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HELOISA HELENA GENOVESE DE OLIVEIRA GARCIA Família e escola na educação infantil: um estudo sobre reuniões de pais São Paulo 2005 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA

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UNIVERSIDADE DE SO PAULOINSTITUTO DE PSICOLOGIA

HELOISA HELENA GENOVESE DE OLIVEIRA GARCIA

Famlia e escola na educao infantil:um estudo sobre reunies de pais

So Paulo2005

HELOISA HELENA GENOVESE DE OLIVEIRA GARCIA

Famlia e escola na educao infantil:um estudo sobre reunies de pais

Dissertao apresentada ao Instituto dePsicologia da Universidade de So Paulo paraobteno do grau de Mestre em Psicologia.rea de Concentrao: Psicologia Escolar edo Desenvolvimento HumanoOrientador: Prof. Dr. Lino de Macedo

So Paulo2005

AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIALDESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OUELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUECITADA A FONTE.

Catlogo na PublicaoServio de Biblioteca e DocumentaoInstituto de Psicologia da Universidade de So Paulo

Garcia, H. H.G. de O.Famlia e escola na educao infantil: um estudo sobre reunies de pais / HeloisaHelena Genovese de Oliveira Garcia. So Paulo: s.n., 2005. 208 p.Dissertao (mestrado) Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e daPersonalidade.Orientador: Lino de Macedo.1. Relaes pais-escola 2. Educao infantil 3. Construtivismo 4. CooperaoI. Ttulo.

Heloisa Helena Genovese de Oliveira GarciaFamlia e escola na educao infantil:um estudo sobre reunies de pais

Dissertao apresentada ao Instituto dePsicologia da Universidade de So Paulo paraobteno do ttulo de Mestre.rea de Concentrao: Psicologia Escolar e doDesenvolvimento Humano.

Aprovada em:Banca ExaminadoraProf. Dr. ________________________________________________________Instituio: ____________________ Assinatura: _______________________Prof. Dr. ________________________________________________________Instituio: ____________________ Assinatura: _______________________Prof. Dr. ________________________________________________________Instituio: ____________________ Assinatura: _______________________

Dedico esse trabalho ao meu querido Henrique,a quem talvez nunca consiga expressar o tantoque me tem ensinado com seu amor, seucompanheirismo, seu respeito e sua compreenso:voc muito especial para mimE Sofia, minha amada filha, por seu perfume deflor, por seu sorriso de sol, por voc existir

AGRADECIMENTOS

Aos meus queridos pais, Francisca e Paulo, que sempre me incentivaram a estudar e aprender,fortalecendo-me com seu amor, sua preocupao e seu apoio em todas as horas.Ao professor Lino de Macedo, pela dedicao, pela pacincia afetuosa e pela confiana persistenteem mim. T-lo como orientador foi um privilgio e um prazer que guardarei para sempre.s professoras Marilene Proena Rebello de Souza e Maria Bernadete Amndola Contart deAssis pelo carinho e pelo empenho com que contriburam, no exame de qualificao, para oaprimoramento desse trabalho.Aos meus irmos, Marta Isabel e Paulo Fernando, e a Leonida pela torcida, pelo carinho e pelaajuda, de perto ou de longe, em muitos momentos.Aos colegas do grupo de orientao, Deigles, Ivonete, Maria Clia, Mnica Fogaa, Flvio, Carolina,Dominique, Cristiana, Francine, Mnica Cintro e Renata, por termos compartilhado umaexperincia de aprendizagem coletiva to rica e necessria nesse meu percurso na ps-graduao.Ao Cludio Castelo Filho, por tantos anos de dedicao, acolhimento e transformaescompartilhadas.s queridas amigas Cristiana, Vera, Esther e Cludia pela certeza de termos cultivado, ao longodesses anos, relaes to preciosas e que me estimulam a seguir em frente. Ismnia de Camargo, querida professora e amiga, pela doura com que sempre me incentivoue acreditou em mim.Aos professores e colegas do curso de mestrado, com quem dividi dvidas, descobertas e acrena de que no estamos ss na rdua jornada do conhecimento.Aos tantos amigos e colaboradores que acompanharam esse projeto, sempre torcendo e vibrando por mim.Ao Instituto de Psicologia da USP e CAPES, pela bolsa concedida, por viabilizaram aconcretizao deste trabalho.s duas escolas pesquisadas por acreditarem e colaborarem com a minha proposta. E a todosaqueles que participaram das reunies observadas e que me concederam entrevistas: vocsforneceram preciosos e imprescindveis ingredientes para a construo que apresento nessas pginas.Agradeo, por fim, o amor paciente e o incentivo carinhoso e indispensvel das duas pessoasque mais partilharam comigo o desafio dessa trajetria, Sofia e Henrique.

RESUMO

GARCIA, Heloisa Helena Genovese de Oliveira. Famlia e escola na educao infantil: umestudo sobre reunies de pais. 2005. 208 p. Dissertao (Mestrado). Instituto de Psicologia,Universidade de So Paulo, So Paulo, 2005.Esta pesquisa enfoca as relaes entre famlias e escolas atravs de dois recortes. O primeirodefine um perodo em particular da vida escolar: a educao infantil (especificamente na faixade 4 a 6 anos) e o segundo elege uma atividade regular nas escolas: as reunies de pais. O estudofoi desenvolvido em duas Escolas Municipais de Educao Infantil paulistanas durante o primeirosemestre de 2004. Seu objetivo geral foi analisar como se constituem as relaes de cada escolacom os familiares dos alunos durante as reunies de pais. E os objetivos especficos foram: a)observar, descrever e examinar como so as reunies de pais nas duas escolas; b) analisar opercurso construdo por algumas professoras com os respectivos grupos de pais nas reunies aolongo do semestre; c) identificar e analisar as opinies das escolas (professores, coordenadorespedaggicos e diretores) e dos familiares sobre as reunies; d) inferir, atravs de indicadores,aspectos das reunies que sejam favorveis ou desfavorveis a uma relao de colaborao(interdependncia) entre as escolas e as famlias. O referencial terico do construtivismopiagetiano fundamentou a estruturao metodolgica e as anlises dos dados relativas aosobservveis das interdependncias e significaes produzidas no contexto das reunies e dasentrevistas. Foram realizadas quatorze observaes de reunies e quarenta e trs entrevistasindividuais. Os resultados evidenciaram uma multiplicidade de fatores influenciando na realizaoe nos significados atribudos s reunies de pais. A partir deles destacamos uma tendnciamoralizadora da escola sobre a educao no contexto familiar e interferncias do contextoinstitucional e poltico no cotidiano das reunies. Nos dois casos ocorreu uma descaracterizaodas reunies enquanto espaos vinculados ao trabalho pedaggico desenvolvido com os alunos.Em geral, tanto nos discursos como nas prticas, as escolas permaneceram identificadas com olugar dos que sabem, reservando pouco espao para os conhecimentos e as realidades das famlias.Mesmo assim, verificaram-se situaes de interao e colaborao entre professoras e pais. Porfim, a pesquisa indicou duas ausncias importantes nos dados das duas escolas: de avaliaessistemticas das reunies de pais e da abordagem do tema ao longo da formao docente, tantoinicial como continuada. Nesse sentido, a autora faz uma proposio de modelos de anlise dereunies de pais, baseados em trs indicadores de interdependncia - contedo, estrutura ouforma e dinmica das relaes - que sinalizam um caminho para a construo de uma relaomais cooperativa entre escolas e famlias.Palavras-chave: Relaes pais-escola; educao infantil; construtivismo; cooperao.

ABSTRACT

GARCIA, Heloisa Helena Genovese de Oliveira. Family and school in kindergarten: a studyabout parents meetings. 2005. 208 p. Dissertation (Master Degree). Psychology Institute,University of So Paulo, So Paulo, 2005.This research focuses the relationship between families and schools regarding two approaches.The first one defines a particular period of the school age: kindergarten (specifically the rangefrom 4 to 6 years) and the second one chooses an ordinary activity at schools: parents meetings.The study was developed in two public kindergarten schools in So Paulo City, during the firstsemester of 2004. Its general goal was to analyze how the relationship of each school is established with the family members of the students during parents meetings. And the specific goalswere: a) observe, describe and examine parents meetings in both schools; b) analyze the trajectory built by some teachers with parents groups during the meetings along the semester; c)identify and analyze schools opinions (teachers, pedagogical coordinators and directors), andthe ones of the family on the meetings; d) infer, through indicators, aspects of parents meetingsthat are favorable or unfavorable to establish a cooperative relationship (interdependence) between the schools and the families. The theoretical approach of Piagets constructivism has setup the methodological arrangement and data analyses concerning the observable interdependencesand meanings produced in the context of the meetings and interviews. Fourteen observations ofmeetings and forty-three individual interviews were carried out. The results displayed a multiplicity of factors influencing the accomplishment and the meanings assured to the parents meetings. From these factors, we highlighted a moralizing tendency of the school on the education inthe family context, and interferences of the institutional and political context in the everyday ofthe meetings. In both cases, a loss in the characterization of the meetings, while spaces linked tothe pedagogical work developed with the students, came out. Generally, in the speeches, as wellas in the practices, schools remained identified as the place of wisdom, leaving little space forthe families to reflect their knowledge and reality. Even so, interactive cooperation situationswere noticed between teachers and parents. Finally, the research pointed to two important absences in both schools data: systematic evaluations of the parents meetings and the themeapproach to the teachers development, as much initial as continuous. In this sense, the authormakes a proposition of models to the analysis of parents meetings, based on three interdependent indicators - content, pattern or form and dynamics of the relations - which signalizes adirection for the construction of a more cooperative relation between schools and families.Keywords: parental-school relationship; early childhood education; constructivism; cooperation.

SUMRIOINTRODUO ....................................................................................................................... 111.APRESENTAO DO PERCURSO PROFISSIONAL DA AUTORA:AS SEMENTES DA PESQUISA ........................................................................................... 13CAPTULO 1 DELINEAMENTOS TERICOS ........................................................... 241.ALGUNS SIGNIFICADOS DE FAMLIA E DE ESCOLA ...............................................2. RELAES ENTRE FAMLIAS E ESCOLAS ................................................................2.1. Aspectos da educao infantil ........................................................................................2.2. Contribuies do construtivismo ....................................................................................3. OS DOIS RECORTES DA PESQUISA .............................................................................3.1. Educao infantil ...........................................................................................................3.2. Reunio de pais ...............................................................................................................4. REVISO BIBLIOGRFICA: BUSCANDO INTERLOCUTORES ...............................5. OS OBJETIVOS DA PESQUISA ......................................................................................

