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Joo Paulo Martins

Poltica e Histria no Reformismo Ilustrado pombalino (1750-1777)

Belo Horizonte Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas Departamento de Histria 2008

Joo Paulo Martins

Poltica e Histria no Reformismo Ilustrado pombalino (1750-1777)

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como exigncia parcial para obteno do grau de mestre. rea de concentrao: Histria e Culturas Polticas Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta.

Belo Horizonte Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas Departamento de Histria 2008

Dissertao de Mestrado defendida e aprovada em 29 de setembro de 2008, pela banca examinadora constituda pelos professores:

_______________________________________ Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta (UFMG Orientador) _______________________________________ Prof. Dr. Mauro Lcio Leito Cond (UFMG) _______________________________________ Prof. Dr. Marco Antnio Silveira (UFOP) _______________________________________ Profa. Dra. ris Kantor (USP)

A meus pais, seu Manoel e dona Maria, que sempre me ensinaram com as palavras simples de toda a verdadeira sabedoria.

AgradecimentosPrimeiramente, quero agradecer a meus pais, Manoel e Maria das Graas, por todo apoio e compreenso nas dificuldades, e por todo nimo e satisfao com que sempre receberam minhas vitrias. Nunca mediram esforos para que eu trilhasse o caminho que escolhi, a eles dedico este trabalho. Muito obrigado! Registro tambm o agradecimento s minhas irms, Vnia e Vanilda, sempre prestativas em me socorrer quando as dificuldades do trabalho surgiam. Sou imensamente grato ao Professor Doutor Luiz Carlos Villalta. Os assuntos lusos me foram apresentados por ele ainda na graduao, quando me tornei um apaixonado pelo tema e pude propor este trabalho. Ao Villalta devo as sbias orientaes, normalmente perpassadas de animados e jocosos comentrios, que tornaram maior a minha admirao por sua pessoa, pois, alm do mestre, ganhei um amigo. Desde a iniciao cientfica, Villalta dedicou-se a me apresentar os caminhos que precisava conhecer e a no me deixar desanimar com os percalos. Alm disso, suas orientaes coletivas me proporcionaram novas amizades, a Turma do Cordo de So Francisco, a quem tambm registro o agradecimento pelas tardes to cultas e engraadas que passamos. Aos amigos de graduao e mestrado Luana, Lucas, Stener, Guilherme e Chico fica um sincero agradecimento, sempre companheiros e prontos para ajudar, principalmente com as necessidades que surgiram depois da minha mudana para Ouro Preto. Agradecimento especial ao Gustavo, grande amigo, que me cedeu seus prstimos de tradutor, e Simone, serenssima amiga, que, em meio s tribulaes de seu trabalho, encontrou tempo, dedicao e carinho para me ouvir, me animar e se dedicar leitura e reviso desta dissertao. Muitssimo obrigado! Devo um grande agradecimento ao Prof. Dr. Marco Antnio Silveira (UFOP), cuja leitura, crticas e sugestes feitas ao meu texto de qualificao enriqueceram sobremaneira as anlises aqui desenvolvidas. Quero tambm agradecer Jaci, da Biblioteca Pblica Luiz de Bessa, amiga desde os meus tempos de estagirio no setor de referncia da biblioteca, e que intermediou o meu pedido para um maior tempo de consulta aos livros da coleo de Obras Raras e para a fotografia de alguns textos. Aos amigos da Secretaria de Cultura e Turismo de Ouro Preto, especialmente pequena comunidade de historiadores l existente, com Sandra, Sueli, Sidna, Marcia e Helenice, fica um profundo agradecimento pela forma amigvel com que fui recebido, por me apresentarem os caminhos sinuosos de nossa antiga Vila Rica e por estarem sempre dispostas a me ouvir falar de Pombal. Por fim, mas com o meu carinho maior, agradeo Sabrina, querida companheira que nestes ltimos anos acompanhou todas as angstias e aflies, bem como todas as minhas alegrias. Nunca me deixou esquecer que h algo maior que qualquer pargrafo bem escrito ou qualquer fonte desencavada. Sabrina, o meu mais amoroso obrigado!

RESUMO: Poltica e Histria no Reformismo Ilustrado pombalino (1750-1777)Esta dissertao pretende analisar as relaes entre o pensamento poltico e as concepes de histria no Reformismo Ilustrado portugus, durante o consulado de Sebastio Jos de Carvalho e Melo, o Marqus de Pombal, no reinado de D. Jos I (1750-1777). Parte-se da idia de que as prticas e pensamentos polticos possuem uma relao direta com as concepes de histria, sendo que nos momentos em que h uma reviso das prticas e fundamentaes polticas so tambm revistas as vises de histria vigentes. O pombalismo significou uma profunda reforma da poltica lusa, tanto na prtica quanto em suas teorizaes. Tem-se como hiptese que as prticas e pensamentos polticos do pombalismo representaram tambm uma reviso das concepes de histria vigentes em Portugal. apresentado, primeiramente, um quadro das concepes histricas e polticas portuguesas na Idade Moderna, em se que destacam o pensamento corporativista escolstico e as crenas messinicas e/ou milenaristas. Posteriormente, so analisadas as influncias que a Ilustrao exerceu sobre a cultura portuguesa na primeira metade do sculo XVIII e como alguns pensadores ilustrados portugueses criticaram a cultura e a poltica portuguesa de ento. Por fim, mostra-se como, durante o reinado de D. Jos I, houve uma prtica poltica com medidas de cunho ilustrado, adaptadas realidade portuguesa, acompanhadas de uma fundamentao terica. Nesta fundamentao, principalmente com os textos da Deduo Cronolgica e Analtica e da Relao Abreviada, foram atribudos novos sentidos a episdios e momentos histricos portugueses, alm de serem utilizadas concepes ilustradas de histria, como as idias de linha e progresso. Tambm foi revista a legitimidade histrica da colonizao portuguesa.

ABSTRACT: Politics and History in the pombaline Enlightened Reformism (1750-1777)The present dissertation intends to analyze the relations between the political thinking and the conceptions of history in the Portuguese Enlightened Reformism, during the consulship of Sebastio Jos de Carvalho e Melo, the Marquis of Pombal, under the ruling of D. Jos I (17501777). The main idea is that political practices and political thinking are strictly connected to the conceptions of history, so that during moments of revision of political practices and political bases occurs also a revision of the conceptions of history that were in effect. The pombalismo meant a profound political reform in Portugal, in practices as much as in its theorizations. The hypothesis in work is that the pombalismos political practices and political thinking represented also a revision of conceptions concerning history that were in effect in Portugal. It is presented, in the first place, a picture of the Portuguese conceptions of history and politics in the Modern Age, when the scholastic corporative thinking and messianic and/or millennium beliefs had special place. Afterwards, it will be analyzed the influences exerted by the Enlightenment over the Portuguese culture in the first half of the XVIIIth century and how enlightened Portuguese thinkers criticized the contemporaneous Portuguese culture and politics. Finally, it will be shown how the political practice was enforced with enlightened measures during the reign of D. Jos I, adapted to Portugals reality, and followed by a theoretical substantiation. In such substantiation, especially in the texts of Deduo Cronolgica e Analtica and Relao Abreviada, new meanings were ascribed to Portuguese historical episodes and moments, besides using enlightened historical conceptions, such as the ideas of line and progress. It was also revised the historical legitimacy of the Portuguese colonization.

SUMRIO

Introduo Pensamentos acerca da histria na Idade Moderna Concepes polticas na Idade Moderna Poltica e histria na Ilustrao Captulo 1 Portugal moderno: poltica e histria 1.1 A fundao, o mito e a histria providencial 1.2 Centralizao poltica, corporativismo e histria Captulo 2 Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos 2.1 Ilustrao portuguesa e conformao do iderio pombalino: Verney, Ribeiro Sanches e D. Lus da Cunha Captulo 3 Iderio pombalino e construo do regalismo 3.1 O pombalismo e a refutao do providencialismo histrico e do corporativismo escolstico Captulo 4 Histria pombalina: Luzes, colonizao e regalismo 4.1 Historiografia em Portugal nos setecentos: a Academia Real de Histria Portuguesa 4.2 Pombalismo, histria e colonizao 4.3 A Deduo Cronolgica e Analtica: regalismo e histria ilustrada Concluses Fontes e referncias bibliogrficas Fontes Referncias bibliogrficas

1 6 14 22 29 30 42 60 71 89 106 116 116 126 139 164 169 169 170

IntroduoNo terceiro quartel do sculo XVIII, mais precisamente durante os anos do reinado de D. Jos I (1750-1777), Portugal passou por uma intensa reforma em suas prticas polticas, que se estendeu sobre a legislao, a justia, a cultura e a economia. Desenvolveram-se reformas na administrao, nas possesses coloniais, na educao, no direito e nas relaes entre, de um lado, a Coroa e, de outro, a nobreza e a Igreja, outros principais focos de poder. O perodo ficou particularmente associado s aes e reformas de seu ministro Sebastio Jos de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e, depois, Marqus de Pombal. Por isso mesmo, comumente referido na histria portuguesa como perodo pombalino. Deve-se, no entanto, considerar que Carvalho e Melo no agiu sozinho e nem foi um espcie de mente privilegiada que projetou a reforma poltica do Reino fora de qualquer contexto histrico, tanto portugus quanto europeu. Homens como Antnio Pereira de Figueiredo, Jos de Seabra da Silva e Frei Manuel do Cenculo estiveram diretamente ligados governao pombalina e produo de textos que embasavam suas reformas. Alm desses, podem-se incluir outros que atuaram em posies estratgicas do governo sob orientao pombalina, como o irmo de Pombal, Mendona Furtado, governador do Maranho, que teve importante papel na execuo do Tratado de Limites e na criao de companhias privilegiadas de comrcio; e Gomes Freire de Andrade, tambm representante portugus no Tratado de Limites (nos limites sul, na Colnia de Sacramento), dentre outros. Considera-se, ainda, que o reforo dos aparatos de ao poltica da Coroa e a centralizao do poder, principais marcas do perodo josefino, s se tornam compreensveis tendo-se em conta o enfraquecimento do Estado durante os ltimos anos do governo de D. Joo V (1705-1750), e os processos polticos e intelectuais da primeira metade do sculo XVIII, perodo em que Carvalho e Melo no foi o nico a pensar em novas aes para se recuperar a grandeza que Portugal tivera no tempo dos Descobrimentos. A prpria indicao do futuro Marqus de Pombal para o ministrio a D. Jos foi feita por outro poltico portugus, o diplomata ilustrado D. Lus da Cunha, que tambm defendia profundas reformas na poltica lusitana. Para efeito desta dissertao, o termo pombalismo ser utilizado como o conjunto de prticas e idias polticas do terceiro quartel do sculo XVIII, sem que se depreenda

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desse uso uma perspectiva histrica individualista, segundo a qual Carvalho e Melo seria concentrador e responsvel por todas as idias e aes do perodo. O pombalismo, prtica poltica reformista e centralizadora, desenvolveu um conjunto de idias para seu prprio suporte. Por trs das reformas pombalinas, estava um contedo ideolgico-poltico ilustrado, que constitua uma ruptura com as prticas e pensamentos polticos portugueses vigentes at ento. O objetivo desta dissertao analisar os termos e idias com os quais as formulaes do iderio poltico pombalino constituram essa ruptura com a poltica portuguesa anterior, tida como tradicional. A proposta entender as relaes entre o pensamento poltico pombalino e a viso de histria por ele desenvolvida. Tem-se como hiptese que a interpretao da histria portuguesa desenvolvida dentro do pombalismo possua uma relao direta com suas concepes polticas e constitua, tambm, uma ruptura com as vises de histria at ento vigentes. As prticas polticas pombalinas, mesmo que muito motivadas pelas condies polticas e econmicas do momento, receberam um embasamento terico, apreensvel em seu discurso poltico. Dessa forma, o pombalismo constituiu um iderio poltico e, como tal, possuiu sua linguagem. As linguagens polticas, conforme ensina Pocock, s podem ser criadas mediante um dilogo de termos e idias com as linguagens que lhe so anteriores ou coevas. Segundo ele,O autor [de um texto poltico] habita um mundo historicamente determinado, que apreensvel somente por meios disponveis graas a uma srie de linguagens historicamente constitudas. Os modos de discurso disponveis do-lhe as intenes que ele pode ter, ao proporcionar-lhe os nicos meios de que ele poder efetu-las1.

