dissertação mestrado - nelson lopes brites

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INSTITUTO SUPERIOR DE PSICOLOGIA APLICADA MESTRADO EM PSICOLOGIA EDUCACIONAL

DISSERTAO DE MESTRADO

Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

Nelson Lopes Brites - N 11304

ORIENTADORA: Professora Doutora Ana Carita Instituto Superior de Psicologia Aplicada

SEMINRIO DIRIGIDO POR: Professora Doutora Margarida Alves Martins Instituto Superior de Psicologia Aplicada

2006

AGRADECIMENTOSGostaria de agradecer a todos aqueles que tornaram este trabalho possvel. Muitas foram as pessoas que, directa ou indirectamente, deram o seu contributo para a realizao desta dissertao. Para todos eles o meu muito obrigado.

Gostaria de agradecer em especial minha orientadora, Professora Doutora Ana Carita, pelo apoio, estmulo, disponibilidade e interesse demonstrados ao longo das vrias fases deste trabalho. Uma especial gratido para com a sua incomensurvel pacincia e pelo incentivo e compreenso.

Professora Doutora Regina Bispo, pela disponibilidade constante com que sempre deu apoio na vertente estatstica deste trabalho.

Professora Doutora Maria Gouveia Pereira, pela abertura, apoio e pelos teis conselhos. Carla Maral pela constante disponibilidade para a partilha de experincias e conhecimentos e pelo incentivo.

Professora Doutora Margarida Alves Martins, Coordenadora do Mestrado, pelas suas sugestes e crticas aquando da orientao do seminrio de investigao.

Ao Professor Doutor Georg Lind, pela sua disponibilidade e apoio.

Professora Doutora Isabel Menezes e Doutora Maria Lusa Mota Ribeiro, pelas prontas sugestes e pela disponibilizao do MJT.

s escolas que acolheram este estudo, e em particular aos seus Conselhos Executivos: Escola Bsica 2/3 Dr. Correia Mateus, Escola Bsica 2/3 D. Dinis, Escola Secundria Afonso Lopes Vieira, Escola Secundria Domingos Sequeira e

Escola Secundria Francisco Rodrigues Lobo. Aos alunos participantes, pelo entusiasmo com que colaboraram.

Ao Joaquim Baptista, pela compreenso, constante incentivo, infinita pacincia e tolerncia. Por ser um Director empenhado na valorizao profissional e pessoal dos seus colaboradores. Pela amizade.

Elisa, prima amiga e confidente, pela constante disponibilidade. Ao tio Adriano, pelo incitamento e pelos seus sempre sbios conselhos.

Ctia, por ser uma irm paciente e sempre disponvel. Pelos exemplos de esforo, persistncia e empenho. Pelo carinho.

Aos meus pais, pelo amor e carinho. Pelo apoio e exemplo. Pelo cuidado.

RESUMOO presente estudo tem como pano de fundo a convico de que um exerccio maduro e consciente da cidadania na idade adulta poder ser determinado pela qualidade das vivncias experimentadas pelo sujeito em clima escolar. De facto, a educao para a cidadania tem sido, de h uns anos para c, uma preocupao constante dos agentes educativos e da sociedade em geral, por ser basilar na aquisio de uma conscincia democrtica, apoiada em critrios de justia. Transversalmente subjacente a este estudo, est a crena de que o modelo da escola como comunidade justa, tal como proposto por Kohlberg, constituir uma oportunidade fulcral para a vivncia da democracia, da justia e dos direitos e deveres cvicos, com incontornveis ganhos para o desenvolvimento scio-moral do indivduo, com todas as consequncias benficas da decorrentes para o prprio indivduo, para os ambientes em que se insere e, inevitavelmente, para a sociedade em geral. Assim, este trabalho assenta em pressupostos tericos provenientes de dois grandes campos: do da Psicologia Social, nomeadamente da investigao na rea das percepes de justia e do da Psicologia do Desenvolvimento, em particular do modelo de escola como comunidade justa. Do primeiro subjaz a ideia de que o modo como os adolescentes avaliam a forma de tratamento dos seus professores poder influenciar os seus comportamentos de cidadania, nomeadamente os de solidariedade e cooperao; do segundo, a ideia de que a vivncia da comunidade justa poder incrementar a qualidade das representaes do sujeito sobre os direitos e deveres cvicos, favorecendo dimenses do comportamento scio-moral que se prendem com o exerccio maduro da cidadania democrtica. Este estudo teve as seguintes finalidades: a) aprofundar o conhecimento da experincia social da cidadania dos estudantes na escola, com base na anlise da representao dos estudantes sobre a justia dos professores e sobre a cidadania em contexto escolar; b) perceber a relao entre as percepes de justia e as representaes acerca da cidadania na escola aferindo, de igual modo, a moderao desta relao pelo ndice de competncia moral, o sexo, idade e ano de escolaridade; c) dar um contributo para o estudo da relao entre cognio e aco. Assim, a hiptese bsica subjacente a este estudo a de que a avaliao do carcter de justia que os alunos fazem dos seus professores poder influenciar as suas representaes e comportamentos de cidadania, e de que essa relao poder ser moderada pela competncia moral, idade, ano de escolaridade e gnero dos sujeitos. A amostra do estudo constituda por 309 estudantes dos 8 e 11 anos de escolaridade, rapazes e raparigas, com idades compreendidas entre 12 e os 21 anos de idade. Utilizaram-se trs instrumentos: um questionrio sobre as percepes de justia do comportamento dos professores (Gouveia-Pereira, 2004), um questionrio sobre o exerccio da cidadania em contexto escolar (Carita; GouveiaPereira, Maral & Brites, 2004) e o MJT- Moral Judgement Test, questionrio de avaliao da competncia moral de Georg Lind na verso portuguesa de Patrcia Bataglia, adaptada por Ribeiro & Menezes (2000).

Os resultados obtidos permitem-nos ter uma imagem mais consistente das representaes dos participantes sobre a justia dos professores e sobre os seus prprios comportamentos de cidadania em contexto escolar e da relao entre as percepes de justia e o exerccio da cidadania. Em primeiro lugar, os resultados deste estudo permitem-nos concluir que de uma forma geral prevalecem as avaliaes favorveis quanto justia da actuao dos professores com base em critrios relacionais e distributivos, sendo mais crtica a avaliao que diz respeito equidade de actuao perante todos os alunos. Os resultados permitem-nos tambm perceber que, de uma forma geral, o ensino ainda se encontra muito centrado no professor, havendo poucas oportunidades para os estudantes intervirem em aspectos relacionados com as dimenses mais acadmicas do currculo. Alis, os estudantes afirmam reconhecer e pr em prtica comportamentos de cooperao e solidariedade na escola, embora o seu alvo preferencial seja claramente os seus pares, existindo um certo distanciamento face ao professor. De igual modo, podemos compreender que a forma como os alunos percepcionam a justia da actuao dos seus professores poder ser determinante para as suas representaes e comportamentos de cidadania na escola e, por extenso, para a criao de condies conducentes a um desenvolvimento scio-moral do sujeito de maior qualidade. As variveis ndice de competncia moral, ano de escolaridade, idade e sexo mostraram exercer efeitos de moderao em alguns aspectos da relao entre as percepes de justia e as representaes acerca da cidadania na escola.

PALAVRAS CHAVE: Justia, Cidadania, Competncia Moral, Comunidade Justa, Adolescncia.

Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

NDICE

PARTE I - INTRODUO ................................................................................... 5 ABERTURA ............................................................................................................ 6 1 - O DESENVOLVIMENTO MORAL: A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO .................................................................................. 10 1.1 Concepes Piagetianas sobre o desenvolvimento moral................................ 11 1.2 O Desenvolvimento moral segundo Kohlberg ................................................ 15 1.3 A promoo do desenvolvimento moral e cvico: a comunidade justa de Kohlberg ................................................................................................................ 21 1.4 tica do cuidado e comunidade justa.............................................................. 23 1.5 Juzos morais e aco moral........................................................................... 24 1.6 Competncia moral........................................................................................ 26 2 - A JUSTIA COMO CAMPO DA MORALIDADE: O CONTRIBUTO DA PSICOLOGIA SOCIAL ......................................................................................... 29 2.1 - Dimenses de justia ...................................................................................... 31 2.1.1 - A justia retributiva ..................................................................................... 31 2.1.2 - A justia comparativa e a teoria da privao relativa.................................... 32 2.1.3 - A justia distributiva.................................................................................... 33 2.1.3.1 - Regras distributivas .................................................................................. 35 2.1.4 - A justia procedimental ............................................................................... 35 2.1.4.1 - Mecanismos subjacentes aos efeitos da justia procedimental................... 39 2.1.4.2 - A relao entre as justias distributiva e procedimental............................. 42 2.1.5 - A justia interaccional ................................................................................. 43 2.2 - Percepo de justia e legitimidade em contexto escolar................................. 45 3 - A CIDADANIA NA ESCOLA.......................................................................... 53 3.1 - Cidadania na escola ........................................................................................ 55 3.1.2 - Educao para a cidadania democrtica ....................................................... 57 3.2 - Comportamentos de cidadania ........................................................................ 60 3.2.1 - Comportamentos de cidadania e percepo de justia .................................. 61 3.2.2 - Competncia moral e comportamentos de cidadania .................................... 64 3.3 - A comunidade justa e a cidadania ................................................................... 65 4- PROBLEMTICA............................................................................................. 70 PARTE II - INVESTIGAO ............................................................................ 79 1. MTODO .......................................................................................................... 80 1.1 Participantes ..................................................................................................... 80 1.2 Instrumento ...................................................................................................... 81 1.3 Procedimentos .................................................................................................. 86 2. RESULTADOS.................................................................................................. 87 2.1 As percepes de justia ................................................................................... 87