243539444951545668

CAPTULO 2 METODOLOGIA ..................................................................................... 701. PESQUISA EM UMA VISO CONSTRUTIVISTA ........................................................ 702. AS ESCOLAS ..................................................................................................................... 722.1. EMEI Julieta .................................................................................................................. 732.2. EMEI Romeu .................................................................................................................. 753. PROCEDIMENTOS DE COLETA DOS DADOS ............................................................ 773.1. As observaes de reunies de pais ................................................................................ 783.2. As entrevistas ................................................................................................................... 823.2.1. Os entrevistados ........................................................................................................... 844. PROCEDIMENTOS DE ANLISE DOS DADOS ........................................................... 86CAPTULO 3 RESULTADOS ........................................................................................... 891. CONSIDERAES SOBRE UMA OPO CONSTRUDA .......................................... 892. RESULTADOS DAS OBSERVAES DAS REUNIES DE PAIS ................................ 902.1. Mapa geral das observaes da EMEI Julieta .............................................................. 912.2. Sntese das observaes da EMEI Julieta ................................................................... 1032.3. Mapa geral das observaes da EMEI Romeu ........................................................... 1052.4. Sntese das observaes da EMEI Romeu .................................................................... 1152.5. Anlise dos percursos de trs professoras .................................................................... 1193. RESULTADOS DAS ENTREVISTAS ............................................................................ 1253.1. Perfil das opinies das duas escolas ............................................................................ 1263.2. Perfil das opinies do conjunto dos pais ...................................................................... 147

CAPTULO 4 DISCUSSO ........................................................................................... 1631. A PROPOSIO DE TRS MODELOS DE ANLISE ................................................ 1632. REUNIO DE PAIS: QUE ESPAO ESSE? ............................................................... 175CAPTULO 5 CONSIDERAES FINAIS ................................................................. 186REFERNCIAS .................................................................................................................. 189APNDICE 1 Termo de acordo para colaborao em pesquisa acadmica - Escolas . 193APNDICE 2 Termo de acordo para colaborao em pesquisa acadmica Entrevistados ....................................................................................................................... 194APNDICE 3 Eixos para observao de reunies de pais .............................................. 195APNDICE 4 Roteiro para entrevista com professores ................................................. 196APNDICE 5 Roteiro para entrevista com pais .............................................................. 198APNDICE 6 Bilhete de convite aos familiares .............................................................. 200APNDICE 7 Registro da segunda reunio bimestral da PJ.1 ...................................... 201APNDICE 8 Registro da segunda reunio bimestral da PR.3 ..................................... 204LISTA DE TABELASTabela 1 - Quadro geral das atividades de coleta de dados ................................................ 78Tabela 2 - Conjunto das reunies de pais observadas ........................................................ 91LISTA DE GRFICOSGrfico 1 - Indicadores de interdependncia ..................................................................... 174

Porque entregar-se a pensar uma grande emoo, e s se tem coragem de pensar nafrente de outrem quando a confiana grande a ponto de no haver constrangimento em usar,se necessrio, a palavra outrem. Alm do mais exige-se muito de quem nos assiste pensar: quetenha um corao grande, amor, carinho, e a experincia de tambm se ter dado ao pensar. (...)Mas devo avisar. s vezes comea-se a brincar de pensar e eis que inesperadamente obrinquedo que comea a brincar conosco. No bom. apenas frutfero.Clarice Lispector

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INTRODUO

Realizar essa pesquisa foi uma oportunidade especial de entrega ao pensar.A satisfao de ver e de apresentar o seu produto final foi tecida a cada dia pelos fios demltiplas emoes, de diversas cores, tramas e texturas, algumas vezes produzindo ns ou mesmoesgaramentos: entregar-se a pensar no nada fcil...Em vrios momentos de nossa vida as emoes predominantes diante da tarefa de pensarso o receio, a insegurana, o medo de deixar o pensamento brincar conosco. Desde crianasns no somos, de fato, suficientemente encorajados a esse tipo de pensamento: a ousadia depensar livremente costuma ser repreendida, desvalorizada, desautorizada pelos outros e por nsmesmos. Tanto nas famlias como nas escolas, os primeiros beros das nossas idias, a tnica seguir e manter as tradies, ou o jeito considerado certo de ser e de pensar. Os caminhos doaprender costumam privilegiar a repetio, a transmisso e a reverncia ao que j conhecido,em detrimento da descoberta, da criao, da abertura para o diferente e para o novo.No podemos certamente prescindir das tradies, do passado e da cultura: alicercesinsubstituveis do humano em cada um de ns. No entanto, s vezes agarramo-nos a eles com talfora que perdem o significado de serem o cho e as razes de que necessitamos para crescer,tornando-se escudos e armaduras: trilhos fora dos quais a locomotiva do nosso pensamentosimplesmente no funciona Quer sejam tradies ligadas a modos de pensar, de sentir ou dese comportar, todos sabemos como pode tornar-se difcil sentirmo-nos coerentes, genunos elivres diante delas.Felizmente, contudo, essa no toda a realidade que conhecemos. H sempre algumperto de ns, que se ousarmos escutar, ir encorajar-nos a trocar antigos trilhos por novas trilhas,descobrindo vales, penhascos ou densas florestas antes impensveis. Esses companheiros de

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viagem podem ser da nossa famlia, um amigo, um professor, um analista: s vezes dividempoucos minutos de nossa jornada, outras mantm-se ao nosso lado por anos a fioAo longo do mestrado - cursando disciplinas, realizando a pesquisa de campo, nosmomentos de orientao, ao escrever essa dissertao - fortaleceu-se minha convico de queprocurar ser esse outrem, que se entregue s emoes do pensar um dos elos que aproximaos fazeres de professor, de psiclogo, de pesquisador, de orientador. Cada um, dentro dos limitese objetivos da sua funo, prope-se a acompanhar outros pensadores nesta mesma tarefa (svezes desde os primeiros anos de sua jornada). E essa parceria precisa ser regada com confianae amor para tornar-se frutfera.O trabalho que se ver a seguir tem como melodia de fundo a valorizao desse pensarcompartilhado: um pensar que demanda pacincia, amor e uma constante entrega ao novo e aodesconhecido. Ele est dividido da seguinte forma.Ainda na Introduo, apresentamos o relato de experincias profissionais que lanaramalgumas sementes do presente trabalho.O Captulo 1 corresponde aos Delineamentos Tericos e possui cinco partes. Iniciamoscom o contexto terico de onde emergem nossas reflexes sobre famlia e escola, convergindopara as relaes entre elas. Neste ponto, destacamos aspectos especficos do universo da educaoinfantil e algumas noes do construtivismo que orientaram nosso olhar durante as investigaes.A seguir, apresentamos a opo pelos dois recortes da pesquisa (educao infantil e reunio depais) e nossa busca por interlocutores durante o levantamento bibliogrfico. Encerramos o captulocom a definio de nossos objetivos.No Captulo 2, referente Metodologia, descrevemos a investigao realizada e que seestruturou em uma perspectiva construtivista da pesquisa acadmica. As duas escolas participantesso apresentadas, assim como os procedimentos de coleta dos dados, que se basearam em

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observaes de reunies de pais e entrevistas individuais. O captulo termina com a exposiodos procedimentos de anlise dos dados.O Captulo 3 corresponde aos Resultados. Tendo como referncia o material obtido pelasobservaes das reunies, apresentamos o contexto particular de cada escola. Na seqncia,procedemos anlise das reunies sucessivas de trs professoras. Por fim, complementando oexame das observaes, apresentamos elementos obtidos atravs da anlise das entrevistas.Os dois ltimos captulos contemplam: a Discusso dos resultados, em que fazemos aproposio de trs modelos de anlise de reunies de pais e retomamos o dilogo com algumasquestes abordadas nos delineamentos tericos, e as Consideraes Finais.

1. Apresentao do percurso profissional da autora: as sementes da pesquisa

Nesses quinze anos de exerccio profissional como psicloga clnica e escolar foram muitasas experincias de conquista e de satisfao, mas tambm de dvidas, decepo e angstia. Narealidade, penso que o amadurecimento em qualquer rea profissional no se d sem umacombinao permanente de todas elas.Ao longo desse caminho, em vrios momentos busquei ajuda, corri atrs de alternativasmais promissoras; em outros tantos, tive que aceitar, me conformar at, com situaes que meforam impostas. Em raros, mas dolorosos, momentos cheguei a duvidar se queria continuarexercendo essa profissoNo entanto, a paixo pelo ser humano, a inquietude diante da vida, o desejo de mergulharsempre mais fundo nas luzes e sombras do universo mental, fizeram-me continuar a jornada, acada obstculo mais fortalecida e confiante.A maior parte daquilo pelo que passamos na vida perde-se no esquecimento. Transforma-

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se silenciosamente em terra adubada para novas semeaduras. Outras situaes vivem tranqilasna memria, deixando-nos mo seus rastros suaves ou cicatrizes profundas. H, entretanto,experincias mais inquietas e ousadas, que de tempos em tempos entram em erupo em nossamente, demandando nova apreciao. Parecem precisar de novos ares, reparos ou novas tintas emolduras.A minha deciso de cursar o mestrado e a escolha do tema de pesquisa foram frutos dealgumas dessas inquietaes e da busca por novos meios de enfrent-las. Vamos a elas.Na rea da sade, o atendimento clnico a crianas envolve evidentemente algum contatocom suas famlias. Tanto por dependermos de um responsvel que se comprometa com otratamento, como pela necessidade da sua colaborao em fornecer dados relevantes sobre nossospequenos pacientes. H tambm um outro aspecto: muitas vezes a possibilidade de melhora dascrianas est associada, em alguns casos at mesmo condicionada, a mudanas nas atitudesdaqueles com quem convivem e que cuidam delas. Ao olharmos essa questo mais de perto,vemos que a relao com as famlias gera nos profissionais sentimentos intensos e variados emuitas vezes conflitantes.Trabalhando diariamente nesse contexto, principalmente em servios pblicos1, pudeperceber algumas atitudes recorrentes dos profissionais frente s famlias de seus pacientes. Erafreqente certa impacincia de ouvi-los, como se atrapalhassem o verdadeiro fazer profissionalque deveria centrar-se nos pequenos e verdadeiros pacientes. Ou ento, uma desconsideraopor suas falas, quase como se fossem o caf-com-leite das brincadeiras infantis. Ainda queteoricamente se valorizasse a anamnese com as mes (ou responsveis) como parte essencial dodiagnstico das crianas, esse procedimento reduzia muitas vezes os familiares a meros

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Refiro-me ao trabalho realizado em Ambulatrio de Sade Mental e em Unidades Bsicas de Sade. Essas ltimas sochamadas popularmente de postos de sade e em alguns municpios contam com equipe da sade mental alm do atendimentoem clnica geral, ginecologia e pediatria. Alm desses locais, exerci a clnica em consultrio particular.