Dessa maneira, para se compreender um enunciado poltico, necessrio se conhecer qual linguagem o autor est, ou pode estar utilizando; e quais so os interlocutores desse enunciado, seus antagonistas e mesmo aquelas matrizes de pensamento que o confirmam. O objetivo no reputar a um texto, ou a um autor, um sentido que ele no teria nem podido cogitar, por estar fora de seu contexto, mesmo lingstico. Para isso, devese procurar saber o que o autor estava fazendo quando escrevia, ou seja, em que questes estava envolvido, com quem ou com quais textos dialogava. Com isso, possvel saber-se qual era a linguagem (ou linguagens) poltica por ele utilizada e como ela se relaciona com seus enunciados2.1

POCOCK, J. G. A. Introduo: O Estado da Arte. In: Linguagens do Iderio Poltico. So Paulo: Edusp, 2003, pp. 27-28. 2 Ibidem, p. 28

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A hiptese aqui defendida de que as questes especficas do momento de ascenso de Pombal ao poder e o modelo poltico que pretendeu construir e praticar motivaram o desenvolvimento de uma nova linguagem poltica no universo portugus. Essa linguagem pombalina, por sua vez, s pode ser compreendida conhecendo-se os seus interlocutores. As fontes do pombalismo costumam ser claras ao apontarem com quem estavam falando, ou melhor, aqueles que refutavam: os pensamentos messinicomilenaristas e corporativista escolstico, que se unificavam, nos textos pombalinos, nas aes e discursos jesuticos. Assim, para se entender o que dizem os textos pombalinos, necessrio se ter claro o que dizem as linguagens e idias s quais eles se opem. Entretanto, deve-se ter em conta que o pombalismo, cujo discurso se pretende ilustrado e modernizador, compartilhava conceitos caros ao corporativismo escolstico, um de seus antagonistas. Esse aspecto importante, pois, como nos ensina Skinner3, para que um discurso inovador seja legtimo, numa determinada comunidade, ele deve falar a lngua desta comunidade. Portanto, a crtica ao pensamento corporativo e a construo de uma nova opo poltica e de pensamento encontram o limite da linguagem que pode ser bastante distendida, porm no rompida, sob risco do discurso cair no vcuo. possvel identificar alguns traos de permanncia nesse processo de transio, como o catolicismo e o monarquismo, que se faziam presentes tanto nos autores do corporativismo escolstico quanto no pombalismo. Mesmo no perodo pombalino, com sua empreitada para o afastamento do poder religioso do mbito temporal e a submisso daquele a este, os discursos no deixaram de ser vincadamente catlicos. Isto pode ser interpretado pelo limite que uma linguagem poltica, secularmente associada teologia, possui ao tentar introduzir algo novo. Os textos polticos, e mesmo histricos, possuam tambm um forte teor jurdico, lembrando-se que, no Antigo Regime portugus, as prticas da justia e da poltica no se diferenciavam. Esse outro aspecto importante das linguagens polticas, pois, alguns profissionais, como clrigos e juristas, quando se institucionalizaram no poder, influenciaram com seus termos o discurso poltico4, assim, o vinho novo costuma ser primeiramente despejado em velhas garrafas5. O estudo das linguagens polticas durante o perodo pombalino leva, portanto, a se entenderem as rupturas promovidas pelos autores do pombalismo, dentro de um quadro3

SKINNER, Quentin. Introduo. In: As fundaes do pensamento poltico moderno.. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. 4 POCOCK, J. G. A. O Conceito de Linguagem e o Mtier dHistorien: Algumas Consideraes sobre a Prtica. In: Linguagens do Iderio Poltico. op.cit., p. 68. 5 Ibidem, p. 76.

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maior de permanncias de conceitos e concepes acerca da sociedade, da poltica e da histria. Pretende-se abordar tal processo na histria do pensamento poltico portugus, observando, por um lado, os elementos modernos, ou seja, a presena de autores e idias dos sculos XVII e XVIII e de escritos de ilustrados portugueses, que influenciaram as formulaes do pombalismo; e, por outro, as continuidades: as linguagens polticas contras as quais a prtica poltica pombalina se insurgiu, destacando-se as matrizes corporativa escolstica e messinico-milenarista. Os enunciados do pombalismo se manifestaram de diversas formas, em textos histricos, polticos, leis e editais, tratados jurdicos e at mesmo na poesia e no teatro. A emisso desses atos de fala respondeu, em muitos casos, a questes polticas circunstanciais e no propriamente a uma planificao governamental. O teor dos discursos tambm no foi o mesmo, pois se percebe uma radicalizao tanto prtica quanto discursiva do absolutismo e do regalismo ao final da dcada de 1760. Por esse motivo, procurar-se- compreender as condies de produo e divulgao dos textos analisados e qual o papel que desempenharam na construo do iderio pombalino. Construo que comportou, em alguns momentos, contradies, caso se olhe para esses textos procurando uma lgica e uma coerncia esttica, desvinculada das lutas polticas concretas em que se inseriram. As fontes primordiais deste trabalho so os principais textos de cunho histrico produzidos pelo pombalismo, a Relao Abreviada (1757), cuja autoria atribuda ao prprio Sebastio Jos de Carvalho e Melo, que narra os episdios da Guerra Guarantica ocorrida na tentativa de execuo do Tratado de Madri, do ponto de vista do pombalismo; e a Deduo Cronolgica e Analtica (1767), que saiu com a autoria de Jos de Seabra da Sylva, mas que foi uma obra conjunta dos homens ligados governao pombalina, em cuja composio participou, dentre outros, o prprio Carvalho e Melo. A Deduo o principal texto do anti-jesuitismo pombalino e demonstra tanto as razes da expulso dos jesutas do Imprio portugus, quanto a justificao do modelo poltico pombalino e a deslegitimao da governao prpombalina, de um ponto de vista histrico, narrando-se a histria portuguesa desde a chegada da Companhia de Jesus em Portugal at a sua expulso, em 1759, j no reinado de D. Jos I (1750-1777). Compreende-se que muitas idias, propostas e reformas pombalinas tiveram uma repercusso social limitada em seu prprio tempo. O alcance das reformas educacionais, por exemplo, no que tange instituio das aulas rgias, teve um efeito mais abrangente

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em perodos posteriores. Os conceitos e idias propostos pelo pombalismo tambm tiveram o papel de promoverem disputas e discusses acerca dos modelos polticos para alm do tempo do reinado josefino, tambm influenciando em interpretaes histricas posteriores. O objetivo central deste trabalho analisar a proposio das reformas pelo pombalismo e como procurou legitim-las em seu discurso, sem se atentar para responder se o discurso pombalino se legitimou ou no socialmente, ou seja, qual a dimenso da circulao e apropriao das idias do pombalismo na sociedade lusitana, pois isto seria outro trabalho. Considerando-se a grande importncia que os contextos sociais, polticos, filosficos e lingsticos possuem para se compreender a produo de um texto poltico, no se deve perder de vista ao mesmo tempo que, caso se parta do contexto para se entender o texto, de uma forma rgida e necessria, corre-se tambm o risco de se produzir o mero enquadramento dos textos. Estes so convertidos em efeitos. Quando muito, so reflexos que exprimem tal ou qual aspecto do social6. Adotando-se essa metodologia, o texto exprime, reflete, v (saudvel ou mope) um dado que lhe externo. O que, no texto, no cabe em tal modelo apresentado como desvio, portanto desprezvel, ou quando muito causa da ineficcia do texto7. Assim, concordando com Renato Janine Ribeiro, prope-se uma mudana de enfoque: em vez de pensar o que o texto retrata, ou como ele retrata uma realidade ou problema, pensar o que ele concebe. Qual a sua visada8. Na anlise de um texto poltico deve-se entender que elepersegue uma estratgia e, por isso, fundamental conhecer quem ele define como leitor. Em outras palavras, um texto no reflexo, porm arma. Um pensador poltico no procura refletir o seu tempo e sociedade; quer produzir efeitos. E estes ele visa atravs de sua arma especfica, o texto9.

Dessa forma, necessrio perceber quais os conceitos ele utiliza, isto , com quem o texto concorda e quais os termos, grupos sociais e pensamentos que ele desqualifica, ou seja, contra quem ele se afirma. Assim, chega-se a uma melhor compreenso da riqueza do texto e de seu papel na luta poltica, alm de se aproximar dos efeitos que ele pode produzir, o que no significa que ele seja lido e apropriado dessa forma. A apreenso

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RIBEIRO, Renato Janine. A Filosofia Poltica na Histria. In: Ao leitor sem medo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 344. 7 Idem. (Itlico no original). 8 Ibidem, p. 346. 9 Ibidem, p. 347. (Itlico no original).

