dissertacao_awaeteasurinihistorias

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS IVANA DE OLIVEIRA GOMES E SILVA DE AWAETE A ASURINI: HISTÓRIAS DO CONTATO (1971-1991) BELÉM-PA 2009

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A tese procura retrata o contato entre os povos Assurini e a sociedade não india.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    IVANA DE OLIVEIRA GOMES E SILVA

    DE AWAETE A ASURINI: HISTRIAS DO CONTATO (1971-1991)

    BELM-PA 2009

  • IVANA DE OLIVEIRA GOMES E SILVA

    DE AWAETE A ASURINI: HISTRIAS DO CONTATO (1971-1991)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais (PPGCS), do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH), da Universidade Federal do Par (UFPA), como requisito necessrio obteno do ttulo de Mestre em Antropologia.

    ORIENTADOR: PROFESSOR DR. RAYMUNDO HERALDO MAUS

    BELM-PA 2009

  • Ivana de Oliveira Gomes e Silva

    De Awaete a Asurini: histrias do contato (1971-1991)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais (PPGCS), rea de concentrao Antropologia, do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH), da Universidade Federal do Par (UFPA), como requisito necessrio obteno do ttulo de Mestre em Antropologia.

    Aprovada em 06 de novembro de 2009.

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________________________ Prof. Dr. Raymundo Heraldo Maus (UFPA - Orientador)

    ________________________________________________________________

    Prof. Dr. Roque de Barros Laraia (UNB - Examinador Externo)

    ________________________________________________________________ Prof. Dr. Carmem Isabel Rodrigues (UFPA - Examinadora Interna)

    ________________________________________________________________ Prof. Dr. Maria Anglica Motta-Maus (UFPA - Examinadora Suplente)

  • DEDICO:

    A todos que vivem buscando ser Gente Verdadeira.

  • AGRADEO: minha famlia, pelo sacrifcio de cada um, para a realizao desse trabalho:

    ao Pretinho, por sustentar o apoio e a f nos momentos de descrena e crise, s por amor;

    aos meus filhos:Vini, Tiano e Len, pelo amor incondicional que nos uniu o tempo todo;

    minha me pelo apoio e presena nesse exlio;

    tia Isa e a prima Bela, pela generosa acolhida em seu espao;

    aos amigos e amigas, de vrios lugares, pelo carinho, tolerncia e apoio nessa travessia.

    Edith Chevalier e Mayi (em memria), pela vivncia entre os Awaete, com toda a

    delicadeza e firmeza na defesa da vida e da dignidade.

  • OBRIGADA: Ao professor Heraldo e professora Anglica, por acolherem os alunos como eles so: gente.

    Aos colegas da Antropologia 2007, pela amizade que nos ajudou a viver esse perodo,

    Ao professor Flvio, pelas contribuies ao longo da construo desse texto,

    Aos professores do PPGCS, principalmente aqueles e aquelas que acolhem a ns alunos, com

    nossas dvidas e receios, na aventura de tentar compreender, interpretar a realidade,

    Rosngela e ao Paulo, por toda a humanidade que envolve seus fazeres tcnicos,

    Sandra Perdigo, face humana voltada para os bolsistas da FAPESPA, instituio que

    viabilizou a elaborao desse trabalho.

  • GOMES E SILVA, Ivana de Oliveira. 107 p. De Awaete a Asurini: histrias do contato (1971-1991). Dissertao (Mestrado em Antropologia); Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais (PPGCS); Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal do Par (UFPA), 2009. Resumo: As histrias do contato entre os povos indgenas e a sociedade nacional revelam as

    prticas totalitrias em curso desde o sculo XVI no Brasil. O contato intertnico

    empreendido pelo Estado brasileiro em direo ao povo Awaete/Asurini do Xingu se deu em

    um contexto que priorizava a ocupao e a explorao econmica da regio do Mdio Xingu

    por meio de grandes projetos, arquitetados durante o perodo da ditadura militar no pas. O

    contato representava uma forma de controlar os povos indgenas por meio das aes do

    Estado. As histrias do contato so analisadas a partir do referencial terico da Antropologia

    Estrutural e da Anlise do Discurso e revela a persistncia do colonialismo entre os anos de

    1971 e 1991, aps o advento da Constituio cidad de 1988, que formalmente reconhece os

    direitos e a autonomia dos povos indgenas no Brasil. As prticas de etnocentrismo como

    negao radical da alteridade permanecem na atualidade, inclusive no interior dos discursos

    de multiculturalismo.

    Abstract: The history of contact between indigenous people and national society shows the

    totalitarian practices undertaken since the sixteenth century in Brazil. The interethnic contact

    undertaken by the Brazilian State toward the people Awaete/Asurini do Xingu was made in a

    context that prioritized the occupation and economic exploitation of the region of the Middle

    Xingu through major projects, during the period of military dictatorship in the country. The

    contact was a way to control indigenous peoples through the actions of the state. The stories

    of contact are analyzed from the theoretical reference of Structural Anthropology and

    Analysis of Speech and reveal the persistence of colonialism between the years 1971 and

    1991, after the advent of the Citizen Constitution (1988), which formally recognizes the rights

    and autonomy of indigenous people in Brazil. The practice of ethnocentrism as a radical

    negation of alterity remains until the present, even within the discourse of multiculturalism.

    Palavras-Chave: Histrias do contato intertnico, colonialismo, fronteiras, etnocentrismo.

    Key Words: Interethnic contact histories, colonialism, boundaries, ethnocentrism.

  • ndice de Quadros, Mapas e Figuras

    Figura 1 Localizao dos grupos indgenas no interflvio Xingu-Tocantins Meados do

    Sculo XX 26

    Mapa 1 Territrio Awaete/Asurini do Xingu nos ltimos 50 anos 29

    Figura 2 Terras Indgenas do Mdio Xingu 38

  • Abreviaturas utilizadas ABA Associao Brasileira de Antropologia

    AD Anlise do Discurso

    ADRA Administrao Regional de Altamira

    CIMI Conselho Indigenista Missionrio

    CONAGE Coordenao Nacional de Gelogos

    FAPESP Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo

    FUNAI Fundao Nacional do ndio

    IFCH Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    MAIC Ministrio da Agricultura, Indstria e Comrcio

    PI Posto Indgena

    PIN Programa de Integrao Nacional

    PPGCS Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais

    SPI Servio de Proteo ao ndio

    SPILTN Servio de Proteo aos ndios e Localizao dos Trabalhadores Nacionais

    SUER Superintendncia Executiva Regional

    SUDAM Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia

    TI Terra Indgena

    UFPA Universidade Federal do Par

  • Sumrio

    INTRODUO 11 A dimenso tica do fazer antropolgico 15 Acerca dos procedimentos terico-metodolgicos 19

    CAPTULO I. No comeo, os Awaete 24

    Os Awaete ou Asurini do Xingu 24 Ser Awaete 31 As trilhas da pesquisa 34 Notaes sobre o contato 37 Por que estudar as histrias do contato? 42 A ocupao do Xingu/Altamira e os Awaete 47 Notcias dos primeiros contatos pelos Awaete 52

    CAPTULO II. As histrias do contato 58

    Aproximaes 58 Entrando no campo arquivstico 61 O discurso e os invlucros institucionais 77 Dissonncias no arquivo 81 Mais do mesmo ou atualizaes do significado da conquista 97 CAPTULO III. Discursos, eventos e prticas 91 A concrdia totalitria pela eliminao das diferenas 96 Terror e morte como estratgias de dominao 99 Recuperando alguns conceitos 102 CONCLUSES 114 REFERNCIAS Fontes Manuscritas Fontes Eletrnicas Bibliografia Citada Anexos

  • 11

    Introduo

    A fronteira, a frente de expanso da sociedade nacional sobre territrios ocupados por povos indgenas, um cenrio altamente conflitivo de humanidades que no forjam no seu encontro o Homem e o humano idlicos da tradio filosfica e das aspiraes dos humanistas. A fronteira , sobretudo, no que se refere aos diferentes grupos dos chamados civilizados que se situam do lado de c, um cenrio de intolerncia, ambio e morte. (MARTINS, 1997: 11)

    As relaes estabelecidas entre as populaes nativas das Amricas e os colonizadores

    europeus um tema debatido por muitos pensadores desde o sculo XVI, quando esse contato

    foi iniciado. Cronistas, viajantes, naturalistas, funcionrios, registraram suas impresses ao

    descreverem os novos dados acerca dos povos encontrados. Saint-Hilaire, Claude

    dAbeuville, Andr Thevet, Hans Staden, Martius, autores aqui alinhados sem uma

    preocupao cronolgica, apenas para destacar homens que com vises diferentes, contribuem

    ainda hoje para o conhecimento de aspectos desse passado.

    Atualmente as relaes intertnicas continuam a ser estudadas. As mudanas e as

    permanncias concernentes a essa relao so aspectos da realidade latino-americana que

    ainda carecem de um maior esclarecimento, mais ainda quando, no caso do Brasil, h notcias

    de povos nativos que se mantm ainda na atualidade sem estabelecer contatos com a

    sociedade majoritria. As imagens recentemente veiculadas de um povo indgena atacando

    uma aeronave que sobrevoa sua aldeia no estado do Acre mostram, assim como as imagens no

    documentrio sobre os Panar1, que o contato evitado de forma dramtica por alguns povos.

    possvel pensar que o impulso de auto-sobrevivncia foi acionado com preciso nessas

    fugas e evitaes do contato. De um modo geral, os prejuzos que advm das relaes

    intertnicas com os euro-descendentes so terrveis para as populaes nativas.

    Qual teria sido o primeiro contato entre os eurodescendentes e os Awaete? Pelos

    relatos obtidos por Coudreau2 desde o sculo XIX havia notcias de embates entre estes

    ltimos e os ditos civilizados, que acorriam ao Mdio e Alto Xingu na busca pelas drogas do

    serto.

    Pela via dos interesses da produo do lucro, seja a borracha no sculo XIX ou a

    colonizao intensiva viabilizada pelos grandes projetos de explorao dos recursos naturais

    da regio Amaznica e do Xingu, os contatos, conflitos e a desagregao de vrios povos

    1 Cf. ARNT, Ricardo. Panar: a volta dos ndios gigantes. So Paulo: Instituto Socioambiental, 1998. 2 Henri Coudreau (1859-1899), explorador francs que navegou ao longo do rio Xingu no perodo de trinta de maio a vinte e oito de outubro do ano de 1896.

  • 12

    nativos, foram se sobrepondo at a efetivao da institucionalizao totalizadora ou o

    governo dos ndios, pelos interesses e ao do Estado nacional. As polticas indigenistas do

    Estado Republicano surgem com as operaes de atrao e se consolidam com a criao dos

    Postos, espao administrativo que passa a ocupar o territrio dos povos indgenas, modus

    operandi acionado pelo Servio de Proteo aos ndios e Localizao dos Trabalhadores

    Nacionais (SPILTN) a partir de 1910. Entendo o interesse assimilacionista em relao aos

    povos nativos como uma das faces da negao das diferenas inaugurada pelos

    descobridores.