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

2.1.1 As diferentes dimenses das percepes de justia......................................... 87 2.1.2 As percepes dos estudantes acerca da justia dos seus professores.............. 88 2.2 A cidadania na escola ....................................................................................... 90 2.2.1 As percepes sobre os direitos de opinio .................................................... 90 2.2.2 As percepes sobre o efectivo exerccio de opinio ...................................... 92 2.2.3 As percepes sobre os deveres de cooperao e solidariedade ...................... 94 2.2.4 As percepes sobre o cumprimento de regras e o exerccio dos deveres de cooperao e solidariedade ..................................................................................... 95 2.3 Relao entre percepo de justia e cidadania na escola e o efeito moderador do ano de escolaridade, idade, gnero e ndice de competncia moral naquela relao.................................................................................................................... 97 2.3.1 A relao das percepes de justia com as representaes dos alunos acerca dos seus direitos de participao, deveres de participao e comportamento real .... 98 2.3.2 Justia e cidadania em contexto escolar: efeito de moderao da competncia moral na relao entre as percepes de justia e as representaes dos alunos acerca dos seus direitos de participao, deveres de participao e comportamento real. ...................................................................................................................... 100 2.3.3 Justia e cidadania em contexto escolar: efeito de moderao da idade dos sujeitos na relao entre as percepes de justia e as representaes dos alunos acerca dos seus direitos de participao, deveres de participao e comportamento real. ...................................................................................................................... 103 2.3.4 Justia e cidadania em contexto escolar: efeito de moderao do ano de escolaridade dos sujeitos na relao entre as percepes de justia e as representaes dos alunos acerca dos seus direitos de participao, deveres de participao e comportamento real. ...................................................................... 105 2.3.5 Justia e cidadania em contexto escolar: efeito de moderao do gnero dos sujeitos na relao entre as percepes de justia e as representaes dos alunos acerca dos seus direitos de participao, deveres de participao e comportamento real. ...................................................................................................................... 107 2.3.6 A relao do ndice de competncia moral com as representaes dos alunos acerca dos seus direitos de participao, deveres de participao e comportamento real....................................................................................................................... 109 3. DISCUSSO E CONCLUSES ...................................................................... 111 3.1- A Experincia Social dos Estudantes nos Domnios da Justia e da Cidadania111 3.1.1 As Percepes de Justia........................................................................... 111 3.1.2- Cidadania na Escola: a Voz dos Estudantes ................................................ 113 3.1.3- Cidadania na Escola: Os Deveres de Cooperao e Solidariedade............... 117 3.2- Contributos para o Aprofundamento da Discusso nos Domnios da Justia e da Cidadania......................................................................................................... 119 3.2.1 O Universo das Avaliaes de Justia ........................................................ 119 3.2.2 Relao entre Percepes de Justia e Comportamentos de Cidadania........ 122 3.3- Relao entre Competncia Moral e Comportamentos de Cidadania.............. 126 4. CONSIDERAES FINAIS............................................................................ 128 REFERNCIAS ................................................................................................... 130 ANEXOS ............................................................................................................. 139

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

NDICE DE QUADROS E FIGURASQuadro 1: Os estdios de desenvolvimento moral de Kohlberg ...............................21 Quadro 2: Trs dimenses de OCB: descries e exemplos.....................................60 Quadro 3: Distribuio da amostra..........................................................................80 Quadro 4:Distribuio dos sujeitos do 11 ano por reas de ensino.........................81 Quadro 5:Anlise factorial dos itens relativos percepo de justia ......................88 Quadro 6: Distribuio percentual da percepo do comportamento dos professores segundo critrios de justia .....................................................................................89 Quadro 7: A Cidadania na escola: distribuio percentual das percepes sobre os direitos de opinio ..................................................................................................90 Quadro 8: A cidadania na escola: distribuio percentual das percepes sobre o exerccio de opinio................................................................................................92 Quadro 9: A cidadania na escola: distribuio percentual das percepes sobre deveres de cooperao e solidariedade ....................................................................94 Quadro 10: A cidadania na escola: distribuio percentual do cumprimento de regras e exerccio dos deveres de cooperao e solidariedade ............................................95 Quadro 11: Relao das percepes de justia com o reconhecimento do direito de opinio sobre o quotidiano escolar ..........................................................................98 Quadro 12: Relao das percepes de justia com o reconhecimento dos deveres de cooperao e solidariedade .....................................................................................99 Quadro 13: Relao das percepes de justia com o cumprimento de regras e exerccio dos deveres de cooperao e solidariedade...............................................99 Quadro 14: Relao das percepes de justia com a participao atravs do exerccio de opinio..............................................................................................100 Quadro 15: Efeito de moderao da competncia moral na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento do direito de opinio sobre o quotidiano escolar ..................................................................................................................101 Quadro 16: Efeito de moderao da competncia moral na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento dos deveres de participao no quotidiano escolar ..................................................................................................................101 Quadro 17: Efeito de moderao da competncia moral na relao entre as percepes de justia e o cumprimento de regras e exerccio dos deveres de cooperao e solidariedade ...................................................................................102 Quadro 18: Efeito de moderao da competncia moral na relao entre as percepes de justia e o exerccio de opinio.......................................................102 Quadro 19: Efeito de moderao da idade na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento do direito de opinio sobre o quotidiano escolar.....................103 Quadro 20: Efeito de moderao da idade na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento dos deveres de participao no quotidiano escolar..................103 Quadro 21: Efeito de moderao da idade na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento do cumprimento de regras e exerccio dos deveres de cooperao e solidariedade......................................................................................................104 Quadro 22: Efeito de moderao da idade na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento dos comportamentos de participao cvica atravs do exerccio de opinio .................................................................................................................104

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

Quadro 23: Efeito de moderao do ano de escolaridade dos sujeitos na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento do direito de opinio sobre o quotidiano escolar.................................................................................................105 Quadro 24: Efeito de moderao do ano de escolaridade dos sujeitos na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento dos deveres de participao no quotidiano escolar.................................................................................................105 Quadro 25: Efeito de moderao do ano de escolaridade dos sujeitos na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento do cumprimento de regras e exerccio dos deveres de cooperao e solidariedade............................................................106 Quadro 26: Efeito de moderao do ano de escolaridade na relao entre as percepes de justia e o exerccio de opinio.......................................................106 Quadro 27: Efeito de moderao do gnero na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento dos comportamentos de participao cvica atravs do exerccio de opinio.............................................................................................................107 Quadro 28: Efeito de moderao do gnero na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento dos deveres de participao no quotidiano escolar..................107 Quadro 29: Efeito de moderao do gnero na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento do cumprimento de regras e exerccio dos deveres de cooperao e solidariedade......................................................................................................108 Quadro 30: Efeito de moderao do gnero na relao entre as percepes de justia e o reconhecimento dos comportamentos de participao cvica atravs do exerccio de opinio.............................................................................................................108 Quadro 31: Relao do ndice de competncia moral com o reconhecimento do direito de opinio sobre o quotidiano escolar ........................................................109 Quadro 32: Relao do ndice de competncia moral com o reconhecimento dos deveres de cooperao e solidariedade ..................................................................109 Quadro 33: Relao do ndice de competncia moral com o cumprimento de regras e exerccio dos deveres de cooperao e solidariedade ..........................................109 Quadro 34: Relao do ndice de competncia moral com a participao atravs do exerccio de opinio..............................................................................................110

Figura 1: A distribuio das percepes de justia ..................................................89 Figura 2: A cidadania na escola: percepes sobre os direitos de opinio ................91 Figura 3: Exerccio do direito de opinio: distribuio dos factores.........................93 Figura 4: Reconhecimento de deveres de cooperao e solidariedade: distribuio dos factores.............................................................................................................94 Figura 5: Responsabilidade social nas regras e exerccio dos deveres de cooperao e solidariedade: distribuio dos factores...................................................................96

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

Parte I INTRODUO

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

ABERTURA

Assumimos que para se implementar uma educao de qualidade necessrio promover o desenvolvimento do indivduo no seu todo, dos pontos de vista fsico, cognitivo, social e moral. A educao no se esgota na simples transmisso de conhecimentos, desempenhando um papel bem mais vasto pelas suas

responsabilidades centrais na formao global de cidados, preparando-os no apenas para o desempenho de uma profisso no futuro, como tambm para o desempenho consciente e esclarecido do seu papel de cidado inserido num meio social.

Como nos diz Perrenoud (1994, cit. por Estrela, 2002, p.49), a aprendizagem (...) prepara, tambm, para l da escolarizao, a viver e a funcionar noutras organizaes, quer seja como trabalhador, como cliente, como doente, como ru, como utilizador, ou a viver noutros grupos restritos. aprendendo o seu ofcio de aluno que se aprende tambm o ofcio de cidado, de actor social ou trabalhador.

No caso do nosso pas, na prpria Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n. 46/86, de 14 de Outubro) consta a clusula de que o sistema educativo tem como misso formar cidados, que traduz o reconhecimento do papel determinante da escola neste mbito. Talvez por esta razo, e pela identificao da necessidade de apostar na formao global dos indivduos, se tenha criado, h j vrios anos, uma nova rea curricular, a chamada Formao Cvica (Decreto-Lei 6/2001, de 18 de Janeiro), e se

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

tenha expressamente sublinhado a educao para a cidadania como dimenso transversal do currculo.

A necessidade de formar cidados conscientes e que possuam os seus critrios morais fundados em raciocnios vlidos tem um carcter premente. De facto, a educao para a cidadania tem sido, de h uns anos para c, uma preocupao constante dos agentes educativos e da sociedade em geral, pelo seu carcter basilar na aquisio de uma conscincia democrtica, apoiada em critrios de justia.

A justia, virtude cvica por excelncia, tal como definida por Kohlberg, parece ser um dos eixos fundamentais da vivncia democrtica e da prpria moralidade. De facto, o autor atribui justia dentica, dos direitos e deveres, um papel nuclear na moralidade e no seu desenvolvimento, a tal ponto que centra as suas intervenes no mbito do desenvolvimento moral no fomento do sentido de justia e da aco justa. De resto, o seu modelo de educao moral assenta na concepo da escola como comunidade justa (Kohlberg, Power & Higgins, 1997), uma comunidade potenciadora de oportunidades de descentrao e de implicao nos processos de tomada de deciso.