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informantes, sendo ao longo do tratamento progressivamente desconsiderados pelos profissionais.Mais ainda, havia uma forte tendncia a desvalorizar e mesmo a culpar as famlias, principalmenteas mes, pelo que ocorria com seus filhos2.Tambm era comum os profissionais queixarem-se da pouca colaborao das mes diantedas prescries mdicas: que elas no seguiam corretamente as suas orientaes (faltavam aosretornos, no ministravam remdios adequadamente, por exemplo). Enfim, que no entendiamos profissionais. Entretanto, poucas vezes algum daqueles que reclamavam questionava o modocomo lhes eram passadas tais informaes. Formava-se um crculo vicioso: como as famliaseram consideradas incapazes, julgava-se ineficaz procurar novas maneiras de conversar comelas, que, com isso, tornavam-se cada vez mais mudas e passivas nas consultas, confirmandosua falta de capacidade atribuda desde o incio. Algo bsico como conversar com um pacientee sua famlia durante uma consulta revelava um campo complexo e bastante frtil para oaparecimento e sedimentao de atitudes que dificultavam ou mesmo impediam esse contato.O desejo e o empenho dos profissionais em promover a melhoria das condies de sadedos pacientes eram reiteradamente bombardeados por limitaes e frustraes de toda ordem.As inmeras carncias vividas pela maioria da populao que utiliza os servios pblicosconfrontavam-nos internamente com uma impotncia por vezes asfixiante e quase insuportvel.Junto a isso, vivamos um freqente desamparo profissional ao vermo-nos sujeitos a diversasdeterminaes dos nveis centrais da administrao pblica, que mobilizavam desgaste e tensojunto populao (um exemplo emblemtico: a mudana do horrio de funcionamento de vriospostos de sade, sem consultar ou mesmo informar nem os funcionrios, nem os usurios). Ouento, a frgil retaguarda tcnica que a instituio nos proporcionava, deixando-nos sozinhos2

A discusso sobre o lugar atribudo s famlias nas avaliaes psicolgicas vem sendo objeto de reflexo e de crtica peloServio de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo. A esse respeito ver, por exemplo,MACHADO, A. M. Reinventando a Avaliao Psicolgica. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia da Universidade de SoPaulo, So Paulo, 1996.

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diante da conduo de casos graves, sem recursos adequados (dois exemplos comuns: manterfuncionando servios de sade sem material, medicamentos bsicos ou equipe profissionalcompleta, e ausncia de rede de apoio para encaminhamento dos casos).Enquanto isso, minha opo terica pela psicanlise consolidava-se e ajudava-me noapenas na conduo dos casos atendidos como a pensar essas questes mais gerais vividas nocontexto profissional. Essa teoria do funcionamento mental humano fundamenta-se na noo deinconsciente e do conflito to inevitvel quanto imprescindvel entre os vrios desejos, impulsose necessidades que todos ns possumos. Administrar esses conflitos, suportar as frustraes,criar possibilidades menos dolorosas e mais satisfatrias de relao consigo e com os outros soum desafio constante a que nenhum dos seres humanos consegue escapar. Lidar com a realidadeao nosso redor, desenvolvendo a capacidade de pensar sobre ela, pressupe o adiamento oumesmo o abandono de muitos dos desejos que pulsam dentro de ns (ver, por exemplo: FREUD,1911/1980, 1930/1980 e BION, 1962/1994).Assim, parecia-me que havia uma forte ligao entre os sentimentos ambivalentes e asangstias que o profissional experimentava no contato com os pacientes e suas famlias e omodo como lidava com essas pessoas. Em outras palavras, entendia que aquelas atitudes deimpacincia, desconsiderao e culpabilizao pelas famlias tinham razes em outros lugares:nos sentimentos de impotncia, frustrao, insegurana e desamparo dentre tantos outrospossveis - vividos e nem sempre percebidos pelos profissionais.Entrar em contato com qualquer dor, fsica ou mental, difcil e demanda condies paratanto. Sabemos, por exemplo, que diante de uma dor fsica muito forte, nosso organismo muitasvezes perde a conscincia ou mesmo esquece o ocorrido como forma de proteger-nos dosofrimento. Da mesma forma, diante da possibilidade de entrar em contato com uma dor mentalintensa, mecanismos de defesa entram em ao para proteger-nos de algo que nossa mente ainda

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no tem condies de enfrentar de outra forma. Resumidamente, as nossas opes de agir dividemse em duas direes bsicas: enfrentar ou fugir do contato com aquilo que causa dor e desconforto,sendo essa ltima alternativa a mais imediata. Assim, seguindo a opo de fuga diante de umconflito, dois mecanismos tornam-se muitos comuns: o esvaziamento ou a evitao dasexperincias que podem mobilizar sentimentos indesejveis e insuportveis e o deslocamentodeles para outras situaes ou outras pessoas.No primeiro caso, voltando ao contexto dos servios de sade, acontecia a repetio ouautomatizao de procedimentos que, enquanto pareciam perder o sentido, formavam uma barreira crtica e ao sofrimento. Por exemplo: as filas para marcao de consultas e exames tornavamse um aglomerado humano confuso e pouco eficaz; inscries em livros de fila de espera queacabavam perdidos por entre arquivos; os avisos e cartazes pela Unidade3 que muitas vezesmais confundiam do que informavam; e ainda um jeito de falar entre os profissionais e com apopulao que procurava aqueles servios, menos para atender e cuidar do que para afastar eevitar o contato. Quando algum de ns tentava refletir sobre esse quadro, rapidamente surgiam,em coro, resistncias e justificativas de que no adiantava mudar, que as coisas eram, e sempretinham sido, assim mesmo.O segundo mecanismo leva sedimentao de idias preconceituosas, como no exemplodas famlias consideradas incapazes de compreender as orientaes mdicas. Os sentimentos deimpotncia do profissional (como as angstias de se fazer compreender pelo outro) eram deslocadospara as famlias o que gerava certo alvio s dvidas e limites dos prprios profissionais. Aolanarmos o foco da luz sobre as impotncias e limitaes do e no outro, imediatamente as nossasprprias so ofuscadas. O resultado disso era a formao de uma barreira invisvel entre, de umlado, os profissionais detentores do saber sobre a doena e sobre o outro e afastados de suas3

Refiro-me aos equipamentos de sade em geral e no apenas s Unidades Bsicas de Sade.

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dvidas. Do outro lado, os pacientes e suas famlias que, fixados no lugar de incapazes, impotentese ignorantes, permaneciam depositrios de todas as angstias ligadas doena e ao tratamento. Oseguinte trecho da psicanalista Melanie Klein descreve com clareza essa dinmica:Somos inclinados a atribuir a outras pessoas em certo sentido colocar dentro delas algumas de nossas prprias emoes e pensamentos, e bvio que a natureza amistosaou hostil dessa projeo depender de quo equilibrados ou perseguidos estejamos.() Se a projeo predominantemente hostil, ficam prejudicadas a empatia verdadeirae a capacidade de compreender os outros. () Se o interjogo entre introjeo e projeono for dominado por hostilidade ou dependncia excessiva e for bem equilibrado, omundo interno se torna enriquecido e melhoram as relaes com o mundo externo(KLEIN, 1959/1991, p.286).

Felizmente, essa situao no era a nica: muitos de ns tentvamos encontrar maneiras deestabelecer um contato mais prximo, real e equilibrado com aqueles que nos procuravam. Houve,tambm, momentos de unio entre alguns profissionais, com algumas conquistas e mudanas.Acredito que as condies relatadas no impediram, nem impedem, o desenvolvimento detrabalhos srios, comprometidos, respeitosos e teis aos pacientes. Mais ainda, que no apenasnecessrio, mas possvel desenvolvermos estratgias de enfrentamento daquilo que nos angustiae faz sofrer. Quero salientar, entretanto, o custo enorme pago por profissionais e pacientes nessadinmica e a necessidade de ampliarmos nossa conscincia sobre ela como condio paramudarmos as relaes estabelecidas.Quando passei a atuar mais regularmente no contexto educao, encontrei situaes queme pareceram bastante semelhantes a essas j antigas conhecidas na clnica. Percebia o professor vivendo igualmente sentimentos de impotncia, angstia e desamparo no seu fazer dirio.Passei a indagar-me se, diante das famlias dos alunos, ocorreriam reaes e atitudes semelhantesquelas dos profissionais da sade.Desde o tempo da graduao mantive laos com o universo escolar: fui professora em umprojeto de educao complementar, ministrei palestras em escolas e discuti diversos casos ematendimento com professores e diretores. No entanto foram nos ltimos cinco anos que meus

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contatos com a escola vieram intensificando-se, tanto profissionalmente, em trabalhos depsicologia escolar, como pessoalmente, tornando-me me. Relatarei, a seguir, trs experinciassignificativas e embrionrias do presente trabalho.Em uma escola particular paulistana, com uma proposta pedaggica comprometida com oconstrutivismo, presenciei uma efervescncia contagiante entre os profissionais. Valorizando aformao continuada dos professores, esta se efetivava atravs de supervises individuais, reuniescom todo o grupo de professores, leituras sistemticas, incentivo a cursos e apresentao de trabalhos.Uma escola viva, com alunos envolvidos e questionadores, ensinando por meio de projetos, comespecial valorizao da expresso artstica em variadas formas: msica, teatro, artes plsticas,dana etc... No entanto, quando o assunto envolvia as famlias dos alunos surgia um discreto, masperceptvel, mal-estar. No tanto quando se falava do contato individualizado com cada pai. Masera nos comentrios sobre as reunies de pais que emergia um certo desconforto e ouviam-sequeixas. Elas eram basicamente de dois tipos. O primeiro grupo de queixas referia-se ao contatopropriamente dito com os familiares. Professores tensos frente a certos grupos de pais, segundoeles, difceis, que exigiam cada vez mais da escola, mas no davam muito valor ao trabalho realizado.Diziam que, mesmo no sendo a maioria, esses pais tumultuavam reunies, ou nem compareciam,parecendo ignorar a escola, que se sentia sobrecarregada e sozinha diante da tarefa de educar osalunos. Enfim, ressentiam-se da falta de colaborao e de trocas com os pais.O segundo tipo de queixas dizia respeito relao com a equipe tcnica da escola. Alguns professoressentiam-se mal por no poderem fazer reunies de pais sozinhos, j que sempre havia um membro daequipe da escola, direo ou coordenao, junto com eles. A justificativa era de que esse membro da equipeestaria ali para dar esclarecimentos caso houvesse questionamento pelos pais de algum item relativo administrao da escola. No entanto, alguns professores pareciam sentir-se no suficientemente respaldadospela equipe, vigiados at, enfraquecendo-se frente ao grupo de pais. Mesmo no havendo a oportunidade