    A conscincia aguda da negao da diferena - que teve como experincia mais

    traumtica a tentativa de purificar uma raa e que se fez o pano de fundo da produo

    terica dos filsofos de Frankfurt - Adorno, Horkheimer, Habermas, entre outros - que se

    preocuparam em denunciar as patologias sociais responsveis pela negao do outro em sua

    infinita diversidade, conduz as reflexes que colaboram para a formao da sensibilidade e

    dos valores da tolerncia, solidariedade, respeito pelo outro, posturas cientficas e criativas

    que possam modificar prticas sociais fundadas no totalitarismo e no etnocentrismo.

    A Antropologia e a etnografia representam na modernidade, foras da cincia voltadas

    para os estudos dos diferentes povos. Etimologicamente etnografia deriva do grego, (,

    ethno - nao, povo e , graphein - escrever) e considerada, por excelncia, o mtodo

    a ser utilizado pela antropologia na coleta de dados. Baseia-se no contato inter-subjetivo entre

    o antroplogo e seu objeto de estudo, seja ele uma tribo indgena ou qualquer outro grupo

    social sob qual o recorte analtico seja feito. De acordo com a definio do dicionrio Aurlio,

    significa a parte dos estudos antropolgicos que corresponde fase de elaborao dos dados

    obtidos em pesquisa de campo, ou ainda, o estudo descritivo de um ou de vrios aspectos

    sociais ou culturais de um povo ou grupo social. No fazer etnogrfico O objetivo combinar

    uma anlise detalhada de situaes observadas, seus significados no dia-a-dia de interao

    social, bem como analisar tambm o contexto social maior em que estas situaes esto

    inseridas. A anlise da interao face a face uma das formas de procedimento que podemos

    escolher para realizar esta tarefa, embora no seja a nica. Queremos ser especficos sem

    sermos abstratos, sermos empricos sem sermos positivistas, enfim, sermos rigorosos.

    Bronisnilaw Malinowski considerado o fundador da moderna etnografia, ao cunhar a

    partir da metodologia utilizada por ele mesmo nas ilhas Trobriand, uma superao da

    antropologia de gabinete, prescrevendo e realizando um trabalho cuidadoso de observao,

    anlise e interpretao da cultura. Malinowski considerava necessrio que a etnografia

    entendida como cincia, apresentasse uma reflexo sobre o mtodo utilizado na coleta e

  • 13

    anlise dos dados, tal como ele apresenta na introduo do clssico Argonautas do Pacfico

    Ocidental, publicado pela primeira vez em 1922. Criticava as generalizaes amplas

    divorciadas do relato das condies sob as quais foram feitas as observaes e coletadas as

    informaes, ou seja, o contexto concreto que conduziu s concluses do pesquisador.

    De acordo com Marcus e Clifford (1998), o trabalho no campo etnogrfico tem sido

    representado tanto como o laboratrio cientfico da antropologia, quanto como um ritual de

    passagem.

    Lvi-Strauss (1996) defendeu que a idia de que a etnografia consiste na observao e

    anlise de grupos humanos considerados em sua particularidade e visando reconstituio,

    to fiel quanto seja possvel, da vida destes. Para o autor a etnografia parte da trade

    etnografia-etnologia-antropologia. A partir dos dados obtidos pela etnografia, a etnologia

    representa um primeiro passo em direo a uma sntese, que seria a busca inicial por

    concluses mais extensas, de ordem geogrfica, histrica ou sistemtica. Seria ento a

    etnografia um passo inicial prolongado pela etnologia. A antropologia se configura como a

    segunda e ltima parte da sntese. Baseada nas contribuies acumuladas pela etnografia e

    pela etnologia, a antropologia objetivaria a um amplo e profundo conhecimento do homem

    em toda a sua extenso histrica e geogrfica, possibilitando o acesso a concluses ou

    verdades universais sobre o ser humano. Etnografia, etnologia e antropologia so trs

    momentos ou estgios de uma mesma pesquisa para o autor francs.

    Na dcada de 80, o debate torico na Antropologia ganhou novas dimenses. As

    diferentes formas de conceber a etnografia foram atualizadas no que se convencionou

    designar como Antropologia Ps-Moderna. Muitas crticas a todas as escolas surgiram,

    questionando o mtodo e as concepes antropolgicas. No geral, este debate privilegiou

    algumas idias, e a primeira delas que a realidade sempre interpretada, de acordo com

    Geertz (1989), ou seja, vista sob uma perspectiva subjetiva do autor, portanto a antropologia

    seria uma interpretao de interpretaes. Da crtica das retricas de autoridade clssicas,

    fortemente influenciada pelos estudos de Foucault, surgem metaetnografias, ou seja, a anlise

    antropolgica da prpria produo etnogrfica. Contribuiu muito para esta discusso a

    formao de antroplogos nos pases que ento eram analisados apenas pelos grandes centros

    antropolgicos. Geertz (1989) afirmou que os relatos etnogrficos escritos pelos antroplogos

    so fices, no por serem falsos, mas no sentido de que so construdos, feitos, modelados

    (fictio). Decorrente desta reflexo ganha espao a idia do antroplogo como autor e da

    etnografia como texto. (Clifford e Marcus, 1991). Intrnseca a esta discusso est a questo do

    compromisso tico do antroplogo autor, que ganha dimenses maiores a partir de ento. A

  • 14

    etnografia deixa de ser apenas mtodo orientador do processo de pesquisa e passa a ser o

    produto resultante do trabalho de campo.

    A anlise dos estilos narrativos da escrita etnogrfica no mbito da antropologia

    clssica conduziu a novos experimentos que objetivam superar os limites deixados pelas

    convenes textuais tradicionais. Marcus (1991) denomina como Etnografias realistas as

    monografias clssicas. A pretenso de totalidade nesta escrita criticada, e consistia na forma

    pela qual os autores buscavam representar a realidade de todo um mundo ou de uma

    determinada forma de vida. Escritas seguindo um modelo de uma etnografia total, por meio

    de descries completas de outras sociedades, dispondo de forma seqencial os complexos

    culturais, como a geografia, economia, organizao social e parentesco, poltica e religio.

    Estas descries partiam da exegese do discurso do nativo, buscando evidenciar as

    competncias lingsticas do pesquisador, sem recorrer demasiadamente a intrpretes. As

    declaraes dos indivduos passavam a ser equacionadas em um denominador comum pelo

    etngrafo, que procedia a generalizaes expositivas, criando sujeitos totais. Esta crtica

    feita por Clifford (1991) e por Crapanzano (1991: 114-15), a alguns autores da antropologia

    aps realizarem a anlise de vrios escritos destes que so considerados referncia para a

    disciplina, procederam crticas, como, por exemplo, ao apontar na obra de Clifford Geertz

    acerca da briga de galos, a ocorrncia do tipo de narrativa generalizante, criadora de sujeitos

    totais.

    A travs de las bromas, de los ttulos, de los subttulos y de las simples declaraciones, el antroplogo y sus balineses, podemos verlo, se hallan separados con abismal distancia. En la primera parte de Deep Play Geertz y su esposa se nos presentan como personas de lo ms convencional. Los balineses, empero, no lo hacen. Aparecen sometidos a la generalizacin exposiva. Si observamos la frase que empieza los balineses siempre hacen, bien podemos pensar en que, ms que un informe acerca de un viaje, de una experiencia de campo, se pretende, nada menos, el estudio de todo un carcter nacional. Solo como puedem hacerlo los balineses, es otra frase digna de mencin; yla que expresa: la profunda identificacin psicolgica de los balineses con sus gallos; o los balineses nunca hacen cosa alguna de manera simple, pues siempre buscan las formas ms complicadas. Y tambn: los balineses siempre se desvan del punto central de un conflitcto. As, pues, los balineses nos son presentados, ms que a travs de una descripcin, de una interpretacin, a travs de una

    teorizacin de la que parte Geertz merced su propia autopresentacin.

    (CRAPANZANO, 1991: 114-15. Os grifos so meus) O trabalho de campo envolve mtodos e procedimentos nos quais temos que ser

  • 15

    radicalmente indutivos3 para a seleo do que deve ser importante para a pesquisa. As

    categorias ou temas que escolhemos para observar no so necessariamente escolhidos

    previamente; na maioria das vezes esta escolha se d a partir do desenvolvimento do trabalho

    de campo, seja o campo emprico, bibliogrfico ou documental.

    Os significados e as perspectivas que buscamos em etnografia, so, muitas vezes,

    inconscientes para as pessoas que os possuem, exemplo disso a anlise estrutural dos mitos

    realizada por Lvi-Strauss (1996). A tarefa do etngrafo seria no dizer de Geertz (1997: 88)

    um esforo para captar conceitos que, para outras pessoas, so de experincia-prxima, e

    faz-lo de uma forma to eficaz que nos permita estabelecer uma conexo esclarecedora com

    os conceitos de experincia-distante criados por tericos para captar os elementos mais gerais

    da vida social, , sem dvida, uma tarefa to delicada, (...)

    Estabelecer conexes entre estrutura e evento, analisar e interpretar, considerar a

    dialtica existente nestas relaes que envolvem a Antropologia e a Histria, me parece ser

    este um grande desafio a ser enfrentado na escrita etnogrfica.

    A dimenso tica no fazer antropolgico

    No caso da presente pesquisa que explora e analisa qualitativamente o contedo de

    documentos do rgo indigenista oficial, quais seriam os limites para a revelao dos sujeitos

    envolvidos em prticas que necessitam ser denunciadas e discutidas? Para tentar esclarecer

    essas questes recorri leitura de textos como, por exemplo, o artigo de Roque Laraia (1994)

    tica e Antropologia: algumas questes. O referido artigo inicia com um relato de uma

    denncia encaminhada por Franz Boas contra o governo norte-americano, em 1919, por estar

    utilizando quatro antroplogos como espies na Amrica Central. As conseqncias polticas

    para o denunciante no tardaram e vieram da parte do Conselho da Associao Americana de

    Antropologia, desmentindo, ameaando de expulso da Associao e pressionando pela

    renncia de Boas do Conselho Nacional de Pesquisa. A denncia e a indignao de Boas

    constituram um dos primeiros momentos de discusso pblica em relao aos procedimentos

    antropolgicos e a questo tica. Somente cinqenta anos depois a Associao agiu com a

    coerncia cobrada por Boas em 1919, denunciando o fato de que antroplogos norte-

    americanos estavam sendo utilizados em programas intervencionistas no governo da

    3 Induo no sentido lgico, Cf. Dicionrio Aurlio (1988), operao mental que consiste em estabelecer uma verdade universal ou uma proposio geral com base no conhecimento de certo nmero de dados singulares ou de proposies de menor generalidade.

