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Capitulo I

UNVIERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEMauro da Silva de Carvalho

A Saudade do Rio e o Amor ao Pblico: Almas consumistas e Almas Rebeldes da Lapa do Desterro

MESTRADO DE PSICOLOGIA EM ESTUDOS DA SUBJETIVIDADE

Orientador: Lus Antnio dos Santos Baptista

NITERI-RJ2006

MAURO DA SILVA DE CARVALHO

A SAUDADE DO RIO E O AMOR AO PBLICO: Almas Consumistas e Almas Rebeldes da Lapa do Desterro

Dissertao apresentada Banca examinadora da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Ttulo de Mestre em Psicologia. rea de concentrao: Estudo da Subjetividade. Sob orientao do Professor Doutor Lus Antnio dos Santos Baptista.

NITERI-RJ2006

Mauro da Silva de Carvalho

A Saudade do Rio e o Amor ao Pblico: Almas Consumistas e Almas Rebeldes da Lapa do Desterro

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado de Psicologia da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Psicologia. rea de concentrao: Estudos da Subjetividade

Aprovada em setembro de 2006

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________Prof. Doutor Lus Antnio dos Santos Baptista - OrientadorUniversidade Federal Fluminense - UFF

____________________________________________Prof(a) Dr. Jos NovaesUniversidade Federal Fluminense - UFF

______________________________________________Prof(a). Dra. Maria Helena Navas ZamoraPontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro PUC/RJ

Niteri2006

DEDICATRIA

Aos meus pais Seu apoio e carinho incondicionais foram fundamentais nesta longa caminhada

AGRADECIMENTOS

A Lus Antnio do Santos Baptista orientador, professor e amigo, que abraou este projeto acreditando na sua viabilidade. A Luiza Borges Theodoro Minha Gatinha de olhos doces e brilhantes, que com seu amor, carinho e compreenso tornaram mais tranqilos os dias conturbados deste curso. Aos colegas da Turma de Mestrado 2004 Pela intensidade das discusses e contribuies inestimveis nas disciplinas, alm do cuidado e incentivo ao desenvolvimento desta dissertao. A todos amigos e colegas - Que torceram e se alegraram com esta nova jornada.

... Ousa! A cidade o quer... Compreendes as possibilidades encantadoras que podemos ler em todos os olhos, no ritmo de todos os corpos que florescem na cidade... Se soubesses! A felicidade um bem que se atinge aqui... Porque a cidade inocente no seu instinto de pecado....Ribeiro Couto: A Cidade do Vicio e da Graa: Vagabundagem pelo Rio noturno (1921).

SUMRIO

INTRODUO..................................................................................................................10

PREAMBULO. ..................................................................................................................23

CAPTULO I.......................................................................................................................36

I.I A ALMA VICIOSA DA LAPA DO DESTERRO ........................................................36

I.II A ALMA DECADNTE: LUGAR DOS MALDITOS............................................... 55

I.III A ALMA NOSTGICA: A CIDADE OBJETO........................................................ 70

CAPTULO II: A CIDADE DE FRAGMENTOS NAS TRAMAS DE UMA CIDADE CAMBIANTE.90

O REBOCO, O VARAL E O RESTAURANTE JAPONS.............................................. 91

CORES DA LAPA OPERRIA......................................................................................... 97

O AMOR DO (ESPAO) PBLICO CARTOGRAFIAS E MAPAS URBANOS.......102

PEQUENOS APONTAMENTAMENTOS DE UMA BREVE CONCLUSO.............. 108

BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................112

RESUMO

Desde o incio da dcada de 90 vem se instituindo na Lapa o renascimento da vida boemia que marcara o bairro no incio do sc. XX. Com as obras de revitalizao da Prefeitura Municipal (restaurao do antigo Aqueduto, reurbanizao da Rua do Lavradio, reabertura do Circo Voador, dentre outros) e o incentivo instalao de estabelecimento de lazer e entretenimento (bares, boates, casas de show, etc), o bairro famoso pela boemia do incio do sculo XX, que por muito tempo fora tratado como maldito - sofrendo dcadas de abandono, passa a ser reintegrado a cidade como patrimnio cultural. Ao investigarmos as implicaes de tais polticas no deparamos com a instituio de uma esttica urbana voltada para o consumo, que visa transformar os passados do bairro e de seus personagens em objetos de fetiche do capitalismo contemporneo. A cidade que surge sob essa tica deixa de ser um lugar de consumo para se tornar, ela prpria, objeto de consumo. Neste processo as tenses das suas mltiplas histrias, presente nas mltiplas narrativas urbanas, e as vidas infames dos seus personagens marginalizados tomam outras roupagens. Despidos de seu carter marginal, higienizados pela esttica capitalista contempornea, estes so reintegrados ao espao atravs da idealizao da imagem da bomia e do malandro como personificao da essncia da alma carioca. Esta dissertao analisa as implicaes polticas e subjetivas contidas nestes processos de restaurao, que visam moldar as singularidades dos lugares em bens de consumo cultural, A cidade que da uma metrpole onde as contingncias e tenses do espao pblico so substitudas pela cristalizao no presente de uma imagem idealizada do passado

