1980.

Na ilustração 1831, a fotografia de uma ubá já pronta, sendo puxada por oito

homens para o leito do rio.

30 Fotografia extraída da obra “Viagem à Itaboca e ao Itacaiúnas” de Henri Coudreau (1980). 31 Fotografia extraída da obra “Viagem à Itaboca e ao Itacaiúnas” de Henri Coudreau (1980).

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Ilustração 18: Registro fotográfico de uma ubá construída e colocada em uso. Fonte: Coudreau, 1980

Observa-se que tanto a aquarela do século XVIII de Francisco Requeña

quanto na fotografia do século XIX de Coudreau, as imagens de fabricação de uma

ubá registrada por ambos, já apresentam transformações oriundas da fusão dos

elementos culturais estabelecidos entre os colonizadores e indígenas ocorridos ao

longo do processo de colonização da Amazônia.

Nesse contato, os saberes indígenas vão ser gradativamente incorporados ao

projeto de conquista dos colonizadores, na medida em que militares, religiosos,

comerciantes, estudiosos e aventureiros vão chegando e/ou ocupando a colônia

Brasil. A priori, utilizaram-se das embarcações indígenas, até então mais adequadas

para as vias fluviais, pois “o trânsito pelas águas – dos mares e dos rios – foi muito

importante para o processo de ocupação do território brasileiro” (RODRIGUES,

2000, p. 38).

Ademais, a utilização de ferramentas32 associada aos ensinamentos

realizados pelos Jesuítas em suas fazendas ou em aldeias missionárias, tiveram um

papel fundamental para a transformação das ubá e igarité em barcos de tábuas, pois

32 O Padre João Felippe Betendorff comenta que: “[...] da doutrina mandava aos homens fizessem

canoas ligeiras de um páu molle chamado samaúma. [...] Para que acabassem depressa essas canoas, deu-lhes também ferramentas boa pra fazer” (BETTENDORFF, 1990, p.110).

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essas transformações estão associadas ao desenvolvimento das atividades

comerciais oriundas da extração das “drogas do sertão”, para isso, se fazia

necessário o melhor aproveitamento da madeira e do tempo dos trabalhadores na

construção das embarcações.

Segundo o Padre João Daniel, era muito dispendioso construir uma ubá ou

igarité inteiriça33, pois os indígenas e os caboclos ao utilizarem uma única árvore

para o fabrico de uma única embarcação, mesmo apesar “do belo feitio que lhes

foram dando, também foram escolhendo madeira a mais durável para maior duração

das canoas” (DANIEL, 2004, p. 509), ainda desperdiçavam muita madeira, além do

emprego de muitos homens para essa empreitada, não se otimizando o tempo

gastos por eles.

A necessidade de mais e melhores embarcações estava associada à

dimensão territorial da Amazônia, que com maior quantidade de barcos, além de

intensificarem as missões, melhorava o escoamento das produções agrícolas e de

“drogas do sertão” entre os domínios jesuítas.

Em sua obra, Daniel (2004) sugere que se façam as modificações na

construção de embarcações, como também propôs aos colonizadores e aos

habitantes locais, a construção de barcos aos moldes europeus, ou seja, utilizando

tábuas na confecção de um barco, em vez de utilizar o “método antigo” (ibidem) de

tronco inteiriço, pois a vantagem:

1º É que do mesmo pau de que antes só fabricava um casco para uma canoa, feito em tábuas, se podem fazer sete ou mais do mesmo tamanho, ou maiores, que o dito casco, e do mesmo comprimento. [...] Bastam quatro tabulões destes para fazerem uma embarcação de 30 e tantos para 40 palmos em roda [...]; 2º É os menos operários de sorte que se para a fatura da canoa ao modo antigo, e para a construção do seu madeireiro são necessários 20 té 30 operários, para serrar, e fazer em tábuas bastarão 10 ou 12 pessoas. 3ª conveniência é no tempo, porque se para a praxe antiga são necessários dois meses, para a nova fábrica bastarão 15 dias até 20 para fazer; [..] Outra conveniência, se lhe dá o turu por baixo, tirando-se a tábua danificada e pondo-lhe outra em seu lugar (DANIEL, 2004, p. 511).

A proposta desse novo método visava racionalizar o tempo gasto na feitura de

um barco, como também em melhor aproveitamento da madeira, dada a escassez

de embarcações para utilização nas ações missionárias, comerciais e militares.

O sucesso para a mudança de método na construção de barcos estava na

33 Embarcação de um único tronco de árvore.

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qualidade dos nativos aldeados, que somado a educação jesuítica, transformava os

indígenas em grandes magistrados no ofício da carpintaria naval entre outros. Daniel

diz que:

Já é tempo de dizermos alguma cousa da grande habilidade e aptidão dos índios da América para todas as artes e ofícios da república, em que os vencem, ou igualam os mais destros europeus. [...] Onde porém realçam mais é nas missões e casas dos brancos, em que aprendem todos os ofícios que lhe mandam ensinar, com tanta facilidade, destreza e perfeição, como os melhores mestres, de sorte que podem competir com os mais insignes do ofício; e muitos basta verem trabalhar algum oficial na sua mecânica para o imitarem com perfeição. [...] basta mostra-lhes o original, ou a cópia, e a imitam com tal magistério, que ao depois faz equivocar qual seja o original, e qual a cópia. [...] Olham para o madeiro que têm diante, e já com o machado, já com a enxó, e depois com mais instrumentos logo ou com brevidade a dão perfeita. [...] Acham-se muitos com diferentes ofícios, como excelente escultor, carpinteiro (DANIEL, 2004, p. 341-343).

Mas a dinamização na utilização dessa mão-de-obra indígena para a

construção de embarcações que viesse fomentar a economia da região ganhou

impulso na segunda metade do século XVIII, com a criação da Companhia de Geral

de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, sobretudo no governo de Marques de

Pombal, pois as riquezas naturais da Amazônia, à exemplo do cacau,

internacionalizou-se, e para garantia de maiores divisas econômicas à Metrópole

Portuguesa, precisaria melhor ser explorada, pois:

[...] o cacau, que é outro dos principais gêneros do Amazonas, já bem conhecido no mundo com tratamento de senhoria, e com ampla entrada em palácios, e gabinetes dos príncipes pela sua estimadíssima bebida chocolate [...] há matas de léguas, e léguas em que não há outras árvores mais do que plantas de cacau. [...] Daqui vem que o cacau, é o principal emprego das frotas portuguesas, e há anos tem passado de 80 mil arrobas só o que se embarcou para Portugal (DANIEL, 2004, p. 541-542).

No objetivo de engendrar maior riqueza, o governo português concede à

Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão amplos poderes de gerenciamento do

comércio da região no que tange o monopólio da exploração das “drogas do sertão”,

ratificado pelo “Alvará Régio do dia 7 de junho de 1755” (DIAS, 1970, p. 283). Com

isso:

A companhia teria o privilégio de mandar construir seus navios mercantes e de guerra, em Portugal e no Estado do Grão Pará e Maranhão, podendo para isso mandar cortar onde entendesse toda a madeira que lhe fosse necessária pagando, porém, o seu justo valor aos respectivos donos (DIAS, 1970, p. 283)

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Para isso, a necessidade de construção de embarcações que propiciassem

mais segurança, velocidade e capacidade de carga, levou a administração

portuguesa na Amazônia a providenciar a vinda de muitos mestres carpinteiros para

a Região Amazônica, sobretudo para a capital do Grão Pará.

Cruz (1973), ao citar em sua obra um documento oficial enviado em 1733 pelo

Governador e Capitão General do Estado do Maranhão e Grão Pará ao Rei Dom

João V, menciona a ordem de construir um estaleiro em Belém que viesse a atender

às necessidades do reino português:

[...] Vendo a vossa carta de vinte e quatro de setembro do ano passado sobre a forma com que fizestes erigir a RIBEIRA para se fabricarem naus nesse Estado para o que se acham já cortadas várias madeiras. Me parece o dizer-vos por resolução de vinte e quatro deste presente mez e ano, em consulta do meu Conselho Ultramarino que eu fui servido determinar se FABRICASSE aí um NAVIO, e que assim o manda ordenar pela parte a que toca [...]. (CRUZ, 1973, p. 229)

Em 1761, o então governador Manoel Bernardo de Melo e Castro “escolheu

a RIBEIRA e praia do HOSPÍCIO DE SÃO BOAVENTURA” (ibidem), - hoje Arsenal

da Marinha - para a construção do primeiro estaleiro no norte do Brasil, para isso

“mandou levantar o telheiro e as oficinas para a construção naval. De Lisboa vieram

os operários especializados para a RIBEIRA DAS NAUS” (CRUZ, 1973, p. 229).

Para que o estaleiro funcionasse regularmente, sem falta do material

indispensável à sua finalidade, estabeleceu-se o sistema de “cortes de madeira de

construção náutica nos rios Acará e Caraparú” (BAENA apud CRUZ, p. 330).

O resultado dessas medidas adotadas pelo governador Manoel Bernardo de

Castro foi à construção de 22 embarcações sendo: “04 fragatas de 44; 03 charruas;

03 bergantins; 12 chalupas artilhadas – e muitas embarcações de baixo bordo para a

navegação interna da capitania” (Ibidem, 1973, p. 330).

Entretanto, para essa grande empreitada foi necessário o emprego da mão-

de-obra indígena que totalizou aproximadamente:

2000 mil operários índios empregados no corte, na condução e no embarque das madeiras, e na construção dos ditos vasos da Real Armada, nas disposições da defesa da cidade, nas embarcações armadas e nas expedidas a diversas diligências (CRUZ, 1973, p. 330).

A vinda de diversas categorias de profissionais da Europa, ligados a

carpintaria naval somada aos trabalhadores indígenas e caboclos, fez de Belém um

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pólo convergente e irradiador de saberes na fabricação de embarcações, que

gradativamente foram sendo memorizados e transmitidos de geração a geração

entre os amazônidas, levando esses conhecimentos para suas cidades, entre elas,

Vigia de Nazaré.

Prado Júnior (1992) comenta que:

Corria-lhes nas veias o sangue de dois povos navegadores: portugueses e tupis; mas é a estes últimos que se deve o melhor que neste terreno a colônia possui. Podia ela vangloriar-se de uma variedade enorme de embarcações, de todos os tipos e dimensões, e admiravelmente adaptadas à diversidade de fins a que se destinavam. Desde a canoa indígena até a jangada de alto mar – empregada aliais na pesca, e só excepcionalmente no transporte, - e o ajoujo, este engenhoso híbrido das duas, encontramos uma escala múltipla de tipos: a barcaça, o saveiro, a lança e tantas outras, divididas cada qual em outros muitos subtipos (PRADO JÚNIOR, 1992, p. 258-259)

O aprimoramento desses saberes desenvolveu diversos tipos de

embarcações amazônidas. A Vigilenga desenvolvida pelos carpinteiros de Vigia é um

exemplo dessa cultura cabocla de grande serventia no período colonial, para as

navegações interiores e de patrulha do litoral, e concomitantemente para a pesca.

O barco amazônico surge, portanto, a partir de uma evolução histórica

marcada pela imposição da ação colonizadora e missionária portuguesa, que

somado aos saberes indígenas de construção de embarcações fez desencadear

outras formas de saberes no processo de construção naval, gerando assim, diversos

tipos de embarcações de características amazônicas, à exemplo da Vigilenga

desenvolvida na cidade de Vigia. Veríssimo (1970) descreve a vigilenga como:

[...] Uma canoa mestiça, o resultado da combinação, para não dizer do cruzamento, entre o barco de pesca português e a igarité, a canoa grande (ígara, canoa; eté, grande) do indígena brasileiro. É em geral pintada de escuro, roxo-terra, vermelho carregado, com as próprias tintas dos seus vegetais, como o muruxi (Byrsonyma) [...] A lotação de algumas é de 500 a 800 arrôbas, 7 a 12 toneladas – quase um navio [...] Armam-as à iate, com dois mastros, com velas latinas ou de “asas de morcego”, na sua tecnologia[...] Leves como uma casca de noz, correm e dançam na crista das vagas dos mares bravios da contracosta (VERÍSSIMO, 1970, p. 62).

A ilustração 19, mostra em miniatura uma Vigilenga que se encontra em um

museu em Belém do Pará, representa com fidelidade as características desta

embarcação mestiça desenvolvida na cidade de Vigia.

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Ilustração 19: Fotografia de uma réplica em miniatura de uma Vigilenga, registrada no Museu das Embarcações localizadas no Mangal das Garças – Belém do Pará.

Fonte. Arquivo pessoal de Antônio Jorge Gualberto

Nesse sentido, Oliveira (2007) destaca que a cultura amazônica configura-se

como:

Historicamente, uma Amazônia plural e uma cultura mestiça. Os contatos interculturais, consubstanciados nas práticas cotidianas e nas relações sociais de produções, evidenciaram uma política cultural na qual as tradições se conflitaram, se mestiçaram, foram reconstruídas e adaptadas à realidade local. (OLIVEIRA, 2007, p.31)

Portanto, a relação política estabelecida historicamente entre colonizador e

colonizado na Amazônia vai propiciar a emergência de outros tipos de saberes

desenvolvidos a partir da “Cultura de Conversa” (OLIVEIRA, 2007, p. 32), que

transmitida de geração a geração, constituiu-se como alicerce da cultura cabocla da

Amazônia, à exemplo da vigilenga como barco amazônico - como barco caboclo -

resultado da fusão de elementos culturais, transmitidos oralmente ao longo dos

séculos, chegando até os tempos atuais.

A figura do mestre Dorival é um exemplo típico desse processo cultural.

Educou seus filhos Jacy, Juracy e Ubiracy, no ofício da construção naval a partir da

verbalização de sua práxis no cotidiano, mantendo o olhar atento no

desenvolvimento de cada etapa do ofício.

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Portanto, o principal elemento constituidor da tradição amazônica de

construção de barcos alicerça-se na memorização de tudo que lhe é ensinado, seja

através do que é visualizado, do falado ou do gesticulado, transmitidos oralmente de

gerações mais velhas às gerações mais novas. Dessa maneira, sedimenta o

aprendizado, atualiza as práticas e incorpora novos elementos técnicos à dinâmica

do ofício.

O detalhe dessa técnica desenvolvida pelo caboclo da Amazônia é a

memorização de todos os procedimentos na construção de uma embarcação. O

interessante é que nada é escrito e não existe nenhum tipo de projeto, planta ou

desenho feito no papel que expresse o modelo e a capacidade da embarcação a ser

construída. Mas tudo está gravado, codificado e guardado como um arquivo de

computador, no cérebro de cada carpinteiro naval.

De uma forma geral, as falas dos mestres visitados seja em Itupiranga, cidade

localizada no sul do Pará, em Abaetetuba, em Santarém ou em Vigia, quando

expressam os saberes adquiridos na construção de barcos o fazem através da

memorização da aprendizagem de seus antepassados. À exemplo do mestre

Dorival, um dos carpinteiros mais antigos da cidade de Vigia e sujeito desta

pesquisa: “Eu tiro tudo da cabeça. É só dizer pra que quer o barco que eu faço!”

Portanto, o olhar e o memorizar são uma das principais características da

cultura indígena, que se estenderam aos caboclos da Amazônia. Essa herança

cultural presente no cotidiano dos estaleiros da Amazônia não se perdeu, mas lateja,

apesar da falta de uma política pública que valorize a atividade da carpintaria naval

na Amazônia.

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SEÇÃO III

ESTALEIRO DE CARPINTARIA NAVAL: UM LOCAL DE

CIRCULAÇÃO DE SABERES

O saber da comunidade, aquilo que todos conhecem de algum modo; o saber próprio dos homens e das mulheres, de crianças, adolescentes, jovens, adultos e velhos; o saber de guerreiros e esposas; o saber que faz o artesão, o sacerdote, o feiticeiro, o navegador e outros tantos especialistas, envolve, portanto situações pedagógicas interpessoais, familiares e comunitárias, onde ainda não surgiram técnicas pedagógicas escolares, acompanhadas de seus profissionais de aplicação exclusiva. Os que sabem: fazem, ensinam, vigiam, incentivam, demonstram, corrigem, punem e premiam. Os que não sabem espiam na vida o que há no cotidiano, o saber que ali existe, vêem fazer e imitam.

Carlos Rodrigues Brandão (2002, p.20)

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3.1 ESTALEIRO ESPERANÇA: LICEU DE ARTES E DE OFÍCIOS DE

CARPINTARIA NAVAL EM VIGIA

Atualmente a cidade de Vigia possui três estaleiros de carpintaria naval em

atividades de construção e restaurações de embarcações. O Estaleiro Esperança é

um deles – lócus desta pesquisa.

Os estaleiros são como liceus, não em uma concepção institucional formal

que cumpre uma carga horária pré-estabelecida, na garantia de certificação e

reconhecimento estatal do estudante, mas porque neste local existe o ensino-

aprendizagem. Há além do ensino técnico, entre aqueles que estão envolvidos no

ofício de construir uma embarcação, outras “situações pedagógicas interpessoais,

familiares e comunitárias” (BRANDÃO, 2007, p. 20).

Numa concepção em que a educação se dá em qualquer ambiente, Brandão

(2007) expressa que:

Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante [...] Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo (BRANDÃO, 2007, p.9).

Nesse sentido, os estaleiros de carpintaria naval são escolas sem muros que

abrigam cotidianamente diversas pessoas e suas devidas categorias profissionais,

sejam mestres carpinteiros, calafetes, aprendizes e curiosos - geralmente crianças,

com ou sem parentesco de alguns trabalhadores. Ressalta-se que apesar de

encontrarmos algumas crianças no Estaleiro Esperança, elas estavam ali de forma

desinteressada, ou seja, não tendo nenhuma obrigação, nem estabelecido contrato

para o desenvolvimento de algum tipo de trabalho nesse estabelecimento.