  • 16

    Tailndia.

    A defesa feita por Boas (1919), de que o principal compromisso do cientista com a

    verdade, trouxe tona as memrias de Laraia (1994), acerca de um cdigo de tica de que

    tomou conhecimento em 1960, quando comeou a fazer pesquisas em Antropologia Social. O

    cdigo, cuja origem oral ou escrita o autor no conseguiu precisar, pode ser resumido em trs

    pontos: 1) o antroplogo no pode se envolver sexualmente com seus informantes; 2) o

    antroplogo deve respeitar seus informantes e defender seus interesses, agindo como

    mediador na relao entre estes e a sociedade nacional e 3) o antroplogo tem um

    compromisso com a verdade cientifica. Adiante, no artigo em foco, Roque Laraia considera o

    fato de que diante das mudanas ocorridas no cenrio mundial e nacional, a antropologia

    tambm mudou bastante, ampliou seus campos de atuao e o cdigo costumeiro no parece

    ser suficiente para atender as necessidades atuais. Citando Joseph G. Jorgesen (1971: 4),

    Laraia trabalha com a idia de que as questes ticas relacionadas aos antroplogos surgem

    das relaes destes com o povo que eles estudam, suas relaes profissionais com os outros

    antroplogos, suas relaes com os governos das naes onde realizam suas pesquisas e as

    suas relaes com seus prprios governos.

    A nfase colocada na relao do antroplogo com os seus informantes, na defesa do

    direito privacidade de sua personalidade, ao consentimento e a confidencialidade.

    Precisamos considerar que no concernente ao direito privacidade, as informaes que

    obtemos podem se tornar perigosas para os informantes, se disponibilizadas a pessoas ou

    instituies especificamente relacionadas ao tema investigado. importante ter o

    consentimento da comunidade onde realiza a pesquisa, respeitando os limites de abrangncia

    da pesquisa consentidos pela comunidade. lembrado que nossa profisso diferente do

    trabalho de um advogado, de um padre ou de um mdico, que dispem de leis que disciplinam

    suas relaes com seus clientes, enquanto ns lidamos com a confiana e com um acordo de

    honra e de discrio.

    Um ponto importante destacado por Laraia (1994) refere-se ao fato de que as verdades

    obtidas durante a pesquisa podem prejudicar nossos informantes, mas por outro lado, as

    fraudes nos dados so inaceitveis em nossos trabalhos. As imagens estereotipadas que se tm

    de grupos tnicos, sejam negativas ou positivas precisam ser esclarecidas com

    responsabilidade pelos antroplogos. O compromisso com a verdade e com a cincia

    permanece como um valor a ser cultivado na nossa prxis.

    No complexo cenrio das novas atribuies dos antroplogos se colocam trabalhos em

    grandes projetos, elaborao de relatrios de impacto ambiental sobre o meio ambiente,

  • 17

    laudos periciais em disputas territoriais, entre outras possibilidades. A possibilidade de

    interferir na vida de milhares de pessoas, ou de envolver grandes interesses econmicos, ou

    ainda de afetarem seriamente o meio ambiente, coloca uma carga de responsabilidade e

    preocupao adicional no ofcio de antroplogo. Conforme nos lembra Lus Roberto Cardoso

    de Oliveira (2007) no artigo O ofcio do antroplogo, ou como desvendar evidncias

    simblicas, o mercado de trabalho para antroplogos no Brasil cresceu de forma significativa,

    pois alm das ONGs diversas, alguns rgos pblicos realizam concursos para contratar

    antroplogos, alm dos trabalhos de assessoria realizados em empresas e rgos pblicos.

    Neste ensaio, o autor empreende um exerccio para caracterizar o ofcio do antroplogo e

    enfatiza uma caracterstica, qual seja a capacidade de interpretar evidncias simblicas. O

    esforo em dar sentido a prticas e situaes sociais concretas a partir da revelao deste tipo

    de evidncia, que se diferencia das evidncias materiais, e que configurada como

    [...] uma dimenso do emprico que no material, mas simblica (...) trata-se de experincia igualmente emprica e to concreta quanto a material, sendo passvel de apreenso com a mesma objetividade das evidncias materiais, mas qual o antroplogo s pode ter acesso por meio das representaes, vises do mundo ou da ideologia (na acepo dumontiana) da sociedade estudada (p.10, os grifos so meus).

    Considerando que no sistema de idias e valores prprios da disciplina, o fazer

    antropolgico, tradicionalmente marcado pela observao participante, caracterstica do

    trabalho de campo4, de outro lado, o campo de papel na Antropologia contempornea

    passou a constituir um locus to legtimo quanto o campo emprico. Obras como A funo

    social da guerra na sociedade Tupinamb , de Florestan Fernandes (1976)5 que reconstitui o

    universo social dos Tupinamb a partir dos relatos dos viajantes, analisando os rituais de

    guerra daquele povo e demonstrando a organicidade da guerra na relao com os demais

    elementos constitutivos daquela sociedade, na qual destaca a dimenso simblica da guerra,

    uma mostra do potencial etnogrfico de uma pesquisa eminentemente documental. A obra

    Negara 6 na qual Geertz (1991) analisa as construes simblicas efetuadas num lugar

    determinado e que se viram condicionadas por uma srie de circunstncias histricas,

    incluindo razes polticas, econmicas, entre outras, que marcaram o processo dos

    acontecimentos de Bali durante o sculo XIX e, especialmente, o Negara, o Estado-teatro

    4 Sobre o assunto possvel conferir em: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antroplogo. Braslia: Paralelo 15; So Paulo: Editora UNESP, 2000. 5 Conferir: FERNANDES, Florestan. A funo social da guerra na sociedade Tupinamb. So Paulo: Pioneira, 1976. 6 Conferir em: GEERTZ, C. Negara: O Estado Teatro no Sculo XIX. Lisboa: Difel, 1991.

  • 18

    balins, demonstram a pertinncia tanto da pesquisa no campo de papel quanto a

    importncia da dimenso simblica buscada no fazer antropolgico: Antes de tudo mais, o

    Estado balins era uma representao da forma que a realidade estava organizada

    (1991:156).

    A natureza de minha pesquisa predominantemente documental, e busca analisar

    relaes entre o Estado nacional brasileiro (representado pela Fundao Nacional do ndio

    FUNAI) e o povo indgena Awaete. Posto que o ofcio do antroplogo tenha como

    caracterstica o esclarecimento de evidncias simblicas, a anlise documental empreendida

    na pesquisa possui o status de pesquisa etnogrfica realizada em um campo de documentos e

    memrias.

    O trabalho do antroplogo, para Geertz (2001) revelar as singularidades dos povos

    diversos, investigar a estrutura e o alcance da experincia humana, na perspectiva de uma

    antropologia descritiva, interpretativa, hermenutica, criativa. Nas suas palavras se define

    como um etngrafo que escreve sobre etnografia. No desenvolvimento da antropologia

    interpretativa que, em dilogo com a hermenutica de Hans-Georg Gadamer e Paul

    Ricoeur, marcou indelevelmente os rumos da disciplina a partir dos anos 70, desencadeou

    direta ou indiretamente o fortalecimento da chamada antropologia ps-moderna.

    O problema do etnocentrismo na antropologia tratado na anlise dos argumentos

    apresentados por Lvi-Strauss, em uma conferncia proferida na UNESCO, demonstrando

    como os antroplogos justificam seus prprios valores. Para Lvi-Strauss, o etnocentrismo,

    apesar de ter legitimado muitos crimes ao longo da histria, no de todo ruim, um valor

    adaptativo de uma cultura, uma forma de mant-la na sua integridade. No puramente

    ofensivo exaltar seu estilo de vida. O etnocentrismo garantiria a diferena e no a

    desigualdade, desde que no levado ao extremo, na forma de racismo, como na barbrie

    ocorrida, por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, no holocausto.

    Segundo Geertz, na antropologia o problema do etnocentrismo ocorre por impedir o

    ngulo atravs do qual o pesquisador deve se situar em relao ao mundo, pois para o autor a

    capacidade de apreender e compreender o outro, no pesquisador, maior que a compreenso

    de si e de seu prprio mundo. Assim, os enigmas suscitados pela diversidade cultural surgem

    nos limites das prprias pessoas e no na fronteira entre as sociedades.

    O plano de fundo do presente trabalho o etnocentrismo e as formas por ele

    assumidas no indigenismo no Brasil, a partir da pesquisa envolvendo as histrias do contato e

    o povo Awaete, considerando trs verses discursivas distintas envolvendo a relao

    alteridade e etnocentrismo (Duschatzky & Skliar, 2000). A primeira forma aquela que

  • 19

    considera o outro como fonte de todo mal; a segunda o outro como sujeito pleno de um

    grupo cultural, e a terceira o outro como algum a tolerar.

    A coexistncia das vrias verses discursivas um dos aspectos destacados na

    presente pesquisa, considerando que na histria do Brasil j passamos por pocas em que

    preponderava o mito do bom selvagem, imagem criada a partir dos escritos de Rousseau;

    noutros tempos as representaes dos nativos por Jean de Lry e Thevet; as pesquisas do

    naturalista Buffon e as teses de degenerao das raas e misturas raciais defendidas por Nina

    Rodrigues; ou o jargo da democracia racial alavancado pela obra Casa grande e senzala de

    Gilberto Freyre. Na tarefa de desconstruir esses mitos e revelar a persistncia do preconceito,

    autores como Florestan Fernandes na obra O negro no mundo dos brancos, trazem para a

    discusso acerca das desigualdades existentes no Brasil contemporneo, questes como a

    reatualizao do preconceito.

    Acerca dos Procedimentos Terico-metodolgicos

    Nos ensaios que compem a presente dissertao, analiso as relaes intertnicas entre

    o povo Awaete e a sociedade nacional, de forma especfica, as relaes entre os Awaete e o

    Estado, desde o incio dos contatos at vinte anos depois (1971-1991). O povo indgena

    Awaete habita a calha do rio Xingu e tm sua presena documentada por viajantes desde o

    sculo XIX. A perspectiva adotada no presente estudo busca captar os conflitos a

    constitudos, considerando a relao de dominao e de resistncia forjada neste compelido

    encontro de culturas.

    Na dissertao, algumas questes centrais so destacadas por nortearem a construo

    das partes e do todo: Como a relao entre Estado e indgenas referida pelos agentes sociais

    envolvidos? Quais as intervenes executadas nos padres tradicionais da cultura e de que

    forma foram justificadas no decorrer dos primeiros anos de contato? Havia divergncias entre

    os diversos agentes atuantes no decorrer do perodo? Em que aspectos divergiam? Quais

    interesses, receios e expectativas dos diversos agentes so verificveis a partir da anlise dos

    documentos da poca? Como o discurso institucional, do rgo estatal responsvel pela

    proteo e assistncia aos povos indgenas, se converte em instrumento gerador de opresso e

    dependncia a partir das prticas engendradas, conforme apontam os registros documentais?