emerge transforma as narrativas da tradio popular e suas diferentes formas de narrar memria urbana. Visa-se, portanto, analisar a histria e o cotidiano do bairro recolhendo nesta trajetria os inmeros passados esquecidos ou apagados pelos urbanistas e patrimonialistas, dando-lhe usos que apontem para a construo de diferentes possibilidades e para a formulao de cidades onde as singularidades dos lugares e as alteridades do cotidiano possam gerar sensibilidades e subjetividades capazes de romper como o aturdimento do sujeito contemporneo.

Palavras chave: Cidade, Subjetividade, Espao Pblico.

ABSTRACT

97

INTRODUO :

Qual de vs j passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vs j sentiu o mistrio, o sono, o vcio, as idias de cada bairro? Joo do Rio A Rua

As ruas tm alma nos afirma o cronista Joo do Rio, mas de que so feitas as almas das ruas? Ser a alma da Barra da Tijuca uma alma emergente, de novos ricos, veloz, vertical, confinada atrs de grades de condomnios? A alma de Copacabana a dos velhos e da solido das quitinetes? A alma dos morros e favelas criminosa, repleta de samba? De que feita a alma das ruas? No ano de 1990 foi inaugurada com grande alarde a restaurao do Largo da Lapa. As obras realizadas visavam restituir as caractersticas coloniais da construo. Esse processo, alm de propor um novo tratamento paisagstico no entorno da praa, inclua uma srie de medidas que visavam criar um espao de lazer cultural, atravs da recuperao e preservao de reas do centro antigo da cidade[footnoteRef:2], iniciando o que foi chamado de renascimento da vida bomia da Lapa. [2: O Programa Corredor Cultural, criado em 1984, visava preservar reas do Centro histrico como a Lapa, Cinelndia, Largo de So Francisco, regio do Saara e Praa Quinze, esquadrinhando a cidade em quatro eixos de preservao, sendo a Lapa includa no corredor Lapa- Cinelndia. As premissas bsicas deste projeto consistem em propostas de revitalizao para o resgate das referncias sociais, culturais e arquitetnicas, estimulando renovao urbana, respeitando a memria da cidade com a proibio da descaracterizao do conjunto arquitetnico. Alm deste projeto, ainda ativo, outras obras de revitalizao, mantendo as mesmas premissas dos corredores vm sendo implantadas no bairro como parte do projeto municipal chamado Rio Cidade. ]

Aps anos de abandono, o largo e o antigo aqueduto restaurados passavam a emanar a aura cultural que tornava nobre a degradao das redondezas, impregnando o bairro com o fetichismo capitalista que transformava a cidade em um objeto de consumo. Esta seduo consumista alimentada pelas memrias e histrias urbanas que, resgatadas, so moldadas em formatos atraentes e belos. Formas pasteurizadas, que misturam fachadas e corpos, digeridos e transmutados em formas sensveis ao toque dos turistas - cidados globalizados vidos por novidades. Formas cheias de saudosismos e nostalgia, que impregnam o bairro e transformam tudo que tocam em mercadorias cobiadas por consumidores de memrias. Mas a mesma estratgia que reduz a eventualidade da contingncia do urbano, na busca de um efeito esttico necessrio[footnoteRef:3] produz seu paradoxo, extrapola os limites da morfologia dos urbanistas e governantes, perverte s boas intenes do capitalismo, recriam ruas, praas, vontades e desejos a partir dos escombros e vazios deixados pela urbanizao. [3: Se antes o reconhecimento da qualidade esttica de um objeto tinha relao com a sua inutilidade presumida, a partir de agora ele mudou sua razo de ser: a funo do objeto consagra seu valor esttico porque traduz a beleza retrospectiva de um savor-faire. Jeudy: 2006, p 109]

A cidade que surge deste processo de conservao da arquitetura de diferentes pocas a cidade patrimonializada, que busca na preservao da histria manter viva a as origens constituintes da alma carioca, ameaada de desaparecer com a destruio de antigas formas de habitar o urbano e da necessidade de novos espaos.Segundo Jeudy(2006. p14):

A conservao patrimonial se encarrega do depsito das lembranas e nos libera do peso das responsabilidades infligidas memria. A profuso de locais de memria oferece uma garantia real contra o esquecimento.