A utilizao do modelo de comunidade justa provou estar implicado no desenvolvimento moral dos sujeitos e das instituies em que estes se inserem. , por isso, uma referncia incontornvel quando se pretende averiguar a qualidade moral e cvica do ambiente escolar e o desenvolvimento scio-moral e cvico dos sujeitos.

Por ser nosso propsito averiguarmos alguns dos aspectos qualitativos das vivncias experimentadas pelo sujeito em contexto escolar, consideramos pertinente aferir as representaes dos estudantes acerca dos seus direitos e deveres cvicos, bem como a real assuno de comportamentos condizentes com essas noes.

Como veremos adiante, este nosso interesse assenta na convico de que a vivncia na escola constitui a primeira grande experincia de contacto com a autoridade formal que a criana experiencia (Emler, Ohana & Moscovici, 1987) assumindo, por isso, um carcter basilar na transmisso ao sujeito de informaes preciosas acerca

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

da relao com a autoridade. Os dados destas vivncias revelar-se-o determinantes nas representaes que estes vo construindo acerca da autoridade institucional.

A importncia incontornvel desta relao prende-se com o facto de uma vivncia percepcionada como justa ter, como tem sido provado, implicaes benficas nas atitudes que o sujeito vai elaborando em relao s autoridades institucionais (e.g. Gouveia-Pereira, Vala, Palmonari & Rubini, 2003; Tyler & Lind, 1992), mas tambm nos comportamentos cvicos do sujeito (e.g. Gouveia-Pereira, 2004; Maral, 2005).

Para compreendermos mais adequadamente o fenmeno das avaliaes de justia baseamo-nos nos estudos acerca das percepes de justia, que tm vindo a ser realizados no mbito da Psicologia Social.

Neste mbito, uma das dimenses de justia a que inicialmente se deu mais importncia foi a distributiva, na qual se estuda a importncia das transaces, como so os casos das recompensas e castigos. Neste tipo de percepo de justia o sujeito fundamenta as suas avaliaes nos ganhos e perdas, ou seja, h um enfoque nos resultados obtidos. So exemplo disto as notas e avaliaes.

Posteriormente foi identificada uma outra dimenso, atinente aos processos, aos procedimentos utilizados: a justia procedimental. Desvia-se aqui o enfoque dos resultados para os meios de chegar a esses resultados relevando, nomeadamente, a possibilidade de o sujeito participar no processo de tomada de deciso. Decorrente dos estudos nesta rea veio a surgir, mais tarde, uma proposta de nova dimenso: a da justia interaccional. Umbilicalmente ligada procedimental, a justia interaccional destaca a importncia da qualidade do tratamento utilizado no processo de tomada de deciso. Todavia, a autonomia formal desta dimenso no tem recebido confirmao em alguns estudos realizados, sendo mais aceite a ideia de que uma das vertentes da justia procedimental (e.g. Clayton & Opotow, 2003; Tyler & Bies 1990; Tyler & Blader, 2000).

nossa inteno contribuir para o conhecimento mais aprofundado da ocorrncia destes processos de avaliao de justia na escola, da sua dinmica e da possvel8

Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

ligao com algumas manifestaes da cidadania escolar. Assim, tentaremos aferir a questo da especificidade ou indiferenciao das dimenses de justia referidas, avaliando a salincia relativa de cada uma delas. Procuraremos tambm compreender o carcter das avaliaes de justia, analisando o seu sentido favorvel ou desfavorvel. Como pano de fundo estar omnipresente a hiptese de que o modo como os adolescentes avaliam a forma como so tratados pelos seus professores poder influenciar as suas percepes e comportamentos de cidadania.

Assim, na primeira parte do trabalho - a da reviso terica - comearemos por fazer uma sntese de duas concepes que consideramos fundamentais para a compreenso do desenvolvimento da moralidade no mbito da psicologia do desenvolvimento: a de Piaget e a de Kohlberg. Como j vimos, as concepes deste ltimo serviro de pano de fundo para todo este trabalho, especialmente a sua concepo de comunidade justa. Falaremos tambm da competncia moral, definindo-a e justificando a sua relevncia no mbito da problemtica em estudo.

Seguidamente, encetaremos um priplo pelas consideraes da psicologia social acerca das percepes de justia, apresentando os tipos de justia considerados no mbito desta disciplina e os mecanismos que com elas esto relacionados. Apesar de, como veremos, grande parte da investigao nesta temtica ter vindo a ser feita em contexto organizacional, apresentaremos os escassos dados obtidos em estudos em contexto escolar de que tivemos conhecimento.

Para encerrar a reviso terica abordaremos alguns dos aspectos relacionados com a cidadania em contexto escolar, e a sua relao com outras variveis.

Na segunda parte do trabalho, a da investigao emprica, comearemos por apresentar detalhadamente a amostra, o instrumento, e os procedimentos utilizados. Seguem-se a apresentao e discusso dos resultados e as concluses.

Terminaremos tecendo algumas consideraes finais, com base nas reflexes que pudemos estabelecer com base no nosso estudo, apresentando algumas propostas para futuros estudos.

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

1 - O DESENVOLVIMENTO MORAL: A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

Growth cannot take place on the rocky soil of indifference. The development of justice and the development of care are best nurtured on the rich soil of community in wich attentive role-taking has become a norm. Power & Makogon, 1995.

No nosso entender existem, incontornavelmente, duas vises a reter para a compreenso da complexa rea que o desenvolvimento moral. Como veremos, na viso dos dois grandes tericos Jean Piaget e Lawrence Kohlberg, o

desenvolvimento moral indissocivel de outras formas de desenvolvimento, das quais salientamos o desenvolvimento cognitivo e social.

1.1 Concepes Piagetianas sobre o desenvolvimento moralA concepo de Piaget sobre o desenvolvimento moral assenta no pressuposto de que existe um paralelismo entre desenvolvimento cognitivo e desenvolvimento social. O autor apresentou a tese de que o julgamento e aco morais dependem do amadurecimento biolgico de estruturas mentais e da qualidade da interaco do

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

indivduo com o meio, isto , que o julgamento e comportamento morais dependem da ocorrncia de maturaes aos nveis cognitivo e biopsicossocial. Com base em diversos estudos apresentados no livro O juzo moral na criana (1932), o autor distinguiu uma moralidade prtica ou efectiva (juzo com obrigao moral) de uma moralidade terica ou verbal (juzo e raciocnio moral sem obrigao, dissociados da aco) (Matta, 2001). medida que vai havendo um desenvolvimento cognitivo vo ocorrendo tambm evolues na moralidade- podendo-se indexar este desenvolvimento ao desenvolvimento de estruturais cognitivas que permitam raciocnios mais complexos.

Piaget, pelo seu contributo no mbito do desenvolvimento cognitivo, ao compreender como se evolui dos actos reflexos para o raciocnio hipottico-dedutivo, abriu caminho para o entendimento das bases do desenvolvimento moral.

A condio primria da vida moral , para Piaget (1994/32), a necessidade de afecto recproco. A moralidade , assim, uma forma de regular as aces entre os indivduos, e deve ser fundamentada em princpios de igualdade de direitos bsicos e respeito pelo outro. Como ele nos diz, toda a moral consiste num sistema de regras, e a essncia de toda a moralidade deve ser procurada no respeito que o indivduo adquire por essas regras (Piaget, 1994/32).

Os seus estudos levaram-no a concluir que a criana evolui de uma moral heternoma (at aos 8/9 anos) para uma moral autnoma (a partir dos 11 anos). Enquanto que a primeira se caracterizava por ser uma moral de constrangimento, obedincia e respeito unilateral (baseava-se no respeito unvoco pelos adultos, no medo do castigo e no respeito autoridade) a segunda caracteriza-se pela cooperao e respeito mtuo que lhe esto subjacentes, o que s possvel baseando-se na igualdade, na reciprocidade e no acordo (Piaget, 1994/32). De uma criana autnoma diz-se que j interiorizou as normas e as convenes sociais. Estas duas formas de moralidade no foram consideradas estdios morais por Piaget. O autor preferiu chamar-lhe fases morais.

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Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

Como referimos atrs, para Piaget a moral consiste num sistema de regras. Ora, a maioria dessas regras no so elaboradas unicamente pelas crianas, so transmitidas pelos adultos, fruto de uma elaborao feita por sucessivas geraes. O autor interessou-se pelo estudo das regras utilizadas no jogo das bolinhas, um jogo social simples realizado entre crianas.

Neste contexto o autor procurou estudar dois grupos de fenmenos: 1) a prtica das regras- a forma pela qual as crianas de diferentes idades as aplicam efectivamente e, 2) a conscincia da regra- a maneira pela qual se apresentam criana os carcteres obrigatrio, sagrado ou decisrio, a heteronomia ou autonomia inerente s regras do jogo (Piaget, 1994/32).

Os resultados obtidos por estes estudos permitiram-lhe concluir que, do ponto de vista da prtica das regras, podemos distinguir quatro fases sucessivas:

1) fase motora e individual- a criana age em funo dos seus prprios desejos e hbitos motores, ainda no interiorizou as regras colectivas- est presente at cerca dos dois anos; 2) fase egocntrica- as crianas, ainda que em grupo e embora possam j conhecer e empregar as regras, agem cada uma para si, sem cuidar da codificao das regras; 3) fase da cooperao emergente- por volta dos sete/oito anos a criana comea a procurar vencer os seus companheiros por todos os meios possveis, embora ainda sem controlo mtuo e uso de regras unificadas; 4) fase da codificao das regras- o cdigo das regras a seguir por todos conhecido e os regulamentos so feitos com mincia (as crianas manifestam aqui sobretudo elementos de moralidade autnoma)- aparece por volta dos onze/doze anos.