A presença constante dessas crianças neste local é decorrente da facilidade

de acesso (sem muros e formalidades) e seu aspecto de lazer (ar livre, rio,

serragem, barcos). Esse local sugere espaço lúdico sem impedimentos para

qualquer tipo de visitante, onde as crianças e adolescentes entram e saem

livremente, sejam acompanhadas pelo seu responsável que ao realizar qualquer

serviço na área, à exemplo do serviço de limpeza, aproveitam o tempo para

observarem atentamente as habilidades desenvolvidas pelo mestre Zuzinha e seus

ajudantes na construção de barcos.

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Com a mesma liberdade que tiveram ao entrar no Estaleiro Esperança, saem

quando acham que devem sair ou quando termina o trabalho de seu responsável.

Talvez outro fator das visitas constantes desses meninos reside na curiosidade sobre

a confecção dos barcos, pois o barco ao ser construído requer a colocação de peça

por peça para compor a obra maior, assemelhando-se a um brinquedo, um jogo de

montar. Nesse sentido, poderemos assim dizer que o Estaleiro Esperança é uma

escola de portas abertas que atrai qualquer pessoa, entre criança, jovens e adultos.

Entretanto, para os mestres carpinteiros, a preocupação é clara quanto a

utilização de mão-de-obra infantil, pois eles sabem sobre o ECA (Estatuto da Criança

e do Adolescente) que proíbe qualquer tipo de trabalho infantil, no entanto sabe-se

que ele foi criado para regulamentar a utilização desse tipo de mão-de-obra.

Essa lei gera desconfiança e insegurança. Os mestres temem em estar indo

de encontro à lei, embora a mesma abra concessão aos aprendizes, porém

preferem não ter crianças ou adolescentes trabalhando no estaleiro, devido o receio

da justiça vir em cima deles.

No Capítulo V do Estatuto em seu Artigo de nº 60, não há dúvida da proibição

do uso da mão de obra infantil, e o mestres têm conhecimento e temem as sanções

da lei por isso não querem confusão com a justiça, pois a palavra proibir está incisiva

no texto: “É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo

na condição de aprendiz”, desde que lhe sejam assegurados algumas garantias que

estão estabelecidas na própria lei, sobretudo nas condições descritas no Artigo 67,

quando diz:

Ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade governamental ou não-governamental, é vedado trabalho: I - noturno, realizado entre as vinte e duas horas de um dia e as cinco horas do dia seguinte; II - perigoso, insalubre ou penoso; III - realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social; IV - realizado em horários e locais que não permitam a freqüência à escola (ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente).

Outro fator alegado pelos mestres carpinteiros, entre eles Joaquim, Dorival e

Jaci, para a não utilização desses jovens, está ligado à segurança, pois existem

muitos equipamentos elétricos, que a qualquer erro no manuseio pode-se perder a

mão, o braço ou até mesmo a vida. Temem em machucar esses jovens. Mestre

Dorival ressalta que a “motosserra é muito perigosa, tem que saber usar ela, senão

dá problema com a pessoa.”

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Entretanto, essas restrições acima não impedem a presença espontânea de

crianças e adolescentes no Estaleiro Esperança. E mesmo que elas não façam parte

como aprendizes no trabalho de construção de barcos, no momento que elas param

e observam os mestres Joaquim, Zuzinha, Bolero e Jaci, iniciando uma construção

ou reparação de barcos, de certa forma elas estão aguçando sua curiosidade sobre

aquele ofício. Essa situação já se constitui como “situações de aprendizagens”

(BRANDÃO, 2007, p.18), pois a observação se constitui como um dos princípios

básicos de um aprendizado.

Na ilustração abaixo evidencia-se, em momentos e dias diferentes, o espiar

das crianças nos gestos e ações que estão sendo desenvolvidas pelos mestres no

ato de construir um barco. Ainda nesta ilustração, observa-se o menino – morador

das proximidades do estaleiro - de boné e camisa azul, sentado em cima de uma

embarcação que estava passando pelo processo de restauração.

Ilustração 20: Fotografia registrada no Estaleiro Esperança. Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto.

Na Ilustração 22, outra criança de camisa listrada - filho do pescador Gervásio

de camisa rósea - observando o assentamento do motor feito pelo mestre Jaci, que

está de camisa azul.

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Ilustração 21: Fotografia registrada na parte interior de um barco. Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

Por mais desinteressado que seja o observar dos garotos neste momento,

eles estão recebendo informações neste simples olhar, pois: “A criança vê, entende,

imita e aprende com sabedoria que existe no próprio gesto de fazer a coisa”

(ibidem). E por terem uma mente bastante criativa e imaginativa, geralmente essas

crianças vão aplicar alguns desses conhecimentos em situações bem propícias de

seu meio infantil - à construção de brinquedos - seja um simples barquinho de papel

ou de miriti.

De certa forma, esse contato desinteressado mesmo que superficial pode

levar essas crianças indiretamente ao ofício da carpintaria naval, constituindo-se

assim, como mais uma das formas de conservação e porque não dizer resistência

da tradição da carpintaria naval em Vigia?

Na ilustração 22, evidencia-se o espiar de um adolescente curioso em cima

do olhar do mestre mineirinho, na confecção de uma peça que irá compor uma parte

de uma embarcação.

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Ilustração 22: Fotografia registrada no Estaleiro Esperança. Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

Esse é o cotidiano vivido no Estaleiro Esperança, localizado no Rio Açaí

(braço do rio Guajará-Mirim), de propriedade dos irmãos e mestres da carpintaria

naval: Zuzinha, Joaquim e Marivaldo, filhos e herdeiros do ofício da carpintaria naval

do mestre Zuza - já falecido. E segundo o Sr. Ruy Waldo Athayde - ex-secretário de

pesca do município – atribui ao mestre Zuza como um dos melhores carpinteiros

navais da cidade de Vigia “ele tinha um grande talento na arte de construir barcos”.

Nesse estaleiro se fazem presentes também outros mestres da arte de

construir embarcações, mesmo não sendo proprietários, mas compõem a mão-de-

obra qualificada no desenvolvimento do ofício da carpintaria naval, à exemplo de

mestre Bolero.

A história de mestre Bolero como carpinteiro naval é bastante peculiar.

Primeiro, ele não iniciou sua profissionalização no ofício da carpintaria naval. Até aos

24 anos de idade era profissional da marcenaria, fabricando móveis, janelas, portas

e etc. Sua chegada ao Estaleiro Esperança como carpinteiro naval ocorreu quando o

mestre Zuza o contratou para fazer uma porta para uma embarcação.

Ao ser entrevistado34 para narrar um pouco sobre sua vida no Estaleiro

34 Entrevista realizada no dia 25.04.2009.

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Esperança, mestre Bolero respondeu dizendo: “Eu vim fazer só uma porta para um

barco. Eu era carpinteiro de fazer móveis. Aí vim fazer só uma porta pra ele. Ele

gostou e perguntou se eu queria trabalhar. Aí desde essa vez eu estou aqui”.

Quando indagado sobre seu aprendizado, afirma que: “Eu aprendi com o Sr.

Zuza só olhando, às vezes eu perguntava, né! Se no caso o serviço não estivesse

bom ele mandava escangalhar e recomeçar de novo. Foi assim que aprendi”.

Hoje, mestre bolero possui 44 anos, ou seja, 24 anos no ofício da carpintaria

naval. Ao ser indagado novamente sobre a quantidade de embarcações que ele

construiu ao longo desses anos, ele responde: “Já perdi as contas”. Quanto à

tonelagem dessas embarcações, ele respondeu que variava, mas que “Já construí

até um barco de 60 toneladas”.

Portanto, esse aprendizado transmitido do Mestre Zuza para o Sr. Bolero,

formou um outro mestre respeitado da carpintaria naval em Vigia. Nessa trajetória,

mestre Bolero se constituiu também como mais um educador nesse liceu, para

àqueles curiosos ou aprendizes que passaram e passam pelo Estaleiro Esperança e

observam o saber fazer de uma embarcação.

Outro exemplo que encontramos que desenvolve as atividades da carpintaria

naval no Estaleiro Esperança é o Senhor Jaci. Mestre Jaci, de 35 anos de idade,

também é herdeiro de conhecimentos do ofício da carpintaria naval que foram

repassados de geração a geração. Contudo a herança dos saberes da carpintaria

naval deste jovem mestre é oriunda de outra base familiar ligada à construção de

barcos, a do mestre Dorival, que passou a se constituir como o sujeito principal

desta pesquisa.

A escolha do mestre Dorival, e seus descendentes, no âmbito da carpintaria

naval, como sujeito principal desta pesquisa se justifica por ele ser um dos três

carpinteiros mais velhos de Vigia, e na ativa.

Com 65 anos de idade e 52 anos de profissão, ele se constitui como um

arquivo vivo de um passado ligado aos saberes seculares da carpintaria naval na

Amazônia. Saberes esses que ao atravessarem décadas foram construídos,

reconstruídos e aprimorados, numa alusão ao de que somos seres inacabados e “o

inacabamento do ser humano ou sua inconclusão é próprio da experiência vital”

(FREIRE, 2001, p. 55).

Essa busca constante pelo aprimoramento de seus conhecimentos na

carpintaria naval nunca findou. Atravessou décadas em constante aperfeiçoamento,

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chegando a sua segunda geração, com seus filhos Jaci, Jura e Bira, por estarem na

qualidade de “seres do aprendizado, logo, da educação” (BRANDÃO, 2002, p.25).

Assim, dão continuidade naquilo que lhe fora ensinado, constituindo-se assim num

“movimento longo, complexo, nunca completamente acabado” (CHARLOT, 2007, p.

53), que é condição natural do ser humano.

3.2 A CONSTRUÇÃO DE UM OFÍCIO: A DESCOBERTA DO TALENTO NATURAL

PARA A CARPINTARIA

Senhor Dorival Benedito Dantas, conhecido carinhosamente por mestre

Bigaiu pelos pescadores de Vigia, o qual presta serviços no conserto de seus

barcos, é hoje um dos poucos homens da carpintaria naval que já atravessou

aproximadamente seis décadas, entre o século XX e XXI, trazendo consigo saberes

que correspondem a seu ofício, que foram adquiridos ao longo de sua vida.

Trajetória essa que começa aos dez anos de idade, ou seja, em 1954, na Ilha

do Marajó - palco de muitas missões jesuíticas com utilização de barcos no passado

colonial. Natural de uma pequena ilha que compõe o Arquipélago do Marajó,

chamada de Pompé, localizada em frente a cidade de Chaves, com uma dimensão

aproximada, segundo o mestre Dorival a “uma faixa dumas 10 a 15 estradas de

seringa, um bom terreno”. Essa referida ilha ainda pertence a seus familiares, tendo

como principal atividade econômica, atualmente, a criação de búfalos.

Apesar das dificuldades naturais e econômicas da época, o Sr. Neném, pai do

Sr. Dorival, preocupado com a educação escolar de seu filho, o encaminhou para

Belém para o aprimoramento de seus estudos no Instituto Santa Catarina, localizado

ainda hoje, no bairro da Sacramenta, da referida cidade.

Nesta escola, o Sr. Dorival cursou até a 5ª série – hoje ensino fundamental.

No entanto, aos dez anos de idade retorna à Ilha Pompé, a pedido de seu pai. O Sr

Dorival diz que: “Nesse tempo, a gente era governado, não tinha, não podia dizer

assim, eu vou em tal lugar, só se ele liberasse pra gente ir, vê o que queria ou

qualquer coisa. A vida era difícil, porque lá é uma ilha em frente do Marajó.” Não

terminou os seus estudos, pois teve que permanecer com seus familiares na ilha.

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Sobre seu retorno a Ilha Pompé, o Sr. Dorival comenta que:

Eu tava na faixa de 10 anos. Eu tinha vindo de Belém, que o meu pai não deixou eu findar meus estudos. Eu já ia pro ginásio. Daí eu ia pro Rio de Janeiro, fazer um negócio de um estágio com um tio num estaleiro. Ele ia me levar pra lá, o meu pai não deixou, porque ele disse que nunca mais ia me ver. E o tio deu a resposta: “Olha seu Neném (era o apelido dele), pois o senhor tá enganado, porque seu filho é estudioso e com certeza ele ia ganhar pra pagar sua passagem com o ganho dele, mas o senhor não quer, o senhor é o pai.” E a gente era governado mesmo e eu não fui e fui embora para o Marajó.

E foi no retorno à ilha Pompé que a ludicidade de seu Dorival, aos 10 anos de

idade, encontrou espaço para o desenvolvimento do seu talento natural no ofício de

carpintaria naval. As dificuldades materiais eram muitas, à exemplo da falta de

transporte para os ribeirinhos, fizeram desta Ilha uma escola natural, sendo um dos

principais motivadores para a fomentação de idéias para esse aluno, que ao interagir

com seu meio ambiente passou a acumular saberes que o levariam mais tarde à

condição de mestre.

Na busca de se resolver em parte às necessidades básicas de sua

comunidade, fez do Sr. Dorival, ainda criança, sujeito e objeto de seu próprio

aprendizado, que “através da experiência pessoal com o mundo ou com o outro”

(BRANDÃO, 2007, p. 25), fez torná-lo de forma precoce um mestre nos saberes da

arte de fazer embarcações.

Para Charlot (2007):

A idéia de saber implica a de sujeito, de atividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo (deve desfazer-se do dogmatismo subjetivo), de relação desse sujeito com os outros (que co constroem, controlam, validam, partilham esse saber (CHARLOT, 2007, p. 61)

A construção dos saberes relacionados à carpintaria naval se constituiu a

partir das dificuldades de locomoção de sua família e da comunidade da Ilha Pompé,

que ao tomar conhecimento do mundo em que vivia e relacionar-se com ele e com

os outros, vai se definir o Sr. Dorival uma pessoa mais independente nos seus

fazeres.

Ao ser indagado sobre onde aprendeu o ofício da carpintaria naval, ele

responde que “trouxe isso de nascença”. Esta vocação que o Sr. Dorival o atribui

nada mais foi o conhecimento adquirido através de sua relação com o “mundo

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humano pré-existente [...] o mundo das relações sociais” (CHARLOT, 2007, p. 52),

desenvolvendo assim uma prática autônoma de aprendizado, mediada pela dialética

vivenciada em seu cotidiano.

Ressalta-se que a primeira forma manifestada para a socialização de seus

saberes da carpintaria se desenvolveram a partir da confecção de seus brinquedos -

barquinhos de miriti e de cortiça - e como toda e qualquer criança desta idade,

qualquer objeto transformado ganha vida.

No caso do Sr. Dorival, morador da Ilha Pompé, em frente à Ilha do Marajó,

esse objeto confeccionado tinha nome – embarcação – mesmo porque era

transporte principal dessa região, e o que mais vai ser observado por ele, nessa

época, são as embarcações que faziam costumeiramente o transporte de cargas e

de pessoas entre uma ilha e a outra.

E como somos “seres da natureza alçados ao mundo da cultura que nós

próprios criamos” (BRANDÃO, 2002, p. 18), as canoas ou barcos de características

amazônicas, meio de transporte essencial no cotidiano dos moradores da Ilha

Pompé, serviram como arquétipos de seus primeiros brinquedos e barcos de

transporte e pesca feitos de cortiça35 e, sobretudo de miriti36, árvore nativa

encontrada às margens dos rios e igarapés no Marajó, cujos galhos por serem

esponjosos e de fácil manuseio ganhavam formas e vida nas mãos e na imaginação

do Sr. Dorival quando criança.

Em uma das entrevistas concedidas pelo mestre Dorival no dia 12.04.2009,

perguntou-se a ele sobre o princípio de todo esse conhecimento no âmbito da

carpintaria naval. Como resposta disse:

Eu aprendi a fazer barcos, foi só eu começar a fazer aqueles barquinhos de miriti e de cortiça – a cortiça é uma árvore que tem a raiz dela é mole, e eu pegava aquela raiz e eu desenhava tudinho e fazia do jeito que dava na minha cabeça. Eu nunca tinha visto isso, navio, assim, coisa no estaleiro. Nada! Eu só via passar uma barca dessa qualquer, mas eu desenhava igual.

Dessa sua narrativa, constata-se que o primeiro momento na aquisição dos

conhecimentos no ofício da carpintaria naval foi a observação das barcas que

passavam e atracavam em Pompé. O segundo momento foi a curiosidade de querer

35 Quercus Súber, nome científico desse tipo de árvore que compõem a família dos carvalhos, muito

encontrado em Portugal e na Zona Mediterrânea.

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saber qual a forma dada às peças de madeira que faziam parte de uma embarcação

e o terceiro momento provavelmente de sua cognição foram as perguntas

relacionadas as peças constituidoras de uma embarcação: Como são moldadas?

Como elas se encaixam? Qual o tipo de madeira mais adequada para dá forma e

leveza de um barco? Qual o melhor posicionamento do mastro para dar o equilíbrio

ao objeto?

Esses questionamentos levaram o Mestre Dorival a passar “por etapas

sucessivas de inculcação de tipos de categorias gerais, parciais ou especializadas

de saber-e-habilidade” (BRANDÃO, 2007, p.23). As respostas a esses atos

cognitivos, que eram alimentados pela curiosidade acerca dos conhecimentos

técnicos no querer saber fazer uma embarcação, começam a materializar quando

ele passa a confeccionar seus brinquedos de miriti ou de cortiça, ganhando

reconhecimento de sua comunidade.