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dessa leitura e a apropriao, como se disse, so objetos de um outro questionamento, que no tem espao neste trabalho. Os marcos temporais deste trabalho definem-se em funo do perodo em que Sebastio Jos de Carvalho e Melo foi ministro no reinado de D. Jos I (1750-1777), assumindo uma posio de frente no governo portugus, o que foi reconhecido pelos prprios homens daquele tempo. A poltica e o iderio pombalinos sofreram uma certa inflexo com a morte de D. Jos, em 1777, e a conseqente subida de D. Maria I ao trono, havendo com ela a excluso de Pombal do foco da cena poltica portuguesa. Todavia, vrios temas das discusses polticas empreendidas pelo pombalismo continuaram em tela. De acordo com a metodologia proposta, as fontes pombalinas estudadas sero colocadas em dilogo com as idias e concepes polticas e histricas ento vigentes em Portugal, o que permite que sejam tambm analisadas algumas fontes significativas das matrizes corporativista e messinico-milenarista do pensamento portugus, anteriores a esse marco temporal. Pensamentos acerca da histria na Idade Moderna A histria moderna do Ocidente marca algumas rupturas, lentas transies e permanncias no pensamento e nas prticas polticas, religiosas, econmicas, etc., em relao aos costumes medievais. Entretanto, o estabelecimento de linhas comuns a todos os espaos do Ocidente moderno no cabvel, por desconsiderar as especificidades e as cores locais de suas histrias. As constituies dos Estados modernos e das modernas noes de histria so indissociveis e fazem parte da lenta transio que percorreu os sculos da Idade Moderna. Portugal participou deste processo sofrendo influncias externas, mas imprimiu, em cada ponto desse processo, aspectos caros sua constituio. A idia de uma modernidade na Idade Moderna bem diferente do que se entende por modernidade nos tempos atuais ou mesmo no sculo XIX. Conforme mostra Falcon, vrias pocas se conceberam como modernas em relao aos tempos anteriores, modernus significa de hoje, o que indica, antes de tudo, que se est falando de um tempo que se concebe como diferente do anterior. Entretanto, a idia de moderno abriga ainda outro sentido, o de uma poca qualitativamente superior quela que veio antes, e, assim, chega-se a um terceiro sentido, que um desdobramento dos dois

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anteriores: moderno o perodo que se concebe como novo por contraste com a Idade Mdia10. As modernas rupturas perceptveis em relao ao perodo medieval tangem aspectos diferentes como a poltica, a economia, as vises de mundo ou mundividncias, a cincia e a religio. Trata-se de campos que, dependendo do enfoque do historiador, podem adquirir uma relevncia maior em relao aos outros, de forma que no se pode estabelecer, em absoluto, um tema que defina o carter moderno destes sculos. Tambm no cabvel expandir as mesmas rupturas para todo o Ocidente, pois houve espaos que, por suas caractersticas histricas, no conheceram, ao mesmo tempo, os mesmos processos. Alm disso, devem-se considerar tambm as diferenas sociais do alcance das mudanas, ou seja, os meios eclesisticos, nobilirquicos, campesinos e citadinos, por exemplo, mesmo dentro de um mesmo reino, sofreram de maneiras diversas o choque das novidades e o conforto da imobilidade. A Era Moderna passou, pois, por algumas crises no pensamento. Vrias descobertas colocaram tona questionamentos sobre os conceitos vigentes, de forma que podemos falar em uma ampla querela entre antigos e modernos, que foi muito alm dos debates que tiveram lugar na Academia Francesa. Nesta dissertao, consideram-se os questionamentos tangentes concepo do tempo histrico e poltica no Portugal da Idade Moderna. Dentro da perspectiva a ser desenvolvida a seguir, concebem-se estes dois aspectos como inter-relacionados, sendo que tais relaes variaram no tempo e no espao, havendo tambm solues paralelas e/ou conflitantes concomitantemente. As relaes entre idias de histria e concepes polticas j foram objeto de vrios estudos histricos. Pocock, por exemplo, teorizando a respeito destas relaes, define que:Histria em todos os sentidos do termo, a no ser uns poucos de natureza algo esotrica tempo pblico. Isto , tempo vivenciado pelo indivduo, como ser pblico consciente de uma estrutura de instituies pblicas nas quais, e atravs das quais, os acontecimentos, os processos e as transformaes ocorreram para a sociedade da qual ele percebe ser parte11.

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FALCON, F.J.C. Moderno e Modernidade. In: FALCON, Francisco J. Calazans; RODRIGUES, Antonio Edmilson M. Tempos modernos: ensaios de histria cultural. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, pp. 226-227. Le Goff tambm apresenta diversos contextos em que as categorias de antigo e moderno foram utilizadas e as variadas finalidades das mobilizaes desses conceitos. Ver LE GOFF, Jacques. Antigo/Moderno. In: Histria e memria. Campinas: Ed.UNICAMP, 1996, pp. 167-202. 11 POCOCK, J. G. A. Modalidades do tempo poltico e do tempo histrico na Inglaterra do incio do sculo XVIII. In: Linguagens do Iderio Poltico. op. cit., p. 127.

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Seguindo ainda a anlise do historiador ingls, entende-se que o tempo pblico, ao contrrio do que experienciado no privado, deve ser concebido como um mundo institucionalizado e formalizado, o que conduz institucionalizao da experincia social e dos modos de apreend-la12. Assim, afirma Pocock:Dizer que histria tempo pblico, portanto, dizer que indivduos que vem a si mesmos como seres pblicos vem a sociedade como organizada em e por uma srie de estruturas, tanto institucionais quanto conceituais, nas quais e atravs das quais eles apreendem as coisas como coisas que acontecem sociedade e a eles mesmos, e que lhes fornecem meios para diferenciar e organizar as coisas que assim apreendem. por isso que o arcaico ditado que afirma que histria poltica do passado tem mais significado do que estamos dispostos a reconhecer, tambm por isso que a histria da historiografia , em to grande medida, parte da histria do discurso poltico13.

Se o discurso histrico de um tempo, ou a forma como seus homens compreendem a si prprios como membros de uma sociedade no tempo, informa-nos sobremaneira a respeito das concepes polticas dessa sociedade estudada, possvel que os momentos de transio ou rupturas entre diferentes idias de histria sejam tambm ocasies de transio e rupturas entre as formulaes polticas, sem que se entenda uma anterioridade entre uma e outra, mas um processo mtuo. Dessa forma, um momento de intensos questionamentos e de formulaes de novos saberes, conceitos e prticas, como foram os sculos da Idade Moderna, gerou rupturas e novas formataes entre o tempo pblico e a poltica. Durante a Idade Moderna, deu-se uma modificao de sentido secularizante nas teorizaes polticas e na compreenso da histria. Sem que a religiosidade fosse absolutamente excluda da compreenso do mundo e do papel do homem nesse mundo, a metafsica foi, aos poucos, sendo excluda do entendimento do tempo pblico e, cada vez mais, restringida s confisses privadas. No mundo ocidental, a unio entre Estado e Igreja se deu no Imprio Romano. Ao assumir o cristianismo como religio oficial, o Imprio justificava de uma maneira teolgica sua expanso e a submisso que impunha a povos no-romanos14. Aliavam-se, assim, as prticas polticas e religiosas, pois a expanso romana era a manifestao da salvao eterna que s se daria por meio da converso dos povos religio crist. A assimilao romana do tempo cristo constituiu uma profunda ruptura com a concepo grega do tempo e da histria, tanto pela sacralizao do tempo, quanto pelaIdem. Idem. 14 REIS, Jos Carlos. Histria da histria: civilizao ocidental e sentido histrico. In: Histria & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 19.13 12

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prpria insero dos eventos no tempo. A idia grega de um tempo cclico, associado aos movimentos da natureza, tinha como conseqncia que os eventos isolados jamais ensinariam algo novo ou essencial, a no ser comprovarem os ritmos cclicos, o retorno e o recomeo. A narrao de eventos histricos singulares, atos hericos, palavras e aes importantes se justificaria por dar perenidade a estes atos, para que no fossem esquecidos. De certa forma, inscrevendo-os na prpria natureza, mas de maneira alguma a alterando significativamente, pois o seu ritmo cclico no sofreria mudanas e continuava sendo mais importante que qualquer evento singular15. O cristianismo ordenou historicamente o mundo. Deus no se revelou imediata e completamente, sua revelao se d no tempo, da queOs livros sagrados do judasmo e do cristianismo no eram somente orculos, ou mandamentos, ou narraes mticas e ainda menos meditaes metafsicas. Eram antes de tudo livros de histria. Eles empregavam certo nmero de acontecimentos cronolgicos, uns mticos, outros mais histricos, mas uns e outros carregados de sentido sagrado16.

Entende-se, assim, a dificultosa empreitada de humanistas cristos que, concebendo toda a histria como revelaes de Deus, procuraram reagrupar todos os relatos esparsos do helenismo, de Roma, e toda a humanidade para alm de Israel num projeto de sntese nunca dantes pensado. Procurou-se evangelizar a histria para trs sincronizando a Bblia e as histrias dos povos antigos17. Diferentemente da concepo antiga, no existiam histrias particulares para o cristianismo medieval. Haveria uma cronologia universal que poderia sincronizar todas as histrias e as integraria num nico sentido, o sentido da salvao. Assim, os eventos polticos s adquiriam importncia na medida em que pudessem ser inseridos nesta histria soteriolgica. Os acontecimentos que no diziam respeito salvao, ou de uma outra forma, manifestao da Providncia, diziam respeito ao saeculum, e eram tidos como banais 18. Para Santo Agostinho, por exemplo, os eventos polticos tinham uma importncia menor, funcionando apenas como um depositrio de exemplos. O que realmente importava, aos seus olhos, eram os eventos nicos, isto , os religiosos a morte de Cristo e sua ressurreio e que levariam salvao, verdadeiro fim do

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ARENDT, Hannah. O conceito de histria Antigo e Moderno. In: Entre o Passado e o Futuro. So Paulo: Perspectiva, 1972, p. 99; ARIS, Phlilippe. A atitude diante da histria: na Idade Mdia. In: O Tempo da Histria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989, pp. 93-94. 16 ARIS, Phlilippe. op. cit., p. 102. 17 Ibidem, p. 103. 18 BIGNOTTO, Newton. O crculo e a linha. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e Histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 181.

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homem no tempo19. Nessa perspectiva, uma vez que a poltica seria temporal, ela se acabaria e no traria a salvao. No pensamento cristo romano e medieval, a histria, os eventos polticos e mundanos eram inferiorizados. Se eles possuam alguma importncia, era simplesmente como um repositrio de exemplos, pois, num nvel inferior linha histrica divina, a histria secular era cclica; citando Hannah Arendt:a histria permanece um repositrio de exemplos, e a localizao do evento no tempo, dentro do curso secular da histria, continua sem importncia. A histria secular se repete, e a nica histria na qual eventos nicos e irrepetveis tm lugar se inicia com Ado e termina com o nascimento e a morte de Cristo. Da em diante poderes seculares ascendem e declinam como no passado e ascendero e declinaro at o fim do mundo, mas nenhuma verdade fundamentalmente nova ser jamais novamente revelada por tais eventos mundanos, e os cristos no devem atribuir importncia particular a eles. (...) Para o cristo, assim como para o romano, a importncia de eventos seculares est no fato de possurem o carter de exemplos que provavelmente repetir-se-o de modo que a ao possa seguir certos modelos padronizados20.

At mesmo a queda de Roma, a cidade Eterna, foi uma prova de que no haveria nada de eterno no sculo. No temporal tudo se corri, somente o divino eterno e o que importa. Essa separao agostiniana entre o temporal e o religioso, entretanto, no foi seguida to risca, pois houve uma verdadeira unio do Imprio Romano com os cristos, criando-se a Igreja Romana, e a poltica foi investida de um sentido religioso e soteriolgico. A importante questo que uniu a Igreja e o Imprio foi, segundo Pocock, a da realizao da justia, pois se ela no era suficiente para a salvao, constitua ao menos um meio necessrio para tanto e emanava de Cristo. Mesmo que se sustente que a Igreja era o meio dessa manifestao, os homens viviam numa civitas terrena, sob um governo poltico, que realizava a justia. Assim, os governantes, como realizadores da justia, eram representantes de Cristo no sculo21. Associavam-se, assim, os preceitos polticos aos morais e religiosos. Do ponto de vista da compreenso histrica, dessa unio resultou a assimilao poltica da linha escatolgica judaico-crist de interpretao da histria, ou seja, a histria se desenvolveria em direo a um fim ltimo conhecido, a salvao, e, ao mesmo tempo, vitria romana. A compreenso das aes polticas se daria de uma19

ARENDT, Hannah. op. cit., p. 99; POCOCK, J. G. A. A Liberdade Religiosa e a Dessacralizao da Poltica. In: Linguagens do Iderio Poltico. op. cit., p. 403. 20 ARENDT, Hannah. op. cit. p. 99. 21 POCOCK, J. G. A. A Liberdade Religiosa e a Dessacralizao da Poltica. op. cit., p. 403.