    Que importncia dada questo da autonomia dos povos indgenas, a partir da anlise dos

    registros relacionados ao contato dos Awaete?

    O objetivo maior deste estudo o de analisar as diversas concepes e prticas

  • 20

    indigenistas7 a que o povo indgena Awaete foi submetido a partir do contato com a sociedade

    nacional, no perodo compreendido entre 1971 at 1991. O perodo se justifica por contemplar

    desde a fase inicial do contato at trs anos ps-Constituio de 1988 e do fim da tutela.

    uma investigao que pode se mostrar como uma reflexo sobre a memria do contato, uma

    vez que os documentos so depoimentos que contam a histria do contato, a partir do olhar

    dos no-Awaete, acerca dessa guerra chamada de pacificao8. Outros objetivos se

    agregam este e podem figurar como objetivos especficos, uma vez que so elementos

    necessrios para o alcance do objetivo geral, so:

    1- Compreender a histria do contato do povo indgena Awaete com a sociedade

    brasileira;

    2- Verificar os possveis desdobramentos das vrias concepes e prticas indigenistas

    identificadas no perodo de duas dcadas (1971-1991), na comunidade da aldeia Koatinemo, a

    partir de anlise qualitativa do discurso contido nos documentos do acervo da Fundao

    Nacional do ndio (FUNAI);

    3- Identificar na bibliografia relacionada ao tema a possvel origem histrica dos

    padres de relacionamento entre Estado e povos indgenas no Brasil, a partir daqueles padres

    verificados na anlise dos documentos da FUNAI em relao aos Awaete.

    4. Analisar nos documentos as mudanas e permanncias na relao entre Estado e

    povos indgenas a partir da promulgao da Constituio Federal de 1988 e do fim da

    tutela.

    Os estudos antropolgicos referentes ao povo indgena Awaete, tiveram como foco a

    organizao social, a cosmologia, a esttica (MLLER 1990), a cultura material (RIBEIRO,

    1982; SILVA, 2002), de forma que as repercusses do contato e da prtica dos agentes sociais

    indigenistas com o povo indgena Awaete, no configuraram um objeto de estudo sistemtico,

    embora tenham sido tratados por estas autoras em uma contextualizao geral. A dissertao

    investiga as questes decorrentes do contato efetivo conduzido pela FUNAI, a partir da

    anlise dos documentos referentes s atividades junto ao povo indgena Awaete no perodo

    compreendido entre os anos de 1971 a 1991.

    Busco compreender como os Awaete lidam com os processos de mudana decorrentes

    7 Entendo indigenismo a partir da noo adotada por Souza Lima (1995: 14-5), que considera indigenismo o conjunto de idias relativas a insero dos povos indgenas em sociedades subsumidas a Estados nacionais, que enfatizam a formulao dos mtodos para o tratamento destes povos. Poltica indigenista designa as medidas prticas formuladas pelos diversos poderes do estado, que incidem diretamente ou no sobre os povos indgenas. 8 Conferir na obra de SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formao do Estado no Brasil. Petrpolis, RJ: Vozes, 1995.

  • 21

    do contato e quais so as estratgias que vem sendo por eles utilizadas nas suas relaes

    intertnicas passa, tambm, pelo entendimento dos diferentes contextos histricos e,

    conseqentemente, das diferentes aes institucionais, conjunturas polticas, econmicas e

    sociais que estiveram subjacentes aos processos de interao dos Awaete com a sociedade

    envolvente, desde o contato e que contriburam na definio da sua trajetria histrica

    particular e situao atual. A relevncia desta investigao remete a possibilidade de

    esclarecer alguns aspectos das relaes entre uma sociedade, que aps seculares contatos

    intertnicos conflituosos com as populaes circunvizinhas, se v a merc dos funcionrios da

    FUNAI, representantes da sociedade brasileira. A investigao pretende identificar as diversas

    representaes9 acionadas no contato e as formas como foram concretizadas na relao com o

    povo indgena Awaete. A representao supe um sistema de significaes que tornam o

    mundo inteligvel e que produzida no seio de relaes de poder, que determinam quem tem

    a prerrogativa de representar a quem, alm da prerrogativa de descrever os diferentes grupos

    culturais, enquanto dispositivo de construo de sujeitos e regimes de verdade (Foucault,

    1990).

    A anlise da sujeio do povo Awaete aos representantes da sociedade brasileira

    pretende ser exemplar ao permitir alargar as possibilidades de compreenso de processos

    semelhantes que ocorreram com outros povos indgenas da regio do Mdio Xingu contatados

    no mesmo perodo, a partir da dcada de 60 do sculo passado, como por exemplo, os povos

    indgenas Arara, Karara ( Kayap), Parakan e Arawete. A submisso e dependncia de

    vrios povos indgenas em relao ao rgo estatal na atualidade ainda um fato inegvel,

    9 O conceito de representao foi destacado e trabalhado por mile Durkheim e Marcel Mauss como uma forma

    de analisar a realidade coletiva, pois expressava os conhecimentos, as crenas e sentimentos do grupo social. Durkheim (1987: 26) afirma que o que as representaes coletivas traduzem a maneira pela qual o grupo se enxerga a si mesmo nas relaes com os objetos que o afetam. Ora, o grupo est constitudo de maneira diferente do indivduo, e as coisas que o afetam so de outra natureza. Representaes que no exprimem nem os mesmos sujeitos, nem os mesmos objetos, no poderiam depender das mesmas causas. preciso, ento, considerar a natureza social e no a individual e atentar para o fato de que o mundo todo feito de representaes. Em sua concepo clssica, o mundo feito de representaes, sendo elas que permitem entender o comportamento dos grupos sociais, como eles se pensam e quais so as suas relaes com os objetos que os envolvem. O pensar, juntamente com o agir, como trabalhado por Mauss (1979), do suporte ao conceito de representaes sociais tratado na dissertao. No texto A expresso obrigatria dos sentimentos, Mauss analisa o ritual oral dos cultos funerrios australianos. Recupera a anlise de Durkheim e discute os ritos e o luto, como expresso de emoes coletivas. Para ele no s o choro, mas toda uma srie de expresses orais de sentimentos no so fenmenos exclusivamente psicolgicos ou fisiolgicos, mas sim fenmenos sociais, marcados por manifestaes no-espontneas e da mais perfeita obrigao. (Mauss, 1979: 147) Novamente se institui a diferenciao entre representao individual e coletiva, enfatizando-se a importncia do social. Mauss no nega o sentimento individual, mas destaca o que social e simblico, traduzindo representaes coletivas. Cf. DURKHEIM, E. As regras do mtodo sociolgico. 13 ed., So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987. Ver tambm: MAUSS, M. A expresso obrigatria dos sentimentos. IN: OLIVEIRA, R.(org). Mauss: antropologia. Coleo grandes cientistas sociais. So Paulo: tica, 1979.

  • 22

    cujas causas precisam ser esclarecidas.

    Problematizar alguns aspectos da histria regional no tocante aos povos indgenas

    algo necessrio, mais ainda quando se aceleram as discusses em torno da iminncia da

    efetivao do projeto da Usina Hidreltrica de Belo Monte, que afetar de forma dramtica a

    vida destas populaes no Mdio Xingu.

    No primeiro captulo apresento o povo Awaete, retomando as informaes dos

    primeiros contatos e aspectos de sua cultura por meio de uma receno bibliogrfica. Desde

    os registros dos viajantes no sculo XVIII, at alcanar os anos 70 do sculo XX foi possvel

    reunir fragmentos da histria dos Awaete em diferentes encontros intertnicos: conflitos com

    regionais; combates com os Kayap e Arawete, fugas, mortes e roubo de mulheres e crianas.

    Aps a apresentao inicial dos Awaete e de explicitar o lugar de onde falo,

    apresento na seqncia dois momentos distintos que passo a descrever.

    No segundo captulo que trata das histrias do contato, a metodologia o alvo das

    reflexes iniciais e a seguir passo a trabalhar com a anlise dos documentos coligidos durante

    a pesquisa. O uso de instrumentos da anlise estrutural, inspirada nos princpios

    metodolgicos de Lvi_Strauss, que so por ele aplicados aos mitos, embora aqui limitada

    pela condio de aprendiz desta autora, marca o incio do processo de interpretao dos

    depoimentos encontrados na documentao.

    Em seguida, refinando a anlise, recorro a alguns princpios da Anlise do Discurso

    (AD), considerando que a AD permite tratar de processos de significao que se instalam

    tanto na linguagem verbal como na no-verbal. Considero importante esclarecer a relao do

    trabalho com o domnio da AD, ao esclarecer que no estou aplicando a metodologia da AD,

    o que fao considerar alguns de seus princpios na reflexo e interpretao dos contedos

    encontrados nos documentos.

    No terceiro captulo realizo uma anlise ampliada das histrias do contato, no qual os

    discursos, eventos e prticas, so analisados no contexto do indigenismo no Brasil e da

    Amrica Latina, atentando, alm disso, para os aspectos legais e ideolgicos relacionados s

    polticas indigenistas definidas pelo Estado. Empreendo tambm uma reflexo acerca da

    Antropologia no Brasil, enquanto uma fora atuante na defesa dos Direitos Humanos, tendo

    nessa luta uma forma possvel de garantir que a legislao atual assegure efetivamente o

    direito diferena, tal como a letra da lei garante formalmente aos povos indgenas e a outros

    grupos definidos como minorias.

  • 23

    Considerar a Antropologia como instrumento que nos pode auxiliar no controle de

    nosso etnocentrismo, tambm uma assertiva vlida na inspirao para a construo deste

    texto.

  • 24

    1 No comeo, os Awaete

    Os Awaete ou Asurini do Xingu

    Awaete/Asurini do Xingu uma etnia indgena classificada como integrante do tronco

    lingstico Tupi-Guarani. Atualmente habitam uma aldeia localizada na margem direita do rio

    Xingu (40256S, 523455W).

    Awaete a autodenominao dos Asurini do Xingu, que significa gente verdadeira

    ou, simplesmente, gente de verdade.

    O etnnimo Asurini tem sua origem na lngua Juruna, (asonri = vermelho), referindo

    ao uso abundante do urucum observado na pintura corporal dos Awaete/Asurini (Mller,

    1995)10. Este apelido, atribudo por outro povo, desde o sculo passado, vem sendo

    utilizado para designar diferentes grupos Tupi da regio entre os rios Xingu e Tocantins. O

    termo comeou a ser empregado para denominar o povo Awaete na dcada de 1950, pelos

    funcionrios do Servio de Proteo aos ndios (SPI) 11, durante os trabalhos de pacificao.