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na poca de aprofundar a investigao sobre essa situao, surpreendeu-me o que parecia uma contradio.Por que, em meio a uma proposta pedaggica consistente e que claramente valorizava o desenvolvimentoprofissional do professor, este no podia relacionar-se autonomamente com os pais? Parecia haver umadistncia considervel entre o trabalho pedaggico desenvolvido com os alunos e o manejo da relao comos pais. Era justamente no momento do contato com o grupo de pais que a tenso, as queixas e as dificuldadessurgiam: aparecia a uma nota desafinada ou fora do compasso.A segunda experincia ocorreu em outra escola particular paulistana de ensino tradicional. Possuauma estrutura bem equipada e diferia da escola anterior em termos de espao fsico, nmero de alunose orientao pedaggica - sob influncia montessoriana. De orientao catlica, era comprometida comvalores humanos de cuidado, amor e respeito ao prximo. No entanto, apesar de haver um discurso devalorizao das famlias e da importncia de sua participao na vida escolar, uma situao chamou-mea ateno: para minha surpresa, no eram feitas reunies com o grupo de pais. No chamado dia dereunio de pais, o professor ficava disponvel durante um perodo letivo para conversar individualmentecom os que desejassem: esse procedimento repetia-se desde a educao infantil at o ensino mdio. Eume indagava: que sentido o contato com as famlias parecia ter para essa escola, ao privilegiar encontrosindividualizados? Apenas uma possvel prestao de contas a cada famlia sobre a respectiva criana?Que temores o contato com um grupo de pais poderia gerar? Haveria despreparo dos professores paraessa tarefa? Havia um contraste entre o discurso de solidariedade e respeito entre as crianas e a ausnciade contato com e entre os pais. Curiosamente, numa outra escola semelhante a essa, a orientadoracontou que, durante um certo perodo, haviam suspendido deliberadamente as reunies com os pais,pois estes criavam muito tumulto e pressionavam os professores que se sentiam acuados e com medo.Numa Escola Municipal de Educao Infantil4 paulistana, presenciei situaes diferentes,

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importante destacar que essa experincia ocorreu antes da realizao da pesquisa de mestrado e que a EMEI a que me refirono participou da nossa investigao.

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mas complementares sobre as relaes com as famlias. Mediante um pedido explcito dessaescola de ajuda profissional para melhorar o contato com as famlias realizamos palestras ereunies em pequenos grupos com os pais. Foi surpreendente que vrios deles, ao avaliarem osnossos encontros, realaram o fato positivo de estarem podendo conhecer e saber o nome dospais dos colegas dos filhos: e ns estvamos em Outubro! Os pais relataram que nas reuniesregulares com o professor, falava-se do aproveitamento geral das crianas, entregava-seeventualmente um relatrio e mantinha-se uma postura em que a escola falava e eles ouviam. Aequipe tcnica queixava-se de que muitos pais eram ignorantes, despreparados e inconvenientes,atrapalhando o dia-a-dia da escola; de que as famlias eram desestruturadas emocionalmente ecom poucas condies de oferecer uma boa educao aos filhos. Tudo isso imerso num discursofechado de uma escola que no tinha dvidas sobre o que estava relatando, de quem sabia averdade sobre aquilo que afirmava. No entanto eu me indagava em que medida a escola realmenteconhecia os pais dos seus alunos?A psicanlise mostra-nos que a possibilidade de os seres humanos desenvolverem suacapacidade para pensar est diretamente ligada, antes depende de fato, da sua capacidade paratolerar as frustraes, ou, em outras palavras, o desconhecido. Suportando as ansiedades a eleassociadas, sem, entretanto, fugir dele ou destru-lo de alguma forma. Uma forma de destruiodo desconhecido e, portanto, de atrofiar a capacidade de pensar justamente a arrogncia: napersonalidade em que predominam os instintos de vida, o orgulho se converte em respeito a simesmo; predominando os instintos de morte, o orgulho se transforma em arrogncia (BION,1967/1994, p.101). Esse respeito a si mesmo implica respeito aos prprios limites, aos limitesdo conhecimento, o que pressupe o respeito realidade que se estende aos outros com quemnos relacionamos. Portanto, quando ns, educadores e psiclogos, nos postamos com arrognciadiante de uma situao de nossa prtica, como no exemplo acima, imbudos da verdade sobre

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nossos alunos ou pacientes e suas famlias, afastamo-nos da possibilidade real de conhec-los.Como contraponto s situaes descritas at aqui, durante essas experincias presencieimuitos momentos junto a educadores e outros profissionais ligados educao em que o desejode construir uma relao de efetiva colaborao com as famlias era evidente e mobilizava atodos. No se conformavam com a distncia que diziam estar crescendo nessa relao: buscavamcaminhos alternativos. No entanto, quando as discusses voltavam-se para as situaes concretase complexas da prtica cotidiana a maioria dizia-se perdida e sozinha e mostrava-se vida pormais espaos de trocas de experincias com colegas.Assim, algumas hipteses comearam a tomar forma e a direcionar-me para a pesquisa acadmica.Que o encontro entre os profissionais da educao (como os da sade) e as famlias mobilizava sentimentosintensos e conflituosos interferindo na qualidade da relao estabelecida entre eles. Que pensamentos emotivaes inconscientes, portanto no percebidos, por parte da prpria escola poderiam estar reforandoindiretamente suas queixas e alimentando atitudes preconceituosas. E que, se assim fosse, buscar reconhecere explicitar esse movimento tornava-se essencial para uma aproximao mais efetiva entre essas duasinstituies. Desconfiava que, assim como nos servios de sade, deveria haver nas escolas procedimentose prticas que perdiam o sentido especfico e adquiriam a funo principal de afastar os profissionais docontato com conflitos e angstias. Dentre vrias prticas escolares possveis, meu interesse foi atradopelas reunies de pais: por investigar mais de perto como so realizadas atualmente e em que medida elaspodem estar contribuindo para favorecer ou dificultar o contato entre escolas e famlias.Foi motivada por essas inquietaes que, em Fevereiro de 2003, iniciei o Mestrado noPrograma de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano dessa instituio. Opasso seguinte, diante de um tema to amplo e complexo como o da relao entre famlias eescolas, foi a definio dos recortes tericos e metodolgicos que formaram os alicercesdas nossas investigaes.

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A partir daqui, atravs do abandono da primeira pessoa do singular, marco o incio dopercurso acadmico construdo com o apoio de tantas pessoas e principalmente doacompanhamento afetuoso, constante e fecundo do meu orientador, professor Lino de Macedo.Iniciaremos o prximo captulo destacando alguns aspectos sobre os dois conceitoscentrais da nossa pesquisa: famlia e escola, para em seguida abordarmos maisespecificamente as relaes entre elas.

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CAPTULO 1 DELINEAMENTOS TERICOS

1. Alguns significados de famlia e de escola

Num clssico estudo sobre infncia e famlia, Aris (1978) mostra-nos como essas duasrealidades, tiveram seus significados construdos socialmente e de maneira articulada. Sabemos, claro, que sempre houve crianas na humanidade, mas nem por isso pensava-se nelas de umamaneira especfica e particular como comum na atualidade.Quando conseguiam sobreviver s altas taxas de mortalidade, as crianas j eramintroduzidas no mundo adulto, onde aprendiam os modos de ser e de agir em sociedade. Ascasas permaneciam abertas aos outros, com muitas festas e visitas, no havendo o sentido nema importncia que damos hoje vida ntima ou privada.Nessas existncias densas e coletivas, no havia lugar para o setor privado. A famliacumpria uma funo assegurava a transmisso da vida, dos bens e dos nomes masno penetrava muito longe na sensibilidade. Os mitos, como o do amor corts (ouprecioso), desprezavam o casamento, enquanto as realidades como a aprendizagemdas crianas afrouxavam o lao afetivo entre os pais e filhos.(ARIS, 1978, p.275)

Tais laos afrouxavam na medida em que era pelo convvio fora da famlia, pela convivnciacom os adultos em geral, que a criana adquiria no apenas os valores, os conhecimentos e osofcios que deveria saber, mas, tambm, era onde as trocas afetivas se davam. As famlias conjugaisdiluam-se nesse meio coletivo.O autor descreve atravs de fartos exemplos das artes plsticas e de documentos variados,o movimento progressivo pelo qual a infncia comea a ser notada pelos adultos, despertandolhes dois sentimentos complementaresO primeiro sentimento da infncia caracterizado pela paparicao surgiu nomeio familiar, na companhia das criancinhas pequenas. O segundo, ao contrrio, proveiode uma fonte exterior famlia: dos eclesisticos e dos homens da lei, raros at osculo XVI, e de um maior nmero de moralistas no sculo XVII, preocupados com adisciplina e a racionalidade dos costumes. (ARIS, 1978, p.163)

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Isto , medida que um certo tipo de afeio dos adultos pelas crianas (a paparicao)comea a existir no seio das famlias, instncias sociais exteriores a elas comeam a interferir enormatizar esse afeto, por meio de regras morais. Podemos, ento, considerar que historicamenteocorre um processo insidioso e crescente de associao entre os afetos potencialmente prejudiciaisgerados no interior das famlias e a necessidade de sua racionalizao e controle por meio deeducadores melhor capacitados. Surge no sculo XVII a noo de criana bem educada, que eraafastada do convvio espontneo com a famlia e com a sociedade e que passava a ser acolhidapelas escolas. Nesse contexto moralizador tanto das crianas como das famlias, a escola modernaassume contornos que iro acompanh-la at os nossos dias. Comeou ento um longo processode enclausuramento das crianas (como dos loucos, dos pobres, e das prostitutas) que se estenderiaat nossos dias, e ao qual se d o nome de escolarizao. (ARIS, 1978, p.11).A separao por idades e pela condio social dos alunos ir instalar-se ao longo dossculos seguintes, assim como a preocupao com a disciplina gradativamente vai transformarse numa caracterstica importante da escola moderna, envolvendo tambm as famlias.O surgimento da infncia impulsiona uma nova configurao das relaes familiares. Se,at por volta do sculo XVII, a famlia tinha propsitos dirigidos principalmente sobrevivnciados membros e proteo do patrimnio ou mesmo da honra, a partir desse momento comea aser construda uma intimidade e uma privacidade antes inexistentes. Tudo o que se referia scrianas e famlia tornara-se um assunto srio e digno de ateno. () A criana havia assumidoum lugar central dentro da famlia. (ARIS, 1978, p.164). Esta comea a ser responsabilizadapela orientao e pela sade de suas crianas e por encaminh-las queles que lhes ministrariama educao correta e necessria. Torna-se imperativo preservar e disciplinar a infncia, concebida poca como frgil e inocente segundo forte influncia do cristianismo.Assim, as famlias comeam a se diferenciar e a se separar de uma sociedade constituda