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forma religiosa, pois a histria, garantida providencialmente por Deus, se encaminharia naquele sentido22. Tal concepo sobreviveu durante a Idade Mdia, o que permite dizer, com Gusdorf, que, nesse perodo, a histria, apenas uma espcie de teologia aplicada23. O providencialismo consiste, pois, na unio das dimenses divina e temporal, sendo esta ltima includa na economia da salvao. Ao contrrio da separao agostiniana entre a cidade de Deus e a cidade dos homens, em que esta ltima no possui nada de divino, posto que fruto da imperfeio dos homens decados e, desta forma, no pode levar salvao, o providencialismo sincroniza os tempos de Deus e dos homens, dando uma dignidade especial s instituies humanas ao inseri-las na histria sagrada. Assim, existiria apenas uma histria, em que as aes humanas seguiriam o norte, garantido por Deus, da universalizao da palavra divina e da consolidao do cristianismo 24. Os homens deveriam, ento, em suas aes, garantir o cumprimento da promessa divina e, quando no o fizessem, Deus agiria, Ele prprio, na histria punindo as atitudes contrrias moral e ao sentido da salvao, ou beneficiando aqueles que agissem conforme Seus preceitos. Da interpretaes histricas providencialistas, como a de Salviano a respeito da queda de Roma sob os brbaros Deus fez os romanos terem por mestres um povo covarde para mostrar que as conquistas so frutos das virtudes e no da fora, para mostrar a fora divina ante a soberba humana, da mesma forma que havia feito no dilvio. Outro exemplo, posterior, de Joseph de Maistre que interpretou a Revoluo Francesa como uma vingana divina25. No espao ibrico tm-se vrios exemplos de interpretao providencialista da histria, como a queda de D. Rodrigo, ltimo rei visigodo, sob os rabes. Para os homens da poca, a derrota se explicava pelas ofensas a Deus cometidas na Corte visigtica, principalmente a violao sofrida pela filha do conde D. Julin, que l era educada. No se chegou a um consenso sobre o culpado, sendo acusados o rei Rodrigo e Witiza, membro de um cl rival ao do rei. Independentemente do responsvel pela violao, a culpa era de todos, os ambiciosos pelo poder e suas disputas26. Em Portugal,22 23

REIS, Jos Carlos. op. cit. p. 19. GUSDORF, Georges. Lveil du sens historique. In: Introduction aux Sciences Humaines. Paris: Editons Ophrys, 1974, p.186. Ver tambm: ARIS, Phlilippe. op. cit. p. 106. 24 BARBOZA FILHO, Rubem. Tradio e Artifcio: iberismo e barroco na formao americana. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2000, p. 161. 25 ARIS, Phlilippe. op. cit. p. 107. 26 BARBOZA FILHO, Rubem. op. cit. p. 111.

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houve vrios casos de interpretao semelhante, como algumas a respeito da Restaurao de Portugal, de 1640, o que ser analisado no Captulo 1. Esse ambiente de transcendncia da histria e da poltica foi lentamente alterado durante os sculos da Idade Moderna, o que permite falar que uma das marcas de ruptura desta poca a secularizao. Para Pocock, a dessacralizao da poltica s foi possvel quando os problemas da relao entre justia e redeno espiritual deixaram de fazer sentido, isto , quando os problemas relativos salvao puderam ser relegados esfera do julgamento privado, da opinio privada e da liberdade privada, quando aqueles que os levavam a srio tiveram de reconhecer que eles no faziam parte dos assuntos pblicos; assim, a dessacralizao da poltica foi o restabelecimento da separao entre poltica e salvao27. Dessa forma, o Estado deveria cuidar de todos os assuntos que no dissessem respeito salvao, cessando, pois, as interdies religiosas s suas aes. Colocado dessa maneira, tm-se o resultado final e ideal de um processo mais lento e complexo, pois passa pelo desenvolvimento de noes como indivduo, ao individual e de ambientes pblico e privado, e, sabe-se que historicamente, tal processo no foi to simples. Jean Delumeau v, na construo de utopias na Idade Moderna, principalmente naquelas do sculo XVIII, uma laicizao dos milenarismos. Embora ressalte algumas diferenas fundamentais entre escritos milenaristas e utpicos, como a ausncia de uma noo de queda inicial da humanidade nas utopias, afirma, como elo fundamental entre as obras desses dois tipos, a noo de um espao de felicidade futura, por subentenderem esperanas. A importante diferena, que d um sentido laicizado s utopias, que, ao contrrio dos milenarismos, a esperana utpica no se baseia na construo divina do mundo melhor, nem na nostalgia de uma idade de ouro perdida, mas, sim, no melhoramento graas a uma organizao voluntarista, de ao humana, e num espao idealizado que tinha como base a reflexo sobre os problemas cotidianos do autor da utopia28. Aqui, ento, as aes humanas passavam a ter valor, passavam a ser capazes de produzirem algo novo na histria. Sem que se relegasse o divino ou a salvao a um plano irrelevante para os diversos indivduos, a metafsica deixou de ser o sentido ltimo dos homens no mundo. Tal ruptura ocorreu juntamente com a

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POCOCK, J. G. A. A Liberdade Religiosa e a Dessacralizao da Poltica. op. cit. p. 404. DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma histria do paraso. So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 257.

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emergncia de um pensamento mais mundano; com a valorizao dos prazeres terrenos, o profano aumentou seu espao em relao ao sagrado. A imutabilidade dos homens no tempo uma noo importante que penetrou na poca Moderna e, ao fim dessa, j possua outros termos, mais prximos da nossa noo de histria. Durante a Idade Mdia, os homens no sentiam nenhuma necessidade de particularizar historicamente os acontecimentos narrados. Ao invs de conceberemse como diferentes, sentiam, na verdade, uma solidariedade com os homens passados29. Segundo Koselleck, os homens do incio da Idade Moderna no se viam como diferentes daqueles da Antigidade, isso fazia com que noes como guerra, honra, conhecimento etc. fossem interpretadas pelos homens modernos como idnticas s suas, independentemente do perodo a que se referissem30. Apenas por volta do final do sculo XVIII que as leituras histricas tornam-se historicizadas, individualizadas historicamente. Para que se concebesse a idia de uma historia magistra vitae, foi fundamental que existisse essa noo de que os homens so os mesmos no tempo e de que os eventos histricos tendem a se repetir, seno seria impossvel se admitir que um fato passado pudesse instruir a ao de algum no presente, ou mesmo predizer algo sobre o futuro31. Confirmando a frmula da histria como fonte de exemplos, conforme j indicado anteriormente. O processo que levou ao desenvolvimento da moderna idia de histria, alm da recusa da metafsica, teve, como correlato, a valorizao do mundano, do homem, de suas capacidades e de suas aes. Dessa forma, a experincia humana deixou de ser vista como repetitiva para se individualizar. A capacidade do homem de criar algo novo na histria, de modificar o que acontece no temporal, at ento algo visto como impossvel, uma vez aceita, modificou as vigentes concepes de histria, gerando tambm outras formas de entendimento do poltico.

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O homem do sculo XIII representa para si mesmo Carlos Magno, Constantino e Alexandre sob os aspectos e com a psicologia do cavaleiro de seu tempo (...) Se no particularizam porque no sentem necessidade disto. Sentem mais a solidariedade dos tempos do que as suas diferenas: a sua maneira de estar diante da histria. ARIS, Phlilippe. op. cit. p. 106. 30 KOSELLECK, Reinhart. O futuro passado dos tempos modernos. In: Futuro Passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 22. 31 KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae: Sobre a dissoluo do tropos na histria moderna em movimento. In: Futuro Passado. op. cit., pp. 41-60. Aqui, Koselleck afirma que, ao longo de dois mil anos, a histria teve um papel de escola, um cadinho contendo experincias alheias, onde se podia aprender a ser sbio e prudente sem incorrer em grandes erros.

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Para Bossuet, no sculo XVII, a histria a fonte de conhecimento para a ao no poltico, o que subentende a idia de que o homem pode aprender a partir de exemplos alheios, afinal os preceitos que regem a ao humana seriam imutveis:Se a histria fosse intil aos outros homens, seria preciso l-la para os prncipes. No h melhor meio de lhes ensinar o que podem as paixes e os interesses, os tempos e as conjunturas, os bons e os maus conselhos. As histrias no so compostas seno por aes que os ocupam, e tudo nelas parece ser feito para seu uso. Se a experincia necessria aos prncipes para adquirir aquela prudncia que leva a reinar bem, no h nada mais til para a sua instruo que acrescentar aos exemplos dos sculos passados as experincias por ele adquiridas todos os dias32.

O que garantiria a imutabilidade da histria e da poltica seria, para Bossuet, o carter divino das leis que as regiam, citando sua Politique:H leis fundamentais que no se podem mudar; mesmo muito perigoso mudar sem necessidade aquelas que no so. principalmente sobre essas leis fundamentais que est escrito que as violando abalam-se todos os fundamentos da terra: aps o que no resta mais que a queda dos imprios. Em geral, as leis no so leis se no tm alguma coisa de inviolvel. Para marcar a sua solidez e sua firmeza, Moiss ordena que elas sejam escritas clara e visivelmente sobre as pedras. (...) Perde-se a venerao pelas leis quando se as v mudar to freqentemente. ento que as naes parecem cambalear como que transtornadas e embriagadas, assim como falam os profetas. O esprito de vertigem as possui e sua queda inevitvel, porque os povos tm violado as leis, mudado o direito pblico e rompido os pactos mais solenes. Este o estado de um doente perturbado que no sabe para onde vai33.

Dentro desse pensamento, a histria teria tambm um desenvolvimento moral, de acordo com o qual floresceriam os bons prncipes e seus reinos; e fracassariam os maus, os que desrespeitam os divinos princpios que deveriam reger suas aes34. Concepes polticas na Idade Moderna Assim como acontece com a histria, impossvel se pensar na poltica da Idade Moderna de uma forma dissociada do pensamento teolgico e dos poderes eclesisticos. A constituio dos Estados nacionais e a afirmao de seus poderes seculares passaram

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BOSSUET. Discours sur lhistoire universelle. apud LOPES, Marcos Antnio. O Poltico na Modernidade: Moral e Virtude nos espelhos de prncipes da Idade Clssica (1640-1700). So Paulo: Edies Loyola, 1997, p.77. 33 BOSSUET. Politique tire des propres parole de lcriture Sainte. apud LOPES, Marcos Antnio. op. cit., pp. 79-80. 34 Comentando os historiadores do sculo XVII, Paul Hazard diz que, para eles, (...) a histria uma escola de moral, um tribunal soberano, um teatro para os bons prncipes, um cadafalso para os maus. Ensina a conhecer os caracteres, porque uma anatomia das aes humanas. HAZARD, Paul. Crise da Conscincia Europia. Lopes. Lisboa: Edies Cosmos, 1971, p. 35.