    Pacificao uma das estratgias adotadas pelo Estado republicano para o governo

    dos povos nativos, desde a criao no ano de 1910, do Servio de Proteo aos ndios e

    Localizao dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN). A pacificao pressupunha os

    conflitos pr-existentes entre os povos nativos e os colonizadores que adentravam o territrio

    nacional; geralmente consistia em uma expedio, cujo objetivo era estabelecer relaes

    pacficas com os nativos, mediante a oferta de brindes e a ajuda de intrpretes. Antonio

    Carlos de Souza Lima (1995:60)12, em sua anlise das relaes entre o Estado e os povos

    nativos, lembra que era necessrio atrair com presentes em abundncia, gerando assim uma

    dvida e uma suposta imagem de esplendor e riqueza; pacificar, demonstrando capacidade

    tcnica de resistir aos embates guerreiros, mostrando-se tecnologicamente superior, dando

    tiros para o alto, como a dizer mat-los-emos se o quisermos, mas desejamo-los vivos, 10 A antroploga Regina Muller atua junto aos Awaete/Asurini como pesquisadora desde os anos 1970. A principal referncia bibliogrfica consultada na presente dissertao o resultado de sua tese, transformada em livro. Conferir em: MLLER, Regina A. P. Os Asurini do Xingu: Histria e arte. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. 11 A criao do Servio de Proteo aos ndios (SPI), no ano de 1910, ocorreu aps uma srie de denncias em nvel nacional e internacional sobre a agressividade das relaes entre brancos e ndios, com conseqncias altamente negativas para esses ltimos. As prticas adotadas pelo SPI evitaram momentaneamente a continuidade do extermnio indgena e asseguraram a ocupao de largas faixas do territrio, dito nacional, por frentes de expanso. 12 Cf. LIMA, Antonio Carlos de Sousa. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formao do Estado no Brasil. Petrpolis, RJ: Vozes, 1995.

  • 25

    porque somos benvolos, porque nos . propomos irmos (Souza Lima, 1995) Destaca ainda

    um relatrio do SPI, do incio do sculo passado, no qual durante a pacificao dos

    Kaingang de So Paulo, Vanure, mulher Kaingang vinda do Paran, teve papel fundamental

    ao atuar junto aos pacificadores entoando cantos de paz. Consoante aos objetivos de

    dominao veiculados por tais estratgias repletas de ambigidades, Souza Lima destaca o

    desgnio perseguido pelas aes do Estado, por meio do exerccio do poder tutelar:

    Dito de outro modo, trata-se de sedentarizar povos errantes, vencendo-lhes a partir de aes sobre suas aes e no da violncia sua resistncia em se fixarem em lugares definidos pela administrao, ou de capturar para esta rede de aparelhos de gesto governamental outros povos (...) O exerccio do poder tutelar implica em obter o monoplio dos atos de definir e controlar o que seja a populao sobre a qual incindir.(1995:74)

    Assim, os Awaete, habitantes da calha do Xingu, ao passarem por tais processos

    ficaram denominados Asurini13. Na regio do Rio Tocantins, outro povo, tambm foi assim

    nominado. Os Asurin do Tocantins so conhecidos tambm por Asurin do Trocar (nome da

    Terra Indgena), e por Akuwa-Asurini. Esta ltima denominao foi empregada pelo

    etnlogo Roque Laraia14 na dcada de 1960, em razo deste pesquisador ter identificado o

    termo Akuwa como a autodenominao daquele povo.

    O processo de explorao colonial desencadeado na foz do rio Xingu, a partir do

    sculo XVII, exerceu grande influncia na vida dos povos indgenas ali existentes. Vrias

    foram as situaes de contato ento estabelecidas, principalmente se considerarmos a

    diversidade cultural dos povos que viram suas terras invadidas e os inmeros massacres ali

    ocorridos. As fugas representaram uma estratgia de sobrevivncia adotada pelos povos da

    regio, de modo que o impacto da expanso colonial levou muitas sociedades indgenas a

    abandonarem suas terras, migrando para lugares distantes das frentes de expanso.

    Para melhor compreender o avizinhamento dos povos indgenas na regio do

    interflvio Xingu-Tocantins, a figura 1 abaixo, explicita a proximidade verificada de acordo

    com informaes de meados do sculo XX. Tal disposio geogrfica sofrer alteraes a

    partir das disputas ocorridas entre os diversos povos, posteriormente formalizados a partir das

    definies territoriais empreendidas nos anos subseqentes ao contato permanente daqueles

    13 A grafia do etnnimo adotado pela FUNAI para designar os Awaete apresenta variaes: Asurini como os antroplogos convencionam cit-los; nos documentos da FUNAI comum encontrar a forma Assurin, Asurin ou no plural, Asurins ou Assurinis. Optei por referir-me ao povo como Awaete quando no estiver reproduzindo textos de outras fontes. 14 Cf. LARAIA, Roque de Barros. & DaMATTA, Roberto. ndios e castanheiros: a empresa extrativa e os ndios no mdio Tocantins. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

  • 26

    povos indgenas com a sociedade nacional, o que poder ser verificado na figura 2 (p.26).

    FIGURA 1 LOCALIZAO DOS GRUPOS INDGENAS DO INTERFLVIO XINGU-TOCANTINS EM

    MEADOS DO SCULO XX

    Fonte: Arquivo da FUNAI ADRA.

  • 27

    As primeiras informaes sobre o povo Awaete remontam ao sculo passado, no

    entanto, o contato efetivo ocorreu somente em 1971. Patrocinado pelos interesses

    expansionistas dos governos militares e de grandes empresas mineradoras, primeiramente, o

    contato foi feito pelos padres Anton e Karl Lukesch15 e, posteriormente assumido pela

    Fundao Nacional do ndio (FUNAI), a partir da frente de atrao liderada por Antnio

    Cotrim Soares16.

    Conforme a bibliografia, a partir dos registros do viajante Coudreau17, o povo Awaete

    teria ocupado historicamente um territrio localizado entre a margem esquerda do rio Bacaj e

    a margem direita do rio Xingu, na confluncia dos dois rios e s margens do igarap Bom

    Jardim.

    Quem viaja ao Xingu paraense quase s escuta falar de tribos indgenas, dos aurinis, dos penas, dos jurunas, dos axipaias, dos araras, dos curinaias, dos araras bravos, dos carajs, dos caruris ou mundurucus. Dizem dos aurinis que habitam exclusivamente a margem direita, das proximidades do Piranhaquara Praia Grande. Seriam os mesmos ndios que se conhecem no Rio Tocantins pelo nome de Veados. O grosso desta tribo estaria, ao que parece, no Rio Bacaj Grande, a partir de um dia ou dois da Volta do baixo Xingu, mas sempre nas florestas centrais e nunca nas margens. Os aurinis, mansos e civilizados no Tocantins onde so conhecidos pelo nome de veados, no so ferozes seno no Xingu, onde fazem anualmente diversos ataques e, coisa curiosa, com um sucesso constante e at mesmo crescente. Este ano [1896] eles atacaram em dois pontos: em janeiro passado foi na Serra do Paa de Cima, onde crivaram com onze flechas um seringueiro que todavia no morreu; e em junho, foi na Praia Grande. Ali foram atacados dois seringueiros. Um escapou; o outro, ferido, morreu tentando salvar-se a nado. E em razo de todas essas histrias tranqilizadoras que vim para esta viagem no Xingu munido de uma formidvel artilharia: nove rifles e dois fuzis de caa. (COUDREAU, 1977 [1896]: 37)

    O relato de Coudreau e suas consideraes acerca da artilharia que carrega consigo

    diante das histrias sobre a belicosidade dos Awaete, de forma especial, traz luz a

    15 Padres diocesanos, membros da Diocese de Graz, ustria, sendo o padre Anton Lukesh, etnlogo (Informaes obtidas junto ao Bispo da Prelazia do Xingu, Dom Erwin Krutler, em maro de 2008). 16 Funcionrio da FUNAI que liderou uma das frentes de atrao e que assumiu os contatos com os Awaete em 1971. Em 20/05/1972 abandonou a FUNAI para no ser um coveiro de ndios. Conferir em: PACHECO DE OLIVEIRA, Joo. FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A presena indgena na formao do Brasil. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006:235. Tambm disponvel em: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/ColET13_Vias02WEB.pdf 17 Conferir em: COUDREAU, Henri. Viagem ao Xingu. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Ed. Universidade de So Paulo, 1997. (Reconquista do Brasil, v. 49).

  • 28

    representao, ainda vigente, relacionada aos povos indgenas,18 tidos como selvagens que

    precisa(va)m ser combatidos. O contexto da escrita da Viagem ao Xingu o primeiro ciclo da

    borracha, quando a regio do Mdio Xingu passou a ser ocupada por populaes de

    seringalistas e coletores do ltex. A obra de Coudreau (1977), testemunha essa dinmica:

    Altamira, vilarejo em formao na sada da Estrada Pblica de Tucuru-Amb, consta apenas de trs casas na margem ocidental (esquerda) do Xingu, rodeadas por extensos terrenos cultivados, que a cada ano mais se espalham para o interior. Altamira e suas roas so uma criao de Gaioso, que a mantinha boa parte de seus escravos, seno mesmo a maioria (...) o povoado j pode conter, na poca em que se envia a borracha para a capital e de l chegam as mercadorias, com uma permanncia de cerca de duzentas pessoas, que se instalam (...) na futurosa povoao.(1977: 25)

    A partir dos relatos dos Awaete coletados por Mller (1990), a autora reconstituiu os

    deslocamentos, que ocorreram desde as margens do Rio Bacaj, partindo para as cabeceiras

    dos igaraps Ipiaava, Piranhaquara e Ipixuna, rea central entre os rios Xingu e Bacaj. O

    motivo desta movimentao se deveu ao fato de serem pressionados pelos brancos 19 e

    pelos povos indgenas seus inimigos (Mapa 1).

    O local de ocupao mais antigo teria sido a regio s margens do Bacaj, de onde

    teriam se deslocado devido s presses dos extrativistas regionais e em funo dos ataques

    das populaes indgenas Kayap. Teriam, ento, ocupado a regio dos igaraps Piranhaquara

    e Ipiaava, estabelecendo ali, desde a dcada de 1940, vrias aldeias e onde, novamente,

    foram perseguidos. deslocando-se, desta vez, para a regio do igarap Ipixuna. L

    permaneceram at serem expulsos pelos Arawet, que se estabeleceram naquela regio por

    volta da dcada de 1960, empurrados, por sua vez, pelos povos indgenas Kayap e Parakan.