J no que respeita conscincia da regra, o autor identificou trs fases. Na primeira a da regra motoraa regra ainda no coerciva, no percepcionada como

obrigatria, puramente motora. Esta fase est presente no incio da fase egocntrica. A segunda fase da conscincia da regra -a da regra coerciva- aparece no decurso da fase egocntrica, mantendo-se at primeira metade da fase da13

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cooperao e caracteriza-se por uma conscincia de que a regra sagrada e intangvel, de origem adulta e de essncia imutvel, ou seja, uma concepo heternoma. Desta forma, qualquer proposta de modificao considerada como transgresso. Finalmente, a partir do final da fase da cooperao aparece a terceira fase da conscincia da regra, em que esta considerada como uma lei imposta pelo consentimento mtuo, de respeito mtuo podendo, no entanto, ser alterada se esse for o consenso geral a fase da regra racional e passa a dominar uma moralidade de carcter autnomo.

Assim sendo, e como foi dito atrs, a criana vai construindo valores morais que se fundamentam no respeito mtuo e que a conduzem de uma heteronomia para uma autonomia moral, de um egocentrismo para um perspectivismo. Do realismo a criana evolui para o relativismo moral- capacidade para avaliar actos, situaes, circunstncias, intenes e motivos na formulao de juzos morais. de salientar que s na adolescncia se manifesta uma verdadeira autonomia moral, caracterizada pela reciprocidade, cooperao e respeito mtuo.

Piaget prope outra importante distino entre crianas com moralidade heternoma e autnoma: a que diz respeito ao sentido de justia. Aqui convm distinguir entre dois tipos de justia: a justia distributiva, que tem a ver com a administrao de bens, honras e recompensas, e a justia retributiva, relacionada com a administrao de castigos, penas e sanes.

No que diz respeito justia distributiva, a criana heternoma confunde justia com autoridade dos mais velhos: at aos 7/8 anos est bem aquilo que o adulto fizer porque ele mais velho e por isso ele que sabe o que deve fazer, ainda que a criana possa, por vezes, considerar alguns tratamentos como injustos. J no campo da justia retributiva, esta criana considera que quem se comporta mal no pode ficar sem receber castigo, admitindo a sano como perfeitamente legtima e necessria, por constituir o princpio da moralidade. Posteriormente (8-11 anos) h um desenvolvimento progressivo da autonomia, ocorrendo o primado da igualdade sobre a autoridade. Na justia retributiva, as sanes por reciprocidade tomam o lugar das sanes expiatrias e a ideia de retaliao cede lugar ideia de restituio. Por fim (a partir dos 11-12 anos) aparece a fase da justia distributiva por equidade,14

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em que o sentido de justia se refina e a igualdade se percepciona como algo pertinente. Aqui j pode ser compreendida a necessidade eventual de utilizar um tratamento diferenciado para, assim, se conseguir uma maior equidade. Nesta fase aparece tambm uma nova concepo de justia retributiva em que a sano considerada intil, sendo que o importante fazer compreender ao culpado que a sua aco imoral (Piaget, 1994/32).

1.2 O Desenvolvimento moral segundo KohlbergKohlberg props uma classificao mais sistemtica e elaborada dos estdios conceptuais de desenvolvimento moral baseando-se em respostas a escolhas em situaes hipotticas denominadas dilemas morais (Kohlberg, 1976; 1984).

Tal como Piaget, Kohlberg considera que o desenvolvimento do juzo moral se baseia no desenvolvimento do sentido de justia nos indivduos, ou nas operaes de justia que eles so capazes de efectuar em cada momento do seu desenvolvimento (Kohlberg, 1976; 1984). Quanto mais um juzo moral se basear em princpios de universalidade e de reversibilidade (analisaremos estes conceitos mais adiante), mais avanado ou justo ser.

Kohlberg utilizou dilemas morais -dos quais o mais famoso o de Heinz e o farmacutico- para estudar o desenvolvimento moral. Da anlise dos resultados destes dilemas Kohlberg pde identificar trs nveis de desenvolvimento moral, cada um deles comportando ainda dois estdios qualitativamente distintos de raciocnio moral. Assim, este autor apresentou um sistema de estdios progressivamente mais complexos e de sequncia invarivel. Esse sistema constitudo por 6 estdios agrupados em 3 categorias globais: a pr-convencional, com o estdio da moralidade heternoma e o do individualismo e troca instrumental; a convencional, com estdio da conformidade com as aspiraes mtuas, relaes interpessoais, e o do sistema social e conscincia; e a ps-convencional, com o estdio social e direitos individuais e o dos princpios ticos universais (Kohlberg, 1976; 1984).

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Cada um dos estdios reflecte uma determinada perspectiva scio-moral, que compreende uma determinada orientao moral e um modo de hierarquizar diversos valores morais em confronto. Em cada um destes estdios existem determinadas operaes de justia (reflexes ou consideraes quanto a questes importantes no mbito da justia), a saber: justia por igualdade, igualdade em termos de direitos e deveres; justia por universalidade, extenso desses direitos e deveres a um maior ou menor nmero de pessoas; justia por equidade, que compreende as atenuantes ou agravantes na concretizao de tais direitos ou deveres; justia por reciprocidade, em funo de procedimentos feitos anteriormente; justia por tomada de perspectiva prescritiva, talvez a mais complexa, que se refere ao balanceamento de pontos de vista possveis no sentido de ter em conta a perspectiva de todas as pessoas envolvidas no dilema com vista escolha da soluo mais equilibrada e reversvel.

Segundo Kohlberg, com base nas suas investigaes feitas com a populao americana, o nvel pr-convencional o nvel da maioria das crianas com menos de nove anos, embora possa ser encontrado tambm junto de adolescentes e adultos. O nvel convencional o alcanado pela maioria dos adolescentes e adultos. O nvel ps-convencional atingido apenas por uma minoria, que geralmente tem mais de vinte e cinco anos (Colby & Kohlberg, 1987 cit. in Loureno, 2002). A comparao dos resultados destes estudos feita com estudos noutros pases demonstrou no haver diferenas significativas, pelo que estes resultados podem ser, embora com cautela, generalizveis.

Vejamos ento o que caracteriza e distingue os diversos nveis e estdios de moralidade.

O nvel de moralidade pr-convencional corresponde, de uma forma geral, moralidade heternoma proposta por Piaget. Desta forma, os sujeitos neste nvel regem-se segundo normas e expectativas sociais que lhes so extrnsecas. A aco orientada para evitar o castigo, ou para satisfazer desejos e interesses pessoais e individuais. Na anlise da moralidade dos indivduos neste estdio frequente encontrar noes como o castigo, o realismo moral, o pragmatismo e o individualismo.

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Este nvel tem como primeiro estdio o da moral do castigo: orientado para a obedincia e para a punio, a moralidade consiste em obedecer aos mais velhos e em evitar o castigo. portanto uma perspectiva egocntrica e heternoma. Cognitivamente este estdio consistente com o pensamento pr-operatrio. A justia rege-se por critrios externos, fsicos e materiais.

O segundo estdio o da moral do interesse. Nele as aces so justas e correctas se permitem satisfazer desejos, interesses e necessidades do prprio. A justia e a moralidade so orientadas por preocupaes hedonistas e pragmticas j que se age de modo a satisfazer interesses e necessidades permitindo que os outros faam o mesmo (Kohlberg, 1976). Continua a manifestar uma tendncia heternoma, uma vez que a aco orientada para a obedincia como forma de evitar os problemas. A justia neste segundo estdio tem uma orientao moral calculista, instrumental, pragmtica, hedonista e individualista. Na justia por igualdade h a convico de que todos tm direito a satisfazer desejos individuais. Na justia por universalidade os desvios norma e lei so condenveis pois podem trazer consequncias negativas para o indivduo que comete a transgresso. Na justia por reciprocidade h a percepo de uma troca: deve fazer-se a aco pois mais tarde podemos precisar que nos faam uma aco. J h operaes de tomada de perspectiva e por equidade, embora sejam baseados em termos concretos e individuais.

No nvel de moralidade convencional o indivduo j interiorizou as normas e expectativas sociais. Os princpios orientadores baseiam-se nas normas sociais e morais vigentes. um indivduo que respeita a ordem estabelecida, que age e pensa de acordo com o que socialmente tido como vlido e aceitvel. um nvel de moralidade interpessoal, onde se procura ser-se bem visto aos olhos dos outros para poder merecer o seu respeito e considerao. Por basear-se nas convenes da sociedade este nvel chamado de convencional.

Este nvel tem como primeiro estdio o da moral do corao. Aparece pela primeira vez uma moralidade interpessoal em que o indivduo j se preocupa com normas e convenes, embora a moralidade se baseie numa esteretipo de uma boa pessoa, congruente com o status quo. De facto, a moralidade presente neste estdio tem como objectivo a manuteno da confiana interpessoal e a aprovao social.17

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Um outro aspecto de interesse neste estdio a capacidade para vestir a pele do outro e imaginar como se gostaria de ser tratado se estivssemos no seu lugar- a isto se chama a regra de ouro.

No campo das operaes de justia por igualdade h a convico de que todos devem ocupar o seu papel na sociedade e ser pessoas decentes. Na justia por universalidade procura-se limitar os desvios e impedir o caos social. A justia por reciprocidade deste estdio deixa de basear-se em trocas para inserir elementos mediadores, de que so exemplo o mrito e o demrito, ao passo que a justia por tomada de perspectiva tende a apoiar-se em termos ideais, quase idlicos. J na justia por equidade passam a ser admitidas excepes, desde que praticadas com boa inteno.

O quarto estdio, segundo deste nvel, o da chamada moral da lei e est essencialmente orientado para o ponto de vista da lei ou das normas e cdigos socialmente aceites e partilhados. A norma e a lei so considerados critrios ltimos de justia e moralidade, dir-se-ia que so como que uma conscincia colectiva. Ao contrrio do que acontece no terceiro estdio, aqui as solues so racionais e equilibradas. Apesar disto a razo continua a ser de tipo institucional.

Na operao de justia igualitria existe a ideia de que todos so iguais perante a lei. Qualquer desvio lei dever ser condenado, com vista manuteno da integridade e consistncia do sistema, o que constitui a operao de justia universal. No que respeita reciprocidade esta deve manifestar-se do indivduo para com a sociedade mas tambm desta para com o indivduo. A equidade admite excepes lei em circunstncias especiais e no caso de no a pr em causa. A tomada de perspectiva engloba j uma percepo balanceada dos diversos pontos de vista possveis que leva procura de uma soluo justa e equilibrada.