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por diversos conflitos com o poder religioso exercido pelo papa, levando durante esse processo a teorizaes de cunho teolgico. A Igreja Romana exercia um poder supranacional no Ocidente europeu. Com a desagregao do Imprio, ela se tornou a nica manifestao de poder com este alcance, absorvendo os dois gldios, temporal e religioso, concebendo-se como imune a poderes seculares locais e mesmo aos das igrejas locais. Durante o perodo de formao e afirmao do Sacro Imprio Romano-Germnico, esta relao entre as foras do Imperium e do Sacerdotium era justamente o oposto, quando os imperadores submetiam o poder papal. Entretanto, as novas conjugaes entre esses dois poderes fizeram crescer o poder da Cria romana, e o Sumo Pontfice passou a requerer para si prerrogativas temporais de alcance geral no universo cristo, como depor os imperadores e dissolver o juramento de fidelidade dos vassalos feito aos prncipes que se tornam tiranos35. Alm de, no mbito do poder eclesistico, o papa ser o nico responsvel pela convocao de snodos gerais e de depor e absolver bispos36. Acerca da fundamentao das relaes entre o poder religioso e temporal, foram produzidas vrias obras que refletiram tambm sobre a legitimidade e origem dos poderes temporais, no que se podem ver delineados alguns pontos importantes das teorias dos Estados modernos. S. Toms de Aquino, no sculo XIII, formulou uma teoria do poder temporal dentro de um ambiente cultural eminentemente teolgico, procurando vincular os poderes do saeculum ao plano divino. A escolstica tomista se apropriou de conceitos polticos aristotlicos e os cristianizou, construindo uma base divina para todos os poderes da respublica, ou seja, Deus a causa primeira de todo o poder humano. Para a formatao desta arquitetura de poder, S. Toms formulou uma hierarquia de leis que regeriam a humanidade. Da lei eterna, pela qual age o prprio Deus, derivaria a lei divina, dada aos homens pelas Escrituras; seguia-se a lei natural, inscrita por Deus nos coraes dos homens e, desta, surgiria a lei humana ou direito positivo, que a parte modificvel dessa hierarquia e que orienta as relaes entre os homens37. Em ltima instncia, os homens, mesmo que no tivessem conhecido a verdade revelada por meio das Escrituras, seriam orientados pelos mesmos princpios designados por Deus atravs da lei natural.35

TORGAL, Lus Reis. Ideologia poltica e teoria do Estado na Restaurao. Coimbra: Biblioteca da Universidade, 1982, vol. 2, p. 9. 36 Idem. 37 SKINNER, Quentin. O ressurgimento do tomismo. In: As fundaes do pensamento poltico moderno. op. cit., p. 426; e TORGAL, Lus Reis. op. cit., vol. 2, pp. 6-7.

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A esfera humana , em S. Toms, subordinada divina, e a instituio da comunitas civitatis ou respublica depende do ser social do homem, que seria sua condio natural, conceito herdado de Aristteles. Entretanto, para o tomismo, essa natureza se confunde com a lei eterna e o conhecimento que todos os homens tm dela atravs da lei natural. Para a concepo escolstica, o poder poltico legtimo e tem sua fonte ltima em Deus. No entanto, entre Deus e o soberano existe a mediao da sociedade: atravs de um pacto social, os indivduos ab-rogam seus direitos em favor do governante como forma de assegurar a manuteno de toda a sociedade. A repblica instituda pelo pacto tida como um corpo mstico, cujo fim o bem comum38. Semelhantemente, para Aristteles, os homens buscam a vida na polis para viverem em felicidade ou bem-estar39. Mas o bem comum tomista, embora tenha um sentido temporal e se manifeste por um bem-estar material, s se compreende tendo em conta os fins eternos do homem40. Ao contrrio da viso agostiniana, para S. Toms, o Estado terreno e a Cidade de Deus j no so plos opostos; relacionam-se e completam-se um ao outro41. Muito embora, ele defina os espaos das jurisdies humana e divina: caberia repblica o bem-estar material do homem, enquanto o bemestar eterno a salvao, fim ltimo do homem , Igreja. O poder civil teria, ento, uma finalidade tica, a de garantir a realizao do bemcomum que se manifestaria no cumprimento da lei natural e, por conseqncia, da lei divina. A desobedincia a este princpio constituiria a tirania, nica situao em que S. Toms admite a resistncia ativa ao poder do soberano, mas apenas em ltima instncia e sem conceder legitimidade ao tiranicdio. Desta forma, S. Toms cria uma separao entre as esferas de poder temporal e religioso, mas subordinando o primeiro ao segundo, possibilitando uma ao legtima do poder religioso sobre o temporal, inclusive com a deposio de governos que desagradassem os interesses do papado42. As delimitaes de poder entre os dois gldios continuaram sendo objeto de reflexes, e dentro da prpria Igreja nasceu uma importante doutrina na contestao do elevado alcance do poder papal sobre a cristandade, o conciliarismo. Formulada, no38 39

TORGAL, Lus Reis. op. cit., vol. 2, p. 7. GOMES, Rodrigo Elias Caetano. As Letras da Tradio: O Tratado de Direito Natural de Toms Antnio Gonzaga e as Linguagens Polticas na poca Pombalina (1750-1772). 2004. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Programa de Ps-Graduao em Histria, p. 21. 40 TORGAL, Lus Reis. op. cit., vol. 2, p. 7. 41 CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 133. 42 TORGAL, Lus Reis. op. cit., vol. 2, p. 8.

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sculo XII, por Huguccio e seus discpulos, a doutrina conciliarista visava defender a cristandade, ou a prpria Igreja, da possibilidade de heresia ou do mau governo de um papa. Segundo a doutrina, um conclio convocado e formado por cardeais seria superior ao papa e teria o poder de julg-lo. O poder da Igreja estaria no seu corpo, no seu conclio, sendo que o papa no seria maior que a representao de seus membros o conclio , que seria a mediao humana deste poder43. A doutrina de Huguccio no chegou a ter especial relevncia no momento de sua formulao, pelo contrrio, o poder temporal do papa continuou a crescer durante os sculos XIII e XIV. Entretanto, no contexto do Grande Cisma, quando a Igreja chegou a ter trs papas exigindo o reconhecimento de seu poder, o Conclio de Constana, reunido em 1414, destituiu dois dos pretendentes ao pontificado, obrigou um terceiro a abdicar de suas pretenses e elegeu um quarto, Martinho V, vigrio de Cristo44. O conciliarismo, em seus desenvolvimentos com tericos como Francesco Zabarella (1360-1417), Pierre dAilly (1350-1420) e Jean Gerson (1363-1429), formulou importantes tpicos para a contestao do supremo poder papal, ao fincar posio de que o poder do papa reside no corpo da Igreja. O conclio seria o representante desse corpo eclesistico e exerceria a mediao entre este poder e o papa, seu representante. Alm disso, estabelece que o poder do papa deve ser exercido com vistas realizao do bem comum. Aqueles que se opunham ao poder do conclio e defendiam a Cria romana ficaram conhecidos como papistas ou curialistas. Outra linha de contestao do poder papal centrou-se no questionamento da legitimidade de seu poder temporal. No final do sculo XIII, Dante escreveu sua obra De Monarquia, em que defendia que os reinos temporal e espiritual tm a mesma dignidade, j que ambos derivam da vontade de Deus. Para o autor, influenciado pela obra de S. Toms, a vida humana possua duas finalidades: a felicidade na vida terrena e a felicidade na vida eterna, sendo que a primeira seria orientada pelo imperador e a segunda pelo Sumo Pontfice. Assim, o poder dos papas deveria dirigir-se apenas salvao das almas, seu domnio estender-se-ia sobre a Christianitas, enquanto a Humanitas seguiria a orientao do poder secular, que possua um fim em si mesmo 45.GOMES, Rodrigo Elias Caetano. op. cit., pp. 27-29. Ibidem, p. 29. 45 BARBOZA FILHO, Rubem. op. cit., p. 199. Para Cassirer, o tratado de Dante, naquele momento, elevou o Estado ao seu mais alto nvel. No s era justificado, mas tambm enaltecido e glorificado. Entretanto, para a poca, a concepo dogmtica catlica de que o Estado nasce do pecado original e da queda do homem, confirmada por Santo Agostinho e outros padres, criava uma situao em que o Estado podia justificar-se em certa medida, mas nunca podia considerar-se belo. No podia conceber-se44 43

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O contexto em que Dante desenvolveu seu pensamento poltico era o da afirmao do poder das cidades italianas frente s pretenses temporais do poder papal. Na sua soluo, as cidades italianas deveriam vincular-se ao imperador, ao Sacro Imprio Romano-Germnico, como forma de se livrarem da influncia secular do papa. Entretanto, essa construo no satisfazia inteiramente as pretenses das cidades que compunham o Regnum Italicum. Outro italiano, Marslio de Pdua, na Baixa Idade Mdia, desenvolveu em outros termos a questo da separao dos poderes secular e religioso, principalmente em sua obra Defensor Pacis (1324). Para Marslio, o Sacerdotium, poder religioso exercido pela Igreja e sua hierarquia eclesistica, no teria origem divina. A Igreja teria se apropriado do poder coativo do Imprio e demais poderes temporais, inclusive de sua estrutura hierrquica, transformando o papa em algo semelhante ao imperador ou a um prncipe. Essa mudana foi uma traio natureza crist. A Igreja aqui concebida como um corpo mstico e infalvel de fiis diretamente iluminados pelo Esprito Santo em suas deliberaes46, aspecto em que antecipa as reflexes de Lutero. Seguindo o paduano, a estrutura hierrquica da Igreja, constituda atravs dos sculos, deveria ser destituda em favor do povo, dos fiis, a verdadeira Cidade de Deus47. Desconstruda a fundamentao do poder temporal da Igreja, Marslio reflete sobre a origem e fundamentao dos poderes seculares. Para ele, ao contrrio de Santo Toms, no existiria uma lei natural de origem divina que orientaria o estabelecimento de leis positivas, ou a prtica poltica dentro das esferas de poder temporal. Ele defendia a soberania popular. Afirmava que as cidades, governadas por povos livres, [constituirse-iam] em prncipes de si mesmas48, e que a fonte da lei seria o povo, ou sua parte preponderante, reunido em assemblia, exprimindo oralmente sua vontade49. Outro ponto em que Marslio rompe com o tomismo refere-se possibilidade de eleio e deposio de um soberano. Enquanto para o Doutor Anglico, o povo, ao transferir seu poder para uma autoridade, fica obrigado a obedecer-lhe, sendo que a possibilidade de revolta e deposio s justificada em ltimo caso, para Marslio, o povo mantm por

como puro e imaculado; porque trazia consigo permanentemente o estigma de sua origem. CASSIRER, Ernst. op. cit., pp. 125-127. 46 BARBOZA FILHO, Rubem. op. cit., p. 200. 47 Idem. 48 Ibidem, p. 199. 49 GOMES, Rodrigo Elias Caetano. op. cit. p. 31.