    Deslocando-se novamente em direo ao igarap Ipiaava, e posteriormente em

    direo s margens do Rio Xingu, encurralados entre seus inimigos Arawete (Ararawa) e

    Kayap, e cercados por duas frentes de atrao, finalmente os Awaete estabeleceram o contato

    permanente com os brancos em 1971. 18 Desde os primeiros contatos com os colonizadores europeus, os grupos tnicos do continente americano foram denominados genericamente de ndios, termo que demonstra o possvel equvoco dos europeus que julgavam ter alcanado as ndias. O uso do termo ndio tornou a palavra sinnimo de pessoa de origem indgena, nativo. De acordo com Luciano (2006: 30), [n]o existe nenhum povo, tribo ou cl com a denominao de ndio. Na verdade cada ndio pertence a um povo, a uma etnia identificada por uma denominao prpria (...).Mas tambm muitos povos recebem nomes vindos de outros povos, como se fosse um apelido (...). Conferir em: LUCIANO, Gersem dos Santos. O ndio Brasileiro: o que voc precisa saber sobre os povos indgenas no Brasil de hoje. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006, tambm disponvel em: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/ColET12_Vias01WEB.pdf 19 A categoria branco no se refere cor da pele ou a qualquer aspecto fenotpico, mas sociedade majoritria demogrfica e politicamente, qual os povos indgenas no Brasil tm estado submetidos.

  • 29

    No meio de um cerco de guerra e paz, a aproximao com o grupo que se mostrava

    menos ameaador, foi a sada encontrada pelos Awaete.

    MAPA 1

    TERRITRIO AWAETE/ASURINI DO XINGU NOS LTIMOS 50 ANOS

    Fonte: Muller, Regina A. P. Os Asurini do Xingu: Histria e arte.Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.

    A fronteira, tal como o mapa e os deslocamentos dos Awaete ilustram, o ponto em

    que os territrios se redefinem continuamente, pelas diversas disputas, conflitos, acordos, por

    diferentes povos no decorrer da histria. De acordo com Jos de Souza Martins20 o lugar

    20 Cf. MARTINS, Jos de Souza. Fronteira: a degradao do outro nos confins do humano. So Paulo: Ed. HUCITEC, 1997.

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    privilegiado para se pesquisar como as sociedades se organizam, desorganizam ou se

    reproduzem na liminaridade dessas situaes, nas quais ocorre a disputa pela definio da

    linha que separa a natureza da cultura, o homem do animal, e quem ou no humano

    (Martins, 1997:12) o lugar em que a visibilidade do Outro, daquele que no se confunde

    conosco forjada. Fronteira adquire aqui o significado atribudo por Martins, assim

    definido:

    A fronteira, a frente de expanso da sociedade nacional sobre territrios ocupados por povos indgenas, um cenrio altamente conflitivo de humanidades que no forjam no seu encontro o Homem e o humano idlicos da tradio filosfica e das aspiraes dos humanistas. A fronteira , sobretudo, no que se refere aos diferentes grupos dos chamados civilizados que se situam do lado de c, um cenrio de intolerncia, ambio e morte. (MARTINS, 1997: 11)

    Awaete significa gente verdadeira, resume a concepo de humanidade de um povo;

    Awa, na lngua Awaete, significa uma gente genrica, sem nenhum trao especial, pronome

    indefinido, comparvel a expresso ndio cunhada para designar genericamente os povos

    nativos. O termo Asurini, para o universo Awaete, uma expresso aliengena usada pelos

    estrangeiros para os definirem. Aquele que o Outro e as formas como ele concebido,

    representado, enfrentado por outra etnia um dos pontos centrais da fronteira, fronteira do

    humano.

    Percorrer os caminhos e descaminhos dessa fronteira, para alm da noo de fronteira

    geogrfica, parte do desafio engendrado nessa dissertao. Seguir as pegadas deixadas em

    documentos elaborados pelos indigenistas do Estado e reconstituir as representaes que

    definiram os Awaete nas histrias do contato, uma forma de analisar o contexto mais

    amplo da fronteira e praticar uma Antropologia que toma como referncia a concepo

    hermenutica, sobre a qual se funda a antropologia interpretativa, a qual critica radicalmente o

    cientificismo iluminista dos sculos XIX e XX e prope outra configurao para elementos

    como indivduo, histria e subjetividade,

    comea a se impor na disciplina na medida em que logra contamin-la de elementos conceituais solidrios de uma categoria oposta ordem, i.e, de uma determinada ordem que se caracteriza por domesticar eficazmente esses elementos, a saber, a subjetividade, o indivduo e a histria [...] Isso significa dizer que a Antropologia interpretativa, implementada pelo paradigma hermenutico, enquanto crtica sistemtica s antropologias tradicionais, estaria atualizando, do ponto de vista da matriz disciplinar, a categoria da

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    desordem aqui sim como o verdadeiro impensado da disciplina. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988: 93)21

    Ser Awaete

    O estilo de vida dos Awaete caracterstico dos povos tupi guarani, de acordo com os

    estudos de Laraia22, que a partir das pesquisas junto a trs povos dessa famlia, pde

    sistematizar vrias caractersticas e padres importantes. A primeira caracterstica que destaco

    a predominncia da agricultura como principal atividade de subsistncia: a mandioca

    representa o elemento bsico da dieta alimentar dos Awaete. Em suas roas cultivam vrias

    espcies de mandioca, que consumida de diferentes formas, sendo a farinha o principal

    produto. Esta fabricada de trs maneiras tradicionais: 1) uiet: ralando-se a mandioca na

    raiz de paxiuba (pat(s)i iwa), a massa espremida com as mos e colocada num cocho para

    secar; depois de seca pilada e so feitos bolos, que so colocados posteriormente para

    defumar, aps estes serem pilados novamente e peneirados, a farinha torrada na forma de

    barro (d(z)ap); 2) maniakapyaka: feita da massa que se deposita no fundo das grandes

    panelas, onde colocado o caldo espremido; depois de seca ao sol e pilada, torrada; 3)

    maniakui: feita com mandioca colocada na gua por alguns dias, seca ao sol, pilada e

    finalmente torrada. Come-se tambm o beiju e vrios tipos de mingau preparados com o caldo

    da mandioca doce (maniakawa) ou engrossados com mandioca brava (maniaka), colocada de

    molho e pilada, depois de seca ao sol (maniapywa).

    Os Awaete cultivam tambm o milho (awati) que constitui um alimento muito

    importante, pois, para alm do fato de ser um alimento consumido o ano todo, tambm parte

    da refeio ritual de diversas cerimnias, como, por exemplo, o Tur, a festa das flautas, que

    tem incio no incio da colheita do milho (Mller, 1990:74) H restries a serem obedecidas

    no plantio e as espigas verdes ou secas so a base do preparo de vrios tipos de mingaus.

    Outras espcies cultivadas tradicionalmente pelos Awaete so o car, batata-doce, tabaco,

    algodo, urucum, amendoim, fava, melancia, banana. De acordo com a diviso sexual do

    trabalho, cabe aos homens o preparo do solo (broca, derrubada, queimada e coivara) e s

    mulheres o cultivo e a colheita. Os homens de um grupo domstico mantm entre si relaes

    de cooperao, abrindo suas roas prximas umas das outras. Na derrubada, so convidados

    todos os homens da aldeia, a quem servido um mingau. A produo pertence s mulheres

    21 Cf. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o Pensamento Antropolgico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Braslia: CNPq, 1988. 22 Cf. LARAIA, Roque de Barros. Tupi, ndios do Brasil Atual. So Paulo, FFLCH-USP, 1987.

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    que, transformando-a em alimento realizam a partilha junto aos demais grupos domsticos de

    acordo com as regras de parentesco (Muller, 1990) O preparo dos mingaus constitui uma

    atividade importante, fonte de sociao (Simmel, 1983)23, repleta de significados,

    [o] preparo dos mingaus servidos nos rituais segue uma dinmica prpria: as uirasimb, cantadoras que acompanham o xam, em geral suas esposas, devem providenci-lo atravs do patrocinador do ritual. raro se preparar este mingau com o produto da prpria roa, isto , a do xam. Umas preparam, outros fornecem. Todos se alimentam. (Mller, 1990:76)

    O processamento dos alimentos no contexto do ritual, remete a uma segunda

    caracterstica importante dos povos tupi-guarani: a religiosidade. Conforme Laraia indica no

    artigo As religies indgenas: o caso tupi-guarani24, as religies denominadas xamansticas

    decorrem do uso do termo xam, originrio do povo tungu (Sibria), que designa o

    especialista religioso, o qual atravs do estado de transe, entra em contato com seres

    sobrenaturais. As lideranas religiosas tupi-guarani partilham este perfil e so denominadas

    pelo termo pai, expresso que grafada na lngua portuguesa como paj (Laraia, 2005:8)

    Entre os Awaete, os rituais xamansticos, conhecidos como pajelana, realizam-se

    com muita freqncia, mobilizando todo grupo. A maioria dos homens participa como paj

    nestes rituais, auxiliados pelos assistentes e pelas cantadoras, encarregadas tambm de

    preparar o mingau ritual. A pajelana compreende dois tipos de rituais: o marak (canto e

    dana) e o petymwo (massagem e defumaes), executados para invocar os espritos com os

    quais os xams entram em contato, assim como para tirar a causa da doena do corpo do

    paciente e lhe transmitir o remdio (muynga) que recebem, ento, atravs do estado de

    transe (rituais teraputicos). Nesses rituais, o xam passa tambm para o paciente e as

    crianas da aldeia o ynga, algo como fora vital, traduzido pelos Awaete como corao,

    isto , o que bate, o que tem vida (Mller, 1990:170)

    O marak realizado tambm como o ritual propiciatrio para espritos identificados

    como animais da floresta, como porco-do-mato (tazaho) e veado (arapo). Os xams entram

    em contato com espritos que se enquadram em categorias de seres que podem ser chamados

    de espritos guardies, subdivididos em espcies que compreendem indivduos identificados

    por nomes prprios. Esses seres, que reproduzem o mundo dos humanos, habitam certas

    regies do cosmo. Eles so intermedirios entre os xams e outra categoria de seres no

    23 Cf. SIMMEL, Georg. Formalismo sociolgico e a Teoria do Conflito. In: FILHO, Evaristo de Moraes (Org.). Georg Simmel Sociologia. Coleo Grandes Cientistas n. 34. So Paulo: Editora tica, 1983. 24 Cf. LARAIA, Roque de Barros. As religies indgenas: o caso tupi-guarani. Revista USP, So Paulo, n.67, p. 6-13, setembro/novembro 2005.