O nvel de moralidade ps-convencional aparece geralmente em pessoas com mais de vinte e cinco anos, relativiza as normas e convenes sociais vigentes para dar lugar a princpios ticos universais como o direito vida, a liberdade e a justia. O indivduo compreende as normas na sua relatividade: embora estas sirvam para salvaguardar o respeito dos princpios atrs referidos por vezes poder haver18

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necessidade de as transpor ou mesmo desobedecer para o respeito de tais princpios. Aqui seria pertinente estabelecer uma associao com os imperativos categricos de Immanuel Kant (1995/1786).

Dentro deste nvel aparece em primeiro lugar o quinto estdio definido por Kohlberg: o da moral do relativismo da lei. Sendo um estdio de moralidade ps-convencional, o indivduo tende a relativizar as normas j que comea a perceber que estas so regras de aco que podem entrar em conflito com os princpios morais. Alm disso a aco orientada para a procura do bem para o maior nmero de indivduos.

Na operao de justia por igualdade, h a noo de que todos os indivduos so iguais no que diz respeito aos direitos fundamentais. A universalidade assenta no pressuposto de que para garantir a manuteno desses direitos os desvios lei so legtimos. A reciprocidade assenta na reversibilidade entre direitos e deveres: o indivduo no pode reclamar direitos que no reconhece nos outros, toda a aco dever ter como pressuposto a noo de que tambm seria correcta se praticada por outro indivduo. Na equidade existe novamente uma ideia de excepo para todas as situaes que no garantem os princpios fundamentais. Por fim, na tomada de perspectiva, existe um balanceamento ideal por forma a que a soluo escolhida resista aos controlos da universalidade (poderia ser aplicada a todos e em quaisquer circunstncias) e da reversibilidade.

Aparece-nos ento, por fim, o sexto estdio, ou o da moral da razo universal. Kohlberg acabou por, no final da sua vida, desistir deste estdio enquanto realidade emprica, mantendo-o como ideal supremo do desenvolvimento moral.

Assim sendo, este estdio apresenta-se-nos como aquele em que existe uma conscincia clara e assumida da normatividade, universalidade e reversibilidade dos princpios ticos (Loureno, 2002). Enquanto que o quinto estdio era mais orientado para a utilidade social, se bem que do maior nmero possvel de pessoas, aqui o princpio da justia passa frente do princpio da utilidade social. um estdio orientado para princpios ticos universais, prescritivos e reversveis. Assenta no ponto de vista de uma terceira pessoa que sempre respeitaria os critrios de universalidade e reversibilidade.19

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Desta forma, o dever uma espcie de compulso interna e necessidade moral: o indivduo pratica-o porque sabe e sente que justo faz-lo. Aqui Kohlberg rebuscou uma velha ideia Socrtica: quem conhece o bem, escolhe e pratica o bem.

Nas operaes de justia, este indivduo coordenaria sempre as operaes de justia por igualdade, reciprocidade, equidade, universalidade e de tomada de perspectiva de forma a salvaguardar os direitos humanos fundamentais, vendo sempre a pessoa como um fim, nunca como um meio (Loureno, 2002).

Estudos mais recentes (cit. in de la Caba, 1993) mostraram que cada estdio moral se caracterizaria por uma forma prpria de definir os elementos de um problema social assim como pela obteno das chaves mais importantes para o resolver (Rest, 1975 cit. por la Caba, 1993). Vrias investigaes demonstraram que necessrio separar domnios e estudar conceitos ou valores especficos em contextos diversos em vez de propr um estdio geral (Turiel, Smetana & Nucci, 1988; Enesco & del Olmo, 1989 cit. por de la Caba, 1993).

No Quadro 1 da pgina seguinte podemos observar uma sntese das caractersticas de cada um dos estdios de desenvolvimento moral propostos por Kohlberg.

Mas Kohlberg no se interessou apenas pelo estudo do desenvolvimento moral. Preocupou-se tambm com a promoo desse desenvolvimento, nomeadamente desenvolvendo o sentido de aco justa e de justia. De resto, como vimos, a justia uma ideia central no pensamento de Kohlberg, j que a considerava a virtude cvica por excelncia.

Uma das estratgias fundamentais para a promoo do desenvolvimento moral era a utilizao de dilemas morais na aula. Contudo, ao longo do tempo, Kohlberg foi-se dando conta de que a utilidade dos dilemas era limitada por se tratarem de situaes hipotticas. De facto, ao longo do tempo o autor foi percebendo que, mais importante do que participar em grupos de discusso, seria a experincia real da vivncia numa comunidade justa.

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Quadro 1: Os estdios de desenvolvimento moral de Kohlberg

BASE DO JULGAMENTOPr-convencional: os valores morais assentam em acontecimentos externos, quasefsicos, nas ms aces, ou em necessidades praticamente fsicas, em vez de nas pessoas ou em padres. Convencional: os valores morais residem no desempenho de bons ou maus papis, na manuteno da ordem convencional, e no ir de encontro s expectativas dos outros. Ps-convencional: os valores morais derivam de princpios que podem ser aplicados universalmente.

ESTDIO DE DESENVOLVIMENTOEstdio 1

CARACTERSTICAS DO ESTDIOOrientao para a obedincia e para o castigo; deferncia egocntrica para com o poder ou prestgio superior, ou uma tendncia para evitar problemas; responsabilidade objectiva. Orientao ingenuamente egosta; as aces correctas so aquelas que satisfazem as prprias necessidades individuais e ocasionalmente as dos outros; conscincia de que o significado das coisas depende das necessidades e perspectivas de cada pessoa; igualitarismo ingnuo e orientao para as trocas e para a reciprocidade. Orientao para a obteno de aprovao e para o agradar e auxiliar os outros; conformidade para com as imagens estereotipadas de "maioria" ou de comportamento natural ao papel desempenhado, e julgamentos consoante as intenes. Orientao para realizar o dever prprio, para mostrar respeito pelas figuras de autoridade e para manter a ordem social dada para o bem individual; considerao das expectativas que os outros tm a seu respeito Orientao contratual-legalista; reconhecimento de um elemento arbitrrio nas normas das expectativas por uma questo de acordo; dever definido em termos de contracto, recusa geral em violar a vontade ou os direitos dos outros, ou os desejos e o bem estar da maioria. Orientao para uma tomada de conscincia ou para princpios, no apenas para as regras sociais impostas, mas para princpios ligados s escolhas que apelam para uma universalidade e consistncia lgicas; a conscincia um agente director, juntamente com o respeito e confiana mtuos.

Estdio 2

Estdio 3

Estdio 4

Estdio 5

Estdio 6

Extrado de: Sprinthall, 1994, p. 247

1.3 A promoo do desenvolvimento moral e cvico: a comunidade justa de KohlbergKohlberg considerava que a promoo do desenvolvimento moral em escolas e prises teria pouco impacto se as pessoas nela envolvidas estivessem inseridas em comunidades pouco justas ou atmosferas pouco morais. Para o autor, se se quisesse

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educar moralmente os indivduos dever-se-ia mudar a atmosfera moral das instituies em que este se insere (Kohlberg, L., Power, F. & Higgins, A., 1997).

Baseado na perspectiva sociolgica de Durkheim e na sua prpria teoria, Kohlberg implementou em vrias escolas um mtodo que congrega o mtodo da discusso de dilemas e a participao democrtica em toda a vida da escola, integrando o sentido de justia e dos direitos individuais e o sentido de comunidade e da vida em grupo. Nas escolas onde este mtodo foi implementado conseguiu-se discutir e resolver, atravs da participao directa de toda a comunidade escolar, problemas graves como a indisciplina e o consumo de droga. A metodologia empregue consistia em procurar encontrar a soluo mais justa para os problemas, atravs da discusso entre todos os membros da escola onde, no final, todos se obrigavam a seguir a deciso tomada. Desta forma procurava-se a justia, praticava-se a igualdade e exigia-se responsabilidade pela comunidade (Loureno, 2002).

Estas escolas assentavam em trs pilares fundamentais: uma estrutura democrtica, sentido de comunidade e nfase na igualdade (Higgins, 1991 cit. in Loureno, 2002). Assim, ao invs de criar escolas que ensinassem o esprito da cidadania, procurava-se que as escolas fossem, elas mesmas, comunidades justas e modelos de cidadania (Kohlberg, Power & Higgins, 1997). Os estudos realizados demonstraram haver diferenas significativas entre estas escolas e as escolas que mantiveram um funcionamento normal no que diz respeito ao desenvolvimento de uma cultura moral.

Por dar tanta relevncia procura de equilbrio entre justia e comunidade, pensamento e aco, razo e afecto, autonomia e intimidade, a abordagem da comunidade justa de Kohlberg e a sua perspectiva de educao democrtica provaram visar no s o desenvolvimento moral da pessoa como tambm o seu desenvolvimento integral.

Pela sua abrangncia, este modelo constitui uma referncia fundamental quando se pretende averiguar a qualidade moral e cvica da escola e a sua capacidade de favorecer o desenvolvimento social e moral dos estudantes, tornando-os cidados empenhados e civicamente comprometidos.

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1.4 tica do cuidado e comunidade justaCarol Gilligan apresentou em 1977 (cit. por Power & Makogon, 1995) uma crtica s formulaes Kohlberguianas, concluindo que estas apresentavam um certo preconceito em desfavor das mulheres, ao apoiar-se numa amostra longitudinal masculina e ao considerar a moralidade do cuidado como um fenmeno algo imaturo (pertencente ao estdio 3), sobrevalorizando a orientao para a justia.

Assim, segundo Gilligan (cit. in Loureno, 2002), existe uma orientao moral tpicamente feminina, que se distingue da orientao para a justia, tipicamente masculina.

Segundo esta mesma autora, a orientao para o cuidado tenta resolver os conflitos de interesse de modo a que ningum saia magoado da situao, realando o valor da benevolncia, intimidade e relao.