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at ento por vnculos mais densos e significativos. O espao da convivncia pblica pulverizadopelo fortalecimento das relaes de privacidade constitudas no interior dos lares. O seguintetrecho do mesmo autor faz uma bela sntese desses elementos: A famlia tornou-se um lugar deuma afeio necessria entre os cnjuges e entre pais e filhos, algo que ela no era antes. Essaafeio se exprimiu, sobretudo atravs da importncia que se passou a atribuir educao(ARIS, 1978, p.11, grifo do autor).Enquanto um projeto social tendo como uma de suas bases a moralizao dos indivduos,a escola a partir do sculo XVIII fundamenta-se na propagao de princpios universais. Veremos,mais adiante, como as relaes entre escola e famlia na atualidade impem um grande desafiopara essa escola, nascida sob os ideais modernos (de igualdade, de semelhana, da norma e daexcluso do que no pertence norma) ao pression-la a incluir em seu projeto educativo adesigualdade e a diversidade (o que foge e estranho norma).O estudo a que nos referimos at aqui contribui para lanar luz sobre aspectos importantesdas relaes entre infncia e sociedade, mas no o tomamos como a nica verdade, ou comoretrato da histria. O que significaria reduzir e generalizar processos sociais em si mesmos bemmais complexos - como a constituio e o significado da famlia, por exemplo. Tendo isto emmente, acrescentemos outros olhares s transformaes ocorridas mais recentemente nas famlias.Em um livro recente sobre a desordem da famlia atual, a historiadora e psicanalistafrancesa Roudinesco (2003) adota como eixo de seu estudo os significados e o lugar ocupadopela sexualidade e pela autoridade dentro e fora dessa instituio, como vemos no trecho abaixo:Baseada durante sculos na soberania do poder divino do pai, a famlia ocidentalfoi desafiada, no sculo XVIII, pela irrupo do feminino. Foi ento que setransformou, com o advento da burguesia, em uma clula biolgica que concedialugar central maternidade. A nova ordem familiar conseguiu represar a ameaaque esta irrupo do feminino representava custa do questionamento do antigopoder patriarcal. A partir do declnio deste () esboou-se um processo deemancipao que permitiu s mulheres afirmar sua diferena, s crianas seremolhadas como sujeito e aos invertidos se normalizarem. (ROUDINESCO,2003, p.11).

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Segundo ela, a valorizao da maternidade e o questionamento do poder patriarcal criamcondies para o nascimento da criana enquanto sujeito. Fica claro, tambm, que, concomitante delimitao do modelo de famlia, desenvolvem-se os conceitos de inverso e do que estariafora da famlia ou da norma.A base do conceito universal de famlia sempre foi a unio entre dois sexos, dando origema uma aliana (entre cnjuges) e uma filiao (entre pais e filhos). No entanto, alm da diferenaanatmica entre os sexos a famlia humana sustenta-se em um outro princpio igualmente fundamental e que promove sua insero no mundo do simblico e, portanto, da cultura: a proibiodo incesto. Conclui a autora que a famlia pode ser considerada duplamente universal, uma vezque associa um fato de cultura, construdo pela sociedade, a um fato da natureza, inscrito nasleis da reproduo biolgica. Ela amplifica o olhar sobre essa questo ao destacar o desejo e asreivindicaes de casais homossexuais de constiturem legalmente uma famlia, forando suaincluso sob uma norma que sempre insistiu em mant-los excludos. A diferena entre os sexosj no uma base to slida e inquestionvel como antes. Torna-se premente reconsiderarmosos alicerces sobre os quais se constroem as relaes familiares e o modo como ns as vemos.Roudinesco caracteriza trs perodos na evoluo da famlia: famlia tradicional (at sculoXVII), famlia moderna (entre sculo XVIII e meados do sculo XX) e a famlia contempornea oups-moderna (iniciada aps 1960). Um dos aspectos destacados a mudana de uma famlia a princpioenraizada em uma ordem de mundo imutvel e submetida a uma autoridade patriarcal (puratransposio do poder divino) para uma outra, fundamentada no casamento (constitudo pelo amorromntico, com reciprocidade de afetos e desejos entre os cnjuges). Neste momento, a educaodos filhos torna-se um dever da famlia, e a questo da autoridade passa a ser dividida entre pais emes e entre pais e Estado. No perodo seguinte, uma transformao essencial da famlia contempornea a valorizao da intimidade e a relativizao da durao do vnculo conjugal.

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interessante perceber que quando a relao de aliana entre os cnjuges toma o centroda famlia se estabelece, segundo nosso entendimento, uma tenso inevitvel entre ela e asrelaes de filiao. Estas, tambm constitutivas das famlias, no comportam a mesma duraorelativa que a relao de aliana: de alguma forma elas impem um movimento contrrio, poisse caminham para uma crescente fluidez, aquelas criam razes e estabelecem compromissosseno por toda, pelo menos por uma grande parte vida.Vale frisar que falar de famlia no singular ou empreender tentativas de tipific-la soaes que podem nos ajudar em alguma medida a navegar por um terreno to mltiplo e incertosem naufragarmos. No entanto, a sua diversidade real sempre maior do que qualquer modelo esempre nos escapa em sua totalidade.Nesse sentido, em nosso meio, destacamos a crtica feita por Corra (1981) ao usotradicionalmente feito do modelo da famlia patriarcal brasileira como um padro dominantee exclusivo dentro do estudo das formas de organizao familiar no Brasil. Alerta a autora queA famlia patriarcal pode ter existido, e seu papel ter sido extremamente importante,apenas no existiu sozinha, nem comandou do alto da varanda da casa grande o processototal de formao da sociedade brasileira. () O conceito de famlia patriarcal comotem sido utilizado at agora, achata as diferenas, comprimindo-as at caberem todasnum mesmo molde que ento utilizado como ponto central de referncia quando sefala de famlia no Brasil. (CORRA, 1981, p.25)

Aponta que esse tipo de famlia relacionava-se a uma parte da populao que vivia nosengenhos ou grandes fazendas, talvez a minoria, dentro de uma sociedade multifacetada, mvel,flexvel e dispersa (CORRA, 1981, p.22) sustentada por uma grande variedade de modos deorganizao social e econmica, como: cultivo de tabaco, de algodo e indstria extrativa entreoutras. Embora minoritrio, ele adquire estatuto de ordem, desqualificando quaisquer outrasformas de unio como anormais, operando-se uma clivagem () entre o ncleo familiar ondeimperava o patriarca e uma massa annima totalmente entregue ao reino da natureza, sem qualquernorma cultural a reg-la (CORRA, 1981, p.23).

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A autora insiste que alimentar a idia de que a sociedade brasileira se formou pela expanso deum nico tipo de famlia significa negarmos a existncia de uma tenso permanente entre osimpositores de uma ordem pr-definida e aqueles que resistem cotidianamente(CORRA, 1981,p.35). Imposio disciplinadora da viso de mundo e da linguagem de um grupo social afinado emgrande parte com o Estado portugus e com a Igreja. Finaliza seu texto dirigindo as mesmas ressalvasa outro modelo, descendente direto do rural patriarcal: a famlia conjugal urbana moderna. A esserespeito, Mello (1992) chama nossa ateno para um tipo de organizao comum em um bairropopular da periferia paulistana que denomina: aglomerados familiares (MELLO, 1992, p.124).Mesclando caractersticas urbanas e rurais, so formados pela reorganizao de famlias migrantes epossuem laos fortes afetivos e econmicos, sustentados por prticas solidrias. A autora confronta ariqueza e a complexidade que neles encontrou, durante sua extensa pesquisa, com as refernciasnegativas e preconceituosas feitas com freqncia s camadas mais pobres da nossa populao.No razovel falar-se de desorganizao, com o sentido altamente estigmatizanteque a palavra adquiriu na literatura educacional e psicolgica, quando estamos, defato, diante de formas diferentes de organizao (Mello, 1992, p.127).

Uma historiadora que detalha a grande variabilidade e complexidade dos movimentos deenraizamento de nossa sociedade Silva (1998), por exemplo, no livro: Histria da famlia noBrasil colonial. Ao longo de sua anlise de trs sculos de nossa histria, enfocando aspectosfamiliares como a transmisso de patrimnio e a escolha do cnjuge para os filhos, desenha umcenrio de interesses heterogneos e muitas vezes conflitantes: como entre os primeiros mestresrgios e os eclesisticos ou entre as presses da sociedade colonial favorvel s casas de recolhimentode moas (por no encontrarem pretendentes altura de suas filhas) e as resistncias da Coroa,preocupada com a reduo do nmero de mulheres disponveis para povoarem suas novas terras.Szimansky (1995) prope uma reflexo sobre as sistematizaes do pensamento sobrefamlia as Teorias e a articulao das idias sobre famlia no viver cotidiano as teorias

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e seu papel no desenvolvimento de modelos (SZIMANSKY, 1995, p.23). Questiona a expectativaunificadora e normatizadora que tendemos a impor s famlias plurais com que convivemos,trabalhamos e que constitumos. Instala-se uma oposio entre o modelo de famlia que seaproxima do discurso oficial sobre a famlia - famlia pensada - e os diversos arranjos familiaresque observamos na realidade - a famlia vivida. Essa autora toma esses termos de emprstimode Gomes (1988)5 que as define como- A famlia pensada: uma unio exclusiva de um homem e uma mulher, que se iniciapor amor, com a esperana de que o destino lhes seja favorvel e que ela seja definitiva.Um compromisso de acolhimento e cuidado para com as pessoas envolvidas e aexpectativa de dar e receber afeto, principalmente em relao aos filhos. Isto, dentrode uma ordem e hierarquia estabelecida num contexto patriarcal de autoridade mximaque deve ser obedecida, a partir do modelo pai-me-filhos estvel (GOMES, apudSZIMANSKY, 1995, p.25).- A famlia vivida: Um grupo de pessoas, vivendo numa estrutura hierarquizada, queconvive com a proposta de uma ligao afetiva duradoura, incluindo uma relao decuidado entre os adultos e deles para com as crianas e idosos que aparecem nessecontexto. (GOMES, apud SZIMANSKY, 1995, p.26).

Na famlia vivida a unio de casamento estvel e tradicional sai do centro, a expectativade uma relao definitiva d lugar a uma proposta de ligao afetiva duradoura e mesmomantendo-se uma estrutura hierarquizada esta no mais se prende ao poder patriarcal.Incrementando um pouco mais a complexidade do tema famlia, inclumos, tambm, a pluralidadedas dimenses cultural e tnica. Sobretudo em grandes metrpoles como So Paulo, formadas por inmerosmigrantes e imigrantes que possuem e devem poder manter diferentes costumes, crenas e valores. Doistextos que servem como exemplos so: Mello (1992), sobre a formao cultural das famlias de bairrosperifricos paulistanos, e Marques (1998) que, na discusso sobre os novos rumos da educao portuguesa,apresenta projetos educativos direcionados aproximao entre as escolas e as famlias dos alunos eressalta que: nas grandes cidades do litoral, em particular Lisboa, Porto, Setbal e Leiria, verifica-se umaumento generalizado de alunos pertencentes a minorias tnicas (MARQUES, 1998, p.10). Reconheceressa realidade e inclu-la nas aes dos professores , segundo o autor, central e urgente.5

GOMES, H. S. R. (1988). Um estudo sobre significados de famlia. Tese de Doutorado, PUC-SP.