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    identificados individualmente e que no entram em contato direto com os xams, podendo ser

    chamados de categoria nica. Os espritos guardies fazem mediao entre os xams e as

    categorias nicas, e os xams entre os espritos e os homens. De acordo com a hierarquia

    existente entre seres que povoam o cosmo Awaete, os humanos esto subordinados s

    criaturas classificadas como categorias nicas e que ficam num plano superior, assim como as

    anhynga, que ficam num plano inferior e que convivem com os Awaete, podendo prejudic-

    los, pois representam foras negativas, como a alma dos mortos. Como os xams, os espritos

    guardies so intermedirios entre homens e as categorias nicas e auxiliam seus colegas

    humanos a combaterem os males dos anhynga. Para tornar-se familiar aos espritos e

    participar de seu mundo, o xam Awaete passa por uma iniciao, isto , um treinamento para

    obter e controlar, atravs do exerccio da dana e da aspirao da fumaa do tabaco, o estado

    de transe, interpretado como morte (manu) do paj, pelos ataques do esprito. Para suportar

    estes ataques, o paj manipula substncias (kaa) que entram em seu corpo. O treinamento do

    xam consiste em tom-las do esprito em questo. Deve aprender tambm a manejar certos

    instrumentos, como apitos, que fazem o som dos espritos e tm procedncia

    sobrenatural(Mller, 1990) A semelhana com os rituais de iniciao xamanstica observados

    entre outros povos tupi-guarani por Laraia (2005, p. 8)25 bastante significativa:

    Entre os assurinis, do Rio Tocantins, constatamos a existncia de um ritual denominado opetimo (literalmente: comer fumo) que tem como objetivo identificar, entre os jovens, aqueles que tm o potencial de se transformar em um pai. Entre cantos e danas, os candidatos fumam um grande charuto de tabaco, engolindo a fumaa. Os que se sentem mal, ou seja, tm nsia de vmitos, so descartados. Os que desmaiam so os escolhidos. Omano, grita o pai oficiante do ritual, ou seja: ele morreu. morrendo que se faz a viagem para o outro mundo, o que torna possvel o contato com os antepassados. A maior parte do trabalho dos xams consiste em efetuar curas atravs do controle dos espritos que provocam as doenas e, at mesmo, a morte.

    Os Awaete fazem uma interpretao da doena como o resultado da ao dos espritos

    frente transgresso de prescries relacionadas ao sobrenatural, por exemplo, o ato de falar

    o nome dos espritos Karowara prximo aos rios e igaraps, ou ter contato com anhynga. A

    doena tambm pode ser entendida como manifestao da predisposio de um indivduo a se

    tornar xam. Do ponto de vista da medicina ocidental, os casos tratados pelos xam so de

    gripe, malria, tuberculose etc. Alm dos rituais realizados para a sade dos habitantes da

    aldeia, os xams executam rituais propiciatrios para garantir a subsistncia, como o Tazaho

    25 Cf. LARAIA, Roque de Barros. As religies indgenas: o caso tupi-guarani. In: Revista USP, n 67. So Paulo, setembro/novembro 2005.

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    (porco-do-mato) para atrair e localizar, na mata, os bandos desse animal. Outro ritual

    propiciatrio, realizado em conjunto com o do porco-do-mato, o do Arapo (veado) que

    lembra o mito no qual se conta a doao por esse animal dos produtos da roa mulher, numa

    poca em que o Awaete no os conheciam.

    Aos rituais teraputicos e propiciatrios somam-se ainda os dedicados aos recm-

    nascidos e os rituais xamansticos do Tur (complexo cerimonial das flautas), nos quais se

    invoca espritos como Tau e Kawara (Mller, 1990) O xam Awaete a figura central no

    desempenho da vida social do grupo. Seu livre trnsito pelos diversos domnios do cosmo lhe

    permite o controle de foras que asseguram a resistncia da sociedade. A partir do contato e

    suas conseqncias depopulativas, ter-se-ia desenvolvido de maneira exacerbada a tendncia

    de enfatizar-se o xamanismo, latente entre os Awaete e recorrente entre os demais grupos tupi-

    guarani. Tal fato suscitou inmeras situaes de tenso entre os Awaete e os funcionrios da

    FUNAI, que criminalizaram a religiosidade Awaete no incio do contato.

    As trilhas da pesquisa

    O ttulo da presente dissertao De Awaete a Asurini do Xingu Histrias do contato

    (1971-1991) evoca a forma heternoma com que a sociedade nacional se comporta na relao

    com este povo particular e com os povos indgenas em geral, desde os tempos da colonizao

    portuguesa at a atualidade. As denominaes dos povos tm sido feitas sempre a partir da

    forma que os no-indgenas os vem e classificam. Dificilmente a autodenominao de um

    povo considerada como a forma correta de referi-los.

    O estudo das relaes entre o Estado e os povos nativos um campo ainda pouco

    explorado das pesquisas antropolgicas no Brasil (Souza Lima, 1995:12). Faz-se campo de

    anlise profcuo ao potencializar e viabilizar o conhecimento dos processos histricos de

    expanso das foras econmicas, bem como dos conseqentes conflitos e polticas forjados na

    fronteira. Para elaborar o presente estudo no parti de uma idia inspirada em textos de

    etnologia. O critrio para a escolha do povo indgena, cujo contato analiso, levou em conta a

    familiaridade existente a partir de minha experincia como educadora entre os Awaete, nos

    anos 1991-1993. Ao experenciar as vivncias da fronteira, pude perceber vrias dimenses

    existentes nesse encontro de culturas, dentre elas a barbrie, ocultada ou no nas relaes a

    estabelecidas. Barbrie, aqui compreendida definindo uma manifestao de violncia

    exacerbada, discordando do uso preconceituoso atribudo por alguns evolucionistas que

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    utilizam a expresso para caracterizar sociedades primitivas.

    O contato do povo indgena Awaete com a sociedade brasileira e suas implicaes, (os

    dilemas vividos, os conflitos e as tenses), , portanto, o tema desta dissertao. O objeto

    central de anlise da presente dissertao d continuidade aos estudos acerca da construo da

    identidade social no contexto da frico intertnica entre as sociedades indgenas do Brasil e

    a sociedade nacional. Cardoso de Oliveira um dos autores de maior destaque e o iniciador

    destes estudos no Brasil, originados na dcada de 60 do sculo passado. Na obra O ndio e o

    mundo dos brancos: Uma interpretao sociolgica da situao dos Tukna (1972)26,

    Cardoso de Oliveira realiza uma srie de pesquisas, que, de acordo com Melatti (1984)27, no

    artigo A Antropologia no Brasil: um roteiro est inserida dentre os estudos de mudana

    social, de mudana cultural ou de aculturao, iniciados nos anos 30 e que tiveram em Herbert

    Baldus28, um dos primeiros a ensaiar e incentivar a produo voltada para o contato

    intertnico entre povos indgenas e brancos.

    Cardoso de Oliveira em sua anlise sociolgica busca articular o estudo de duas

    sociedades: a indgena e a no-indgena, considerando o conflito, aspecto que no costumava

    ser considerado nos estudos que focalizavam preferencialmente o presente etnolgico. O

    conflito entre as duas culturas tratado por Cardoso de Oliveira (1988) com o uso do

    conceito, proposto por ele, de frico intertnica, que trata dos contatos entre os povos

    indgenas e a sociedade nacional marcados pelos aspectos competitivos e conflituosos. Seus

    estudos acerca da persistncia da identidade indgena mesmo aps o afastamento da aldeia, no

    caso do povo Terena, que passou a habitar os centros urbanos no estado do Mato Grosso,

    tambm auxiliam na reflexo acerca das diversas formas de resistncia viabilizadas pelos

    povos indgenas no Brasil. Por essas contribuies, para a realizao deste estudo sua obra

    constitui um dos importantes referenciais tericos. Por outro lado, a obra Um grande cerco de

    paz: poder tutelar, indianidade e formao do Estado no Brasil de Antonio Carlos de Souza

    Lima (1995) constitui uma referncia importante para as anlises histricas e tericas. Sua

    etnografia do nascente Estado Republicano e do Governo dos ndios lana luzes

    importantes na presente anlise do contato. No tangente aos estudos etnogrficos dos Awaete,

    26 Cf. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O ndio e o mundo dos brancos: Uma interpretao sociolgica da situao dos Tukna. So Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1972. 27 Cf. MELATTI, Jlio Cezar. A Antropologia no Brasil: um roteiro.In: O que se deve ler em Cincias Sociais no Brasil, Vol. 3, So Paulo: Cortez e ANPOCS, 1990. pp. 123-211. 28 Antroplogo teuto-brasileiro, que exerceu importante papel na constituio da pesquisa e do conhecimento antropolgico no Brasil. Conferir em: SAMPAIO-SILVA, Orlando. O antroplogo Herbert Baldus. Rev. Antropol. [online]. 2000, Vol. 43, no. 2 [cited 2007-11-18], pp. 23-79. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012000000200004&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0034-7701. Acesso em 15/12/2007.

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    so referncias importantes as obras de Regina Mller (1984-85; 1990), alm da pesquisa

    realizada por Berta Ribeiro (1982) e os recentes estudos realizados pela pesquisadora Fabola

    Silva (200229).

    Com o objetivo de discutir aspectos da relao entre o Estado e o povo Awaete, que

    permitam identificar as representaes subjacentes aos discursos e prticas indigenistas,

    trabalho na anlise de textos oficiais, buscando nos diversos relatrios as permanncias e as

    mudanas que revelem a estrutura do indigenismo praticado entre os anos de 1971 e 1991.

    Indigenismo entendido aqui de acordo com o conceito elaborado por Souza Lima

    (1995, p. 14), como um conjunto de idias e ideais relativos a insero de povos indgenas

    em Estados nacionais; e Poltica Indigenista, como quaisquer medidas tomadas pelo Estado

    atravs de decises em diferentes nveis, que direta ou indiretamente afetem os povos

    indgenas, no se devendo supor que do primeiro decorra a segunda.

    As histrias do contato so analisadas, inicialmente, incorporando idias do referencial

    terico da Antropologia Estrutural e da Anlise do Discurso, no aqui tomadas em termos

    absolutos, mas como possibilidade para uma anlise preliminar, que permite investigar a

    persistncia do colonialismo entre os anos de 1971 e 1991. Parte do perodo analisado

    posterior ao advento da Constituio cidad de 1988, que formalmente reconhece os direitos e

    a autonomia dos povos indgenas no Brasil. A seguir discuto os dilemas e tenses existentes

    entre os avanos legais e a realidade opressiva dos interesses da sociedade majoritria contra

    os direitos dos povos indgenas a partir dessas histrias.

    Durante a permanncia entre os Awaete, a reificao do etnmio atribudo por

    terceiros causava estranhamento, por ser perceptvel um mal estar, um certo deslocamento na

    relao do povo com sua prpria identidade, pela dificuldade de se reconhecer a partir da

    viso do outro. De forma oposta, me chamou a ateno o fato de os Kayap, povo com o qual

    convivi anteriormente, nos discursos proferidos em sua lngua materna, sempre se auto-

    referirem como os Mebengokre, Gente do Olho dgua, remetendo a identidade aos mitos

    de origem. Quando se auto-referiam como Kayap, diante dos no-indgenas em portugus, o

    faziam com a inteno de criar um efeito performtico que remeteria seus interlocutores s

    imagens de Kayap estigmatizadas: os guerreiros impiedosos aos quais se deveria temer.

    Neste caso, o uso das duas denominaes em espaos diferenciados produz efeitos diversos,

    reforando ou manipulando a identidade, seja pelos fundamentos mticos ao se proclamarem

    29 Cf. SILVA, Fabola. A interpretao dos Asurini do Xingu dos achados arqueolgicos encontrados na aldeia Kwatinemu In: Horizontes Antropolgicos. Vol. 8, n 18, Dez. 2002: pp.175-187.