No entanto, com a implementao por Kohlberg da educao moral pela comunidade justa, as crticas de Gilligan baixaram de tom, uma vez que este tipo de comunidades se centrava no cuidado.

Segundo Power e Makogon (1995), cuidar envolve uma resposta sensitiva ao outro que baseada numa ateno comprometida e numa abertura experincia do outro.

Para o cuidado se tornar moral o seu lado emocional deve ser complementado com uma compreenso do outro, que pode ser atingida atravs da tomada de perspectiva.

Tal como Kohlberg e Gilligan concluram, a principal diferena entre cuidado e justia que so geralmente praticados em diferentes esferas da vida: o cuidado acontece com mais facilidade no mundo privado da famlia e dos amigos, a justia est mais vocacionada para a esfera pblica da poltica e do trabalho, sendo uma virtude de ordem social impessoal, caracterizada pelo sentido do justo.

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Power, Higgins e Kohlberg (1989, cit. in Power & Makogon, 1995) resumiram de uma forma simples a distino entre estas duas dimenses afirmando que o cuidado procede da conscincia de uma relao, que traz consigo um especial sentido de responsabilidade pelo bem-estar do outro, e que a justia provem de uma conscincia do outro como um indivduo, com uma obrigao de respeitar os direitos dos outros.

1.5 Juzos morais e aco moralEstudar as disparidades entre o que o indivduo privilegia e diz por um lado, e o que ele de facto faz por outro tem sido um tema de preocupao na investigao nesta rea. Pretende-se saber se o carcter da aco sugerida pelo sujeito durante o dilogo est em consonncia com as aces que ele pratica. O que expectvel que haja comportamentos morais significativamente diferentes de acordo com nveis de desenvolvimento moral tambm diferentes. Estudos realizados mostraram que existe uma relao directa entre o nvel de raciocnio moral avaliado e o comportamento demonstrado (Haan, 1991; Sprinthall & Sprinthall, 1993, entre outros).

Vrios estudos referidos por Carita (2002) apoiaram-se na experincia de Milgram sobre a obedincia verificando que a aplicao de choques elctricos mais recusada por indivduos com nveis mais elevados de raciocnio moral. Esses estudos parecem consolidar a ideia de que existe uma clara relao entre juzo moral e aco que vai aumentando com o desenvolvimento da maturidade moral, existindo um progressivo sentido de dever medida que vai ocorrendo a internalizao da obrigao moral.

Rest (1979, cit. por Carita, 2002) afirmou que a relao entre o juzo moral e o comportamento do indivduo bastante complexa, estando bastante ligada aos conceitos de justia do indivduo. No entanto no s a justia que medeia esta relao, h a interferncia de muitos outros factores que complexificam a relao, nomeadamente: a) o reconhecimento ou no pelo sujeito de que a situao envolve um problema moral;

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b) a informao sobre a situao que o sujeito tem disponvel; c) a existncia de uma situao de urgncia ou presso psicolgica conducentes utilizao de automatismos de forma pouco ponderada; d) a intromisso de automatismos ou processos inconscientes inibidores do pensamento reflexivo; e) a possibilidade de falsas representaes se intrometerem na informao processada no juzo moral; f) a capacidade e possibilidade de o sujeito levar por diante a aco; g) a prevalncia de valores morais sobre outro tipo de valores que o sujeito possa possuir.

Blasi (1980 cit. in Sprinthall & Sprinthall, 1993) efectuou uma reviso de mais de oitenta estudos sobre a relao entre o raciocnio moral e a aco moral e concluiu que, em termos gerais, existe um forte suporte para a perspectiva de que estes esto, de facto, inter-relacionados. Ficou evidente que os indivduos de estdios mais elevados se comportam de forma mais consistente e altrusta e resistem mais presso da multido.

Estas evidncias podero ter a ver com o facto de estes indivduos serem os que mais facilmente transformam os seus juzos denticos (juzos de dever sem assuno de responsabilidade de fazer) em juzos de responsabilidade, em que existe um compromisso interno percepcionado pelo indivduo (Kohlberg, 1984; Kohlberg & Candee, 1984 cit. in Loureno, 2002). Um dado ainda a reter que a consistncia entre aco moral e raciocnio moral aumenta com o desenvolvimento, ou seja, esta tese mais consistente quanto mais se evolui no estdio de desenvolvimento moral. Apesar de muitas vezes o indivduo conhecer procedimentos melhores, se o seu nvel de desenvolvimento estiver num estdio mais baixo ele tender a pr em prtica aces menos vlidas uma vez que as suas concepes nesta rea so algo limitadas. Pelo contrrio, indivduos que apresentem nveis de desenvolvimento psconvencional tendero a pr em prtica aces consistentes com o seu nvel de moralidade uma vez que j compreenderam de forma adequada o ponto de vista dos princpios ticos universalisveis e reversveis e, assim, j possuem uma intuio da forma ideal de bem (Kohlberg, 1980 cit. in Loureno, 2002). Isto leva-nos a perceber a assero de Kohlberg de que quem conhece o bem pratica o bem.25

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Todavia, consensual o reconhecimento da complexidade entre competncia moral e aco moral no campo da cognio moral, havendo diversos autores que afirmam existir uma grande variabilidade que se manifesta de forma relevante no funcionamento natural, mudana do contexto ou dos contedos sobre os quais se exerce a competncia interpessoal (Carita, 2002). No campo da cognio social os estudos indicam que em contexto natural os indivduos tendem a apresentar nveis mais baixos de expresso de competncias sciocognitivas do que em contextos hipotticos no naturais em situao de entrevista reflexiva (Carita, 2002).

1.6 Competncia moralLawrence Kohlberg estudou a competncia de julgamento moral do sujeito, que definiu como a capacidade para fazer julgamentos e decises que so morais (baseados em princpios internos) e para agir de acordo com esses mesmos julgamentos (Kohlberg, 1964 cit. in Lind, 1999).

Segundo Lind (1999) um dos princpios morais centrais das democracias modernas a resoluo de problemas comportamentais ou dilemas atravs de negociaes e debate de ideias e no pelo uso do poder, fora ou violncia. No entanto, para isso, necessrio que os intervenientes tenham a capacidade de ouvir a posio dos outros ainda que eles sejam opositores ou mesmo inimigos.

Assim sendo, se queremos encontrar uma base moral para a resoluo de um conflito, devemos ser capazes de compreender no apenas os argumentos dos indivduos que suportam a nossa opinio mas tambm a daqueles que se opem a ela. Esta competncia determinante para a participao numa sociedade democrtica e pluralista (Habermas, 1985, 1990; Kohlberg, 1984; Lind, 1987; Power et al., 1989 cit. in Lind, 1999).

No entanto nem todos os tipos de consistncia de julgamentos indicam competncia de julgamento moral, podendo por vezes estar relacionados com outros factores, nomeadamente a rigidez e a intransigncia moral.

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Refira-se que nem sempre a determinao do julgamento de uma pessoa por aspectos ou princpios morais acompanhada por uma forte posio a favor ou contra determinada soluo do dilema. A moralidade e a implicao do indivduo no se excluem uma outra mas tambm no esto necessariamente implicadas.

Existem factores afectivos e cognitivos no comportamento moral, na sequncia do que foi estabelecido por Piaget (1976 cit. in Lind, 1999), que referiu que os factores afectivos se prendiam com a energia e os cognitivos com a estrutura, sendo inseparveis, e por Kohlberg (1958 cit. in Lind, 1999), que afirmou que o seu modelo de estgios de desenvolvimento moral constitua uma descrio dos aspectos afectivos e cognitivos do comportamento moral. Na sequncia disto pode-se afirmar que a descrio completa do comportamento moral envolve os ideais morais e princpios que o fundamentam e as capacidades cognitivas que o indivduo tem quando aplica esses mesmos ideais e princpios no seu processo de tomada de deciso moral.

Segundo Lind (1999) no h necessariamente uma ligao entre as dimenses cognitiva e afectiva do raciocnio moral: embora muitos dos indivduos prefiram argumentos catalogveis nos estdios morais mais elevados, apenas aqueles com estruturas cognitivas mais complexas apresentam consistncia ou reversibilidade, demonstrando capacidade para reconhecer o mrito moral de pontos de vista divergentes dos seus.

De uma forma geral os indivduos tendem a eleger argumentos morais sofisticados quando esto em causa factores favorveis sua prpria posio sobre o assunto. Este facto poder estar relacionado com uma identificao com a sociedade e regras da democracia como no caso da responsabilidade civil, direitos do cidado e justia. No entanto, quando lhes pedido para avaliarem uma opinio contrria sua que a importncia das estruturas cognitivas se torna determinante: o indivduo pode defender formas universais de justia mas ser incapaz de as usar de uma forma consistente, especialmente quando h que avaliar a posio moral do adversrio revelando um baixo ndice de competncia; por outro lado um indivduo pode apresentar uma intransigncia moral inabalvel mas us-la de forma consistente para27

Percepes de Justia, Cidadania e Competncia Moral na Escola

julgar posies morais contrrias, apresentando assim um ndice alto (Lind, 1999, p.6).

A abordagem da comunidade justa mostra-nos que Kohlberg no se preocupou apenas com o desenvolvimento moral mas tambm com a educao moral, enquanto promotora do desenvolvimento do sentido de justia e da aco justa. Este modelo mostra-nos, assim, que a educao moral e a educao cvica so indissociveis.

Vimos que a abordagem da comunidade justa visa proporcionar ao indivduo experincias que transcendem a simples discusso moral, como so a

responsabilidade real nos processos de tomada de deciso e a participao numa comunidade percepcionada como justa. Indesmentvel parece ser tambm a importncia da moral da responsabilidade nos relacionamentos o to controverso tpico do cuidado. Estas experincias, como veremos adiante, levam a diferentes formas de experienciar a justia.

Consideramos por isso pertinente aprofundar o conhecimento acerca da ocorrncia deste tipo de experincias na escola, a salincia relativa de cada um deles e o contributo que concedem qualidade moral e cvica do ambiente escolar e, por conseguinte, ao desenvolvimento scio-moral e cvico dos indivduos.