Mestre Dorival recorda que utilizava uma “faquinha bem amolada” para cortar

e modelar o miriti para a fabricação de seus brinquedos. Quando indagado de onde

partiam as idéias, ele responde:

Era eu que fazia e ninguém dizia como era pra mim fazer, e eu não gostava que ninguém me desse idéia, porque eu tenho uma idéia que eu era tão coisa que eu não queria que ninguém me desse opinião pra mim poder fazer como dava da minha cabeça.

A habilidade demonstrada por Dorival no fabrico de barcos de miriti e de

cortiça em seus momentos de lazer, despertou em seu Neném (seu pai), a

confiabilidade em seu filho, e provavelmente o desejo de seu pai em resolver em

parte o problema de transporte que muito dificultava a vida de sua família naquela

época. E ao observar a habilidade de seu filho quando confeccionava seus

brinquedos perguntou: “Meu filho será que tu não faz uma embarcação, uma de

madeira? “O Sr. Dorival respondeu: Papai se tiver as ferramentas eu faço”.

O processo de “socialização” (BRANDÃO, 2007, p. 23) de seu auto-

aprendizado junto à comunidade ocorreu quando seu pai passou a fornecer as

ferramentas e material para o fabrico de uma embarcação. Ele recorda que as

ferramentas eram: “Plaina de serra, mas não era elétrica, na época não tinha nada

elétrico. Era enxó, serrote, compasso, grampos”. Eram equipamentos usados, dados

36 Mauritia flexuosa, nome científico desse tipo de palmeira encontrada nas várzeas da Amazônia.

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por um tio e seu padrinho. Comenta ainda que apesar de serem “velhas”, foram de

muita serventia para o início do ofício de carpinteiro naval.

Para Brandão (2007):

A socialização realiza em sua esfera as necessidades e projetos da sociedade, e realiza, em cada um de seus membros, grande parte daquilo que eles precisam para serem reconhecidos como “seus” e para existirem dentro dela (BRANDÃO, 2007, p. 23).

Foi nessa perspectiva que amadurecem precocemente as habilidades do Sr.

Dorival no âmbito da carpintaria naval. A autonomia confiada de pai para filho na arte

de confeccionar uma embarcação constituiu-se como um dos princípios básicos de

um tipo educação que perdura até a terceira geração do mestre Dorival, na figura de

seus filhos: Jacy, Juracy e Ubiracy.

Os princípios de autonomia e pragmatismo foram encontrados nas ações do

Sr. Dorival desde o desafio proposto pelo seu pai, quando lhe confiou à construção

da primeira embarcação chamada “Foi Deus”. Esta foi resultado da ludicidade

praticada na confecção de seus barquinhos de brinquedos feitos de miriti.

Muitos estudos científicos que abordam sobre a ludicidade apontam que toda

criança aprende brincando, e “o que mais caracteriza a ludicidade é a experiência de

plenitude que ela possibilita a quem vivencia em seus atos” (LUCKESI, 1998, p.25).

Foi na brincadeira de construir barcos de miriti que Dorival de 10 anos

exercitou sua potencialidade cognitiva, sua sociabilidade ao interagir com o seu meio

ambiente e sua sensibilidade quando percebe as dificuldades materiais de sua

comunidade. O conjunto dessa cognição serviu como potencializador de um tipo de

aprendizado autônomo desenvolvido e aprimorado em sua fase adulta.

Sua criatividade foi aprimorada a partir das técnicas adquiridas em sua prática

cotidiana e aplicada na construção de embarcações, que ao trocar a “faquinha

amolada” que dava sentido e arte no galho de miriti, por novas ferramentas como a

enxó, a plaina, o martelo e o serrote, além de passar a dar outros significados na

arte de fazer um barco, serviu como o primeiro e único teste para o reconhecimento

de seu pai e da comunidade da Ilha Pompé de sua capacidade na construção de

embarcações.

As necessidades materiais de sua comunidade o levaram precocemente a

mudanças de compreensão de mundo em que vivia, fazendo o Sr. Dorival ainda

criança sair de um estágio natural de sua ludicidade onde a arte de fazer barquinhos

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de miriti expressava seu sentimento infantil, para um estágio de responsabilidade

que desse solução a este problema – a falta de embarcações para transportar sua

comunidade.

Esse desafio fez a inocência ceder lugar a responsabilidade, e segundo

Huizinga (2007, p. 225) “Quando a arte se torna autoconsciente, isto é, consciente

de sua própria grandeza, ela se arrisca a perder uma parte de sua eterna inocência

infantil.

Nessa perspectiva, seu Dorival comentou que as peças que compuseram esta

primeira obra significativa para a comunidade da Ilha Pompé já não foram mais de

miriti ou cortiça, mas das madeiras como a maúba e jataúba, que foram trabalhadas

manualmente com as novas ferramentas, pois na época, nada era elétrico. Como ele

mesmo diz: “Até para parelhar a madeira, tinha que cortar com enxó, aí tirava a

grossura dela, a grossura que vai ficar, dobrava ela, depois disso eu passava a

plaina pra ela ficar lisa, não ficar aquele zinco da enxó”.

Na época essas madeiras eram comumente utilizadas em diversos serviços

na Ilha do Marajó. Contudo sua utilização para a construção de um barco ou canoa

eram classificadas e posicionadas na estrutura do barco conforme sua resistência.

Para a quilha que é uma peça fundamental na estrutura de uma embarcação, tem

que ser uma peça forte que faça a ligação entre a proa e a popa, e que ao mesmo

tempo reforce o fundo, e para essa parte do barco utilizava-se a jataúba e para o

revestimento das cavernas, tábuas de maúba.

Ele comenta sobre a melhor madeira:

A maúba era uma madeira boa de vergar, igual à itaúba; que tem a itaúba, né? Que é a melhor madeira que nos temo no mundo. A madeira mais durativa, é a madeira boa de trabalhar, ela verga – ela vem assim e vem pra até do jeito que tu quiser - não precisa dar fogo. E essa outra madeira toda, pau-d’arco, sapucaia tem que dar fogo porque ela é dura, senão ela quebra, se for querer meter sem dar fogo nela, ela quebra.”

O mestre sustenta que a maúba e a jataúba eram o tipo ideal de madeira para

a confecção de embarcações, pois tinham qualidades como a de resistir mais ao

tempo e de manejo para curva-lá. Em sua sabedoria, afirma que outros tipos

requerem a aplicação do maçarico para o aquecimento da madeira e dobrá-la, além

da utilização do “sargento”37 que ajuda a “disciplinar” a madeira no encaixe da peça.

37 Instrumento utilizado para apertar, comprimir ou ajustar uma peça a outra

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Ao perguntar se existia muita demora na construção de uma embarcação na

época, ele comenta que: “Eu cheguei fazer embarcações lá com 07 metros de

comprimento que demoravam mais de três meses, só eu no apuá”, ou seja, a

demora existia por que os instrumentos eram todos manuais.

Ilustração 23: Fotografia registrando o uso do sargento. Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

A ilustração 24 representa o início da montagem das peças principais na

composição de um barco, mas já com instrumentos elétricos, realizada pelo mestre

Jacy, filho e herdeiro dos saberes da carpintaria naval do mestre Dorival.

Na ilustração 24, observa-se a quilha, que liga a proa a popa, em seguida o

quebra-mar fixado à quilha a partir do braço, dando assim maior resistência a

estrutura central da embarcação.

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Ilustração 24: Registro fotográfico do início da construção de uma embarcação.

Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

Na ilustração 25, observa-se as outras peças desse jogo de montar, à

exemplo da bucha, do cadastrinho, do cadastro, da espinha, do braço da popa e

pelo painel.

Ilustração 25: Registro fotográfico do início da construção de uma embarcação. Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

Talha-mar

Braço

Painel

Espinha

Cadastrinho

Bucha

Cadastro

Quilha

Braço

Popa Proa

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Foi nesse jogo de montar que a embarcação “Foi Deus” se constituiu como a

primeira de muitos outros barcos, provavelmente trabalhada por ele com amor,

dedicação, ou seja, repleta de ludicidade. Neste aspecto, essa ludicidade é

desenvolvida por seu filho Jacy.

Quando perguntado sobre essa embarcação, ele responde: “Ah, eu fiquei

emocionado, porque não acreditava em mim mesmo!”. Ao ser indagado sobre a

reação de seu pai ao ver a “Foi Deus”, responde: “Meu pai ficou muito satisfeito. Não

tinha igual. Eu fez o barco. Eu calafetei. Eu pintei e aparelhei!”. Portanto, apesar de

seu Dorival na época ser uma criança, ele honrou o compromisso com seu pai e com

sua comunidade, conferindo-lhe respeito e reconhecimento como o pequeno-grande

mestre da Ilha Pompé.

O historiador Huizinga (2007) ao fazer referências do fator lúdico existente

nas ações humanas, cita que nas artes plásticas:

Verificamos nas artes plásticas a existência de um certo sentido lúdico, inseparável de todas as formas de decoração, isto é, vimos que a função lúdica se verifica especialmente quando o espírito e a mão se movem livremente. E ela se afirma sobretudo na obra-prima expressamente encomendada, o tour de force, a prova palpável da habilidade do artista (HUIZINGA, 2007, p. 223).

Observa-se também que a construção de uma embarcação assemelha-se ao

das artes plásticas, pois o corpo e a alma do mestre estão em harmonia desde o

princípio até a arte final, porque a construção de um barco não se isenta de paixões

humanas, como também de convenções pré-estabelecidas, pois é uma obra de arte

carregada de jogos (dedicação, sentimento, competição, concorrência, prazo) e

tensões (negociação do preço na prestação do serviço, contratação de operários do

setor e pagamento dos mesmos). Essas relações encontradas ontem, em Pompé,

com suas particularidades da época, são hoje perceptíveis as margens do Rio Açaí.

A ilustração 26, registrada no quintal da casa do mestre Dorival, é testemunha

de uma de suas obras carregada de expressões do artista, pois mesmo com 65 anos

de idade e 55 de profissão, o mestre ainda conserva sua habilidade em confeccionar

peças que se encaixam, como se fossem um jogo de montar, à exemplo do

balaustre (peça decorativa) que está em sua mão. É mais uma das demais que vai

se juntar ao corpo maior desse jogo de montar – o barco.

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Ilustração 26 - Fotografia do mestre Dorival encaixando uma peça em uma embarcação. Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

Neste jogo, encontra-se, sobretudo a ética profissional no cumprimento e no

ato de fazer uma embarcação. É a partir da dialética desenvolvida entre o dono da

encomenda e o mestre carpinteiro, na ribeira ou no estaleiro, nos assuntos que

abordam: o tipo de forma, da capacidade, do comprimento, das cores, do desenho e

da forma de pagamento, que vão se definir as etapas da construção de uma

embarcação, dentro de relações afetivas entre o mestre e sua obra de arte.

Uma vez acertada a encomenda, o mestre Dorival dava os primeiros passos

conforme o gosto do dono do serviço: “Eu desenhava porque às vezes o dono da

obra ele quer mudar um pouco alguma coisa. A gente tinha que fazer a vontade

dele”. Mesmo fazendo um pouco a vontade do dono do barco, mestre Dorival

sempre deixou sua marca nos detalhes de cada curva, ponta, mastro, cores e etc. E

a plenitude desta obra se faz quando a maré enche e o barco ganha vida pelas

águas do Rio Guajará-Mirim.

3.3 O RECONHECIMENTO DE UM MESTRE ALÉM DE POMPÉ

Foi entre os dez aos treze anos, precisamente nos anos de 1954 a 1957, que

o mestre Dorival passou a prestar serviços à comunidade ribeirinha da Ilha Pompé,

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passando a ser uma pessoa requisitada para o serviço de carpintaria naval em seu

meio ambiente.

No entanto, o contato constante entre a comunidade da Ilha Pompé - ilha

localizada quase em frente à cidade de Chaves - e a cidade de Chaves, localizada

no norte da Ilha do Marajó, tornou o Sr. Dorival também uma pessoa conhecida entre

os navegadores e pescadores deste município. E o principal motivo de se tornar

conhecido ancorou-se em seu precoce conhecimento e habilidade na construção de

barcos, já que o mestre tinha pouca idade, como ele mesmo dizia: “Eu ainda não era

nem homem feito”.

Apesar da região ter expressiva carência de transporte marítimo, a

contratação de seu Dorival para trabalhar como mestre carpinteiro no Estaleiro São

Tomé de propriedade do Sr. Augusto Figueiredo, localizado na Vila Ganhão, não foi o

objetivo principal para o atendimento das necessidades de transporte para a

locomoção da comunidade, mas foi sobretudo os interesses particulares de um

empresário que visava aplicar seus recursos financeiros na produção de

embarcações para as atividades pesqueiras – principal fonte de riqueza desta

região.

É nessa perspectiva que se constituiu a relação empregatícia entre o mestre

Dorival e o empresário e também prefeito da cidade de Chaves. Essa relação passa

a ser o ponto de partida para a afirmação de sua autonomia na aquisição de

conhecimentos ligados à carpintaria naval, dando-lhe suporte na consolidação de

sua reputação como mestre. Esse título ostenta até os dias atuais, sobretudo como

construtor de embarcações para a pesca, que ainda perdura, no primeiro decênio do

século XXI.

Com objetivo meramente econômico, o empresário-prefeito Augusto

Figueiredo estabelece um contrato verbal com o mestre Dorival para construir uma

frota de pequenas embarcações direcionada para a atividade pesqueira que

pudesse movimentar seu capital. A escolha desta localidade – Chaves – fez-se pois

já se sabia que a referida cidade – situada na Ilha do Marajó – é a região rica em

“fauna ictiológica marítima” (VERISSÍMO, 1970, p. 05), logo investir nesse setor era

a certeza de um retorno econômico garantido.

Tanto Veríssimo (1970) quanto a antropóloga Loureiro (1985) apontam em

seus estudos a riqueza ictológica dessa região:

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A abundância, variedade e qualidade dos peixes da Amazônia; a existência de grande potencial pesqueiro nos rios, lagos e costas próximas; a relativa facilidade de captura com instrumentos de trabalho simples e de fácil fabricação, aplicados a procedimentos de trabalho simples e de fácil fabricação, aplicados a procedimentos pouco complexos de captura; a existência de recursos naturais disponíveis para a confecção de grande parte dos meios de produção aplicados à pesca; a significativa experiência do indígena como pescador, assimilada e desenvolvida por brancos e mestiços que ocuparam a Amazônia e a existência de mercados consumidores, representados pelos aglomerados populacionais, foram fatores que se conjugam no sentido de converter a pesca, talvez, na atividade produtiva mais antiga da Região e o pescado (ao lado da mandioca) no alimento mais constante do homem da Amazônia (LOUREIRO, 1985, p.21 – 22)

Sobre a riqueza dessa região, o Sr. Dorival comenta em sua narrativa que um

dos principais locais na captura de peixes no Marajó “Era lá no Pacoval, lugar que

chamam que é de muito peixe. Nessa época eu trabalhei lá no pescado”, ou seja,

como pescador, ratifica o que os pesquisadores acima analisaram.

Mas para que o investimento na produção do pescado fosse mais expressivo

e de maior retorno de rendimento, despertou o interesse deste empresário em

compor um grupo de trabalhadores especializados para o seu empreendimento

pesqueiro. O local onde se arregimentou o pessoal foi o Estaleiro São Tomé, de

propriedade do Sr. Augusto Figueiredo, para onde se dirigiram as diversas

categorias de trabalhadores ligadas ao setor de pesca e de embarcação.

No processo de arregimentação de trabalhadores para essa empreitada,

foram contratadas mais de sessenta pessoas, sobretudo pescadores. Dentre esses

operários, estava o Sr. Dorival para o serviço de construção de barcos.

Ao comentar sobre esse seu primeiro trabalho no Estaleiro São Tomé, o

mestre Dorival diz:

Quando comecei esse trabalho que esse senhor que eu tava lhe falando, que era prefeito de Chaves – ele foi já umas três ou quatro vezes – que ele é uma pessoa boa. Na época eu tinha uns 13 anos e aí quando foi pra mim ir pra lá, eu não tinha ferramenta, ele trouxe todas as ferramentas, até ferramentas a mais do que eu queria [...].

Ao ser indagado o porquê da confiança que o empresário tinha em seus

serviços, ele responde com essa afirmativa: “Mas rapaz, ele viu. Ele me deu tudo.

Você pega assim e não tem nenhum defeito, uma rocha!” Ou seja, a qualidade dos

barcos que ele produzia foi a prova para essa contratação.

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A estratégia do Sr. Augusto Figueiredo de uma relação trabalhista amigável

sem vínculos empregatícios legais, estabelecida entre ele e o mestre Dorival, vai

conferir aparentemente ao mestre Dorival certa “autonomia” no desenvolvimento de

suas ações na feitura de embarcações. As doações de ferramentas, entretanto,

representavam sutilmente a dominação entre um (proprietário) sobre o outro

(empregado), ou seja, nessa relação o mestre ficava atrelado ao patrão, pois ele não

era dono de suas próprias ferramentas, muito menos do local de trabalho e da

matéria-prima necessária para o ofício. Tudo lhe era garantido de forma antecipada

para a confecção das embarcações.

Verifica-se que esse tipo de relação trabalhista realizada entre o mestre

Dorival e o empresário da Cidade de Chaves assemelha-se ao Sistema de

Aviamento38, pois tudo lhe era enviado pelo empresário na construção de

embarcações, das ferramentas ao tipo de madeira, posteriormente seriam

descontados do salário do trabalhador.

Essa modalidade capitalista era muito comum na Região Amazônica, seja na

coleta das chamadas “drogas do sertão”, como ervas aromáticas, plantas

medicinais, cacau, canela, baunilha, cravo, castanha e guaraná; na extração da

borracha. E esse tipo de modalidade econômica foi observada também no estaleiro

do Sr. Figueiredo.