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todo tempo a soberania que apenas empresta autoridade50, uma construo poltica de teor bastante moderno. Foi em torno das discusses sobre o alcance dos poderes eclesistico e temporal, e do confronto entre seus interesses, que se desenvolveram os embries dos Estados modernos. As monarquias europias conformaram-se em duas frentes: externamente, fragmentando o poder temporal supranacional do papa, e, internamente, buscando centralizar em torno da Coroa os poderes internos, dissolvendo laos comunitrios locais e reprimindo certas prticas e costumes enraizados localmente. Medidas desse tipo podem ser exemplificadas pelas orientaes dadas aos reis pelos legistas no sentido de limitarem as jurisdies eclesisticas, circunscrevendo-as administrao dos sacramentos, formao de clero, etc., e impedindo a circulao de documentos papais sem o beneplcito rgio51. Internamente, a represso a prticas mgicas e feitiaria, bem como a outras prticas religiosas campesinas teve um sentido menos religioso que poltico, colocando-se o controle dos costumes sob padres preferencialmente ligados a Igrejas nacionais. Houve tambm uma tendncia a se impedir o uso de justias locais, privadas ou comunitrias, como a vingana, paralelamente a uma sofisticao do aparato institucional no Estado monrquico com vistas a uniformizar a vida social. Estabelecendo uma justia em mbito nacional, que regeria toda a sociedade pela burocracia e legislao do Estado52. O esquema enunciado acima, ressaltando o enfraquecimento dos poderes locais e a absoro progressiva da ordem poltica por parte do poder central, anuncia a constituio das monarquias absolutas. O processo de fortalecimento das Coroas suscitou, em alguns casos, como o francs, violentos combates contra os senhorios locais, que defendiam a manuteno da ordem fragmentada de origem medieval. A resistncia exercida por estes poderes locais, na Fronda, por exemplo, explica este confronto e o investimento da Coroa francesa na construo de uma burocracia que garantisse seus interesses. Entretanto este no um modelo a ser aplicado a todos os Estados da Europa conformados no perodo. A constituio das monarquias ibricas, e mais especificamente portuguesa, possui nuances que limitam a atuao do poder real na tomada de decises, como ser visto no Captulo 1. Deve-se ressaltar ainda que a50 51

BARBOZA FILHO, Rubem. op. cit. p. 201. TORGAL, Lus Reis. op. cit. p. 10. 52 LOPES, Marcos Antnio. O Absolutismo: Poltica e Sociedade na Europa Moderna. So Paulo: Brasiliense, 1996, pp. 20-23.

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execuo de um poder de tipo absolutista, em um perodo em que o sistema burocrtico se encontrava em formao, possuiu srios limites. O alcance do poder central tendeu a se enfraquecer conforme se afastava para plos distantes, devido a dificuldades de fiscalizao, comunicao, formao uniforme de funcionrios etc. Mesmo com a expanso do alcance dos poderes seculares frente ao papado, a fundamentao dos direitos e fins do governo temporal no se apartou dos argumentos teolgicos, e grandes pensadores polticos do perodo tinham sua origem no meio religioso, ou mesmo produziam suas formulaes a partir da instituio eclesistica. No incio do sculo XVI, na Universidade de Paris, comeou-se a se desenvolver uma recuperao das idias tomistas, que ficou posteriormente conhecida como Segunda Escolstica ou Neo-tomismo. O ressurgimento do tomismo teve particular importncia em Portugal e Espanha, pases onde a ao reformista catlica fincou fortemente suas razes e onde escreveram os seus principais tericos53. Os termos da Segunda Escolstica e sua compreenso da poltica e da histria sero discutidos no Captulo 1. Aos poucos, o pensamento poltico moderno foi se afastando das formulaes teolgicas e das relaes estabelecidas entre os campos moral e poltico. Maquiavel, no sculo XVI, discutia a poltica e aes dos prncipes em termos totalmente apartados da moral e da religio, desenvolvendo a razo de estado. Ao invs de procurar os preceitos ideais e imutveis que deveriam reger a prtica poltica, Maquiavel procurava conhecer os homens tais como so, acreditando que o governante, a partir desse conhecimento, deveria desenvolver a sua prtica poltica, e no a partir de preceitos apriorsticos54. As teorias polticas do contrato social e do direito natural moderno desenvolvidas no sculo XVII tambm procuraram entender, legitimar e conhecer os fins do poder poltico com conceitos independentes da religio. Isso no significa que autores como Hobbes, Locke, Grotius e outros fossem irreligiosos, apenas entendiam que a compreenso do poltico tinha outros fins terrenos, diferentes da salvao religiosa55. Com os autores fundadores do contratualismo moderno, inseriu-se um novo aspecto na ruptura com o pensamento poltico at ento vigente, bem como com a idia de histria que lhe subjazia. Para Marcelo Jasmin, o contratualismo moderno se53

SKINNER, Quentin. O ressurgimento do tomismo. op. cit., p. 414. JASMIN, Marcelo Gantus. Maquiavel, a Histria e a Crtica da Razo Humanista. In: Racionalidade e Histria na Teoria Poltica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, pp. 17-31; BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. 55 CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, pp. 180-183.54

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pretendeu mais realista, recusando os preceitos ideais trans-histricos da boa poltica (aqueles que supem uma igualdade dos homens no tempo) e ambicionando alcanar a realidade do homem para fundamentar sua posio, mas com a recusa empiria, o recurso histria, posto que seus acontecimentos seriam irracionais56. O raciocnio acerca do poltico, para o contratualismo, recusa a histria, o conhecimento de fenmenos passados, como fonte de conhecimento para se pensar e agir politicamente. Mesmo que se possua a memria de muitas coisas, a ao baseada nessa experincia necessita de uma presuno de repetio, ou seja, que o segundo evento seja de fato acompanhado das mesmas circunstncias envolvidas na primeira ocorrncia o que s poder ser verificado posteriormente realizao do evento. Assim, um conhecimento que pode servir a homens em atuao em circunstncias histricas, no pode ser a base para o estabelecimento dos critrios de legitimidade da ordem poltica que exige total certeza57. Nesta, deve-se seguir o conhecimento advindo das conseqncias lgicas, que so racionalmente necessrias, e no contingenciais, como as empricas. um raciocnio filosfico, que parte das premissas s conseqncias. No pensamento poltico contratualista, a construo da ordem poltica fruto dos homens em ao e de suas opes e, dessa forma, ela pode ser alterada de acordo com sua vontade e necessidade. Essa perspectiva voluntarista considera que o homem, baseando-se em sua razo, pode alterar a poltica, agir na histria, romper com os costumes e criar algo novo no domnio temporal. Est-se, aqui, numa perspectiva bem diferente daquela de Bossuet, e que foi a principal no mundo ocidental durante vrios sculos. O divino continua a existir, mas deixa de ser o elemento fundamental a se seguir nos assuntos pblicos. A salvao da alma passa a ser assunto privado. No sculo XVIII, os pensadores ilustrados discutiram essas questes em torno da origem, fundamento e finalidade do poder poltico. Foram herdeiros de vrias

JASMIN, Marcelo Gantus. Contratualismo: Recusa e Negao da Histria. In: Racionalidade e Histria na Teoria Poltica. op. cit., p. 36. Para Cassirer, embora Grotius e Hobbes discordassem em relao a alguns pressupostos tericos e interrogaes polticas, eles seguiam a mesma via de pensamento e de argumentao. O mtodo que seguiam no era histrico e psicolgico, mas dedutivo e analtico. Derivavam os seus princpios polticos da natureza do homem e da natureza do Estado (...). A vida social do homem no uma simples massa de fatos incoerentes e desordenados. Baseia-se em juzos que possuem a mesma validade objetiva e so capazes da mesma firme demonstrao que qualquer proposio matemtica. Pois no dependem de observaes empricas acidentais; tm o carter de verdades universais e eternas. CASSIRER, Ernst. op. cit., p. 182. Sobre esse aspecto, ver tambm: HESPANHA, Antnio Manuel. Panorama Histrico da Cultura Jurdica Europia. Publicaes EuropaAmrica, 1998. 57 JASMIN, Marcelo Gantus. Contratualismo: Recusa e Negao da Histria. op. cit. p. 39.

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formulaes do direito natural e do contratualismo do sculo XVII, mas inseriram novos termos discusso, principalmente nas relaes entre poltica e histria. Poltica e histria na Ilustrao A secularizao ou mesmo a recusa da metafsica nas compreenses do tempo, do pensamento poltico e das prprias relaes polticas que passaram a se desenvolver durante a poca Moderna, foi um processo que se agudizou sob as Luzes, no sculo XVIII. Na Ilustrao houve uma acentuada crena na razo: a defesa dos pensadores de que o homem era capaz de conhecer a natureza ao seu redor, e, a partir desse conhecimento, construir uma nova sociedade. Haveria, pois, o progresso e a emancipao do homem pelo homem. A metafsica se distanciaria das relaes humanas, e mesmo em assuntos religiosos, o homem moderno, reformado, exige para si prprio o conhecimento do Deus e a interpretao de Suas palavras, recusando a autoridade que no reconhece, ou que no tenha sido por si prprio estabelecida58. Esta importante transio gerou novas interpretaes acerca do processo histrico. Se a providncia divina, suas leis e o necessrio fim dos tempos, com o retorno de Cristo, a salvao e condenao eterna dos homens, no so mais aceitos, pelo menos no mais de uma forma unnime, a histria providencial cede espao para outra, que valoriza a razo e aes dos homens no decurso histrico. O pensamento ilustrado, ao criticar a ordem poltica social e intelectual do Antigo Regime, apontou novas solues para se compreender e fazer, isto , escrever a histria. As narrativas histricas de guerras e feitos hericos de reis e nobres, no campo da histria profana, e os textos eclesisticos, com uma interpretao religiosa da histria, no campo da histria sagrada, campos que no raramente se entrecruzavam, correspondiam ordem estabelecida em que clero e nobreza ocupavam os mais altos estamentos sociais; assim, histria e organizao scio-poltica caminhavam juntas. Ao realizar suas crticas a esta organizao social e poltica do Antigo Regime, os ilustrados, alguns de forma mais radical, outros com uma abordagem mais reformista, conceberam novas formas de interpretar e produzir a histria. Assim, o pensamento acerca da histria sofreu profundas alteraes em sua forma de compreenso moderna. Segundo Cassirer, o sculo XVIII

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Cf. REIS, Jos Carlos. op. cit., pp. 22-35.

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considera que os problemas da natureza e os da histria formam uma unidade incapaz de desfazer-se arbitrariamente a fim de tratar parte de cada uma das fraes. Ela pretende abordar uns e outros com o mesmo equipamento intelectual, aplicar natureza e histria a mesma espcie de problemtica, o mesmo mtodo universal da razo59.