Dada a importncia da justia para a compreenso da moralidade, consideramos relevante explorar o universo das representaes de justia no campo de aco em que ela realmente faz sentido: a sociedade onde o indivduo estabelece a sua relao com os outros. Deste modo, passamos a apresentar o contributo que tem sido dado pela psicologia social para um conhecimento mais amplo da rea da moralidade, designadamente no campo das percepes de justia.

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2 - A JUSTIA COMO CAMPO DA MORALIDADE: O CONTRIBUTO DA PSICOLOGIA SOCIAL

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The original goal of social justice research was to demonstrate the power of justice judgements to shape peoples thoughts, feelings and actions.(...)

Information about justice is central to peoples situations. Tyler & Blader, 2003 evaluations of social

Diversos autores (e.g. Emler & Reicher, 1995, cit. por Gouveia Pereira & Pires, 1999) caracterizam a vida em sociedade como uma constante e contnua relao com as autoridades formais e os sistemas institucionais. Como fcil de perceber, a adequabilidade desse relacionamento determina a consonncia com as regras prestabelecidas e com as expectativas que caem sobre o sujeito.

A pesquisa demonstrou que a criana se vai apropriando de vrios domnios do conhecimento social, que incluem a moralidade (justia, direitos, bem- estar comum), conveno social e aspectos psicolgicos (e.g. Smetana, Killen & Turiel, 1991).

Deste modo, a criana baseia as suas relaes interpessoais em critrios de justia, direitos e bem estar comum (Smetana, Killen & Turiel, 1991), revelando uma tendncia para optar por critrios de justia e direitos, preterindo aspectos como os

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interesses pessoais. Segundo estes autores, estes conceitos esto j presentes a meio da infncia e so postos em prtica pela criana numa grande variedade de situaes.

No entanto, este fenmeno no ocorre na criana de forma irreflectida. De facto, existem estudos que indicam que a criana capaz de pensar criticamente acerca das instituies sociais, opinando acerca de assuntos como o que uma lei justa e quais os limites da obrigatoriedade de um cidado obedecer lei (Helwig & Jasiobedzka, 2001).

Para este estudo importa focalizar a nossa ateno na percepo de justia e nos comportamentos com ela relacionados. De seguida, apresentaremos os principais modelos sobre a percepo de justia e as suas dimenses no quadro da Psicologia Social, tendo sempre como pressuposto o facto da esmagadora maioria da investigao nesta rea a que tivemos acesso ter sido efectuada em contexto no escolar.

2.1 - Dimenses de justia

2.1.1 - A justia retributivaPara um correcto e harmonioso funcionamento dos grupos, organizaes e da prpria sociedade, existem normas e leis, que regulam o comportamento de acordo com os parmetros considerados adequados e que permitem a manuteno do bem-estar geral. Contudo, por vezes, h desvios em relao a essas normas, pelo que necessrio instituir todo um sistema de sanes.

A justia retributiva estuda a reaco das pessoas face quebra de regras, a percepo da necessidade de sano, sua severidade e forma de execuo. Deriva da concepo dos sujeitos de que o simples restaurar da equidade no uma resposta adequada quebra de regras, antes deve ser reforado por algum tipo de sano face ao sujeito que perpetrou o desrespeito pelas convenes (c.f. Tyler & Smith, 1998).31

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Este uma dimenso de justia ainda pouco estudada e, contudo, apresenta-se como uma rea de pesquisa pertinente e em desenvolvimento. Quisemos aqui apenas enunci-la como uma das dimenses de justia estudadas, embora no a tomemos como objecto de estudo neste trabalho.

2.1.2 - A justia comparativa e a teoria da privao relativaA teoria da privao relativa surgiu a partir dos estudos feitos no mbito das cincias sociais durante a segunda guerra mundial (Mertton & Kitt, 1950 cit. por Tyler & Smith, 1998; Stouffer et al., 1949, Idem). As concluses destas anlises permitiram afirmar que a satisfao no apenas uma reaco simples qualidade objectiva dos ganhos obtidos mas sim uma comparao dos ganhos obtidos pelo sujeito com os ganhos dos outros sujeitos. Por outras palavras, este modelo explica o que o sujeito julga merecer em relao aos outros.

Deste modo, esta teoria permite perceber a razo pela qual os sujeitos com menos ganhos manifestam muitas vezes satisfao com os seus baixos ganhos enquanto, frequentemente, os sujeitos beneficiados se mostram insatisfeitos apesar de terem acesso a um nvel de recursos muito elevado. Esta teoria permite tambm explicar a ocorrncia de sublevaes, bem como quem so os sujeitos que tm mais tendncia a participar em protestos e rebelies (Gurin & Epps, 1975 cit. por Tyler & Smith, 1998; Pettigrew, 1972, Idem), j que normalmente so os membros do grupo com mais ganhos que tendem a fazer comparaes com membros de outros grupos mais beneficiados (Tyler & Moghaddam, 1994, Idem). Isto acontece porque os membros mais prejudicados tendem mais facilmente a comparar-se com outros membros na sua condio (amigos, familiares e at mesmo com a sua experincia e expectativas pessoais) do que com os sujeitos mais beneficiados, o que leva a que no se sintam prejudicados.

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Assim, a privao relativa como que um julgamento acerca da situao do indivduo em comparao com um referente com mais ganhos, geralmente associado a sentimentos de raiva e frustrao.

Contudo, a teoria da privao relativa revelou-se incompleta ao no permitir explicar que a privao est necessariamente implicada com aspectos de injustia.

Um dos interesses desta teoria para o nosso estudo o facto de sublinhar a importncia dos processos comparativos, to relevantes para o sujeito que vive em sociedade. Como veremos adiante este processo tem um papel especialmente relevante na adolescncia, perodo vincadamente marcado pela confrontao e comparao com os pares nos pontos de vista psicolgico e social.

Conceptualmente parece fazer sentido a ocorrncia de processos comparativos nas avaliaes de justia. De facto do conhecimento comum que o indivduo em sociedade estabelece comparaes com os outros indivduos. De resto, as teorias da privao relativa e da equidade preconizam, como vimos, a ideia de que o sujeito compara os seus ganhos com os dos seus pares. Parece assim existir uma dimenso comparativa de tipo transversal, que se relaciona com as dimenses distributiva e procedimental (Gouveia-Pereira, 2004; Maral, 2005), sugerindo que os sujeitos comparam os seus ganhos com os dos seus pares, recorrendo de igual modo comparao para avaliar os procedimentos. Este um aspecto da percepo de justia que, no nosso entender, no tem merecido a devida ateno. Na segunda parte deste trabalho voltaremos a esta assunto para avaliar a pertinncia desta concepo.

2.1.3 - A justia distributivaO conceito de justia distributiva foi introduzido por Homans em 1961, na sua teoria da troca, tendo sido desenvolvido por Adams, em 1965, com a formulao da teoria da equidade. A pesquisa desta fase inicial incidia quase exclusivamente sobre a investigao na rea da iniquidade. De facto, a pesquisa inicial fazia-se quase unicamente no campo das atitudes e comportamentos negativos, enquanto que a

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investigao

mais recente se foca mais em conceitos como confiana,

responsabilidade, motivao, etc. (Tyler & Blader, 2003).

Na base deste conceito de justia est o pressuposto de que os sujeitos formam a sua opinio sobre a justia a partir dos resultados recebidos, ou seja, h uma nfase nos fins para a avaliao de justia. No se trata de uma simples avaliao dos ganhos recebidos. Trata-se, isso sim, de fazer uma comparao entre os resultados obtidos pelo sujeito e os inputs com que contribuiu, bem como com os resultados e inputs dos outros sujeitos (Tyler & Smith, 1998).

Deste modo, quando h rcios iguais, h a percepo de equidade, com a consequente satisfao dos actores envolvidos. Quando o sujeito recebe rcios superiores aos seus congneres tende a experimentar um sentimento de culpa. No caso de os rcios recebidos pelo sujeito serem inferiores aos dos seus pares este tende a desenvolver um sentimento de raiva (Adams, 1965).

Trabalhos vrios (c.f. Rego, 1999) desenvolvidos em contexto organizacional demonstraram que em geral os indivduos que percepcionam a injustia tendem a manifestar insatisfao, pior desempenho individual e/ou organizacional, turn-over e absentismo e menos comportamentos extra-papel.

Sendo assim, para uma correcta compreenso da justia distributiva, h que ter em conta que a percepo de justia ou injustia advm da comparao face a valores de referncia (em geral de outros sujeitos) e no do valor absoluto, muito embora a comparao no ocorra apenas em comparao com os outros sujeitos mas, tambm, com valores idealizados pelo prprio sujeito. Vrios estudos (e.g. Walster, Walster & Berscheid, 1978, cit. in Tyler & Smith, 1998) permitiram concluir que os sujeitos que percepcionam os seus ganhos como justos esto normalmente mais satisfeitos com eles que os sujeitos com ganhos superiores ao que consideram justo. Por esta razo, os sujeitos tendem a deixar as organizaes caracterizadas pela iniquidade para ingressarem em organizaes nas quais os ganhos so distribudos de forma justa, mesmo que isso possa vir a representar uma reduo dos seus ganhos pessoais (Schmitt & Marwell, 1972, Idem).

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Alm disso, o sujeito tende a percepcionar de modo distinto os resultados que so desfavorveis, no to vantajosos quanto seria desejvel, dos resultados injustos, que so inferiores ao referente (Rego, 1999).

Em jeito de remate, como afirma Tom Tyler (2000), os julgamentos sobre a justia distributiva so, em ltima instncia, um factor importante na criao e manuteno da paz.