Outro ponto encontrado no desenvolvimento do trabalho da pesca na região é

a relação trabalhista denominada de “parceiros” por Loureiro (1985), quando analisa

os pescadores e sua relação de trabalho na Região do Salgado: “Não sendo

assalariados formais, os pescadores não têm carteira de trabalho e nem usufruem

de qualquer forma de vínculo empregatício. São parceiros” (LOUREIRO, 1985, p.

37). Ainda sobre a relação de trabalho entre o pescador e o empresário Mello (2001)

discorre:

O sistema de parceria se constitui numa modalidade de relação que se estabelece entre proprietário e não proprietário dos meios da pesca, cujos resultados da captura, deduzidas as despesas da viagem, são repartidos basicamente em duas partes: 50% para o (s) dono (s) da embarcação e da rede (ou espinhel) e 50% pelos membros da tripulação (MELLO, 2001, p. 84).

38 Segundo o sociólogo Alex Fiuza de Mello, o Sistema de Aviamento é um sistema de crédito que se

estabelece entre o “aviador” e o “aviado”, onde aquele antecipa produtos ao segundo que, nada tendo em troca a dar no ato da transação, só pagar-lhe-á posteriormente como o resultado do seu trabalho.

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Observa-se inclusive essa parceria entre o mestre Dorival e o empresário

Figueiredo quando este ao entrar com todo o material e local para a construção de

embarcações para pesca, tem aquele como o principal parceiro para construir as

embarcações.

A parceria, no entanto, não reside na divisão do preço final da embarcação

construída, mesmo porque o mestre recebia no final deduzida as despesas em

espécie por cada barco construído. Mas, essa parceria se estabelece de forma

ideológica, quando o patrão ao lhe conferir a “liberdade” para fazer as embarcações

do jeito que lhes viessem na cabeça permitiu de certa forma ao mestre seu

aperfeiçoamento técnico e por que não artístico e também de certa forma, o

empresário ganha a confiança do mestre em produzir embarcações com mais

dedicação em menor tempo.

A estratégia desenvolvida pelo empresário nessa “parceria” fez do mestre um

trabalhador fiel ao patrão, mas apesar desse jogo ideológico do empresário, o

mestre Dorival inconscientemente tirou também proveito dessa situação, pois é

nessa relação trabalhista que este vai reforçar ainda mais os princípios de um

aprendizado autônomo, construído ao longo de sua formação humana e

posteriormente profissional. Esse aprendizado foi potencializado também a partir de

uma relação mais complexa estabelecida com os demais operários do setor da

carpintaria e da pesca no Estaleiro São Tomé.

Quando o empresário delega ao Sr. Dorival a função de mestre-carpinteiro e

lhe garante certa liberdade para fazer os barcos como bem lhe prover, esse

procedimento vai reforçar os princípios de sua autonomia como mestre. Isso permitiu

que os demais trabalhadores ligados à pesca estivessem sujeitos aos seus

procedimentos, gerando uma insatisfação no estaleiro.

Ao comentar esse episódio, diz:

[...] foi um pouco difícil, porque o pessoal que trabalhavam lá, inclusive tava até o meu tio e padrinho, ele já tava com 40 ou 50 anos, ele não aceitava que eu fosse manobrar. Fazer o desenho. Fazer a forma, como se diz, à dobração das cavernas. Eu fazia a forma, desenhava, riscava na peça pra ele cortar.

A recusa dos operários em não reconhecer (e obedecer as ordens) o mestre

residia na sua precocidade porque o Sr. Dorival ainda era um menino de treze anos.

Mas para que houvesse o reconhecimento desse jovem, o empresário chamou para

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uma reunião no estaleiro todos os trabalhadores envolvidos nessa empreitada, a fim

de tecer alguns esclarecimentos pertinentes à conduta dos trabalhadores diante das

ordens do mestre.

Mestre Dorival comenta: Nós éramos uns 30 e poucos trabalhadores. A gente era rapazes carpinteiro e eu que entrei novo lá, e eles não queriam aceitar. Como eles diziam: “Ser mandado por uma criança, o que é isso, né? [...] Aí ele nos chamou pra lá todos. Eu fui pra lá uma criança. Aí chegou lá, mandou sentar e disse: “Como é, vocês já resolveram? 'Não! Porque é difícil a gente ser mandado por uma criança'. O Augusto disse: “Olha, é o seguinte, eu não to pagando o salário de vocês, certo? Eu ainda vou melhorar o salário de vocês. Agora o que eu quero é esse menino, ele tem uma cabeça muito boa.

Nessa reunião o empresário intervém no conflito a partir das melhorias

salariais, além do cumprimento dos salários acertados, e por causa disso o Sr.

Dorival diz que “ele era um cara direito”. Com esta estratégia, cumprindo o acordado,

o Sr. Augusto Figueiredo subordinou ainda mais seus trabalhadores, pois como

disse o mestre Dorival: “Essas embarcações pra dá pros pescador pagar com a

produção”, ou seja, o patrão além de ter nas mãos os pescadores, legitimou o

mestre-criança.

Resolvido os entraves trabalhistas comumente surgidos no cotidiano de

qualquer relação social, o mestre-criança segue seu destino nesse estaleiro,

aprimorando seus conhecimentos técnicos na construção de embarcações.

Para esse empresário ele construiu aproximadamente quarenta canoas de

oito metros de comprimento e de 2,20 a 2,30 metros de largura. Apesar delas serem

construídas a partir de suas idéias, o mestre atendia ao pedido dos pescadores

quanto a algum detalhe que melhorasse a embarcação para o pescado em certas

regiões, sobretudo na vazante do Pacoval (Marajó). Ele ressalta que “As canoas eu

fazia pelo pedido deles. Eles queriam a quilha da canoa larga pra descer na

vazante”.

Apesar da autonomia que tinha em construir as embarcações desse

empresário do jeito que lhes viessem na cabeça, o mestre Dorival nunca deixou de

escutar a opinião daqueles pescadores, conhecedores dos ritmos das águas. É

nessa relação construída entre ambos que ocorria a troca de conhecimentos

necessários à formação de Sr. Dorival, pois “A relação com o saber é o próprio

sujeito, na medida em que deve aprender apropriar-se do mundo, construir-se”

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(CHARLOT, 2007, p. 82).

Desta forma, o mestre ao apropriar-se do conhecimento do outro (pescador),

amplia a construção dos conhecimentos ligados a vários tipos de embarcações,

mesmo porque os pescadores mais experientes trazem consigo uma gama de

conhecimentos adquiridos por seus antepassados.

Mello (2001) acrescenta que:

[...] O conhecimento que o pescador adquire é resultante da soma de dois processos: 1º uma iniciação educacional teórico-psicológica sobre a vida do mar e os segredos do ofício, que é transmitido oralmente ao aprendiz [...] 2º acumulação de experiências práticas que só podem ser obtidas na participação direta em várias pescarias. Os “segredos do ofício” compõem um arsenal acumulado de conhecimentos adquiridos ao longo dos séculos [...]. (MELLO, 2001, p. 106)

E como somos seres inacabados (Freire, 2001), e estamos em constante

processo de aprendizagem, a relação social entre o mestre e os pescadores,

conhecedores dos saberes da pesca, contribuiu na formação cognitiva de Sr. Dorival

de saberes ligados a construção naval. O mestre atendia as sugestões dos outros

trabalhadores e os barcos construídos seguiam particularidades dos locais para o

trabalho da pesca.

Foram oito anos de experiências adquiridas no Estaleiro São Tomé. Essa

estada do Sr. Dorival serviu como o primeiro grande passo para a melhoria de seu

aprendizado e da compreensão das relações sociais mais abrangentes do mundo

que o cercava, seja na economia, na religião ou na política.

Esse amadurecimento lhe conferiu maior reconhecimento como cidadão e

mestre ligado à carpintaria naval. E também levou a sua independência financeira,

completou sua formação humanística e permitiu o estabelecimento de sua base

familiar.

3.4 O AMADURECIMENTO PROFISSIONAL DO MESTRE DORIVAL

O reconhecimento conferido durante o tempo que trabalhou no Estaleiro São

Tomé, na Cidade de Chaves, fez do Sr. Dorival uma pessoa requisitada em outras

localidades para exercer o ofício de carpinteiro naval. A região onde mora é a

Amazônia, onde rios, furos e igarapés são as avenidas e ruas dos amazônidas, além

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de se constituírem como locais para a pesca que é base alimentar e econômica da

região, por isso a necessidade de carpinteiros.

Sua saída de Chaves para uma cidade de maior expressão econômica e

política que é a Cidade de Vigia, ocorreu a partir de um convite para prestar serviços

a um cunhado seu que possuía oito embarcações ligadas ao setor econômico

pesqueiro, sendo que quatro eram geleiras e quatro embarcações de pesca.

Ao ser indagado sobre sua vinda para Vigia, ele comenta:

Ele tinha quatro geleiras e mais umas quatro embarcações pequenas para pescar os peixes pro barco grande. Aqui pouco carpinteiro, aí ele se lembrou de mim. Ele sabia que eu era profissional, só pro pai dele eu fiz umas quatro embarcações pro meu sogro. Aí ele foi me buscar em minha casa.[...] Trabalhei, já fui trabalhar pra um ano aí pra eles, depois eles não queriam que eu voltasse. [...] Não faltava serviço pra mim [...].

Mestre Dorival permaneceu pouco mais de um ano trabalhando para seu

cunhado, tempo demasiadamente curto, mas devidamente reconhecido entre os

seus, nos domínios do ofício da carpintaria naval.

Na cidade de Vigia, ampliaram-se os contatos, principalmente de pessoas

ligadas a categoria de pescadores e carpinteiros, trazendo-lhe maiores

oportunidades de trabalho e concomitantemente conhecimentos. Esse conhecer se

faz porque estamos constantemente num processo de desenvolvimento cognitivo e

em franca expansão de aprendizado. Portanto, quanto maior o relacionamento do Sr.

Dorival em comunidades mais complexas, maior são os desafios e percepção de

seu inacabamento diante do novo.

E por sermos “seres da natureza alçados ao mundo da cultura” (BRANDÃO,

2002, p.18b), estamos em constante dialética em nosso meio social, passando por

nossos ciclos de vida, onde “A educação é, como outras, uma fração do modo de

vida dos grupos sociais que a criam e recriam, em sua sociedade” (BRANDÃO,

2002, p.10a).

Nesse sentido, Vigia passa a ser um local para mais uma fase de um novo

ciclo de aprendizado para o Sr. Dorival, pois o estreitamento de contatos entre os

membros de sua categoria entre outras, somados a sua relação familiar, alicerçada a

uma “cultura de conversa” (OLIVEIRA, 2007), transformou esta cidade no referencial

social para seu núcleo familiar, recém constituído e de transmissão de saberes

ligados a carpintaria naval.

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Dentro dessa perspectiva, Brandão (2002) comenta que:

Pois sendo, como todos os outros seres vivos, sujeitos da natureza, acabamos nos tornando uma força da natureza que se transforma ao aprender a viver. Sem cessar e sem exceção, entre todas as comunidades humanas do passado e de agora, transformamos seres do mundo de natureza: e unidades de uma espécie: indivíduos, em sujeitos, agentes culturais e atores sociais. Somos uma pessoa em duplo sentido. Ao conviverem conosco em cenários da cultura, como uma família nuclear, uma parentela, um grupo de idade ou de interesses, uma escola, ao longo dos sucessivos círculos dos seus ciclos de vida os nossos filhos e as nossas filhas aprendem, pouco a pouco, a internalizarem não somente “coisas” aos pedaços, como habilidade, condutas, saberes e valores (BRANDÃO, 2002, p. 21).

Por sermos seres humanos inacabados (Freire, 2001), o aprimoramento

desses saberes nunca se esgota, está em sucessivos “círculos e ciclos” de nossas

vidas, melhorando seu aprendizado e oportunizando a outros.

O reconhecimento, como um profissional qualificado na carpintaria naval em

Vigia, levou-o a ser contratado pelo Estaleiro da Marinha do Brasil, no ofício de

reformar as gaiolas39 de madeira.

Essa etapa foi mais uma em que o mestre vai aprimorar seus saberes da

construção naval, pois ao se deparar com novas estruturas técnicas de

embarcações maiores, além do contato com os outros operários que reformavam

navios ou balsas de ferro, ampliou-se a visão de mundo acerca de sua profissão.

Também lhe foi proporcionado o contato com uma nova estrutura organizacional, a

Marinha do Brasil, onde há normas militares e regras específicas da companhia a

serem religiosamente seguidas.

Foram três anos de contato com uma estrutura mais complexa de

organização social, ou seja, o Sr. Dorival transformou-se num funcionário público de

uma instituição militar, cujo ritmo de trabalho no Dique da Marinha seguia normas

rígidas.

O tempo em que passou nessa instituição militar decorre, sobretudo, da não

adaptação a essa estrutura rígida no trabalho exigida pelos militares, tanto que sua

estada foi breve. Sua oposição a essas normas é demonstrada a partir do diálogo

feito entre ele e o capitão encarregado do setor, quando diz:

Olha não vou lhe mentir, não é tanto, porque eu era acostumado a trabalhar só de bermuda e com uma chinelazinha e lá é tudo uniformizado. Você sabe né? Eu me sentia amarrado [...] Eu não me acostumo nisso capitão e eu me sinto amarrado.

39 Pequeno vapor de navegação fluvial.

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O ritmo, a organização técnica, as regras pré-estabelecidas dentro de uma

ética trabalhista sob uma estrutura militar, tudo isso contrapunha a seus princípios de

autonomia iniciado no seu primeiro emprego, na cidade de Chaves. Essas

exigências geraram um descontentamento que contribuiu decididamente para sua

saída da instituição, mesmo sabendo das garantias trabalhistas, como a

aposentadoria defendida pelo capitão para a sua permanência.

O mestre comenta sobre a insistência de seu superior para permanecer na

marinha, para não perder os benefícios. Dirigia-se ao mestre: “Rapaz, tu já tá com

uma boa idade. Pensa. Tu não pensa em te aposentar? Tu já pensou ganhar um

bom dinheiro?”

Além de sua não adaptação no cais da Marinha do Brasil, o Sr. Dorival era

muito próximo a sua família recém constituída, embora tivesse a necessidade de

comprar sua casa para acomodar sua esposa e filhos, ainda pequenos, não se

adaptou a essa nova relação de trabalho.

Esse constante movimento que começou por Pompé, passando por Chaves e

Vigia chegando até a Belém, depois retornando para Vigia, era resultado da busca

de sua afirmação como profissional autônomo da carpintaria naval.

Temos como resultado desses ir e vir do Sr. Dorival a ampliação de visão de

mundo acerca das relações sociais estabelecidas entre ele e a categoria de

pescadores, empresários e ao órgão ligado ao Estado (Marinha do Brasil). Essas

idas e vindas permitiram-lhe um processo constante de renovação de saberes

aprendidos nessa trajetória.

Sua volta para a cidade de Vigia se faz em mais uma etapa em sua vida, ou

seja, o mestre Dorival é como todo e qualquer ser humano inserido em um mundo

em constante transformação e aprendizagem.

Com recursos financeiros obtidos nesse tempo trabalhado no Estaleiro da

Marinha, Sr. Dorival fez alguns investimentos próprios, comprando um terreno às

margens do Rio Açaí. Ergueu sua casa, montou seu estaleiro. Foi aqui que construiu

uma embarcação própria, chamada Jenita, de 9 metros de comprimento por 2,80

metros de largura, de capacidade para 4 toneladas, com objetivo de atender às

necessidades familiares, aspecto muito comum da cultura amazônica.

E foi entre os anos de 1969 a 2000 que ocorreu a maior fase produtiva do

mestre Dorival, seja na construção de embarcações quanto no ensino-

aprendizagem, pois ao longo dos trinta e dois anos da existência desse Estaleiro

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chamado de São Benedito, muitos foram aqueles que conviveram com o mestre,

entre familiares ou não, num espaço que era a extensão de sua casa.

3.5 PRÁTICAS EDUCATIVAS, TRANSMISSÃO DE SABERES E RELAÇÕES DE

TRABALHO: “SE PASSAR OU SE FALTAR ELA TEM DIFERENÇA, TUDO NESTE

MUNDO TEM UMA MEDIDA”

O investimento aplicado na construção do Estaleiro São Benedito marca a

emancipação trabalhista do mestre Dorival e o transformou em um pequeno

empresário da carpintaria naval em Vigia de Nazaré.

A cidade de Vigia desde tempos coloniais sempre atendeu ao mercado da

capital do Pará, sobretudo no comércio do pescado, sendo que a atividade da

carpintaria naval sempre esteve presente, seja na construção de barcos para pesca,

carga ou passageiros, assim como para os reparos e reformas. Logo, havia

constantemente serviço para o mestre.

O Estaleiro São Benedito passou a ser mais uma referência de carpintaria

naval em Vigia, pelos serviços prestados à sociedade, e, especificamente pela

qualidade do produto fabricado neste estabelecimento.

Nesse estaleiro o uso de ferramentas elétricas marca uma maior dinamização

nas relações de trabalho, sobretudo na diminuição do tempo de serviço e na entrega

da encomenda. Ao ser perguntado sobre o uso de ferramentas elétricas, ele

responde dizendo: “Aqui já existia a motosserra neste estaleiro meu. Teve

motosserra, serra, um bocado de ferramentas elétricas. Então melhorou muito, já

deu pra aproveitar muita madeira”.