O primeiro desafio da histria para atingir tal tratamento, continua este autor, seria desvencilhar-se da influncia da teologia, que, naquele momento, tambm j comeava a se dedicar mais analise histrica de seus dogmas, mediante a crtica erudita que emergia. Contudo, deve-se considerar que se desvencilhar da teologia, ou mesmo naturalizar a histria, no foi o procedimento adotado por todos os ilustrados, nem em todos os lugares. Tal questo tem implicaes polticas relevantes, e o seu tratamento em espaos como a pennsula Ibrica foi bastante cauteloso, s vezes eliminado ou reduzido a discusses em crculos fechados. Embora houvesse filosofias da histria anteriores ao sculo XVIII, a expresso surgiu nesse momento com Voltaire60. A criao do novo, direito agora adquirido pelos homens na histria, na forma desenvolvida pela filosofia da histria ilustrada, seguiria um rumo linear, o do progresso61. Os homens do sculo XVIII j no mais se viam como idnticos aos da Idade Mdia ou da Antiguidade, nem mesmo queles de seu tempo, mas que possuam, de acordo com suas vises, modos selvagens62. Concebiam-se num momento de esclarecimento, que seria contnuo e deveria ser aprofundado pela ao do prprio homem. Atravs do uso de sua razo, o homem deveria estar em contnuo processo de aperfeioamento. Ilustrados, como Montesquieu e Voltaire, acreditavam que se os homens ainda no seguiam as leis morais universais como a natureza segue as suas, era devido limitao ainda da razo humana, que fazia com que os homens no seguissem as leis por eles mesmos criadas. Esperavam um progresso do conhecimento desse estado de coisas para uma nova ordem do mundo da vontade, uma nova orientao geral da histria poltica e social da humanidade63. Acreditava-se ser possvel conhecer as foras

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CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Campinas: Editora UNICAMP, 1997, p. 270. As primeiras manifestaes da idia de progresso deram-se em torno das descobertas cientficas e do modelo newtoniano, que, aplaudido pelos ilustrados, possibilitou confiana na razo e a idia de que o mundo fsico, moral e social governado por leis. LE GOFF, Jacques. Progresso/Reao. In: Idem. op. cit., p. 245. 60 SOUZA, Maria das Graas de. Voltaire: Histria e Civilizao. In: Ilustrao e Histria: o pensamento sobre histria no Iluminismo francs. So Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 117. 61 Idem. Introduo. In: Ibidem, p. 23. 62 Idem. A histria iluminista e a colonizao. In: Ibidem, pp. 211-215. 63 CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. op. cit., p. 288. (Itlico no original).

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motrizes da histria, que conduziriam filosofia da histria, da os homens poderiam organizar os princpios sociais e ter segurana em relao ao futuro64. Voltaire, em suas empreitadas historiogrficas, desejava ver toda a vida interior das sociedades em sua marcha e o conjunto de transformaes a que tiveram que se submeter antes de alcanarem o conhecimento e a verdadeira autoconscincia que acreditava estar ocorrendo naquele momento. Para o autor, a revelao, o desabrochar da razo, sempre ocupou o cerne do homem, mas permaneceu escondida pelos costumes. A histria contaria a visibilidade progressiva da razo. histria no competiria provar a existncia ou origem da razo, mas mostr-la manifestando-se no curso do tempo, revelando-se de um modo cada vez mais puro e perfeito e, de forma emprico-real, descobrir a lei escondida no fluxo e na confuso dos fenmenos. Para Voltaire, a histria no um fim mas um meio, um instrumento de educao e de instruo do esprito humano. Longe de se contentar em examinar e investigar, Voltaire exige e antecipa com veemncia o contedo de suas exigncias65. A histria voltaireana preferia a compreenso sociolgica eterna descrio das disputas polticas e religiosas das naes, suas guerras e suas batalhas66. Almejava conhecer o esprito das pocas, da seu esforo na descrio da cultura, das artes, da economia e da poltica. Para ele, pocas histricas, como o sculo de Lus XIV, ou o de Pedro, o Grande, mostraram o desenvolvimento do esprito humano, sua mais alta capacidade67, pocas em que a infmia supersties e fanatismo foi deixada de lado, em prol da razo e do esclarecimento humano. A cultura de seu tempo mostrava os progressos realizados pelo esprito humano. No Essai sur les moeurs, Voltaire afirmava:Pelo quadro que traamos da Europa, desde o tempo de Carlos Magno at os nossos dias, fcil verificar que esta parte do mundo incomparavelmente mais populosa, mais civilizada, mais rica, mais esclarecida do que antes, e que mesmo muito superior ao que era o Imprio Romano, se excetuarmos a Itlia68.

Nessa perspectiva, Voltaire repudiava o providencialismo histrico de Bossuet, bem como a utilizao da Bblia como relato histrico. Primeiramente, porque ela se

Idem. Ibidem, p. 296. 66 Ibidem, p. 298. 67 Voltaire escreveu duas obras dedicadas a esses personagens, O Sculo de Lus XIV e a Histria da Rssia sob Pedro, o Grande. Em sua perspectiva, ambos os monarcas teriam contribudo para que seus povos se tornassem mais polidos, mais cultos e menos brbaros do que seus ancestrais. SOUZA, Maria das Graas de. Voltaire: Histria e Civilizao. op. cit., p. 115. 68 VOLTAIRE. Essai sur les moeurs. apud LE GOFF, Jacques. Progresso/Reao. op. cit., p. 250.65

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referia apenas a quatro ou cinco povos, e sobretudo da pequena nao judia69, sendo assim, seu relato no poderia ser expandido para toda a Europa ou demais continentes. Um outro motivo seria porque desconsiderava aquilo que, para ele, seria o objeto do historiador: mostrar o aprimoramento dos costumes e o abandono das prticas e conhecimentos brbaros, e a ao humana nesses desenvolvimentos. Para Koselleck, assim como as guerras civis religiosas propiciaram o estabelecimento do Absolutismo, foi este regime que, no sculo XVIII, propiciou o desenvolvimento da crtica ilustrada70. A alterao da ordem social foi transformada em doutrina e necessidade histrica. Numa perspectiva filosfica racional e terrena, no mais escatolgica ou salvacionista:O insondvel plano divino de salvao transforma-se em um segredo mantido pelos planejadores da filosofia da histria. Ao darem este passo, os iluminados conquistam uma certeza especial: o plano de salvao divina secularizado na filosofia da histria racional. Mas o plano ao mesmo tempo a filosofia da histria, que garante o curso dos eventos, de agora em diante planejados. A filosofia do progresso fornecia a certeza no religiosa ou racional, mas especificamente histrico-filosfica de que o plano poltico indireto se realizaria; inversamente, o planejamento racional e moral determinava o progresso da histria. O ato da vontade j continha a garantia de que o plano teria xito71.

O mesmo Koselleck admite, entretanto, que, em determinados momentos e espaos, a crtica ilustrada, com vistas transformao da ordem social e construo necessria do progresso, utilizou-se de formas histricas que associavam o tempo futuro, novo e a ser construdo pelos homens, com formas histricas de um passado idealizado. A crena manica de que a liberdade humana no futuro, com cidados morais e a construo de uma soberania supra-estatal para cujo servio os maons se sentiam convocados , era vista como um retorno a um passado ideal, o tempo de Augusto, perodo em que a arte real se estendeu Britnia, que, tendo-se tornado desde ento a nova Senhora da Terra, deveria levar a todos os povos a arte da paz72. Foucault tambm comenta como a idia do progresso e de construo do novo foi mobilizada discursivamente como um retorno a um passado ureo, o que ele chama de reativao histrica73. Tais aspectos indicam a permanncia da concepo cclica da histria na69

VOLTAIRE. Le pyrronisme de lhistoire. apud SOUZA, Maria das Graas de. Voltaire: Histria e Civilizao. op. cit., p. 127. 70 KOSELLECK, Reinhart. Crtica e Crise: uma contribuio patognese do mundo burgus. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999, pp. 19. 71 Ibidem, pp. 116-117. 72 Ibidem, p. 115. 73 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collge de France (1975-1976). So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 252.

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Ilustrao, que, para Le Goff, ainda era dominante, sendo vista como fases de progresso, apogeu e decadncia. Montesquieu, por exemplo, comentando seus estudos sobre o Imprio Romano, afirmava:Quando todas as naes do mundo seguem este ciclo: primeiro so brbaras; conquistam e tornam-se naes civilizadas; esta civilizao as faz maiores e tornam-se naes polidas; a polidez enfraquece-as; so conquistadas e voltam a ser brbaras: como prova destas afirmaes temos os Gregos e os Romanos74.

A prpria concepo histrica de um esclarecimento linear defendida por Voltaire conviveu com a perspectiva cclica. Seu conceito de grande sculo, aplicado ao tempo de Lus XIV, e, segundo ele, apenas a outros trs sculos da humanidade o de Felipe e Alexandre na Grcia; o de Augusto, em Roma; e o do Renascimento, na Itlia indicam tambm uma idia de se retomar essas grandes pocas75. Como se ver no Captulo 4, progresso e retorno tambm foram conciliados na legitimao histrica do pombalismo, principalmente atravs da Deduo Cronolgica e Analtica. Do ponto de vista coletivo, o Estado, na Ilustrao, tornou-se o principal ator responsvel por se trazer as luzes e o progresso aos povos, da a idia de um despotismo esclarecido, um poder que se situava entre o o homem e sua liberdade de agir76. Tratase de um governante concentrador dos poderes, mas capaz de colocar o Estado na direo do progresso e da razo, coisa que, sozinhos, os povos no seriam capazes de fazer. O dspota esclarecido acampava o voluntarismo poltico ilustrado77. No sculo XIX, a doutrina do progresso sofreria modificaes. Nesse momento, a perspectiva voluntarista da ilustrao seria invertida e conceber-se-ia o progresso como uma fora autnoma em relao aos atores histricos, uma fora que levaria a histria para o caminho do progresso independentemente das aes dos homens. Seria como uma torrente, que nem mesmo poderia ser resistida pelos homens78. A prtica poltica desenvolvida em Portugal, durante os anos do reinado josefino, deve ser vista tanto pelo contexto interno, em que se intentou um reforo dos aparatos estatais de ao poltica, e, externamente, pelo contexto europeu e ultramarino deMONTESQUIEU. Cahiers (1716-1755). apud LE GOFF, Jacques. Progresso/Reao. op. cit., p. 246. SOUZA, Maria das Graas de. Voltaire: Histria e Civilizao. op. cit., pp. 111-113. 76 ARENDT, Hanna. On Revolution. apud JASMIN, Marcelo Gantus. As Formas da Histria. In. Alexis de Tocqueville: a historiografia como cincia poltica. Rio de Janeiro: ACCESS, 1997, p. 11. 77 Voltaire e outros ilustrados defendiam a idia de que a filosofia da histria do progresso se realizaria sob um despotismo esclarecido. Nessas condies, com monarcas que se dedicassem a suprimir os atrasos e resqucios do feudalismo, os homens no se veriam tolhidos em suas liberdades, pelo contrrio, mais livres, pois desenvolveriam seu esprito e sua razo. Da a admirao manifestada por reis como Catarina da Rssia, ou Frederico da Prssia. Na contramo dessa perspectiva, encontrava-se Rousseau, que no admitia o poder desptico em nenhuma circunstncia, por corromper a humanidade. SOUZA, Maria das Graas de. Voltaire: Histria e Civilizao. op. cit., pp. 102 e 117. 78 JASMIN, Marcelo Gantus. As Formas da Histria. op. cit., pp. 11-12.75 74