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    Mebengokre no espao da aldeia, ou com o uso da imagem cultivada pelos regionais, como o

    povo Kayap que imprime um respeito, muito mais calcado no medo e no esteretipo do

    que por qualquer reconhecimento do direito diferena. Impor-se pelo medo, nesse caso,

    uma estratgia para enfrentar a carga negativa evocada pela presena entre os regionais. Entre

    os Awaete, o fardo da hetero-denominao se mostrou muito impregnado, de forma que ao se

    auto-referirem como Asurini, pude perceber quo estranho era o uso de um termo aliengena

    para falar de si, pois que Asurini aparecia na fala dos Awaete, como o uso da terceira pessoa

    para a auto-referncia. O processo que conduziu os Awaete a assumirem-se como Asurini,

    abrindo mo do uso da autodenominao autntica est relacionado ao contato, que o objeto

    deste estudo.

    Notaes sobre o contato

    Na poca do contato, a populao Awaete estava distribuda em duas aldeias

    localizadas s margens do igarap Ipiaava. A partir de 1972, no entanto, ela passou a ocupar

    uma nica aldeia, denominada Koatinemo (cheiro de quati), que foi instalada abaixo da

    localizao anterior, na margem direita do mesmo igarap, onde permaneceu at 1985,

    quando foi transferida para o local em que se encontra hoje.

    Atualmente a aldeia est localizada margem direita do Xingu, o que intensificou o

    contato com os viajantes, pescadores e ribeirinhos que vivem nas imediaes. As mudanas

    de local realizadas aps 1971 so tratadas nos relatrios analisados, como resultado das

    aspiraes dos Awaete, embora tenham sido conduzidas pela FUNAI.

    Para melhor compreender o contexto no qual esto inseridos os Awaete necessrio

    identificar as terras indgenas e os povos indgenas na calha do Rio Xingu. Na figura 1 os

    contornos formais da fronteira geogrfica atual so apresentados. Ao longo do Xingu, vrias

    famlias de ribeirinhos habitam parte do territrio indgena, contudo, os registros de conflitos

    com esses moradores so poucos.

    Durante minha vivncia com os Awaete, pude testemunhar por vrias ocasies a

    chegada de algumas famlias ribeirinhas que acorriam ao Posto em busca de ajuda, geralmente

    em casos de doenas ou para consertar algum instrumento como, por exemplo, motores de

    barcos. Nunca presenciei qualquer hostilidade por parte dos Awaete nesses casos. Havia

    conversas de que nas casas de alguns desses moradores, a cachaa por eles consumida poderia

    ser oferecida aos Awaete, prtica considerada ruim pela maioria naquela poca.

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    Figura 2: Terras Indgenas do Mdio Xingu

    Fonte: FUNAI. Disponvel em: http://www.funai.gov.br/ Acessado em: 18/04/2007

    A Terra Indgena (TI) Koatinemo est localizada na margem direita do Mdio Rio

    Xingu, entre os igaraps Ipiaava e Piranhaquara, nos municpios de Altamira e Senador Jos

    Porfrio, Estado do Par. Aos Awaete foram destinados 387.834 hectares de floresta

    amaznica, registrada oficialmente no ano de 1999. Parte do antigo territrio dos Awaete,

    conforme suas narrativas atualmente constituinte das Terras Indgenas de outros povos, seus

    antigos inimigos (Kayap da TI Trincheira Bacaj e Arawete da TI Arawete do Igarap

    Ipixuna).

    Nos primeiros anos ps-contato, o povo que vinha sofrendo perdas no contingente

    populacional devido aos confrontos com as populaes inimigas, viu-se diante de inimigos

    ainda mais devastadores, quais sejam as doenas transmitidas pelos brancos. Estima-se que

    nos anos 30, a populao Awaete totalizava aproximadamente 150 indivduos, porm, na

    dcada de 1970, quando ela foi oficialmente contatada esse nmero teria se reduzido em

    aproximadamente 40%, devido s epidemias de gripe e malria, tuberculose e s precrias

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    condies de assistncia mdica30. No incio da dcada de 1980, a situao era ainda mais

    alarmante, sendo que havia apenas 52 indivduos, em 198231.

    Alm da incidncia das doenas infecto-contagiosas transmitidas pelos brancos, a

    baixa taxa de natalidade entre a populao tambm contribuiu para uma situao demogrfica

    assustadora. Esses fatos podem ser parcialmente explicados em funo dos mecanismos de

    controle exercidos pelos Awaete desde antes do contato que, por sua vez, esto relacionados a

    fatores histricos (ataques de grupos inimigos) e culturais (regras de casamento, filiao e

    xamanismo) (Mller, 1990). O casamento polindrico geracional (uma mulher casada com um

    homem mais novo e outro mais velho), modelo preferencial assumido pelos Awaete poca

    do contato, agravava a crise demogrfica, pois que, em virtude de um perodo de guerras e

    fugas acentuado, ocorrido na dcada de 1960, no havia a gerao de maridos novos,

    responsveis pela procriao. O retardamento da maternidade entre os Asurini, segundo

    Ribeiro (1982), privilegiava a mulher jovem, que era estimulada a conservar o frescor da

    juventude, livre dos encargos inerentes maternidade, para melhor servir a uma camada

    masculina mais idosa, onde se incluam os pajs, que requisitavam as jovens como assistentes

    nos rituais. Portanto, o ideal de que o homem exercesse a funo procriativa na sua fase

    juvenil e a mulher na fase madura, contribuiu em parte para a conteno demogrfica, a qual

    se somou os traumas advindos das guerras e do contato (morte de uma parcela significativa da

    populao). Decorrem desse ideal e do mal-estar causado pelo contato, o uso de mtodos

    anticoncepcionais como as prticas de aborto entre os Awaete.

    Finalmente, havia problemas com a situao econmica e a disponibilidade dos grupos

    domsticos para sustentarem a famlia nos primeiros meses de vida, alm da tendncia de uma

    famlia no exceder o nmero de dois filhos, fato que, de acordo com Laraia (1987)32, perfaz

    uma tradio partilhada por outros povos Tupi, como os Akwawa Asurini e os Suru, por ele

    estudados.

    Durante esse perodo crtico, vrias iniciativas foram tomadas na tentativa de

    revitalizar o povo Asurini, como o ocorrido com a vinda para a aldeia Koatinemo das

    religiosas catlicas Irmzinhas de Jesus de Charles Foucault, que foram convidadas para

    atuarem entre os Awaete pelo trabalho respeitvel por elas desenvolvido entre o povo 30 Para compreender adequadamente o decrscimo populacional, consultar: ARNAUD, E. Mudanas entre os Grupos Indgenas Tupi da Regio do Tocantins-Xingu (Bacia Amaznica). Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, n. 84, 1983. (Antropologia). Tambm em RIBEIRO, Berta G. A Oleira e a Tecel: O Papel da Mulher na Sociedade indgena Asurini. In: Revista de Antropologia, 25, FFLCH/USP, 1982, pp. 25-61, Mller (1996) op.cit. e ainda em: SILVA, Fabola. A interpretao dos Asurini do Xingu dos achados arqueolgicos encontrados na aldeia Kwatinemu In: Horizontes Antropolgicos. Vol. 8, n 18, Dez. 2002: pp.175-187. 31 Cf. Mller, 1996; Ribeiro, 1982, anteriormente citadas. 32 Cf. LARAIA, Roque de Barros. Tupi, ndios do Brasil Atual. So Paulo, FFLCH-USP, 1987.

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    Tapirap no Mato Grosso, desde os anos de 1960. As religiosas desenvolveram em

    aproximadamente vinte anos (1982-2000) junto aos Awaete, atividades de apoio nos

    tratamentos de sade, acompanhando intensamente cada caso e sustentando o princpio da

    inculturao missionria, que consistia na defesa da cultura originria e na insero no dia-

    a-dia do povo indgena, inaugurando um novo estilo missionrio, que visava superar o

    etnocentrismo e o colonialismo das antigas misses catlicas (Pacheco de Oliveira & Freire,

    2006)33. O ingresso das Irmzinhas em Koatinemo relatado por Mller34, em um site que

    informa aspectos histricos e contemporneos da vida dos Awaete:

    Na dcada de 1980, por recomendao da antroploga Berta Ribeiro - que estivera entre os Asurini em 1981 -, o Secretariado Nacional do Cimi (Conselho Indigenista Missionrio) conseguiu autorizao do ento presidente da Funai, Cel. Paulo Leal, para que duas missionrias do grupo Irmzinhas de Jesus viessem se estabelecer entre os Asurini do Xingu. Elas desembarcaram na aldeia em meados de 1982, trazendo na bagagem uma longa e bem-sucedida experincia de apoio recuperao dos Tapirap, tambm um povo Tupi, que vive nas proximidades do Rio Araguaia (MT) e que passou por um processo semelhante de depopulao aps o contato. As missionrias no quiseram assumir formalmente nenhuma atividade de assistncia, em substituio s obrigaes da Funai. Na poca, no se formalizou entre elas e a Funai nenhum tipo de convnio, ficando explcito que se tratava de uma ao paralela, de orientao e conhecimento dos problemas do grupo em seu processo de recuperao.(Mller, 2002)

    Minha insero junto aos Awaete como educadora, nos anos de 1991-1993, foi

    mediada pelas Irmzinhas Mayi e Edith Chevalier, missionrias do CIMI, em atendimento a

    uma antiga reinvidicao daquele povo. Vrios fatores contriburam para que minha prtica

    pedaggica desse um salto qualitativo em relao experincia com os Kayap: as

    Irmzinhas dedicavam-se ao conhecimento da lngua Asurini e trabalhamos juntas para a

    socializao da forma escrita na escola. No decorrer desse perodo, construmos um dicionrio

    Asurini- Portugus, com a participao ativa da turma de mulheres na escola, tanto na

    pesquisa junto comunidade, bem como nas ilustraes constantes no dicionrio,

    reproduzindo no papel a arte Asurini de pinturas corporais e em cermica (vide anexos).

    A partir do final dos anos 1980, com o crescente nmero de nascimentos na aldeia e

    uma melhor expectativa de vida entre os Awaete, a situao demogrfica comeou a se

    reverter; em setembro de 2007, de acordo com o censo realizado pela FUNAI, apresentava um 33 Cf. PACHECO DE OLIVEIRA, Joo. & FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A presena indgena na formao do Brasil. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006, tambm disponvel em: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/ColET13_Vias02WEB.pdf 34 Cf. Mller, 2002. Disponvel em:< http://pib.socioambiental.org/pt/povo/asurini-do-xingu> Acessado em 02/06/2007.

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    nmero de 130 indivduos, incluindo crianas e adultos. Atualmente quase todas as mulheres

    casadas tm f