Por ser um mestre conhecido, a procura por serviços de carpintaria era

constante e para atender as encomendas, mestre Dorival trabalhava sempre com

uma média de quatro mestres-operários, que vendiam sua mão-de-obra diariamente

ao dono desse estaleiro, a partir de um acerto verbal das empreitadas.

Quanto à execução de uma empreitada, ele comenta “Bom, era o seguinte...

cada um tinha o seu serviço. Eu dizia: 'Olha, tu vai fazer esse serviço aqui!'”. A

organização e divisão de trabalho seguia as determinações do mestre, onde cada

um deveria cumprir com a meta diariamente acertada com o patrão.

O Sr. Dorival imprime entre os seus empregados um modelo de relação de

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trabalho assalariado, onde os contratados devem apenas executar aquilo que fora

acertado no dia, pois como ele afirma: “Eu pagava por dia. Eu empreitava o serviço e

eles trabalhavam na diária. Tudo era por minha conta: luz e ferramentas. Eles não

tinham despesas”.

Aparentemente essa relação trabalhista conferia aos trabalhadores

contratados certa autonomia no cumprimento de suas atividades diárias, mas ela se

esgotava no momento que o contrato finda ao cair da tarde e com sua devida

remuneração. Entretanto essa “autonomia” era relativa, pois estava atrelada ao

cumprimento das metas, que debandava um tempo médio para a entrega da

encomenda, isto é, os trabalhadores retornavam na manhã seguinte, diante de um

novo acordo verbal, para a execução da tarefa interrompida no dia anterior.

A vasta experiência do mestre Dorival no tempo gasto para a construção de

uma embarcação o transformava em um bom administrador. O domínio dos saberes

sobre o tempo médio e os gastos com o pessoal racionalizava o tempo e o melhor

aproveitamento do material, também conferia-lhe a pontualidade e o cumprimento

dos prazos estabelecidos. Como afirma o mestre:

Do jeito como tava a obra, de recuperar ou fazer embarcação, eu já sabia o prazo que tinha que dá, por exemplo, eu fazia um prazo de 30 dias. Eu entregava com 25, porque quando eles saiam, eu fazia serão. Eu também trabalhava de noite.

Além de se constituir como administrador era também um bom economista,

pois a dinâmica de trabalho desenvolvida entre o mestre e os trabalhadores

contratados tinha o propósito de mostrar a pontualidade na entrega do barco ao

dono, que geralmente acontecia com alguns dias de antecedência, garantindo dessa

forma o aumento de suas finanças.

Ao entregar com antecedência as encomendas, mestre Dorival além de

ganhar confiança e reconhecimento daqueles que o contratavam para a construção

de seus barcos, ganhava tempo em realizar novas encomendas e dinheiro, pois a

antecipação da entrega se convertia em menos diárias a serem pagas aos

contratados, como também a diminuição de outras despesas agregadas na

execução da encomenda, principalmente a energia elétrica.

Portanto, serviços de reparos e construções de barcos em Vigia não faltavam,

pois a localização geográfica desta cidade sempre favoreceu o desenvolvimento

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desse tipo de atividade trabalhista voltada para a pesca.

Pesquisas como a de Alex Fiúza de Melo “A Pesca sob O Capital” e de Violeta

Refkalefsky Loureiro, “Os Parceiros do Mar”, apontam a importância do setor

pesqueiro dessa região. Portanto, consolidando a idéia de que o Estaleiro São

Benedito, de 1969 até ao ano de 2000, constituiu-se como um local de muito

movimento no ofício da carpintaria naval em Vigia.

Nesses trinta e um anos de existência, o Estaleiro São Benedito transformou-

se também em um local de transmissão de saberes, pois além dos quatro mestres

fixos que eram contratados diariamente para a produção de embarcações, existiam

os ajudantes e curiosos que circulavam por esse ambiente. Também seus filhos,

sobretudo o Jacy, o primogênito, que estava constantemente na oficina, mesmo

porque o estaleiro era a extensão de sua casa. Era já um hábito a observação desse

cotidiano, contribuindo decisivamente para sua formação como carpinteiro na

atualidade.

Hoje não mais existe o Estaleiro São Benedito, pois as forças capitalistas do

setor da pesca conseguiram seduzir o mestre Dorival para a venda de seu

empreendimento caboclo. No lugar onde existia o estaleiro, instalou-se uma grande

industria pesqueira, com embarcações de ferro.

Apesar disso, seus ensinamentos permanecem ao desenvolver suas

atividades trabalhistas nas proximidades, no quintal de sua casa e no Estaleiro

Esperança, junto com seus filhos, sobretudo com o Sr. Jacy, que já é reconhecido

como mestre da carpintaria naval em Vigia.

Mestre Jacy ao ser indagado sobre a aquisição dos saberes que

correspondem à construção de barcos, ele responde: “Desde pequeno o papai

sempre me chamava. Ele me chamava pra eu trabalhar, mas eu sempre ficava

prestando atenção [...] Eu ia olhando ele. Eu sempre tava no trabalho com ele.”

A aquisição dos saberes, na carpintaria naval, a partir dessa relação educativa

autônoma entre o mestre Dorival e seu filho Jacy, faz-nos remontar a um dos

procedimentos educacionais básicos praticados pelos índios e caboclos no período

da colonização da Amazônia, a observação.

Ao citar esse princípio o missionário Jesuíta João Daniel no século XVIII,

descreve:

Já é tempo de dizermos cousa da grande habilidade e aptidão dos índios da América para todas as artes e ofícios da república, em que ou vencem, ou igualam os mais destros europeus. [...] Quando algum queria alguma obra

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de primor, não buscava os oficiais brancos, mas o índio; e só com lhe mostrarem algum original, ou dar-lhe a explicação da obra, para logo imitar, e fazer com perfeição. [...] Olham para o madeireiro que têm diante, e já com o machado, já com a enxó, e depois com os mais instrumentos logo ou com brevidade a dão perfeita (DANIEL, 2004, p. 341-342).

Mestre Jacy ao citar: “Eu ia olhando ele [...] e como agente tem a nossa

mente boa, esse detalhe é o que agente aprendeu”. Demonstra, portanto, que o

princípio básico de seu aprendizado na carpintaria naval se constituiu primeiramente

no olhar, depois no observar uma obra original, armazenando em seu cérebro as

partes que compõem uma embarcação. Quando na fase adulta, na necessidade de

trabalhar, colocou em prática tudo que havia armazenado sobre a técnica de

construção de barcos.

Percebe-se na fala do mestre Dorival que a decisão de seu primogênito em

trabalhar era autônoma. Quando indagado por seu pai sempre recusava: “Jacy meu

filho, tu não que trabalhar?” e o filho respondia: “Papai, ainda não tou com vontade”.

Mas essa vontade surge, segundo seu pai: “Quando ele arrumou uma moça, que é

essa esposa dele. Aí ele disse, papai agora vou trabalhar”.

O mestre Jacy ao ser indagado sobre a existência de alguma forma que

modelasse a construção de um barco, ele responde: “Não precisa fazer desenho

nenhum. Tudo está na cabeça: o tamanho, quantas toneladas vai levar. A gente já

sabe”.

Seu pai comenta euforicamente sobre a habilidade do mestre Jacy como

carpinteiro e expressa em sua fala que a observação foi o primeiro elemento

educacional constituidor de sua aprendizagem, quando diz: “Pois é pra ti ver como é

a pessoa que tem a cabeça boa, ele aprendeu rápido, ele olhava e já sabia trabalhar

[...] Eu não precisava falar meu filho faz isso. Ele mesmo fazia.”

Mesmo com o aprimoramento tecnológico, com desenvolvimento de software

ligado a construção naval, os procedimentos educacionais indígenas e caboclos que

se realizam no observar, no memorizar e no armazenar as informações no cérebro

para posterior transmissão, coexistem no século XXI. Essa experiência se faz seja

no Estaleiro Esperança, onde gerações sobrevivem, como também no Beiradão do

Rio Guajará-Mirim, onde se convergem quase todos os membros das categorias de

carpinteiros e pescadores.

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Ilustração 27: Fotografia do mestre Dorival e seu filho Jacy. Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

Outro procedimento observado a partir dessa educação autônoma difundida

por seu Dorival no Estaleiro São Benedito, é a conversação e diálogo dentro de uma

relação fraterna, aliás, uma das qualidades de nossos antepassados citada pelo

Padre João Daniel, na obra: ”Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas. Vol. 1”,

quando diz: Outro louvável costume que têm os índios é a grande caridade que

usam uns com os outros na comunicação da mesa: porque todos comem igualmente

seja muito ou seja, pouco o sustento (DANIEL, 2004, p. 346).

O estaleiro caracterizado como a extensão de sua casa, a conversação

sempre circulou entre o ambiente da oficina como também à mesa da cozinha ou

nos bancos de madeira, geralmente em baixo de uma árvore. Era nesta hora, a do

almoço, que se desenvolvia a formação ética entre aqueles envolvidos na família do

Sr. Dorival, pois o respeito ao outro, o cumprimento dos acordos – seja salarial ou da

entrega da encomenda – a pontualidade, a religiosidade como formadora do caráter

do profissional, faziam-se presentes neste momento.

Essa relação ética fez-se desse estaleiro um espaço pedagógico e o mestre

Dorival como docente40 de uma escola sem muros, onde a flexibilidade do ensino e o

diálogo são condições primordiais desse espaço.

40 Segundo o Dicionário Aurélio, docente significa pessoa que ensina.

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O clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes,

generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem

eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico. (FREIRE, 2001, p.

103)

Reafirma isso em suas simples mais experientes palavras: “Não precisa tá

esculhambando. É pior! Tem que conversar! [...] Eu também não era um pai de tá

aperreando. Olha. Vem. Vê. Vem, porque quando a pessoa nasce pra ser aquilo

[...].”

Foi nesse ambiente escolar não formal que se desenvolvia “A Cultura de

Conversa” (OLIVEIRA, 2007, p. 51), que é mais um dos elementos constituidores de

uma educação típica entre os amazônidas, que a partir da transmissão oral dos

saberes que compõem a construção de uma embarcação vão sendo repassados de

uma geração para a outra.

O mais importante dessa relação é que a educação e a cultura do passado e

do presente estão imbricadas, reforçando esse tipo de educação construída

historicamente.

Essa escola além de formar o mestre Jacy preparou também seu filho Juracy,

que já é considerado por seu Dorival um mestre, mesmo porque na avaliação do Sr.

Dorival (observação), para se tornar um profissional é preciso que a pessoa tenha

segurança naquilo que está fazendo. O mestre pondera:

Olha, é o cara ter de fazer uma embarcação por conta dele, pelo menos botar a quilha, a estrutura dele é o talha-mar, a espinha e botar os quatro braços no meio e os dois terços que é dividir no meio com o talha-mar. Aí bota o outro prá cá, aí ela fica a armação. Daí ela tando armada é o que o senhor pode dizer que o cara é um profissional. Quando o cara chega a fazer isso ele já é um profissional.

O mais novo mestre herdeiro dos saberes da carpintaria do Sr. Dorival já

havia sido avaliado por seu pai quando construía um barco no quintal de sua casa,

tanto que quando perguntado sobre o que ele achava da construção de seu filho,

mestre Dorival responde:

Olha esta canoa aqui está bem armadinha, sendo a primeira. Eu na minha idéia está bem armadinha. Eu aqui não dou nenhuma opinião pra ele, se eu vê uma coisa muito diferente aí eu digo meu filho olha, falta mais aqui e ele ajeita, mas até aqui eu não disse nada.

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Ilustração 28: Fotografia do mestre Dorival e seu filho Juracy. Fonte. Arquivo pessoal de A. Gualberto, 2009.

Para o Sr. Dorival a embarcação estando bem armadinha41 se constitui como

uma das etapas finais para se tornar um mestre, no caso de seu filho Juracy que

conseguiu vencer essa etapa, fora aprovado pelo mestre.

Portanto, os elementos educacionais difundidos entre o mestre Dorival e seus

filhos partiram da observação, da conversação e diálogo, elementos esses que

reforçam o princípio de autonomia do sujeito. No entanto, na concepção educacional

do Sr. Dorival existem outras formas de avaliação para uma pessoa ingressar na

categoria de carpinteiro, o primeiro passo era observar se o principiante tem algum

conhecimento sobre embarcação, como ele mesmo diz:

Porque se o senhor não tem prática, eu dou o serviço pra você fazer, então, no pé, e o camarada tirar um barco. Ele não tem bem prática como se tira um barco (que é aquilo que tá plainado) e o cara que não tem prática ele deixa buraco. Fica buraco na serrada, porque ele não tem prática pra serrar ainda, ele ainda não ta profissional. O que acontece, o cara tem que tirar com mais altura, aquela peça, aquele braço, pó que? Porque ele ainda não tem zelo com aquilo.

41 Bem armadinha significa dizer que a embarcação já está com toda a estrutura básica montada, composta por quilha, talha-mar, terças, cavernantes e a fasquia.

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O segundo passo é o mais importante, segundo o mestre, que é a relação

entre o aprendiz e o equipamento de trabalho:

É saber pegar a ferramenta. Ter cuidado, porque a ferramenta elétrica é arriscada. Tudo é arriscado, tem que saber serrar. [...] Quando a pessoa ainda não tem bem certeza ele nunca deve cortar uma peça com serrote em cima do risco, sempre tem que cortar adiantado.

Observa-se a habilidade que deve ter o aprendiz com a ferramenta. Isso é de

muita importância na avaliação do mestre: “Porque no caso é o seguinte, eu... eu...

quando a pessoa pega na ferramenta, eu sei se ele conhece a profissão. O jeito que

ele pega uma plaina.”

É importante que se registre que além dos aprendizes passarem por essas

fases apontadas pelo mestre Dorival, também todos eles, inclusive o mestre -

embora não tinha consciência da dimensão dos conhecimentos aplicados as suas

ações diárias nesse tipo de trabalho - desenvolvem diversos tipos de conhecimentos

ligados aos saberes como: da Ética; da Administração; da Economia; da Arte; da

Educação; da História, mencionados ao longo dessa pesquisa.

Outros saberes como o da matemática estão presentes em todas as etapas

na construção de um barco. O trabalho de “Carpinteiros Navais de Abaetetuba:

Etnomatemática navega pelos rios da Amazônia”, de Isabel Cristina Rodrigues de

Lucena, descreve a utilização da matemática e práticas vivenciadas no seu

cotidiano, à exemplo, do palmo como unidade de medida; a utilização do graminho,

um instrumento criado pelos carpinteiros que traçam riscos na madeira para serem

cortadas, entre outros.

Lucena (2002) nos coloca que a matemática que se vivencia em um estaleiro

da Amazônia, seja em Abaetetuba ou Vigia, é diferente daquela vinculada na escola,

pois “Geralmente o que se vê na matemática escolar são conteúdos

compartimentalizados e isolados do mundo vivenciados pelos sujeitos alvos da

aprendizagem. Já a matemática dos carpinteiros navais é contextualizada e faz parte

de uma visão de mundo menos disciplinar.”

Ao comentar em uma das entrevistas dizendo “tudo neste mundo tem uma

medida”, reforça a existência de saberes da Física e a Química, aplicados

inconscientemente entre os carpinteiros, mas percebidos nas entrevistas e

registrados nas fotografias concedidas pelo mestre Dorival.

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Um dos princípios da Física que são difundidos no cotidiano da feitura de um

barco é o equilíbrio, pois há uma preocupação por parte do mestre Dorival na

colocação do mastro da embarcação, porque a pedidos de alguns donos de

embarcação de pesca colocam a peça na parte superior (convés) do barco, não

mais na parte inferior, ou seja, na quilha.

Ao ser indagado sobre essa inovação ele responde:

Uma árvore com pouca raiz, ela já revira pra o lado. Então não acredito que seja mais seguro, eles botam pra dar estabilidade lá em cima, pra não empatar. Aí o que acontece... o resultado é isso daí... Aí o acidente pode ser maior, porque na maresia [...].

Segundo o mestre para dar maior segurança ao barco, ou seja, para o

equilíbrio da embarcação, o posicionamento do mastro tem que está fixado na

sobrequilha, na parte inferior:

Era em baixo, porque ele fica mais seguro. Porque eu falo o seguinte, né! O mastro, ele vai lá pro porão dele, ele vai, vai, quase 1/3 do mastro, por exemplo, se ele tem 30 metros, ele vai 10, se ele tem 10, ele vai 3, então diminui a altura, né? Aí pra ele botar um mastro em cima do convés, ele tem que cortar essa medida, porque se ele for botar tudo fica ruim. Fica uma antena. Mas ele não fica seguro como ele é pra baixo.

Por causa disso, Mestre Dorival prima pela segurança das embarcações, não

modificando seus procedimentos no posicionamento do mastro, além de criticar

àqueles que por acharem que gastam menos põem em risco as suas e as vidas dos

pescadores.

O equilíbrio é um princípio da Física o qual é respeitado pelo mestre Dorival,

quando ele explica a diferença de um barco com forma achatada para o roliço. Nesta

explicação ele caracteriza um outro princípio da física, o empuxo de Arquimedes:

Eu vou lhe dá uma idéia, o senhor manda cortar dois rolo de pau, com motosserra né! Dois rolos, aí o senhor deixe um e vai partir um no meio, e o senhor bote na água ele virado assim e bote o que era o roliço, pra você vê se o senhor vai se segurar nesse que é roliço ou o senhor vai se segurar nesse aqui (cortado no meio), porque lá na água ele não faz isso ( gestos de equilíbrio), e o rolo, você não se segura (gestos de rodar), por aí você tem uma idéia do que eu tó falando.