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Todos os autores a que nos referimos mostram, sob ngulos diferentes e complementares,que famlia no um conceito imutvel que se concretiza em modelos prontos e nicos. E que,nas ltimas dcadas, estamos vivendo o aparecimento de novas configuraes ou, no mnimo,elas tm se tornado mais visveis.Assim sendo, surgem novas questes: se as formas de aliana entre os adultos de umafamlia tm alcanado maior complexidade (tempos de durao mais variveis, novos arranjossexuais, maior diversidade cultural e racial), quais seriam os desdobramentos disso para as relaesde filiao dentro das famlias? Como se dar esse processo na perspectiva das crianas? Quemudanas estaro ocorrendo com os filhos? Sem dvida, so preocupaes crescentes entreaqueles que lidam no dia-a-dia com essas mesmas crianas: os educadores6. Como dentro dafamlia os contornos, as nuances, as atribuies de cada um dos seus membros esto emtransformao, conseqentemente as escolas so pressionadas a mudar tambm. Num exemplo:organizar comemoraes relativas ao Dias das Mes e a datas religiosas, como a Pscoa, exigehoje mais ateno e criatividade por parte das escolas, pois a presena da me j no uma regrae a diversificao de religies crescente.Se em relao instituio famlia deparamo-nos com tamanha diversidade e pisamos emsolo movedio, no interior das escolas e nas discusses sobre educao a situao atual no menos inquietadora.At a poucas dcadas, imperou um modelo tradicional de escola, baseado na transmisso ereproduo dos saberes consagrados e conhecidos. Enquanto representante dos ideais da modernidade,a escola esteve associada a um projeto de valores e de uma sociedade em direo ordem e segurana.A ela cabia concretizar e perpetuar a ordem social desejada. Conforme j vimos, a escola que nsconhecemos nasceu com uma inequvoca misso disciplinadora e moralizadora.6

No objetivo deste trabalho a anlise da formao ou da histria da famlia, nem da infncia. Buscamos delinear nuances ealargar horizontes, contextualizando um dos nossos temas: famlia.

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Num mundo construdo sobre dualidades, como o certo e o errado, o normal e o anormal,os adultos, primeiro os pais e com o ingresso na escola os professores, representavam o saberinquestionvel sendo sua funo promover o acesso progressivo e controlado das crianas a ele.As posies eram perfeitamente definidas e excludentes entre o conhecimento (=mundo adulto)e a ignorncia (=mundo infantil).Se dermos um salto e olharmos para a escola contempornea, veremos pelo menos doiscampos onde mudanas fundamentais esto em curso: no campo do prprio conhecimento e nocampo do compromisso social da escola.O conhecimento ao longo do sculo passado, especialmente nas ltimas dcadas, passou porprofundas transformaes que vo desde o surgimento de novas teorias cientficas, como no campoda fsica7, at as revolues na transmisso e no acesso informao atravs dos mundos digital evirtual. A velocidade da produo de novas informaes e a transitoriedade e a incerteza de muitasdelas exercem uma presso crescente sobre toda a sociedade, ainda que em graus e de modos diferentes.Mais do que nunca ns, adultos, nos vemos diante de dvidas, inseguranas e angstias. Muito doque aprendemos nos bancos escolares j foi substitudo, ultrapassado. Como, ento, continuarmosapresentando o mundo moderno conhecido e garantido (ao menos aparentemente) de antes s nossascrianas? E como instrument-las para enfrentar to grande e incerto desconhecido?Vemos multiplicarem-se os debates sobre a necessidade de um modelo de educao queleve em conta essa realidade. Que valorize o conhecimento como em permanente construo,revendo e amplificando o lugar do aprender e do ensinar. Saber repetir ou reter informaes(quantas avaliaes escolares por que passamos baseavam-se acima de tudo na memria e nareproduo de textos?) so funes que perdem fora. Passam a dividir espao com odesenvolvimento da capacidade de fazer associaes e de crtica, de estabelecer relaes, fazer7

A Teoria da Relatividade, de Einstein, o Princpio da Incerteza de Heisenberg e a Teoria do Caos, impulsionada pelosestudos meteorolgicos de Lorenz, exemplificam algumas dessas mudanas paradigmticas das cincias no sculo XX.

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inferncias, adaptar o que se sabe a novas situaes. Selecionar e assimilar novos conhecimentosso ferramentas cada vez mais essenciais para aqueles que lidam cotidianamente com oconhecimento, e que esto no olho desse furaco, dentre os quais: os educadores.Ser um adulto que se disponha a ensinar tornou-se muito mais complexo, dinmico e exigente, oque atinge em cheio o papel do professor. Identificado quase sempre apenas com o vrtice do ensinar, oprofessor cada vez mais confrontado com o do aprender. Pois s poder ensinar o outro a pensar, aassociar, a inferir, aquele que puder reaprender a fazer o mesmo. Passa a prevalecer o fazer junto com osalunos ao invs do fazer para os alunos. A ignorncia j no mais um atributo do outro, criana-aluno,mas uma condio de qualquer um que deseje e necessite aprender, a comear pelo professor. Comoconseqncia vemos crescer a valorizao da sua formao, tanto inicial como continuada. Cada vez mais,portanto, as instituies escolares vem-se confrontadas com o desafio de articular novos conhecimentoscom os j conhecidos; proporcionar a transmisso destes garantindo espao e abertura para aqueles.Alm das mudanas no campo do conhecimento, incrementa-se uma outra do ponto devista do compromisso social da escola. Cada vez mais as sociedades atuais, aqui includa abrasileira, comprometem-se com ideais democrticos, de incluso das diferenas nos vrioscontextos coletivos. Manifestaes de repdio a aes totalitrias e discriminatrias tm crescidoem freqncia e em nmero de adeptos por todo o mundo. A Declarao Universal dos DireitosHumanos, em nvel internacional, e o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), em termosnacionais, so dois frutos conhecidos dessas demandas e conquistas.A escola, atravs das diversas possibilidades de relaes e pela sua funo socializadora,possui um papel fundamental nesse processo de transformao social. Assim como em sua origemera rgida a diviso entre os adultos e as crianas, tambm o era a diviso entre os que podiam eos que no podiam aprender, entre os que, de certa forma, mereciam e os que no mereciampermanecer nas escolas. Reflexo de uma sociedade organizada a partir dos interesses das classes

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sociais dominantes, a escola estruturou-se num modelo seletivo de modo que, desde sua origem,foi uma realidade de fato para poucos.Nas ltimas dcadas, com o fortalecimento da democracia, recoloca-se o compromisso daescola para com todos os cidados. A educao torna-se um direito de todas as crianas eadolescentes, o que obriga as famlias e o Estado a garantirem a efetivao desse direito. Almdo mais, o projeto de uma escola para todos, alm da garantia do acesso escolarizao (o quej no tarefa fcil num pas de contrastes sociais gritantes como o nosso), deve tambm asseguraro direito permanncia num sistema educacional que seja de qualidade8.Diante desse quadro, o professor que at ento formava e era formado por um sistema de ensinodirecionado a uma parcela dos alunos, sedimentada nas semelhanas scio-econmicas e culturais dentreoutras, depara-se com uma escola cada vez mais multifacetada e plural. Nesse novo contexto, em muitosmomentos ele percebe a insuficincia dos seus recursos pedaggicos para lidar com a incluso de alunoscujas realidades e necessidades so to distantes das suas e mesmo entre si. Dentre outros, a pesquisarecente de Amaro (2004) descreve em detalhe e profundidade alguns dos desafios de uma educaoinclusiva e instrumentaliza os professores com novas formas possveis de olhar para tantas diferenas.Mais ainda: a consolidao de um sistema educacional efetivamente inclusivo inicia-se pelosalunos, com suas diferenas de raa, gnero, condies econmicas, fsicas, mentais etc, e estende-seaos seus contextos familiares. Se o aluno deve passar a ser visto pela escola de maneira integral, suasfamlias so parte indissocivel desse olhar. Incluir todos os alunos significa incluir todas as famlias e,tambm aqui, o professor se v diante de novos desafios que demandam a construo de novas prticas.Entrar em contato com uma situao como essa faz emergir sentimentos de impotncia ede insegurana dirios, que podem servir tanto de motivao para a busca de alternativas,

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Sobre o tema da qualidade em educao sugerimos a leitura de dois artigos: MOSS, P. Para alm do problema com qualidade.In: MACHADO M. L. de A. (Org.) Encontros e desencontros em educao infantil. So Paulo: Cortez, 2002; e CORRA,B. C. Consideraes sobre qualidade na educao infantil Cadernos de Pesquisa. So Paulo, n 119, p. 85-112, julho/2003.

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enfrentando a angstia diante do novo, como de estmulo para o apego a padres anteriores,fortalecendo as resistncias mudana. Abraar a continuidade da formao do professor temsido um importante passo dado por muitos educadores e instituies de ensino no sentido doenfrentamento dessa nova e desconhecida realidade., portanto, nesse mundo contemporneo extremamente dinmico e mltiplo, diante doqual as referncias e os modelos anteriores se mostram insuficientes e enfraquecidos, que seenraza a discusso sobre as relaes entre famlias e escolas nos dias atuais.Finalizemos esse captulo retomando alguns pontos. Vimos que abordar o tema famlia atravs demodelos ou padres exige a ressalva de que, mesmo nos sendo teis para realar ngulos e possibilitarreflexes especficas, sempre sero parciais e simplificadores diante de uma realidade complexa e cambiante.Conforme as lentes que se use para apreci-la, certamente alguns aspectos recebero maior destaque,maior luminosidade, melhor foco do que outros. Trocando-se as lentes, outro quadro ser percebido. Omesmo ns podemos estender para os estudos sobre a escola e sua relao com o conhecimento e sobre asrelaes entre elas e as famlias, que formam o contexto onde se insere nossa pesquisa. Um ngulo dessasrelaes foi destacado: que ambas instituies tm historicamente estreita proximidade com propsitosmoralizantes e disciplinadores e com o estabelecimento de normas e, conseqentemente, dos seus desvios.No prximo item discutimos alguns aspectos da relao entre escola e famlia que interessam ao nossotrabalho. Aspectos gerais, segundo dois textos dirigidos a educadores, e especficos: a discusso sobreeducao infantil brasileira e um olhar psicanaltico sobre essa relao.

2. Relaes entre famlias e escolas

Em todas as escolas citadas na Introduo9, junto s queixas mencionadas houve uma9

O que se manteve nas duas escolas em que desenvolvemos a pesquisa.