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polticas e idias do sculo XVIII, em que a Ilustrao forneceu algumas ferramentas terico-polticas para a ao poltica do pombalismo. Voltando reflexo de Pocock, enunciada anteriormente, a respeito das relaes mtuas entre concepes de histria e idias polticas, pretende-se desenvolver a hiptese de que Portugal passou por um questionamento de suas noes de tempo pblico durante o terceiro quartel do sculo XVIII, correlacionando-se novos pensamento poltico e idia de histria. Entendendo-se o pombalismo como um enunciado destinado a produzir um efeito sobre uma determinada realidade e emitido em um determinado contexto histrico e lingstico, necessrio compreender quais os termos que compunham a tradio que ele pretendia refutar. Dessa forma, o Captulo 1 ser dedicado a analisar as fundamentaes tericas do corporativismo escolstico e do messianismo-milenarismo. Nessa anlise, pretende-se mostrar o enraizamento desses pensamentos na constituio histrica e poltica de Portugal na poca Moderna e de que forma eles se relacionam com interpretaes e formulaes acerca da histria portuguesa produzidas no sculo XVII, ressaltando-se a concepo teolgica, que envolvia tanto as formulaes polticas quanto histricas no perodo. Para esse fim, analisar-se-o textos de cunho historiogrfico que apresentam conceitos caros ao corporativismo escolstico e s crenas messinico-milenaristas, como a Histria de Portugal Restaurado (1679-1698), de D. Lus de Meneses, e a Restaurao de Portugal Prodigiosa (1643-1653), do padre Joo de Vasconcellos. Na primeira metade do sculo XVIII, comearam-se a se pronunciar as primeiras vozes portuguesas que contestavam o pensamento escolstico, o papel dos jesutas em Portugal e as conseqncias polticas e culturais dessa ao para o mundo lusitano. No desenvolvimento dessa crtica, encontraram-se ressonncias das Luzes. Ilustrados portugueses como Lus Antnio Verney, Antnio Ribeiro Sanches e D. Lus da Cunha pronunciaram-se, sua maneira, acerca da realidade portuguesa. Criticaram a situao do estado cultural, econmico e poltico portugus, as relaes de poder estabelecidas entre Coroa, Igreja e nobreza, e propuseram solues para tirar Portugal do marasmo e obscuridade em que acreditavam encontrar-se. No Captulo 2, pretende-se traar um quadro do contexto portugus nessas primeiras dcadas dos setecentos, apresentar os termos da crtica ilustrada desenvolvida no perodo por alguns portugueses e suas proposies de solues polticas com vistas ilustrao do Reino luso. Perceber-se-, nas anlises de algumas obras desses ilustrados, que eles propuseram formulaes de

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novos modelos polticos, e desenvolveram novas vises acerca da histria, em geral, e portuguesa, em particular. Sebastio Jos de Carvalho e Melo, bem como seus apoiadores, viveram esse perodo e compartilharam dessas vises ilustradas sobre Portugal, sendo as mesmas, pois, fundamentais para se compreender o pombalismo em suas idias e prticas polticas. No Captulo 3, esboa-se um quadro das lutas polticas e prticas governativas do perodo pombalino. Atravs dessa narrao, pretende-se mostrar como a formulao de idias polticas e produo de obras no pombalismo responderam, em vrios momentos, a questes circunstanciais. Ao mesmo tempo, procura-se uma definio abrangente para o pombalismo, que mostre os traos comuns e mais generalizantes do seu iderio e das suas prticas polticas. Ao final, mostram-se quais as razes e fundamentos que o pombalismo utilizou para refutar as idias polticas do corporativismo escolstico e as crenas messinico-milenaristas. Nessas formulaes, so percebidas apropriaes do iderio ilustrado. O Captulo 4 se dedica a analisar as manifestaes historiogrficas do pombalismo. Primeiramente, far-se- um breve quadro das discusses historiogrficas em Portugal na primeira metade do sculo XVIII, especialmente na Academia Real de Histria Portuguesa. Nas discusses que tiveram lugar nessa academia, estiveram presentes temas polticos caros poca e questes tericas e prticas acerca da histria na Ilustrao. Atravs da anlise dos principais textos de cunho historiogrfico produzidos pelo pombalismo, a Relao Abreviada e a Deduo Cronolgica e Analtica, pretende-se observar as relaes existentes entre as concepes de poder desenvolvidas pelo iderio pombalino e sua concepo de histria. A questo a ser respondida saber se o pombalismo, ao refutar os princpios polticos do corporativismo escolstico e das crenas messinico-milenaristas, rejeitou tambm suas vises de histria e, se positivo, formulou uma outra. Ver-se- que o pombalismo, ao utilizar a histria para legitimar sua poltica, foi herdeiro de vrios temas discutidos na Academia Real e se apropriou de concepes ilustradas da histria. Doutrinas histricas das Luzes foram adaptadas viso pombalina acerca do estado de desenvolvimento do Reino portugus, bem como s solues que considerava adequadas. Foram revistas a legitimao histrica do poder poltico portugus e sua funo no tempo, o que teve repercusses na prpria legitimao da posse colonial.

Captulo 1 Portugal moderno: poltica e histriaPortugal ser o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princpio e fim destas maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os Portugueses. Antnio Vieira. Na formulao de seu iderio poltico, o pombalismo procurou refutar os erros polticos que teriam sido executados e difundidos em Portugal desde a chegada dos jesutas. Conforme se ver adiante, a historiografia pombalina criou uma imagem de harmonia poltica e pleno desenvolvimento econmico e cultural em Portugal na poca dos Grandes Descobrimentos, e de um perodo posterior de degenerao das tradies portuguesas, at o momento em que, no reinado de D. Jos, ter-se-ia buscado recuperar a grandeza perdida. Ao propor um novo modelo poltico e uma nova viso da histria portuguesa, o pombalismo buscou desqualificar as prticas e idias acerca do poder at ento vigentes no reino lusitano e a compreenso de histria que delas se depreendia. Faz-se necessrio, ento, compreender em que consistiam as linguagens polticas contra as quais o pombalismo buscava se afirmar, ou seja, o que seriam os erros que levaram Portugal decadncia. A avaliao desses princpios corrompidos foi feita pelo pombalismo por um vis ilustrado e, ao mesmo tempo, fundamentando um projeto de governo que dava maior autonomia para o poder central. Da o repdio s doutrinas milenaristas, ou mesmo s interpretaes providencialistas da histria, tidas como manifestaes da superstio e do irracionalismo. Tambm da a contestao das idias oriundas do corporativismo da Segunda Escolstica, que, outrossim, definiam a poltica por um vis teolgico, alm de sugerirem limites ao poltica dos reis e servirem de fundamentaes para sedies contra o poder real. Com o objetivo de compreender em que ambiente poltico e mesmo de linguagem poltica o pombalismo formulou seus enunciados, buscar-se- traar as linhas dos

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pensamentos providencialista e corporativista em Portugal, e suas compreenses da poltica e da histria. 1.1 A fundao, o mito e a histria providencial A constituio de um Estado nacional, ou Estado moderno, nos pases ibricos no correspondeu ao mesmo processo verificado na Europa central e no norte europeu. A motivao de carter cruzadstico mobilizou os reinos ibricos a empreenderem as guerras de Reconquista que se estenderam desde o sculo VIII at a conquista de Granada, em 1492. Durante esse longo perodo, as acomodaes e disputas foram vrias, envolvendo, alm da luta por territrios entre cristos e mouros, vrias outras internamente ao universo dos reinos cristos, que, em determinados momentos, chegaram a associar-se com chefes rabes. O perodo da Reconquista fundamental para se compreender a histria ibrica moderna e a portuguesa, em particular. A luta pela expulso dos sarracenos da pennsula foi tratada no simplesmente como uma conquista de territrios, mas, sim, como uma extenso das Cruzadas, uma espcie de Guerra Santa dos cristos contra os infiis muulmanos. Este ponto significativo, posto que, em 1075, a empreitada crist na Pennsula Ibrica ganhou a beno pontifical, o que transformou o conflito localizado em uma misso em nome da cristandade, assumindo um teor providencialista o da misso de expanso da f crist a todo o orbe. Os reis ibricos cristos tomaram para si o papel de defensores fidei, retomando uma mstica existente desde os tempos visigticos1. A constituio de um reino portugus autnomo inseriu-se no contexto das guerras de Reconquista. A grande necessidade de foras militares na luta contra os muulmanos fez com que se fortalecessem o poder dos senhorios locais que, conforme expulsavam o inimigo mouro, aumentavam seu poder territorial. O Condado Portucalense, territrio do extremo oeste da pennsula, foi dado a D. Henrique de Borgonha, no sculo XI, por seu genro, Afonso VII de Leo. Durante as lutas, D. Henrique, apoiado por senhores de terra locais, conseguiu estender os domnios de seu condado ao norte, na Galcia, e para o leste. Entretanto, aps a morte de D. Henrique, D. Afonso VII exigiu que D. Tereza, viva de D. Henrique, lhe prestasse vassalagem e reduzisse os limites do condado ao tamanho inicial. Vrios nobres locais viram seus interesses tolhidos pelas aes de D. Tereza e se revoltaram, escolhendo D. Afonso Henriques, filho de D. Tereza e D.1

BARBOZA FILHO, Rubem. Tradio e artifcio: iberismo e barroco na formao americana. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2000, pp. 143-146.

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Henrique, como cabea do movimento. Afonso Henriques conseguiu, a princpio, derrotar a me e investir em reconquistar os territrios anteriormente conseguidos pelo pai, ao norte e a leste do condado, mantendo constante luta ao longo das fronteiras. Entretanto, o avano sarraceno ao sul, impeliu-o para essa regio e, em 1140, as tropas portuguesas confrontaram-se com o exrcito de cinco reis mouros nos campos de Ourique. D. Afonso Henriques obteve a vitria e foi aclamado rei por seu exrcito. A vitria de D. Afonso Henriques em Ourique um marco fundamental e mitolgico da histria portuguesa. Em torno deste evento, e de suas posteriores narraes, desenvolveram-se construes e reconstrues histricas ao longo dos sculos seguintes, a partir das quais se destacaram alguns aspectos essenciais que caracterizaram a maneira como os portugueses entenderam sua constituio histrica e poltica. De fato, debate-se ainda na historiografia portuguesa a respeito do local exato onde teria ocorrido a vitria de Ourique, e admite-se que a vitria completa sobre os muulmanos s teria ocorrido um sculo mais tarde no Algarve2. Independentemente dessas incertezas e debates, as narraes da batalha foram ganhando importncia social e poltica conforme eram contadas e recontadas,