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Mestre Dorival além de carpinteiro calafetava seus barcos. Ao desenvolver

essa habilidade, passava a tomar conhecimento das misturas de elementos

químicos, tais como: izalcão, óleo de linhaça e o créo, que dessem resistência as

substâncias que vedavam as frestas do forro das embarcações. Comenta que para

fazer o “tempero” o segredo era:

Porque também pra não ficar agrudada a massa e nem muito dura, ela tem um tempero pra poder pegar. Se você fizer muito mole não tem como de pregar, tá mole. Tá igual a um mingau e também muito dura ela esfarela. Ela tem uma posição. Mestre, tudo nesse mundo tem a química, o normal, o complemento, né verdade? Se passar ou se faltar ela tem diferença. Tudo neste mundo tem uma medida. Não é assim como muita gente tá pensando, quer fazer e faz errado. É como eu tô lhe dizendo, a embarcação não é pra quem não é profissional.

Prosseguindo em sua fala acerca do tempero para calafetar, ele responde:

Sim, a massa é com óleo de linhaça, aí tem uma faixa de 2 horas, 1 hora e pouco, pra ela ficar numa posição, mas pra botar essa massa na embarcação, ele vai ter que tirar e bater mais uma meia hora. Bate assim: Pega uma bola da mesma massa e bate em cima da tábua, duma peça, aí ela fica liguenta. Daí ela tá no normal. Aí o senhor vai aplicar, enche uma vasilha com água, um tamborzinho, corta ele - tem muito de plástico - bota uma água e bota a massa dentro pra ela não secar, pra não endurecer. Aí o senhor vai tirando os pedaços e vai aplicando.

Apesar dos princípios dos saberes da física e da química serem comentados

nessa pesquisa, precisam ser aprofundados com trabalhos que foquem

especificamente esses saberes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo, realizado entre os anos de 2007 a 2009, no Estaleiro Esperança,

localizado na cidade de Vigia, veio constatar a existência de práticas educacionais

estabelecidas entre os sujeitos envolvidos no cotidiano da comunidade de

carpinteiros.

Essas práticas educativas foram construídas ao longo de gerações, e

repassadas às mais novas a partir da observação, da oralidade – cultura de

conversa - prática muito comum entre as comunidades tradicionais da carpintaria

naval na Amazônia, depositárias da herança cultural de nossos antepassados

indígenas e portugueses, que apesar do atual avanço das novas tecnologias, com

dificuldades ainda se preservam no interior dessas comunidades.

Mesmo com a introdução de maquinário nesse estaleiro, o que contribuiu para

dinamizar a produção de embarcações, observou-se a coexistência dos aspectos

culturais de nossos antepassados na fabricação de uma embarcação, pois o olhar

atento daquele que observa o outro; a conversa entre os sujeitos acerca da

encomenda em seus aspectos gerais, entre compra da madeira, tempo, valores,

forma da embarcação, entre outras, são realizados dentro dos aspectos da cultura

de transmissão oral.

Neste aspecto a fotografia foi um dos recursos que muito contribuiu no

registro da presença de alguns garotos que sobre seus olhares atentos nas ações

desenvolvidas pelos mestres carpinteiros, observavam, captavam e até mesmo

imaginavam o querer saber fazer uma embarcação. Isso são práticas educativas de

gerações passadas, que também se constituem como a primeira forma para um

aprendizado dos seus saberes locais, relativos à constituição do homem enquanto

sujeito social e histórico, isto é, como partícipe de seu grupo, de sua comunidade.

Dessa maneira aconteceu com o mestre Dorival quando criança ao construir

sua primeira embarcação de nome “Foi Deus”, e depois tantas outras, consolidando

os saberes da carpintaria naval, que mais tarde foram transmitidos dentro de

aspectos específicos de uma educação autônoma, orientada pelo mestre a gerações

mais novas, sobretudo aos seus filhos Jacy, Juracy e Ubiracy.

Apesar dessa constatação positiva no que tange a constante visita de jovens

no estaleiro, foi percebida entre esses sujeitos algumas preocupações no que se

refere a diminuição de encomendas. Os mestres Jacy e Juracy apontam que essas

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dificuldades estão associadas às questões ambientais, devido ao desmatamento

desenfreado da floresta, causando uma alta dos preços das peças pelo

desaparecimento de algumas espécies próprias para a carpintaria naval, agravadas

pelas dificuldades de financiamento dos construtores dos barcos e daqueles que os

encomendam – os pescadores artesanais.

Além desses fatores que desencadeiam instabilidade no setor da carpintaria,

anunciados pelos mestres, outros foram constatados em obras analisadas,

sobretudo críticas de alguns autores em relação à ausência de uma política pública

que valorize, incentive, respeite e até mesmo o resgate da importância desse setor

para a cultura amazônica, que uma vez incentivada geraria empregos e reproduziria

mão-de-obra para o setor, consequentemente o surgimento de mais mestres

carpinteiros.

A inserção da Amazônia ao capitalismo mundial na década de 1970, sob o

governo dos militares no chamado “Grandes Projetos”, foi o passo fundamental para

tais políticas de não inclusão dos produtores da carpintaria naval artesanais da

Amazônia.

Nesse sentido, o Estado passa a priorizar as corporações de indústria da

pesca, que para tornar o setor pesqueiro mais produtivo, não aproveitaram a

tecnologia cabocla de construção de embarcações para a pesca, alegando em seus

relatórios que as mesmas são rudimentares, não apropriadas para tais serviços.

Para isso priorizam a vinda de embarcações de ferro produzidas nas grandes

indústrias navais do sul do país, capazes de tonelagem superiores de

armazenamento de pescado capturado em alto mar, relegando a segundo plano as

embarcações produzidas nos estaleiros artesanais ou semi-artesanais de Vigia de

Nazaré e de outras localidades. Esses estaleiros sem incentivos assistiram seu

espaço de trabalho ser invadido e desmontado quando da introdução do grande

capital nas atividades pesqueiras da região do Salgado.

São esses os principais fatores que estão levando a diminuição das

encomendas e de mão-de-obra, além de outros que vieram com mundialização do

capital na Amazônia, cooptando os mais jovens para outros setores de trabalho,

sobretudo do Terceiro Setor da Economia – comércio e serviços gerais – que

ideologicamente são difundidos como mais dinâmicos e promissores.

No entanto, foi constatada, na beira do Rio Guajará Mirim, o que podemos

chamar de resistência da cultura cabocla na arte de construir ou restaurar

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embarcações, pois aqueles que não possuem oficina prestam serviços neste local, e

desse modo o transforma em um ambiente convergente de mestres, aprendizes e

curiosos na arte de fazer uma embarcação, onde a propagação de saberes da

pesca, do meio ambiente, da fauna marinha da região, da arte de navegar, da

química, da física, da cartografia, da geografia, da leitura do ritmo das águas e do

tempo, que ora são difundidos no cotidiano de cada um. Esses saberes requerem

outros estudos para a compreensão, registro desses saberes comuns do cotidiano

na Amazônia e que a séculos sobrevivem nas comunidades tradicionais ribeirinhas.

A universidade tem papel relevante no que diz respeito ao resgate e difusão

desses conhecimentos, promovendo a valorização dos mesmos, atuando como

difusora e re-ordenadora da cultura, propondo a atualização e incorporação desses

saberes de modo organizado em espaços comunitários e oferecendo suporte às

necessidades de conhecimento necessário para o acesso aos financiamentos

disponíveis para os pequenos produtores artesanais, que podem sem embaraços

maiores conviver com o grande capital investido na atividade pesqueira atual. Para

isso a educação é fundamental como ferramenta capaz de atrair, organizar, formar

os jovens, estimulando talentos naturais na construção de barcos não só para pesca

de sobrevivência cotidiana, mas como estratégia de defesa ecológica e proposta aos

turistas interessados em pesca esportiva a ser realizada em condições sócio-

ambientais corretas e tendo o desafio da rusticidade amazônica como atrativo.

Finalmente, apresentamos este trabalho como pequena contribuição ao

desvelamento das comunidades dos estaleiros navais artesanais existentes na

região e suas práticas educativas e de resistência e o dedicamos ao esforço

cotidiano e anônimo dos seus mestres carpinteiros de ontem e de hoje.

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GLOSSÁRIO

Amarrado Preso a algo

Apuá Furadeira manual

Bacalhau Colocar o motor em falso, errar

Beiradão Margem de um rio

Escangalhar Quebrar

Espiar Olhar

Fasquia Régua de madeira que modela a armação de um barco

Forcejar Retorcer a madeira, curvar

Gaiola Tipo de embarcação de madeira

Itaúba Espécie de madeira, boa de curvar naturalmente

Lascou pau-d”água Algo difícil

Levar a cunha Assentar o motor em falso, errar

Muciço Local certo

Parelhar Cortar madeira correta para o encaixe

Popa Parte traseira da embarcação

Proa Parte dianteira da embarcação

Vergar Entortar a madeira, curvar

Zitinho Criança pequena

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APÊNDICES

ENTREVISTAS

Entrevista (3º capítulo) Local: Cidade de Vigia Dia: 12 (Parte I) e 18 (Parte II) de abril de 2009 Pessoa entrevistada: Sr. Dorival ou Bigaiu - Mestre da carpintaria naval mais antigo no ofício na cidade de Vigia

Parte I

1 - Quantos filhos o Sr. Tem? 09 filhos sendo que 04 homens e 05 mulheres

2 - Qual a escolaridade de seus filhos? Estudaram até a 3ª, a 4ª, a 5ª e 6ª série – “não quiseram mais, aí foi problemas deles, pra querer trabalhar. O estudo é muito bom, mas custa se formar. Eu quero que vocês trabalhem e façam a coisa certa.

3 - Quantos filhos seus seguiram a profissão de carpinteiro? - Todos eles seguiram a profissão de carpinteiro. Tem o Jacy ele é um profissional. O Jura ele está sendo quase um mestre, ele já está construindo uma canoa e não é todo mundo que faz aquilo de primeira não, ele já fez uma.

4 - Senhor Dorival, de quem o Sr. Aprendeu o ofício de construção de barcos? - Eu trouxe isso de nascença.

5 - Como foi? - Eu quando comecei esse trabalho, eu estava com uma idade de 13 anos.

6 - O Sr. Observava a construção de barcos em algum estaleiro? - Não, não! Porque adonde nos morava, nessa dita ilha que é nossa ela é separada do Marajó. Nosso pai nesse tempo, agente era governado, não tinha, não podia dizer assim, eu vou em tal lugar, só se ele liberasse pra gente poder ir, vê o que queria ou qualquer coisa. A vida era difícil, porque lá é uma ilha enfrente a do Marajó.

7 - Como era o nome dessa ilha? - Ilha Pompé

8 - Ela é grande? - Ela tem uma faixa dumas 10 a 15 estradas de seringa, é um bom terreno.

9 - Era só a família de vocês que morava nessa ilha? - É só nossa família, só... só...só. Eles estão criando agora búfalos.

10 - Hoje tem pessoal seu lá? - Tem, tem com certeza.

11 - O que levou o Sr. Sair da ilha Pompé para a Vigia?

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- Foi o estudo dos filhos, porque eu já tinha três filhos, duas filhas e um filho, o Jacy, e aí eu achava que não dava certo assim, né? Mesmo eu com minha porção eu ganhava pra sustentar eles, dava pra mim, muito bom de se viver, farto, tudo de bom, sem violência, mas era o estudo, e aí, como eu tinha um cunhado aqui, que já faleceu.

12 - Seu cunhado era daqui de Vigia? - Sim, era daqui, ele tinha quatro geleiras e mais umas quatro embarcações pequenas para pescar os peixes pro barco grande, aqui pouco carpinteiro, aí ele se lembrou de mim, ele sabia que eu era profissional, só pro pai dele eu fiz umas quatro embarcações pro meu sogro, aí ele foi me buscar em minha casa. Deixei um bocado de coisas meus de valor entregue lá e vim pra passar uns dois ou três meses.

13 - Quer dizer que o Sr. Veio pra Vigia para atender seus filhos nos estudos? - Exatamente! Eles vieram para o estudo, era só três nessa época. Aí cheguei, aí eu trabalhei, né? Trabalhei, já fui trabalhar pra um ano, já um ano trabalhando aí pra eles, ao depois eles não queriam que eu voltasse mais e eu [...] Não faltava serviço pra mim, mas eu não tinha casa, minha casa era lá, aí depois eu fui trabalhar, dele, eu saí uns dias e fui trabalhar lá na marinha, no dique da marinha.

14 - Onde é esse dique da marinha, aqui na Vigia? - Não, em Belém, fica perto do Cabo [...] da marinha, aquilo lá.

15 - O Sr. Fez o que no dique da marinha? Trabalhou em que lá? - Eu tava refazendo essas gaiolas de madeira.

16 - O Sr. Lembra o ano? - Isso aí já vou lhe dizer, deve ser umas faixa de uns 25 a 30 anos.

17 - Quer dizer que o se. Reformava gaiolas na marinha? - É, reformava gaiolas na marinha, é porque lá tinha o carpinteiro da madeira e o carpinteiro que era de soldado e lá entrava navio, entra aquelas balsas e aqueles rebocadores.

18 - E o Sr. Ficou só na parte da madeira? - É eu fiquei só na parte da madeira, que era o que eu sabia, eu e mais outros carpinteiros. Não fiquei lá porque não me acostumei, devido que lá é... entrou lá e, o senhor sabe que é essas coisas. Quando foi um dia eu reclamei, queria vir embora, né? Aí o capitão disse: “Rapaz, tu já ta com uma boa idade, pensa, tu não pensa em te aposentar? Tu já pensou ganhar um bom dinheiro?” - Eu disse: “mas ... (eu tava com uma faixa de uns 35 a 40 anos, por aí assim) eu disse, mas o problema é a minha família. Deixa está que eu tou querendo uma ponta o máximo que já tenha ganho pra comprar minha cãs, aí expliquei prá ele, eu disse: “ Olha não vou lhe mentir, não é tanto, porque eu era acostumado a trabalhar só de bermuda e com uma chinelazinha”... e lá é tudo uniformizado, você sabe né? Eu me sentia amarrado, e o tempo que cobrava, né? - Eu dizia pra ele, né? Eu não me acostumo nisso capitão e eu me sinto amarrado.”

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19 - Quanto tempo o sr. Trabalhou lá? - 03 anos

20 - Sr. Dorival, vamos falar de sua experiência em construir barcos. Como o Sr. Aprendeu a construir barcos? Como foi esse início? - Eu aprendi a fazer barcos, foi só eu começar a fazer aqueles barquinho de miriti (é quase um tipo de madeira) e a cortiça, a cortiça é uma árvore que tem a raiz dela é mole, e eu pegava aquela raiz e eu desenhava tudinho e fazia do jeito que dava na minha cabeça, eu nunca tinha visto isso, navio, assim, coisa no estaleiro. Nada. Eu só via passar uma barca dessa qualquer, mas eu desenhava igual.

21- Nessa época, o Sr. Tinha quantos anos? - É eu tava na faixa de 10 anos, eu tinha vindo de Belém, que o meu pai não deixou eu findar meus estudos, eu já ia pro ginásio, daí eu ia pro Rio de Janeiro, fazer um negócio de um estágio com um tio num estaleiro, ele ia me levar prá lá, o meu pai não deixou, porque ele disse que nunca mais ia me ver. E meu tio deu de resposta: “ Olha seu Nenêm (era o apelido dele) pois o senhor ta enganado porque seu filho é estudioso e com certeza ele ia ganhar pra pagar sua passagem com o ganho dele, mas o senhor não quer, o senhor é pai”” ... e a gente era governado mesmo e eu não fui e fui embora para o Marajó.

22 - Quer dizer que o senhor é quem fazia seus brinquedos? - Era e ninguém dizia como era pra mim fazer, e eu não gostava que ninguém me desse idéia, porque eu tenho uma idéia que eu era tão coisa que eu não queria que ninguém me desse opinião pra mim poder fazer como dava da minha cabeça.

23 - Como assim, o senhor olhava e fazia? - Era, eu fazia de miriti, tudinho, desenhava, aí o papai viu aquilo e disse: “ Meu filho, será que tu não faz uma embarcação, uma de madeira?”, Eu disse: “ Papai, se tiver as ferramentas eu faço”, porque essa que eu fazia era com uma faquinha bem amolada”. 24 - O sr. Tinha quantos anos nessa época? - Eu já ia fazer 13 anos. 25 - Treze anos? Com treze anos o Sr. Já começou a fazer barcos? - Isso, com treze anos, eu ainda não era nem homem feito. Aí eu disse, se tiver ferramentas, eu faço.

26 - E quais eram as ferramentas na época? - Essas ferramentas eram as mais velhas, que era de um tio meu, que já não trabalhava mais [...]

27 - O Sr. Lembras quais eram? - Lembro sim, plaina de serra, mas não era elétrica, na época não tinha nada elétrico, era enxó, serrote, compaço, grampos, aquele grampo que quando a gente vai apertando ele vai entortando todinho de tão velho que era, que era do meu tio e padrinho, já não trabalhava mais, ele trabalhava com as novas que ele ia comprando e essas velhas ele me arranjou.

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28 - Se nada era elétrico, então, como era trabalhada a madeira para fazer um barco? - Até para parelhar a madeira tinha que cortar com enxó, aí tirava a grossura dela, a grossura que vai ficar, dobrava ela, depois disso eu passava a plaina pra ela ficar lisa, não ficar aquele zinco da enxó.

29 - Essa madeira vinha de onde? - De lá mesmo, é uma madeira chamada maúba.

31- Essa madeira era a melhor? - Essa era mais apropriada.