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preocupao explcita quanto melhoria da relao com as famlias: pblicas ou particulares,independente do nmero de alunos e da linha pedaggica adotada. Atualmente, na rea daeducao em geral, ouvimos um discurso freqente que aborda a relao entre escolas e famliaspela necessidade de serem parceiras. O termo parceria sugere uma qualidade de relao queparece ser a princpio inquestionvel, pois remete-nos, de imediato, a uma idia de colaborao,de compartilhamento. No entanto, entendemos que ele demanda uma reflexo mais aprofundada:o que se entende por parceria? O que ela significa? Em que ela deve basear-se concretamente?Como viabiliz-la? Ou seja, para ns, o uso apressado dessa expresso pode camuflar um mosaicode relaes muitas vezes imprecisas e conflitantes sob uma aparente clareza de sentido.Destacamos dois textos recentes e conhecidos dos educadores brasileiros que, originriosde realidades diferentes e dirigidos a propsitos diversos, enfocam as bases da relao entreescolas e famlias.O primeiro deles o Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil RCNEI (BRASIL,1998). Este documento foi elaborado para servir como um guia de reflexo de cunho educacional dosobjetivos, contedos e orientaes didticas para os profissionais que atuam com crianas de zero a seisanos (BRASIL, 1998, p.5). Uma referncia para todos os educadores (no apenas do sistema pblicode ensino), contendo os princpios democrticos para a educao brasileira de acordo com a ConstituioFederal de 1988. Ele se fundamenta em cinco pilares: o respeito dignidade e aos direitos das crianas;o direito da criana a brincar; o acesso das crianas aos bens socioculturais disponveis; a socializaodas crianas; o atendimento aos cuidados essenciais associados sobrevivncia e ao desenvolvimentoda identidade. Ressalta que, acima de tudo, as crianas devem ter o direito de viver experincias prazerosasnas instituies educativas, preservadas de atitudes preconceituosas e discriminatrias.No primeiro volume, so abordadas as diretrizes para a parceria com as famlias: aimportncia do respeito e acolhimento das diferenas culturais, da incluso do conhecimento

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familiar no trabalho educativo e do estabelecimento de canais de comunicao. Elas se apiamna compreenso de que o contato com a diversidade, alm de ampliar os horizontes das crianase do professor, forma a base para uma postura tica e democrtica nas relaes humanas. Odocumento aponta tambm para a importncia de a escola possibilitar diferentes momentos decontato com as famlias, neles includas reunies peridicas com os pais de um mesmo grupo dealunos. De modo geral, a postura da escola deve ser de abertura e sintetizada na seguinteafirmao: as instituies de educao infantil, por intermdio de seus profissionais, devemdesenvolver a capacidade de ouvir, observar e aprender com as famlias (BRASIL, 1998, p.77). interessante notarmos um alerta feito nesse documento de mbito nacional, e que vai aoencontro de nossas consideraes anteriores, para o perigo de reproduzirmos idias e atitudesdiscriminatrias em relao s famlias, ao desconsiderarmos a diversidade de tipos presentesem nossa sociedade, tentando enquadr-las num modelo nico. Com nosso trabalho buscamosdar destaque e contribuir com essa rdua e conflituosa tarefa de desenvolver a capacidade deouvir, observar e aprender com as famlias.O segundo texto selecionado um livro de Perrenoud (2000): Dez Novas Competnciaspara Ensinar. Esse autor, dentre vrios outros, reflete sobre os desafios da educao no mundoatual e das exigncias que se impem aos educadores. Nesse livro, baseado na Reforma Suade Educao, ele toma como guia para seus comentrios um referencial de competncias adotadoem Genebra em 1996 para a formao contnua, de cuja elaborao ele participou.Uma dessas competncias refere-se justamente informar e envolver os pais(PERRENOUD, 2000, p. 109). Mesmo acreditando que o desenvolvimento de competnciaspelos professores pode ajudar a criar ou a manter o dilogo com as famlias, ele reconhece ealerta para o fato de que essa relao no se reduz quelas. Uma relao bem mais complexaque, ao se construir numa base inevitavelmente assimtrica, pode gerar com facilidade abusos

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de poder por parte da escola. O eixo central dessa competncia estaria na capacidade de analisare discriminar diferenas e nuances tanto dentro do grupo de pais, como entre sua posio deprofessor e a dos pais. Em suas palavras: a competncia bsica do professor tange a imaginaosociolgica: os pais ocupam outra posio, tm outras preocupaes, outra viso da escola,outra formao, outra experincia de vida. (concluindo mais frente) a competncia dosprofessores consiste em aceitar os pais como eles so, em sua diversidade! (PERRENOUD,2000, p. 117, grifo do autor).Para esse autor tanto o conceito de competncia, definida como uma capacidade demobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar um tipo de situaes (PERRENOUD,2000, p. 15, grifo do autor), como a parceria entre escolas e famlias, ambas fundamentamse num processo dinmico que deve apoiar-se em situaes reais. Sobre essa ltima, sintetiza:A parceria uma construo permanente, que se operar melhor se os professoresaceitarem tomar essa iniciativa, sem monopolizar a discusso, dando provas deserenidade coletiva, encarnando-a em alguns espaos permanentes, admitindo umadose de incerteza e de conflito e aceitando a necessidade de instncias de regulao.(PERRENOUD, 2000, p.124, grifo do autor).

Dentre esses espaos permanentes ele inclui entrevistas individuais e reunies deinformao e de debate, que se assemelham s reunies de pais enfocadas em nossa pesquisa.Entendemos que esses dois textos so bons exemplos das diretrizes gerais para relaesentre escolas e famlias comprometidas com a troca, o respeito mtuo, a participaorecproca, a construo da cidadania. Ambos destacam como condio bsica oreconhecimento e a valorizao das diferenas. No entanto, h um longo caminho a serpercorrido entre a proposio das diretrizes de um projeto educativo at sua concretizaoem prticas dirias, dentro das diferentes realidades das diferentes escolas. No nosso caso,a educao de crianas pequenas envolve especificidades na relao entre escolas e famliasque atravessa uma outra discusso sobre as funes da instituio de educao infantil eque apresentaremos a seguir.

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2.1. Aspectos da educao infantil

A partir da dcada de 1970 houve, no Brasil, um crescimento da demanda por servios deeducao infantil, questo esta que despertou a ateno de pesquisadores como: Campos (1985;1995), Kramer (1985; 1993) e Rosemberg (2003, por exemplo). O documento oficial comentadono item anterior, Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil, fruto dos debates eda colaborao destes e outros autores.Segundo Campos , foram vrios os fatores desse aumento: desde justificativas calcadasna chamada teoria da privao cultural e sua decorrente proposta pedaggica da educaocompensatria (CAMPOS, 1985, p.12), passando pela mobilizao das mulheres trabalhadoraspor creches, incluindo intenes preventivas movidas pelo temor que os crescentes ndices decriminalidade encontrem terreno propcio na chamada infncia abandonada. (CAMPOS, 1985,p.14). Somando-se a isso as condies de pobreza de grande parte da populao a quem sedirigem os servios, o carter assistencial ocupou desde o incio lugar de destaque no atendimentoprestado s crianas e famlias.KRAMER (1985) defende que o papel social da pr-escola fundamenta-se na sua inclusoem dois todos maiores: na luta por uma escola de qualidade acessvel para todos e no contextosocial a que pertencem as crianas. No primeiro caso, a autora ope-se s dicotomias freqentesentre creches e pr-escolas por um lado, e entre estas e a escola fundamental, por outro. Nosegundo, embora reconhea uma evoluo biopsicolgica universal, assume comoimprescindvel que a escola deve ver a criana enquanto ser social que (KRAMER, 1985,p.23, grifo da autora). E que atravs de sua funo pedaggica que a pr-escola realiza estepapel, funo esta que sintetiza com as seguintes palavras:Quando digo que a pr-escola tem um papel social, uma funo pedaggica, estou mereferindo, ento, a um trabalho que leva em considerao a realidade, a linguagem, os

40conhecimentos infantis e os ampliam, assegurando a aquisio de novos conhecimentos,ou seja, estou me referindo a um trabalho que toma como ponto de partida o que acriana sabe e faz, e que, alm disso, transmite o que ela ainda no conhece e sabefazer. (KRAMER, 1985, p.24).

Dentro desse contexto recente de definio e consolidao de polticas pblicas e diretrizespedaggicas para a educao infantil, recoloquemos o foco sobre a relao entre as escolas e asfamlias. Essa mesma autora (KRAMER, 1993) ao apresentar uma proposta curricular que promovauma educao de crianas de 4 a 6 anos com qualidade voltada educao para a cidadania, reconheceque o trabalho conjunto com as famlias um dos maiores desafios de um projeto pedaggico. Umavez que ele reflete uma problemtica social mais ampla na qual, por exemplo, as escolas reproduzemprticas autoritrias e preconceituosas, dentre as quais os julgamentos, as cobranas e as reclamaescomuns em reunies. Entende que preciso haver um caminho de mo dupla entre escolas e famlias,no sentido de propiciar o conhecimento da realidade familiar, cultural e social, e da realidade escolar,metas, atitudes e prioridades educacionais. Exemplifica quatro situaes de encontro entre elas:entrevistas, reunies, festividades e visitas dos pais escola. Alerta, ainda, quanto ao cuidado naescolha de temas e de tipos de dinmicas para as reunies, evitando reunies didticas ou normativasem que se pretende ensinar os pais como cuidar de seus filhos (KRAMER, 1993, p.102).Em seu livro: Educao Infantil: fundamentos e mtodos, Oliveira (2002) prope adiscusso de diversos temas tericos e prticos, dentre os quais destacamos o tpico em queaborda a parceria com a famlia na educao infantil. Nele, a autora enfatiza o papel da formaoinicial do profissional de educao infantil como importante obstculo para uma maior integraocom as famlias, uma vez que a defesa de certos enfoques cientficos acerca das necessidadesdas crianas influenciada por uma perspectiva de classe social e ideolgica (OLIVEIRA,2002, p.179). E acrescenta em seguida que a famlia espera a confirmao da escola de que secomporta bem segundo o padro de desenvolvimento esperado. Ela quer ser confirmada,reconhecida como boa.

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Com o sugestivo ttulo Encontros e desencontros em educao infantil (MACHADO,org, 2002)10, este livro oferece um panorama interessante e atual de inquietaes e debatesnessa rea, dividido em trs temas centrais: polticas pblicas, formao e atuao dos profissionaisde educao infantil e o cotidiano e as concepes do fazer pedaggico. Selecionamos um captulo:Substituir ou compartilhar? O papel das instituies de educao infantil no contexto dasociedade contempornea (HADDAD, 2002).A autora inicia o texto denunciando uma atitude preconceituosa e velada que envolve asmes que utilizam os servios das creches, uma vez que essas ltimas se justificariam historicamenteenquanto compensadoras do lugar da falta da famlia. Apesar das transformaes sociais que tmgerado mudanas nas estruturas familiares, como a insero irreversvel da mulher no mercado detrabalho, aponta que a naturalizao do cuidado infantil como uma atribuio exclusiva da famlia,ou mais precisamente feminina como um forte obstculo concepo de que essa tarefa possaser compartilhada (HADDAD, 2002, p. 91). Assim, mesmo reconhecendo os avanos legais nessesentido, destacando a Constituio Federal de 1988, a autora insiste queA reestruturao dos servios oferecidos urgente e deve caminhar no sentido deromper polaridades tradicionalmente marcadas pela alternncia entre o cuidado custodial e o enfoque escolarizante, pela nfase ora nos direitos da famlia, ora nos direitosda criana e que acabam provocando cises entre cuidar e educar, corpo e mente,famlia e instituio, acentuando a separao entre o ambiente educacional e a vidafora dele. (HADDAD, 2002, p.94).