A esse comentrio soma-se ao de Aggio(1998, p5):

A reedio do passado no presente decorre de um mecanismo de defesa, atravs do qual os homens temerosos de enfrentar o novo e lanar-se em tarefas inditas voltam-se ao passado. A identificao do passado, por sua vez, prpria do historicismo que, concebendo o curso do mundo como um arquivo de fatos petrificados, produz uma representao contnua e linear da histria.

A partir destes fragmentos cabe-nos perguntar que cidade era essa que os projetos de conservao buscavam preservar? De forma bem ampla podemos afirmar que esta cidade resgatada corresponde uma imagem, uma representao cuja nica finalidade manter vivo um estilo de vida representado pelo mobilirio urbano, elevado a patrimnio, em via de desaparecer no rastro do progresso, que avanava, inelutavelmente, em direo a um futuro utpico que nunca chegava. Este movimento comea a tomar forma a partir da constatao de que os novos prdios comerciais que comeavam a surgir na regio central a partir da dcada de 1980, com suas fachadas lisas e espelhadas, no tinham rosto, eram impessoais, no convidavam ao convvio e fabulao; s rpida permanncia. A histria expressa pelo patrimnio, neste sentido, assume um carter de objeto, que, segundo a inteno dos urbanistas, seria capaz, por si s, de expressar a evoluo das formas de viver e habitar, reconstruindo os diferentes momentos da evoluo urbana, num movimento linear e evolutivo: a histria das origens, dos monumentos e bustos, que contam os grandes feitos dos heris da humanidade e suas inabalveis determinaes; patrimnio quanto espelho capaz refletir os ideais da grandeza humana. Exposta numa vitrine[footnoteRef:4] a antiga escultura de madeira que marcava a entrada de uma aldeia africana assumia um ar ameaador e repugnante aos visitantes. A figura ameaadora de dentes escancarados e feies ameaadoras contrastavam com os inmeros pregos presos em seu corpo. Cada pedao de metal fixado, uma lembrana: casamentos, juras, relaes comerciais, promessas... Em cada prego um fragmento que narra vida dos moradores da pequena aldeia perdida na imensido do continente africano. Segundo a lenda que cerca o antigo objeto, se as promessas concretizadas no ato de espetar o dolo fossem quebradas, o dolo ganharia vida e roubaria a alma daqueles que descumprissem os pactos firmados. [4: Exposio de arte africana realizada no CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil no ano de 2005.]

O objeto resgatado, exposto na vitrine da exposio, produzia nos visitantes ares de repugnncia e admirao. Suas feies grotescas, cheias de pregos, tornaram-se arte e as promessas e juras pregadas em seu corpo, adornos que completavam o conjunto da obra. O visitante que circulavam pelos corredores da exposio de arte africana paravam em frente vitrine, admiravam a figura talhada em madeira, liam a pequena placa informativa e continuavam seu passeio pela exposio de arte africana. Seu encantamento vinha das pequenas e desconexas narrativas de uma antiga aldeia transformadas em objeto de venerao. Longe do cotidiano da aldeia os pactos perderam sua fora e o dolo sua magia: tornara-se apenas num pedao de madeira entalhada. Sua fora agora era o valor histrico de um passado esgotado, transformado em era uma vez de uma pequena aldeia tornada extica. Assim como no dolo de madeira, a histria dos patrimonialistas afirmava a idealizao do passado transformado em imagem/objeto, elementos que do forma alma etrea do urbano, fonte que mantm viva as lembranas, desprezando outras formas e possibilidades de leitura do passado. Cidade museu[footnoteRef:5], onde as possibilidades de construo de outras narrativas atravs das experincias cotidianas; da insurgncia da memria; dos fragmentos urbanos; dos passados negados ou esquecidos que deveriam ser evitados. [5: Jeudy : 2006]