32 - Servia para a quilha ou talha-mar? - Não, não, essa embarcação que eu fez era uma canoa... a cara dela é chata, mas só que não era como eles fazem aqui que a largura é imensa até no fim, ela era desenhada, feito magrinha aqui pra baixo, ela portava igual um barco e aqui eles fazem parece que ta com dor de dente.

33 - Então a peça era inteira na frente? - Era inteira, não era o talha-mar.

34 - Então essa peça inteira era feita de maúba, assim como também servia prá fazer a quilha? - Não, não, a tábua era com a maúba e a quilha, jataúba, elas era quase igual parecida, só que a jataúba, ela era mais dura um pouco e ela era apropriada pra quilha.

35 - E a melhor tábua para revestir a embarcação nessa época? - Era a mesma coisa, a maúba era uma madeira boa pra vergar, igual a itaúba; que tem a itaúba, né? Que é a melhor madeira que nos temo no mundo, a madeira mais durativa é a madeira boa pra trabalhar, ela verga (ela vem assim e vem pra até, do jeito que tu quiser, não precisa dar fogo, e essa outra madeira toda, pau-d’arco, sapucaia tem que dar fogo porque ela é dura, senão ela quebra, se for querer meter sem dar fogo ela quebra.

36 - Mas essa itaúba não se encontra mais, não? - Tem muito lá pra Abaeté, vem do Amazonas.

37 - Aqui no Pará não tem mais? - Não, não existe isso aqui, é só no Amazonas, vem de lá pra ir pra Abaeté, Barcarena r vai espalhando, aí tem um depósito em Belém com esse tipo de madeira.

38 - Nem no Marajó tem mais? - Não, no Marajó mermu não existe, a madeira que existe lá é macaúba, piquiá, essa que eu lhe falei (maúba), loro, jataúba, agora, o problema da embarcação grande pra pequena é muito diferente, porque lá donde eu fazia as embarcação pequena, ela num tinha como forcejar e a embarcação grande, ela já forcejava, devido que a grossura é quase uma escomungada.

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39 - O que é forcejar? - Forcejar, é porque uma tábua, numa largura de 20 cm (que é isso aqui), ela é difícil do Sr. Por exemplo, ela vem embaixo da embarcação, aí quando tem um talha-mar, ela já vem retorcendo. O Sr. Não retorce uma tábua daquela com a mão, o se. Tem que ter o grampo, o grampo que é pra ir apertando e o forro pra ela ir, porque tem tudo isso e tirar o ponto de uma tábua dessa. É isso que a pessoa tem que aprender, porque eu coloco uma tábua dessa? Porque tem muito carpinteiro que bota a tábua lá pra pontear a tábua, aí corta tudinho, ajeita e traz de novo, e eu não boto lá, é uma régua com essa largura com 1/5 centímetros de grossura, puxo aquela régua, chama-se fosquilha, aí pontia ela tudinho, risco os rumos dos braços, aí eu pego essa fasquilha e boto em cima da tábua, marca tudo os rumos dos braços (sem passar prá lá e sem passar prá cá), essa tábua faz seis prá lá e seis prá cá, o senhor não pode levar pra frente porque senão falha, porque senão dá diferença, então por isso que é riscado, não pode ir prá lá nenhum centímetro, nem meiozinho de nada, e nem prá cá.

Comentário:

1. Seu Dorival é complicado fazer isso ao, eu estou ouvindo aqui e achei complicado. Digo ao senhor que esse conhecimento é complexo, muitos alunos de universidades não têm.

R= Com certeza, se eu for explicar isso lá, eles não vão nem entender.

2. Mestre, confesso ao senhor que fiquei confuso. Quando o sr. Fala que é prá dobrar. Pra que é prá dobrar?

R= É porque o fundo do barco, ele não é assim (gestos), é assim (gestos), aí ele vem, vem prá proa, vem fechando até fechar pro talha-mar. A primeira, a segunda, a terceira tábua é meio complicado pro cara colocar e mais complicado é quando o cara fura a embarcação, aí o furo dá numa daquelas tábuas e como é que o senhor vai colocar uma tábua daquelas fazendo força que já não pega grampo, que tem uma tábua daqui e outra dali, como é que o senhor vai meter uma tábua no meio forcejando?

40 - Como assim? - Aí que é, aí o senhor tem que ser um cara profissional pra tirar essa fasquia, que é a dita régua que eu falo, muito bem tirado desse ponto, pra ela não descer, e não subir, ela vem encostando certo naquela falha, porque se ela fizer isso, subir ou descer, o senhor vai perder a sua tábua, porque ela vai quebrar quando o senhor puxar ela.

41- Então teria que jogar na madeira do forro, aquele azeite? - É, bota o maçarico, bota o azeite, o óleo, aí ela vem encostando certo, se ela tiver no ponto, o fasquio for certinho, o carpinteiro for profissional ele corta sim, mas se não for, ele perde, ele quebra a tábua, aí o dono vai ficar brabo, porque tudo vale dinheiro, né? Tá 60 ou 70 reais uma tábua, então eu, na minha vida, durante eu

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trabalhar eu não lembro qual foi a vez que eu perdi uma madeira.

42 - O senhor tem trabalhado muito? - Agora não, que estou podendo trabalhar, mas se eu fosse mais novo. Eu tenho um ganho bom porque a minha profissão não falta. É como estou lhe dizendo, tem um senhor aí que tem um barco, os barcos dele tudo é negócio de 30, 40, o menor e de 25 toneladas. Ele é casado com uma sobrinha minha, com a Fátima, ele é o Reginaldo, tem uns barco grande, e eu trabalhava pra ele, aí no estaleiro.

43 - E o senhor já fez barco de quantas toneladas? - Eu já fez na faixa de 25, 30 toneladas, agora negócio de 3,4, isso eu não lembro, são muitos.

44 - Então o senhor já perdeu a conta? - É. Quando comecei esse trabalho, que esse senhor que eu tava lhe falando que era prefeito de Chaves, (ele foi prefeito já umas 3 ou 4 vezes) que ele é uma pessoa boa. Na época eu tinha uns 13 anos e aí quando foi pra mim ir pra lá eu não tinha ferramenta, ele trouxe todas as ferramentas, até ferramentas a mais do que eu queria, mas foi um pouco difícil porque o pessoal que trabalhavam lá, inclusive tava até o meu tio e padrinho, ele já tava com 40 ou 50 anos, ele não aceitava que eu fosse manobrar, fazer o desenho, fazer a forma, como se diz, a dobração das cavernas (as cavernas é essa debaixo e os braços é esses de cima (gestos), eu fazia a forma, desenhava, riscava na peça pra ele cortar.

45 - Quer dizer que o Sr. Desenhava na peça pra cortar? O Sr não tinha um molde pra juntar e riscar? - Não, eu fazia uma forma como queria, e eu sabia fazer. 46 - Mas isso na peça? - Não, eu fazia uma forma separada dessa madeira fina, ao depois que ela tava feita, aí eu ia riscar na peça para serrar com aquela serrazinha.

47 - Voltando a falar do seu primeiro trabalho como carpinteiro quando as pessoas se recusavam de sua orientação. - Aí tá certo. Aí ele, o prefeito Augusto chegou lá e disse assim:” Olha, eu vou fazer uma reunião com esse pessoal” Nós éramos uns 30 e poucos trabalhadores, a gente era rapazes carpinteiro e eu que entrei novo lá e eles não queriam aceitar, colo eles diziam: “ ser mandado por uma criança, o que é isso, né? Só que os pescador, eles fazendo essas embarcações pra dar pros pescador pagar eles com a produção.

48 - O Sr. Lembra o nome do prefeito? - Augusto Figueiredo. Ele é um cara de bons recursos, na época ele já tinha o de agora, é fazendeiro. - Aí ele nos chamou pra lá todos, eu fui pra lá uma criança, aí chegou lá, mandou sentar e disse: “como é vocês já resolveram?” – não! Porque é difícil a gente ser mandado por uma criança. O Augusto disse: “Olha, é o seguinte, eu não tou pagando o salário de vocês, certo? (ele era um cara direito) “Eu ainda vou

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melhorar o salário de vocês, agora o que eu quero é que esse menino – ele tem uma cabeça muito boa. 49 - Então ele confiou mesmo no senhor! - Mas rapaz, ele viu, ele me deu tudo, você pega assim e não tem um defeito, uma rocha.

50 - O Sr. lembra como ela era, o comprimento e etc.? - O comprimento que ela tinha era 7 metros e meio, com dois metros e quarenta de largura, ela era quase uma roda, e eu tinha uma idéia, eu não tinha coisa de fazer embarcação comprida, porque ela é doida, fica doida, o senhor sabia disso? A embarcação muito comprida fica doida, e era como eu fazia, meio curtinha, bem larguinha e meio baixa. - Então eu fez 40 canoas de 8 metros e 2,20 a 2,30 de largura, as canoas que eu fazia pelo pedido deles, eles queriam a quilha da canoa larga pra descer na vazante, a água pega aquela largura daquela quilha e desce pra poder a gente poder trabalhar com a linha, a linha ajuda a descer junto com a linha pra não forcerjar muito pro chão, tinha um motor pra ajudar.

51- E a vazante era onde no Marajó? - Era lá no Pacoval, lugar que chamam que é de muito peixe, nessa época eu trabalhei lá pescando. Então eles queria que eu fizesse pela canoa que eu fez. Olha mestre, era pra mais de 60 fregueses, todos dados por ele, as canoas sem eles darem um tostão. Ele mandava eu fazer as canoas e entregava, com linha, com toda despesas. Esse cristão, esse camarada ia pro Pacoval esperar as geleira dele, pra passar o peixe, chegava uma e saía uma, chegava duas e saía uma, não falhava, aí eles lá pescando durante 30 dias, um mês, eles vinham embora pra visitar a família deles, já com o dinheiro, porque ele pagava mesmo. - Ele era um bom empresário! - Depois de uns certos dias é que ele ia descontando algumas coisas, né? Do valor, porque as pessoas levavam alimento. - Pro senhor ter u7ma idéia que nessa época, eu empreitava uns 3 mil cruzeiros numa canoa, quando eu tinha uns treze anos, era um bom dinheiro. Eu trabalhei lá com ele uns 8 anos, quando eu saí de lá, eu tava com uns 21 anos.

52 - Sr. Dorival qual era a capacidade de transporte de peixe nessa embarcação? - Nessa época tinha demais peixe, elas trazia numa faixa de 400/500 quilos por linhada, ela carregava no mesmo dia que chegava de Belém, aí saía e já tinha outra aqui esperando, nessa época o gelo não era nem assim, era pedra e essa pedra vinham lá da Cidade Velha.

53 - Essas pedras de gelo eram os pescadores que quebravam? - Não, era o geleiro da geleira, ele era só pra aquele serviço.

54 - Sr. Dorival, de quem lhe ensinou a construir barcos? - Eu tirei da cabeça mesmo. - Só pro Sr. Ter uma idéia, quando eu fui trabalhar com 13 anos, eu não foi aprender mais, eu foi mandar, eu desenhava tudinho, eles ficavam meio revoltado,

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mas também tavam ganhando, certo? Ele aumentou mais pela minha causa, ainda foi até bom, né? Com isso, eu trabalhei oito anos, só não trabalhei mais porque eu tinha que sair, a gente nunca fica, eu já tava maduro, já tinha como eu tocar o barco adiante.

55 - O local onde o senhor trabalhou para esse prefeito tinha algum nome? - Era São Tomé.

56 - Era lá no Marajó? - Era na ilha do Marajó mesmo, a onde ele se situava era numa vila chamada Ganhão.

57 - Próximo a que cidade? - A cidade de Chaves

58 - Então o seu pai não tinha oficina? - Não! - Pro senhor ter uma idéia, eu nunca foi empregado dos outros, minha carteira não tem nada assinado, eu sempre foi meu patrão. Não foi muito bom, porque eu nessa época era um pouco descuidado, que eu devia pegar um salário ou dois, deveria ter registrado. Mas não se tinha informação naquela época, e eu fui criado lá no Marajó, não tinha uma instrução. Mas eu não sou uma pessoa triste por isso!

59 - Com quando o senhor veio pra Vigia? - Cheguei aqui com 25 anos.

60 - O Sr fez investimentos com o dinheiro conseguido como mestre? - Comprei minha casa e montei meu estaleiro chamado de São Benedito na beira do Rio Açai.Eu fui uma pessoa que nunca morei em casa alugada e nem junto com ninguém.

61- Quantos anos o Sr morou nesse local? - 33 anos, agora nessa casa aqui, eu tenho 9 anos. A gente compramos e mora agora.

62 - Então há 33 anos o Sr. Construiu um estaleiro onde é hoje aquela fábrica de pescado? - Foi, fez a minha casa e meu estaleiro, um barco pra mim, o comprimento dele era de 9 metros e 2,80 de largura, era o barco Jenita, era grande, levava 4 toneladas. ___________________________________________________________________

Parte II

Entrevista sobre o Estaleiro do Sr. Dorival em Vigia 1 - No seu estaleiro (São Benedito) como se desenvolvia o trabalho por lá? Quantas pessoas trabalhavam com o Sr. ? O trabalho era manual? - Quatro mestres. - Não, aqui já existia o motosserra nesse estaleiro meu teve motosserra,

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serra, um bocado de ferramentas elétrica. Então melhorou muito, já deu pra aproveitar muita madeira. - Eu não levei mais sorte porque meus filho ainda eram zitinhos, se fosse numa data dessa que eles tão todos grandes, porque eu não botava ninguém, porque só o Jaci é uma fera!

2 - Então eram quatro mestres que trabalhavam com o Sr? - Era, era nessa faixa. Hoje quando eu faço os meus serviços, que já não é mais como era, como to lhe dizendo, pela minha situação, problema de doença, é só meus filhos mesmo. - O senhor não tem mais encomenda, é só mais reforma né ! - Eles vem pra eu ver, esse senhor do barco de 23 toneladas, pra reformar aí uma peça, parte da quilha, agora é o Jaci que toma conta, se o Jaci não tivesse o serviço dele já certo, eu ia com ele porque eu ajudava.

3 - Quer dizer que já é o Jaci que toma conta dos serviços? - É porque ele tem as ferramentas todas principal, pra dizer assim, nós apronta amanhã e pronto, porque é só ferramenta elétrica, é mais rápido, o motosserra é um relâmpago.

4 - Para construir um barco hoje, de mais de 20 toneladas, dura quantos meses? - Acho que não leva mais de 04 meses

5 - E antes? - Demorava muito! Eu cheguei fazer embarcações lá com 07 metros de comprimento que duravam mais de 03 meses, só eu no apuá.

6 - O que era o apuá? - O apuá é uma ferramenta que só o senhor furava pra meter o prego, fora o serrote, e tudo na mão, sozinho, sozinho e Deus me acompanhando, isso lá no Marajó.

7 - E as 40 canoas que o Sr. Fez lá no Marajó pro prefeito de Chaves, era tuno manual? - Era, era tudo manual e hoje se eu fosse fazer com a máquina, era menos de 30 dias, muito rápido.

8 - Quando seu estaleiro “São Tomé” existia como era a divisão de trabalho lá? - Bom, aí era o seguinte, cada um tinha o seu serviço, eu dizia: “olha tu vai fazer esse serviço aqui”, tudo era por minha conta, eu era responsável por tudo.

9 - O Sr. Pagava os trabalhadores por empreitada? - Eu pagava por dia, eu empreitava o serviço0 e eles trabalhavam na diária, tudo era por minha conta, luz ferramenta, eles não tinham despesas.

10 - Esses barcos que o Sr. Construía seguia apenas uma forma? - É porque cada barco que agente remonta, ele é diferente um do outro, não é como agente fazendo o barco do começo ao fim, aí fica só uma forma.

11 - Nessa época o Sr. Ainda desenhava a forma? - Eu desenhava porque as vezes o dono da obra ele quer mudar um pouco alguma coisa. Agente tinha que fazer com a vontade dele.

12 - Existia prazo pra entregar uma encomenda? - Existia.

13 - Qual era o prazo?

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- Eu já tinha como dizer, né? Do jeito como tava a obra, de recuperar, ou fazer embarcação, eu já sabia o prazo que tinha que dar, era difícil passar dias, sempre quando eu entregava, era sempre adiantado, por exemplo, eu fazia um prazo de 30 dias, eu entregava com 25, porque quando eles saiam eu fazia serão, eu trabalhava de noite. Só eu. Nessa época eu ainda bebia um pouco.

14 - E o Jaci lhe acompanhava no trabalho? - Não, o Jaci é uma pessoa muito sábia, porque quando ele já tava no ponto pra trabalhar um dia, eu disse: “Jaci meu filho, tu não quer trabalhar? – Papai, ainda não tou com vontade. Quando foi um dia, ele arrumou uma moça, que é essa esposa dele, aí ele disse, papai agora vou trabalhar.

15 - Ele já estava rapaz? - Já, e o pai dessa menina disse: “Ah, esse rapaz não vai dá conta dessa menina, não tem o que fazer, não tem trabalho. - Aí ele disse: “Bem papai, mande o que é pra fazer”. - Primeira coisa era um barco até desse senhor Reginaldo que veio falar pra mim fazer o serviço, era um barco grande e novo, 16 toneladas, uma emenda no talha-mar, do meio prá cima. Não é fácil não, é mais fácil colocar um inteiro do que fazer uma emenda, ao só que tava bom prá cá, do outro lado, foi um baque, aí lascou pau-d”água. - Eu disse:” Tu te garante meu filho? Ele disse: “Me garanto, aí fiz o montado, como se diz o preparo pra dar altura, porque só se faz um serviço tudo certinho.