No h dvida, portanto, que conforme o pendor da alternncia desses enfoques, as relaes entre asescolas de educao infantil e as famlias adquiriro diferentes contornos. Rossetti-Ferreira (1998) ressaltao lugar da Psicologia no pensamento de oposio entre os papis da famlia e das instituies na educaoinfantil. At recentemente a nfase era colocada na relao me-beb reforando a idia de que asnecessidades emocionais da criana nos primeiros anos requeriam o cuidado sempre pela mesma pessoa,idealmente a me e que a criao em instituies era aceita apenas como um mal necessrio, para10

Corresponde a uma coletnea de trabalhos apresentados nos I e II COPEDIs Congressos Paulistas de Educao Infantil,ocorridos respectivamente em 1998 e 2000.

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aquelas famlias que no tinham condies de assumirem sozinhas o cuidado da criana. (ROSSETTIFERREIRA, 1998, p.174, grifo da autora). Felizmente, ela aponta uma mudana nesse quadro:No geral, as pesquisas demonstram que possvel um desenvolvimento sadio emcontextos diversos do familiar, mesmo para crianas em seus primeiros anos de vida,desde que assegurado um atendimento de qualidade. Mas imprescindvel uma boaparceria da instituio com as famlias, ambas colaborando e respeitando uma outra(ROSSETTI-FERREIRA, 1998, p.175)

A seguir, alm das influncias das diretrizes e dos pressupostos educacionais no tipo derelacionamento estabelecido com os pais dos alunos, acrescentamos um outro ngulo deobservao, e que contribui para o nosso trabalho: alguns aspectos afetivos dessa relao.O pediatra e psicanalista ingls, D. W. Winnicott defendeu, ao longo de toda sua obra, queos especialistas em desenvolvimento infantil e os profissionais que atuam com crianas deveriamatentar para o tipo de relao que estabelecem com os pais. Ele tinha clareza que esta relao inevitavelmente conflituosa e no deve ser menosprezada em sua complexidade. Em no poucasocasies chegou a dizer que os profissionais e suas teorias podem no apenas ajudar, masprejudicar a confiana da me11, interferindo seriamente nas possibilidades de lidar com seubeb ou sua criana. Ao longo de sua experincia profissional, mesmo diante de casos graves,sempre manteve uma postura essencialmente de respeito e valorizao das mes, avesso ajulgamentos e recriminaes.No cabe aqui um levantamento extenso de suas contribuies, mas usaremos comoexemplo um texto de onde extramos dois elementos relevantes aos nossos objetivos, que sechama exatamente: A professora, os pais e o mdico (WINNICOTT, 1936). Em primeirolugar, ele chama a ateno para uma tendncia habitual nos profissionais de culparem as mes.Questiona essa atitude como uma simplificao e desconsiderao dos sentimentos ambivalentesque perpassam a relao me-filho, sentimentos que incluem dio e amor intensos e interligados

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Apesar de referir-se normalmente s mes, sempre deixou claro que inclua todos os envolvidos diretamente com a vidaemocional da criana em questo, os pais ou outros que ocupassem esse lugar.

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e o cime de qualquer pessoa que assuma os cuidados de seu filho. Alm disso, sabemos quequase sempre quanto menores os filhos, maiores so os medos e as inseguranas. Nesse contexto,portanto, ocorrem polarizaes entre as mes consideradas boas e as ms - o mesmo com relaos professoras perante os pais ou dentro de uma equipe, por exemplo - e emergem as rivalidadesentre elas, em parte estimuladas tambm pelos filhos (vivendo, da mesma forma, conflitosdolorosos entre os sentimentos pela professora e pelos pais). No caso da educao infantil pblica,objeto de nossa pesquisa, acrescenta-se o fato de que as condies de vida e de instruo somuitas vezes to desproporcionais entre as professoras e as mes, que incrementam os conflitose disputas em curso no nvel emocional e muitas vezes inconsciente.Um outro aspecto abordado por Winnicott e interligado ao anterior, que interessa a essetrabalho, diz respeito a uma atitude aparentemente positiva das mes e pais frente s professoras.Nas palavras do autor:Freqentemente, acontece de os pais acharem que quaisquer sentimentos crticos ouantagonsticos que possam ter so ilgicos, subjetivos, e conseqncia de conflitospessoais internos, e como resultado eles colocam seus filhos sem reservas nas mosdas autoridades escolares, supondo que as professoras so perfeitas. Esta suposio injustificvel. Pais que no interferem porque imaginam que est tudo bem no sopais ideais, embora possam ter qualidades convenientes do ponto de vista dasautoridades escolares. (WINNICOTT, 1936/1997, p.92, grifo do autor).

Quantas vezes ns, educadores e psiclogos, no nos orgulhamos de pais que reconheceme elogiam nosso trabalho sem reservas? O quanto pode ser conveniente no s para o profissionalcomo para toda uma escola, permanecer tranqilamente nessa posio sustentada pelas projeese idealizaes dos pais? Mais uma vez, consideramos que as diferenas entre professores e paisde uma escola pblica brasileira, com sua histria de preconceitos e atitudes discriminatrias(como vimos, por exemplo, em MELLO, 1992, e SZYMANSKI, 1995) podem servir decombustvel para essa situao emocional.Concluindo, nesse item ns apontamos duas dimenses do trabalho na educao infantilque influenciam as maneiras como se estruturam as relaes entre as escolas e as famlias: as

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diretrizes pedaggicas (e o modo como combinam funes assistenciais e pedaggicas) e adimenso afetiva (os sentimentos em jogo e a forma de professores e pais lidarem com eles).

2.2. Contribuies do construtivismo

Para realizar nosso estudo recorremos a algumas noes centrais do construtivismopiagetiano que se mostraram produtivas em duas direes, relacionadas e no excludentes. Aprimeira delas, e que desenvolveremos a seguir, contribui para a reflexo sobre a qualidade darelao entre escolas e famlias. A segunda refere-se fundamentao metodolgica da prpriapesquisa, e que ser abordada no respectivo captulo.Entendemos que a relao entre escolas e famlias deve ter como base o conceito deinterdependncia. Jean Piaget interessou-se pela epistemologia, pelo estudo dos processos deconhecimento pelos indivduos e pelas sociedades (o conhecimento cientfico). Mais do queisso, formulou uma epistemologia gentica, isto , preocupada com a gnese e com a construodo conhecimento (PIAGET, 1967). Um dos modelos propostos pelo construtivismo para oconhecimento a equao: SQO. Sendo S o sujeito do conhecimento e O o objeto a serconhecido, Q representa a relao entre eles. Por meio de aes sobre o mundo, o sujeitoconhece os objetos, sendo ao mesmo tempo modificado por eles. Isto , assim como os objetosso sempre assimilados atravs dos esquemas do sujeito, tambm este sofre contnuas mudanas,na medida em que necessita acomodar seus esquemas aos novos objetos. Portanto, para Piaget,toda construo, toda ao e, assim tambm, toda relao de conhecimento, fundamenta-se emdiferentes combinaes entre os processos de assimilao e de acomodao. Ele considera ainterao constante entre sujeito e objeto como pr-condio para o conhecimento, da serrepresentada por uma seta com duas direes unindo esses dois elementos. Uma forma de

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qualificar essa relao atravs da noo de interdependncia, que se constitui pelas seguintespropriedades: irredutibilidade, complementaridade e indissociabilidade. A seguir, essas trs facessero detalhadas atravs do tema do nosso estudo. Pois, assim como Macedo discute em seulivro Ensaios pedaggicos: como construir uma escola para todos? (MACEDO, 2005), nsconsideramos que a construo de uma relao de cooperao entre escolas e famlias devesustentar-se em uma relao de interdependncia.Irredutibilidade: consideramos famlias e escola enquanto partes irredutveis (ou seja,insubstituveis) de um todo, ou melhor, do sistema: a educao das crianas. Em funo doreconhecimento das diferenas entre elas, ou melhor, das especificidades de cada uma frente educao das crianas (a um s tempo alunos e filhos) elas se tornam irredutveis. A relaoentre famlias e escolas surge, portanto, como uma resultante dessa irredutibilidade, a qual asimpele a serem parceiras.Complementaridade: entendemos a famlia e escola enquanto complementares. Nacomplementaridade, algo de mim s se realiza, se completa, no e pelo outro. Isto , a escola sse completa enquanto instituio voltada ao ensino com o respaldo e a ao das famlias, quelevam seus filhos para serem seus alunos. E a famlia, enquanto parte de uma sociedade, valorizadeterminados saberes, valores e atitudes que so transmitidos s futuras geraes por meio dasinstituies escolares. Assim, o desejo de que seus filhos consigam inserir-se na sociedade,sendo aceitos por ela, para nela progredirem, s se completa com a participao das escolasnesse processo. A famlia depende da escola para realizar-se nessa direo, uma vez que estacompartilha desse mesmo objetivo rumo cidadania.Indissociabilidade. Ambas so hoje em dia indissociveis dentro do sistema formado pelarelao entre escolas e famlias. A escola , e sempre foi, intrinsecamente ligada famlia. Noapenas no sentido elementar de que a da famlia que provm os futuros alunos, mas tambm

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porque ela surgiu com o objetivo de garantir uma educao que no era suprida pela famlia(surgiu condicionada famlia, ou melhor, a um modelo de famlia que foi sendo moldado,tambm com ajuda da escola, dentro de valores de determinadas classes sociais).J a famlia, no foi sempre indissocivel da escola. Como vimos com Aris (1978), viviase, at um passado de poucos sculos, na famlia, na sociedade, e mesmo no mundo do trabalhosem necessariamente ter-se tornado aluno: a famlia existia sem a escola. Historicamente, essasituao vem mudando. Como resultado de transformaes sociais rumo democracia e cidadania,possumos uma legislao que determina que a escola seja para todos. Assim, da mesma forma queo Estado deve garantir esse direito, das famlias cobrado que garantam a permanncia dos filhosnas escolas. Hoje, portanto, a famlia indissocivel da escola, ela no tem sua existncia socialplena separada dela (haja vista, por exemplo, a fiscalizao dos Conselhos Tutelares, para afianaressa indissociabilidade). Um outro aspecto da indissociabilidade ganha fora em funo da atualorganizao econmica e social que torna possvel (quando um desejo) e s vezes obriga (quando uma necessidade) o acesso crescente d