Tradies, formas de sociabilidade e prticas sociais, ou seja, tudo aquilo que no era digno de ser representado deveria ser esquecido ou reformatado em texturas mais agradveis. Estas novas prticas advindas do processo de purificao das tradies chama-se cultura, esta forma dura, cristalizada que aprisiona os sentidos referindo-se a si mesma, isolada de qualquer possibilidade de questionamentos ou mudanas que lhe dem movimento e vitalidade. Em outras palavras, instaura-se uma viso de cultura enquanto essncia da vida urbana que, aliada a verve patrimonialista, garante a permanncia do passado. O que est em jogo nos projetos de preservao a manuteno das memrias urbanas, representadas na idealizao do patrimnio e de uma determinada concepo cultural. Este processo ao mesmo tempo em que busca garantir a transmissibilidade para geraes futuras, transforma o passado num espetculo teatralizado; numa priso onde o sentido dado a priori, desvinculado de qualquer acidente capaz de produzir fabulaes. A ordem patrimonial transmite de forma maquinal o puro em si, produz Verdades, inventa realidades, reifica a busca das origens, aprisiona o presente num momento sem futuro, fruto da perptua atualizao da atualidade. Aps este breve atalho, que nos d pistas para entendermos o renascimento que tem incio na dcada de 1990 retorno a Lapa, aos seus muitos caminhos e descaminhos, com uma pergunta: Que subjetividades seriam produzidas pelos urbanistas desta Lapa renascida?Seria essa uma alma carioca romntica, repleta de nostalgia, encarnada nos projetos que se insinuam pelas ruas do bairro, das fachadas restauradas dos antigos sobrados, casas e lojas transformadas em cones da beleza esttica? A alma carioca, cheia de samba, gingado de antigas navalhas e boemia, seria a Lapa renascida pelas mos dos urbanistas? Pode uma alma ser marginal e insolente capaz de romper o determinismo da cidade dos urbanistas?

Durante sculos acreditramos que os homens mais velozes detinham a inteligncia do Mundo. A literatura que glorifica a potncia inclui a velocidade como essa fora mgica que permitiu a Europa civilizar-se primeiro e empurrar, depois, a sua civilizao para o resto do mundo. Agora, estamos descobrindo que, nas cidades, o tempo que comanda, ou vai comandar, o tempo dos homens lentos. Na grande cidade, hoje, o que se d tudo ao contrrio. A fora dos lentos e no dos que detm a velocidade elogiada por um Virilio em delrio, na esteira de um Valry sonhador. Quem, na cidade, tem mobilidade - e pode percorr-la e esquadrinh-la acaba por ver pouco, da cidade e do mundo. Sua comunho com as imagens, freqentemente prefabricadas, a sua perdio. Seu conforto, que no desejam perder, vem, exatamente do convvio com estas imagens. Os homens lentos para quem tais imagens so miragens, no podem, por muito tempo, estar em fase com este imaginrio perverso e ir descobrindo fabulaes. Santos : 2005, p.325.

Vindo de uma cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro optei por desenvolver esta dissertao no como um mestrando/pesquisador, muito menos como um turista consumidor, mas como caminhante de uma cidade So Sebastio do Rio de Janeiro - que se abre, se esconde, se camufla, sobrevive, insiste. Cidade de muitas caras, rostos, histrias e narrativas. Como mais um estrangeiro, me misturei aos emaranhado de ruas, fachadas e prdios, mesclando pedras, corpos e memrias, usando a lentido dos passos ao invs da pressa dos transeuntes quase sempre atrasados como ferramenta. Neste lento caminhar me deixei perder na cidade para reencontr-la, na busca de desfazer o encanto sedutor de uma alma etrea e nostlgica, aceitando a tarefa de ser de fato, estrangeiro; vagando sem razes, estranhando a naturalidade dos lugares[footnoteRef:6] e tudo aquilo que chamam de natural, compondo e recompondo cidades a partir da misturas de fragmentos imprevisveis e casuais. [6: A noo de lugar quanto conceito utilizada nesta dissertao se refere formulao de Massey Nessa interpretao, o que d a um lugar a sua especificidade no sua histria longa e internalizada, mas o fato de que ele se constri a partir de uma constelao particular de relaes sociais, que se encontram e se entrelaam num locus particular (...) Trata-se, na verdade, de um lugar de encontro. Assim, em vez de pensar os lugares com fronteiras ao redor, pode-se imagin-los como momentos articulados em redes de relaes e entendimentos sociais, mas onde uma proporo dessas relaes, experincias e entendimentos sociais se constroem numa escala muito maior do que costumvamos definir para esse momento como o lugar em si, seja uma rua, uma regio ou um continente. Isso, por sua vez, permite um sentido de lugar que extrovertido que inclui uma conscincia de suas ligaes com o mundo mais amplo, que integra de forma positiva o global e o local. (2000, p184). Em outras palavras, entendemos lugar como forma de se relacionar com o espao urbano que ocorre de forma nica e particular, no delimitada por barreiras fixas (geogrficas, morfolgicas...) num movimento contnuo que mistura manifestaes, relaes e prticas particulares com estmulos externos, produzindo espaos dinmicos e singularidades. ]