16 - Como é esse montado? - É tipo assim, uns bancos pra dar altura pro pessoal poder perpetuar e aqui em baixo vô ter que fazer primeiro isso aqui e aí ele fez tudo isso e fez a emenda, que não tem nem explicação, que quando o dono chegou que era esse Reginaldo, ele olhou o talha-mar já feito a emenda, só tinha aquela marcazinha mesmo, ele apertou com parafuso só que ela grudou, emenda com emenda, aí o Reginaldo disse: “Seu Dorival, quem foi que fez esta emenda? Eu disse: Rapaz tu nem acredita, foi o Jaci, ele disse: “Não acredito, ele nem trabalhava”. Eu disse:” Pois é, pra ti ver como é a pessoa que tem a cabeça boa, ele aprendeu rápido, ele olhava e já sabia trabalhar, e ele fez, todo mundo chegava lá e não acreditava desse trabalho. Pronto, ele continuou e eu não precisava falar meu filho faz isso, ele mesmo fazia.

17 - Sr. Dorival, qual é a principal parte na construção de uma embarcação? - Olha, é o cara ter de fazer uma embarcação por conta dele, pelo menos botar a quilha, a estrutura dele é o talha-mar, a espinha e botar os quatro braços no meio e os dois terços que é dividir no meio com o talha-mar, aí bota o outro prá cá, aí ela fica a armação, daí ela tando armada é o que o senhor pode dizer que o cara é um profissional. Quando o cara chega a fazer isso ele já é um profissional.

18 - O que é o cavernante? - O cavernante são 4 braços aqui no meio, dois lá pra traz e um por aqui na frente, no caso tem 12 braços e uma caverna, pra começar o barco. - Já tendo com talha-mar a espinha o braço já dá pra ir forrar.

19 - A parte mais fácil é forrar? - Não, é como eu lhe digo, porque se o senhor não souber botar uma tábua, sai errado certo. Não tem parte fácil.

20 - Há algum segredo para colocar um motor no barco? - O cara pra sentar um motor ele tem que ter todas as ferramentas pra ele

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saber se esse motor ta alinhado. - O alinhamento do motor é o seguinte: Senta o fecho na altura, o motor tem 10 cm, do meio volante dele, 10 cm pra base. Como é que o cara vai saber isso. Então a linha ta aqui certo com a base do fecho, por exemplo, se ele é de frese o motor, nunca é sentado de pé, mesmo gelado, ele é sentado deitado. Então, são 10 cm que tem desse meio, dessa luva pra base no fecho, aí o senhor bota 36, 37 que o fecho é posto mais alto do que baixo, pra não levar cunha nenhuma.

21- O que é levar a cunha? - É, bacalhau que se chama, pra sentar o motor no bacalhau ta em falso, ele tem que sentar no muciço certo, aí é 10 cm, se esse aqui ta com oito, no caso como é que tem que ser feito? Tem que cortar 2 cm pra ficar certo, pra quando esse eixo finda aqui, ele dá certo aqui no meio e a base dele ta aqui com 10 cm, certinho, ele não abaixa nem suspende. Então, é aí que ta a ciência do motor, quando o senhor sentar o motor, o senhor tem que examinar essa altura aqui do meio dele para o pé dele, pra saber se tem 15, se tem 20, se tem 18.

22 - Por favor, me explique um pouco mais sobre assentar o motor. - Então ele aqui tem que ficar no assentamento, certo! Porque se esse motor tá assentado numa posição e essa rabada dele tá assentada numa, aí não vai prestar, ele vai quebrar o eixo, ele vai comer essas duas peças que tem pelas costas e por cima ele vai comer todas duas peças, vai roer o eixo e dá problema, ele trepida o motor, ele balança, se ele tiver bem sentado até a caixeta que é colocado pra aquela água não pingar, ele agüenta seis, sete meses. E se ele tiver mal sentado, ele come a caixeta num lado, porque ele ta aperreando dum lado, aí toda hora tem de trocar, e aí é complicado. Quando ele ta sentado certo em cima do eixo, aí vem as duas luvas, ao dentro é um negócio mais fino que uma gilete, mais fino que uma folha de abacate, aí quando motor ta sentado, ao você traz essa luva daqui e essa daqui encosta e mede aquele objeto muito fino, ele tem mais ou menos uns três centímetros de largura, mas muito fino que ele bambia de tão fino que ele é. Se você meter aquele objeto ele entrar numa parte é porque o motor ta desalinhado, aí você tem que levar ele, certo, rodando, se ele não entrar em nenhuma parte, o senhor pode confiar que seu motor ta assentado certo, ta alinhado.

23 - Então têm que ter muita sabedoria para colocar um motor? - É uma grande ciência, porque envolve a matemática e a física pra assentar certinho. - Outra coisa, quando eu comecei assentar motor, tinha 14 a 15 anos, lá no Marajó, aí quando eu cheguei pra cá eu já tava profissional e muito.

24 - Me explique uma coisa Sr. Dorival, observei o mastro de um barco aqui no estaleiro que era emparafusado em cima, o certo não é em baixo, na quilha? - Era em baixo, porque ele fica mais seguro. Porque eu falo o seguinte, né! O mastro, ele vai lá pro porão dele, ele vai, vai, quase 1/3 do mastro, por exemplo, se ele tem 30 metros, ele vai 10, se ele tem 10, ele vai 3, então diminui a altura, né? Aí pra ele botar um mastro em cima do convés, ele tem que cortar essa medida, porque se ele for botar tudo fica ruim, fica uma antena. Mas ele não fica seguro como ele é pra baixo.

25 - Sr. Dorival, como é colocado esse mastro? Ele é emparafusado na quilha? - Não, não, ele tem uma peça em cima da quilha que chama sobrequilha, é uma peça por cima das caverna, ela é grande, é largona, ela é feita com uns dentes, que é pro parafuso vim de lá e ser acertado nela ao aperta braço, caverna, tudo.

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26 - O Sr. Lembra a medição dessa peça? - A largura dela é uma faixa de 20 cm, aí o comprimento é conforme o tamanho do barco.

27 - Então ela fica presa lá em baixo pra dá mais estabilidade? - É, fica seguro.

28 - E esses barcos que são construídos com o mastro em cima? - Não garante muito, de jeito nenhum. Então é assim, se paga menos mas... - Uma árvore com pouca raiz, ela já revira pra o lado. Então não acredito que seja mais seguro, eles botam pra dar estabilidade lá em cima, pra não empatar, aí o que acontece, o resultado e isso daí... Aí o acidente pode ser maior, porque na maresia...

29 - Sobre o conhecimento de construção de barcos, como era, o Sr. Tinha os desenhos, planejava as peças ? - Não, eu foi uma pessoa que trouxe isso de nascença, não estudei muito.

30 - O Sr. Lembra do momento do seu primeiro barco construído? O que o Sr. Sentiu? - Ah, eu fiquei emocionado, porque não acreditava em mim mesmo.

31 - E o seu pai, o que ele falou? - Ele ficou muito satisfeito, não tinha igual. - Eu fez o barco, eu calafetei, eu pintei e aparelhei.

32 - E como é calafetar? - Calafetar é, tem uns ferros próprios pra calafetar.

33 - Qual é o material que se usa para calafetar? - É algodão, o completo todo, izalcão e óleo de linhaço e o créo pra fazer a massa, pra cobrir a costura.

34 - O que é esse créo? - É um tipo de cal, aquele que pinta casa.

35 - Então, seria a cal pra fazer a massa, o óleo de linhaça e o izalcão e o algidão? - Sim, o óleo de linhaça e para disacorar a tinta, o tiner, mas não era tiner desse tempo, era outro nome.

36 -Mas como era, misturava tudo? - Não, cada material tem sua mistura.

37 - Como é ? - A massa, só é o óleo de linhaça, pra fazer a massa.

38 - Com a cal? - Era o créo nesse tempo, nesse tempo era o créo. - Porque também pra não ficar agrudada a massa e nem muito dura, ela tem um tempero pra poder pegar. Se você fizer muito mole não tem como de pregar, ta mole, ta igual um mingau e também muito dura ela esfarela. Ela tem uma posição. Mestre, tudo nesse mundo tem a química, o normal, o complemento, né verdade? Se passar ou se faltar ela tem diferença, tudo neste mundo tem uma medida. Não é assim como muita gente ta pensando, quer fazer e faz errado. - É como eu tô lhe dizendo, a embarcação, não é pra quem não é profissional.

39 - Eu queria que o Sr. Explicasse novamente como se faz esse tempero para calafetar.

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- Sim, a massa é com óleo de linhaça, aí tem uma faixa de 2 horas, 1 hora e pouco, pra ela ficar numa posição, mas pra botar essa massa na embarcação, ele vai ter que tirar e bater mais uma meia hora.

40 - Como é que se batia a massa? - Bate assim: Pega uma bola da mesma massa e bate em cima da tábua, duma peça, aí ela fica liguenta, daí ela ta no normal, aí o semhor vai aplicar, enche uma vasilha com água, um tamborzinho, corta ele, tem muito de plástico, bota uma água e bota a massa dentro pra ela não secar, pra não endurecer, aí o senhor vai tirando os pedaços e vai aplicando.

41 - Eu ouvi falar do breu. - O breu ele é um objeto que não é muito bom trabalhar com ele, ele adoece a pessoa, porque aquela fumaça vem no olho, que é forte demais. Agora se usa o izalcão e o algodão misturado com o óleo de linhaça, bota ele também na posição, porque se ficar muito grosso, você gasta muito material e fica muito coiso o algodão, ele tem uma posição, é isso que eu lhe falo. Aí pra ficar o algodão vermelhinho, isso é pra ele durar. Se o senhor fazer um veste branco e bota uma costura com algodão vermelho, o senhor vai ver a diferença que vai dar, o algodão branco apodrece.

42 - E o que dá a cor vermelha? - É porque ele é vermelho o izalcão, ele é igual um urucum.

43 - Mas o que é o izalcão, é um vegetal? - Eu não posso lhe explicar isso porque quando chegava eu só fazia o trabalho de misturar aquilo.

44 - Então, seu Dorival, é aquilo que eu lhe perguntei antes, pra um aprendiz chegar a mestre precisa passar por todas essas etapas de aprendizado? - É, mas hoje eles querem chegar no serviço e querem ganhar um salário de mestre e se o senhor não der eles ficam mal satisfeitos, eles ficam dizendo que o cara está enganando eles, mas eu, no meu caso, eu digo pra muitos aí, quando eu entrei foi ganhando um salário bom, porque consegui minha vez e muitos aí querem mas não tem carpinteiro aqui, eles querem pescar.

45 - O Sr. Aqui na Vigia é o mais velho na profissão? - É, eu e mais uns três colegas meus.

46 - Seu Dorival, como era que o Sr. Ensinava os mais novos para o ofício da carpintaria naval?Qual era o primeiro passo? - Porque se o senhor não tem prática, eu dou o serviço pra você fazer, então, no pé, e o camarada tirar um barco, ele não tem bem prática como se tira um barco (que é aquilo que ta plainado) e o cara que não tem prática ele deixa buraco, fica buraco na serrada, porque ele não tem prática pra serrar ainda, ele ainda não ta profissional. O que acontece, o cara tem que tirar com mais altura, aquela peça, aquele braço, pó que? Porque ele ainda não tem zelo com aquilo.

47 - Mas como era que o senhor ensinava uma pessoa? - O que eu dizia sempre era isso: quando a pessoa ainda não tem bem certeza ele nunca deve cortar uma peça com serrote em cima do risco, sempre tem que cortar adiantado.

48 - Com assim? - è quando se dá o primeiro serviço, o camarada sabe se essa pessoa tem habilidade. Se ele não tiver, aí eu já sei. Até o ordenado dele eu já digo como é que

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é, porque não tenho condições... por exemplo: eu vou fazer um serviço lá na beira e deixo aqui aí eu não tenho essa confiança, porque ele pode perder peça e aí o cara não vai com ele, vem comigo.

49 - Pra pessoa servir no trabalho o que o Sr. Mais observava? - É saber pegar a ferramenta, ter cuidado, porque a ferramenta elétrica é arriscada, tudo é arriscado... saber serrar.

50 - Então, seria conversando com o aprendiz que o Sr. Vai ensinando? - É, não precisa tá esculhambando , é pior, tem que conversar

Parte III Entrevista no dia 09.05.2009

Entrevistado: Juracy, filho de seu Dorival, estudou até a 3ª etapa (7ª e 8ª séries) 1 - Você já fez quantas embarcações? - Com essa aqui é a segunda.

2 - E como você aprendeu a construir embarcações? - Só observando ele mesmo e agente ia aprendendo e também agente tendo uma inteligência, aí só de olhar agente aprendeu. Obs.: Nesse momento chega o mestre Dorival confirmando a resposta do seu filho dizendo: “ eles aprenderam só olhando, eu também não era um pai de está aperreando, olha vem vê, vem, porque quando a pessoa nasce pra ser aquilo.

3 - Sr. Dorival, uma pessoa estranha que observa seu trabalho, o Sr. Chama pra trabalhar? - Porque no caso é o seguinte, eu, eu, quando a pessoa pega na ferramenta eu sei se ele conhece a profissão, o jeito que ele pega uma plaina.

4 - Quer dizer que não é qualquer um que diz: A Sr. Dorival, eu quero aprender! - Não , não, porque se naquela profissão não é para aquela pessoa, ele morre e não aprende, eu tenho um irmão que trabalha em construção de casa e tudo, mas em embarcação não, eu dizia, olha Cabral, a tua profissão é pra casa, mas naval, não adianta empatar seu tempo que não adianta. - Cinqüenta e poucos anos tenho nessa vida, sou profissional, praticamente um médico que sabe fazer operação, fala tudo logo, não fica em dúvida em nada, então eu tenho muita prática nisso!

5 - Sr. Dorival, eu estou acompanhando a construção da canoa que o seu filho Jura está fazendo, o que o senhor acha dessa obra? - Olha esta canoa aqui está bem armadinha, sendo a primeira, eu na minha idéia está bem armadinha, eu aqui não dou nenhuma opinião pra ele, se eu vê uma coisa muito diferente aí eu digo meu filho olha, falta mais aqui e ao ele ajeita, mas até aqui eu não disse nada. - Eu tenho um outro filho que ele tem 21 anos, esse cara tem muitas profissão, trabalha em eletricidade, agora ele ta trabalhando em alvenaria, trabalha nesses prédio em Belém, trabalhou até naquele hotel enfrente ao terminal, e ele nunca tinha feito embarcação, foi com um dia eu tava trabalhando aqui ele foi tirar uns paus, aí eu disse, rapaz tu vai cortar isso aí, joga tudo fora, porque pra corta umas peça dessa e não acertar, vai perder dinheiro né? Ele disse, eu não quero que ninguém me diga nada! Que não diga nada pra mim que eu tirei da minha cabeça e eu vou fazer. Pois ele não fez!

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6 - E não é assim que o Sr. Faz? - É

7 - Sobre o barco que o Sr. Está construindo no seu quintal ele tem um modelo diferente. O que difere dos outros? - É uma outra forma, ela é uma forma econômica, gasta menos materiais e se constrói, porque olha, uma caverna dessa ela é direita, ela é tipo uma viga, e o barco lá a diferença e de seis ou sete centímetros, ela faz isso a caverna (curva) aí já roubou na peça, e essa aqui o Sr. Pode botar a peça todinha, direita com uma viga e rende muito e uma peça por exemplo que a gente faz, que de num barco desses é de três ou quatro peças, esse aqui vai direito na caverna até o fim.

8 - Sr. Dorival, dá pra se construir um barco maior, seguindo esse modelo que é o fundo meio achatado? - Dá, dá, porque esses barcos de forma eles são roliços. - Eu vou lhe dá uma idéia, o senhor manda cortar dois rolo de pau, com motosserra né!, Dois rolos, aí o senhor deixe um e vai partir um no meio, e o senhor bote na água ele virado assim e bote o que era o roliço, pra você vê se o senhor vai se segurar nesse que é roliço ou o senhor vai se segurar nesse aqui (cortado no meio), porque lá na água ele não faz isso ( gestos de equilíbrio), e o rolo, você não se segura (gestos de rodar), por aí você tem uma idéia do que eu tó falando.

9 - Até quantas toneladas dá pra construir um barco desse? - Até umas quarenta toneladas - Esta forma é de Fortaleza, tem muito barco grande lá.

10 - Como o Sr. Conseguiu? - Esse rapaz que me deu a planta mora lá num lugar chamado Tapuá (Vigia), eu fui lá vê e eu bom de cabeça. Ele veio aqui e disse, você é perigoso! - Fazer uma montaria do tamanho daquela ela leva menos material e menos dias de serviço, e aquelas dá mais trabalho.

11 - Voltando a falar com o mestre Jura, pergunta-se. A primeira embarcação tinha nome? - Não, não!

12 - Essa embarcação tu sabes onde ela está hoje? - Sei, fiz pra minha mãe, ela acabou de chegar da pesca! - Só que essa uma lá é outra forma.

13 - Como é, essa forma você tira de onde? - Eu tiro da cabeça, ta tudo na cabeça, aqui olha, tipo aqui assim, eu já sei como é que essas uma já vem. Eu armei as duas terças, armando a gente já sabe como vem dá pra cá pra frente assim, aí a gente bota as fasquias, a gente arma ela com a terça, com a popa e com a proa, o cavername vem depois, conforme a fasquia pedir a gente vai botando, ta entendendo?

14 - Como é o nome dessa peça aqui (Descrição da canoa)? - É o frizo que liga a proa a popa. - A fasquia é só pra sustentar para colocar o forro - Depois das terça e a fasquia, vou criando o cavername e depois só faz forrar. - Essa canoa ta sendo feita com instrumentos manual.

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ANEXOS

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Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado Tv. Djalma Dutra, s/nº - Telégrafo

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