2.1.3.1 - Regras distributivas Como vimos, numa fase inicial a pesquisa focou-se quase exclusivamente na equidade, em grande parte influenciada pelos trabalhos de Adams e seguidores. No entanto, com o incremento do interesse e pesquisa nesta rea, rapidamente comearam a surgir contributos que sugeriam a importncia de outras dimenses que se prendiam em grande parte com os diferentes contextos e condies subjacentes. Deste modo, Deutsch (1975, cit. por Rego, 1999) props a existncia de trs tipos de regras distributivas:

- A equidade, que se baseia no pressuposto de que ao atribuir mais recompensas aos sujeitos que se esforam mais eles tendem a incrementar o seu contributo; - A igualdade, conducente manuteno de relaes sociais funcionais, assenta na ideia que uma relao social pressupe a existncia de sentimentos de respeito e estima mtuos; - A necessidade, condio de base para a promoo do desenvolvimento e bem-estar pessoais, assenta na acepo de que o indivduo que tem uma necessidade determinante para a manuteno do seu bem-estar ou mesmo da sua sobrevivncia, deve ter acesso aos recursos que lhe permitem satisfazer essa necessidade, mesmo que esse processo no seja equitativo ou igualitrio.

2.1.4 - A justia procedimentalComo facilmente se depreende com base no j exposto, as pesquisas iniciais na rea da percepo de justia baseavam-se quase exclusivamente na ideia de que os

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sentimentos e comportamentos do sujeito nas suas interaces sociais derivavam da percepo de justia dos seus ganhos em relao aos outros sujeitos (Tyler & Blade, 2003).

Posteriormente a pesquisa veio a estabelecer a ideia de que a justia procedimental exerce uma influncia determinante nos comportamentos do sujeito. Os primeiros investigadores a falar desta dimenso foram Thibaut & Walker em 1975, a quem se juntou posteriormente Leventhal.

Diversos estudos (cf. Tyler, Degoey & Smith, 1996) permitiram concluir que os sentimentos e aces na interaco social so afectados pela justia percepcionada nos procedimentos de tomada de deciso que os sujeitos vivenciam na sua interaco com os outros. Quando o sujeito percepciona justia de tratamento apresentar-se- mais predisposto a aceitar as decises decorrentes dos procedimentos, encarar os procedimentos com satisfao, estar em consonncia com regras grupais e leis, permanecer como membro do grupo e ajudar o grupo, mesmo que isso lhe traga custos.

Vrios estudos (cit. in Tyler, 2000) que procuraram explorar o tema da legitimidade da autoridade sugerem que o sujeito decide quo legtima a autoridade e em que grau deve obedecer a essa autoridade e s suas decises com base no carcter de justia dos seus procedimentos conducentes tomada de deciso, o que sugere que a utilizao de procedimentos justos na tomada de deciso o factor determinante para o desenvolvimento, manuteno e incremento da noo de legitimidade das regras e autoridades. Os sujeitos parecem avaliar as decises da autoridade formal na base da neutralidade, no respeito do indivduo como pessoa e do seu status no grupo e na sua prpria capacidade de considerar a autoridade como digna de confiana (cf. Sousa & Vala, 2002). Num mbito mais alargado, como resultado deste fenmeno, os cidados parecem acatar mais facilmente polticas com as quais discordam quando sentem que os procedimentos do governo que levam a essas decises so justos (Ebreo, Linn & Vining, 1996 cit. por Tyler, 2000; Tyler & Mitchell, 1994, idem). Isto parece acontecer porque a justia dos procedimentos leva ao incremento da ideia de legitimidade da autoridade (Tyler, 1997), o que resulta na internalizao, por parte do sujeito, da ideia de que a autoridade deve ser obedecida de forma voluntria, pois36

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a aceitao da autoridade e das suas decises constitui um imperativo individual. Como afirma Tyler (2000), a utilizao de procedimentos justos determinante no desenvolvimento e manuteno de valores internos de base conducentes deferncia voluntria face autoridade e a uma forma de agir pr-social por parte do indivduo.

A justia procedimental encoraja tambm as pessoas a aceitar decises desfavorveis e promove o compromisso, lealdade e esforo a favor do grupo. De resto, a pesquisa sugere que o indivduo tende a cooperar de forma voluntria com o grupo quando sente que o processo de tomada de deciso do grupo est a ser efectuado de forma justa (e.g. Bies, Martin & Brockner, 1993 cit. in Tyler, 2000; Tyler, 1999, idem).

Vrios estudos (cit. in Tyler, 2000) explicaram-nos este fenmeno afirmando que os procedimentos justos parecem encorajar a cooperao voluntria com o grupo porque esse tipo de procedimentos leva a um sentimento de identificao, lealdade e compromisso para com o grupo.

Como facilmente se concluir em funo destes dados, esta dimenso de justia tem a ver com os procedimentos adoptados que antecedem os resultados ou decises havendo, por isso, uma nfase nos meios.

H dois elementos determinantes na percepo de justia procedimental: o factor voz, que representa o controlo de processo, a oportunidade que o sujeito tem de expor o seu ponto de vista antes da deciso; e o factor escolha, que representa o controlo da deciso por parte do sujeito, a oportunidade que tem de a influenciar. Segundo Thibaut e Walker, que propuseram este modelo, na presena de um ou ambos destes elementos o sujeito tender a percepcionar a deciso como mais justa, uma vez que ele tambm foi parte auscultada no processo, sentindo-se mais facilmente implicado nela. Todavia, as pesquisas mostram que o controlo de processo suficiente para se percepcionar uma deciso como justa. Os sujeitos que tm acesso ao controlo da deciso no apresentam uma maior satisfao do que os que possuem um controlo de processo (Houlden, La Tour, Walker & Thibaut, 1978 cit. por Azzi, 1994; Lind & Tyler, 1988; Tyler, 1987, 1989 cit. por Azzi, 1994). A importncia do factor voz tal que este exerce uma enorme influncia na percepo de justia, mesmo que a oportunidade para o seu exerccio ocorra j37

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depois da deciso estar tomada. Isto parece acontecer porque o indivduo percepciona a oportunidade para manifestar a sua opinio como um corolrio do respeito interpessoal exercido sobre si (Tyler & Blader, 2003).

Em 1980 Leventhal (Rego, 1999; Theotnio & Vala, 1999) definiu um conjunto mais alargado de regras procedimentais, isto , procedimentos determinantes na percepo de justia. So elas: - Consistncia- procedimentos consistentes no tempo e para os diferentes indivduos; - Imparcialidade- o decisor no deve ter interesse na deciso, devendo tambm considerar todos os pontos de vista; - Preciso da informao- a deciso deve basear-se em informao exacta e rigorosa; - Adaptabilidade- deve existir a possibilidade de recorrer das decises; - Representatividade- todos os indivduos implicados devem ser tidos em conta no processo de deciso; - Moralidade- os procedimentos devem estar de acordo com as normas ticas e morais.

Mais tarde Tyler & Lind (1992 cit. por Tyler, Degoey & Smith, 1996) identificaram mais alguns elementos determinantes na percepo acerca da justia procedimental em trs tipos de julgamentos acerca das autoridades: a neutralidade, ou seja a percepo do grau de imparcialidade, honestidade e fundamentao das decises; a confiana, que assenta na percepo da preocupao dos decisores com critrios de benevolncia e de necessidade daqueles que sero alvo da deciso; e o reconhecimento de estatuto, que tem a ver com a gentileza, dignidade e respeito demonstrados a cada elemento do grupo.

Os estudos de Van den Bos e colaboradores (1996) permitiram acrescentar que o que considerado justo depende, em parte, das expectativas criadas, isto , do cenrio que os sujeitos criam, que pode afectar o processo de avaliao da justia dos procedimentos. Para mais, os estudos deste autor acentuam tambm a possibilidade de a regra da consistncia ser, por si s, mais importante que o simples factor voz, ao afectar mais fortemente as percepes de justia dos sujeitos e mesmo a sua perfomance.

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De facto, a presena do factor voz no sempre determinante de percepes de justia favorveis dos sujeitos j que, quando o factor voz leva repetidamente a ganhos desfavorveis o sujeito poder comear a sentir-se frustrado com o seu direito voz - num processo chamado efeito de frustrao - podendo mesmo vir a reagir mais negativamente a procedimentos baseados no direito voz do que a procedimentos onde no ouvido (cf. Van den Bos et al., 1996, pp. 425). Este fenmeno parece ocorrer quando: a) o decisor est a operar de modo visivelmente enviesado face ao sujeito; b) os factores que do um carcter justo ao procedimento so to notoriamente fracos que o sujeito poder considerar um procedimento com factor voz menos justo que um que no o implique.

2.1.4.1 - Mecanismos subjacentes aos efeitos da justia procedimental Existem vrios modelos explicativos dos mecanismos subjacentes aos efeitos da justia procedimental, a saber:

a) O modelo Instrumental (ou do auto-interesse) Este modelo baseia-se na teoria da troca social e defende que as pessoas do importncia justia procedimental porque se preocupam com os resultados e, por isso, tentam defender ou maximizar os seus prprios interesses j que, assim, podero obter resultados mais favorveis no futuro. Deste modo, os sujeitos acabam por aceitar perdas a curto-prazo na esperana de que isso lhes venha a garantir ganhos futuros (Cropanzano & Greenberg, 1997 cit. por Rego, 1999).

b) O modelo do valor grupal Nem todos os tericos acataram a ideia defendida pelo modelo instrumental de que as percepes de justia se aliceram em aspectos instrumentais. Por isso, em 1988, Lind e Tyler (Tyler, Degoey & Smith, 1996) propuseram o modelo de valor grupal que sugere que os procedimentos so avaliados pela sua implicao para os valores do grupo e pela informao que podem transmitir acerca da forma como o sujeito visto pelo grupo.

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Este modelo assenta no pressuposto de que os procedimentos justos exercidos pelas autoridades comunicam informao relevante s pessoas afectadas por esses procedimentos, uma vez que os procedimentos e tratamentos justos transmitem informao acerca do grau em que o indivduo um membro respeitado do grupo e acerca do grau em que ele pode sentir orgulho na sua condio de membro do grupo.

Deste modo, os indivduos esto empenhados em maximizar os seus interesses pessoais quando interagem com os outros. Consequentemente, as pessoas so sensveis aos esforos dos outros para controlar o seu comportamento e s relutantemente se submetem ao controlo externo, como no caso do controlo exercido por uma autoridade terceira.

O modelo de valor grupal sugere que um t