Estou convencido de que possvel elaborar uma metodologia de comunicao urbana mais ou menos precisa, com a seguinte condio: a de querer perder-se, de ter prazer nisso, de aceitar ser estrangeiro, desenraizado, isolado, antes de poder reconstruir uma nova identidade metropolitana. O desenraizamento e o estranhamento so momentos fundamentais que - mais sofridos do que predeterminados permitem atingir novas possibilidades cognitivas, atravs de um resultado sujo, de misturas imprevisveis e casuais entre nveis racionais, perceptivos e emotivos, como unicamente a forma-cidade sabe conjugar. Canevacci : 1988, p15-16.

Nesta perspectiva a cidade deixa de ser apenas um aglomerado de prdios e corpos em trnsito numa materialidade de formas geomtricas para dar formas a espaos prenhes de vida e criao; campo onde se articulam fragmentos de memrias, histrias e narrativas num emaranhado de possibilidades, capazes de tornar visveis em toda sua dimenso trgica os fazeres humanos, seus atos de barbrie e criao e tambm de insurgncia e destruio. Destruio criativa que pe abaixo a arrogncia do sujeito iluminista e, a partir de suas runas, abre caminho para a construo de outros sentidos e sensibilidades, capazes de afirmar a potncia de um sujeito poltico, historicamente constitudo, capaz de intensificar a radicalidade das alteridades e romper a letargia do contemporneo. Por destruio criativa nos inspiramos na seguinte reflexo de Walter Benjamim (1987, p. 237).

O carter destrutivo no v nada de duradouro.... Mas eis que precisamente porque v caminhos por toda a parte. Onde outros esbarram em muros e montanhas tambm a ele v caminho. J que o v, tem de desobstru-lo tambm por toda a parte. Nem sempre com brutalidade, s vezes com refinamento. J que v caminhos por toda a parte, est sempre na encruzilhada. Nenhum momento capaz de saber o que o prximo traz. O que existe ele converte em runas, no por causa das runas, mas por causa do caminho que passa atravs delas...

Para conhecer estas cidades, optei por uma metodologia que, num primeiro momento, poder parecer estranha academia e suas tradicionais prticas de pesquisa, que delimitam a fronteira entre sujeito pesquisador e objeto de pesquisa em momentos estanques. Optei por ignorar tais limites, fazendo do caminhar um mtodo, onde cada passo marca a mistura, mescla sujeito e objeto investigao, rompe os limites da neutralidade.

Ao caminhar pela cidade, cruzam-se constantemente fronteiras, atravessam-se territrios interpenetrados. O trajeto efetivamente percorrido (com afetividade) no cho diverso daquele que se percebe num sobrevo ou que se pode varrer com o olhar estrategicamente colocado, quando se mira do, alto de algum ponto seguro. Os passos do caminhante atento no costuram simplesmente uns aos outros pontos desconexos e aleatrios da paisagem. Ele arrisca, cruzando umbrais, e assim fazendo ordena diferenas, constri sentidos, posiciona-se Arantes : 1994, p. 196.

Ou como nos aponta o poeta Fernando Pessoa; Vou pela rua afora, dorminhoco de minha vagabundagem folha. Qualquer vento me varreu do solo, e erro, como um fim de crepsculo, entre acontecimentos da paisagem (Apud Viana 2006, p.113). Este caminhar de passos lentos, que se arrisca ao cruzar umbrais, dorminhoco de uma vagabundagem folha nos permite dar um primeiro contorno, ainda que inquieto, da metodologia seguida nesta dissertao.A essa metodologia errante chamaremos, provisoriamente, de atitude flneur, o personagem urbano da Paris das luzes, dos amplos boulevares abertos pelas reformas urbanas do baro Haussmmam, onde brotam as flores do mal do poeta Baudelaire. Amante das multides, o flneur estudado por Walter Benjamim (1989)[footnoteRef:7] tem como propsito conhecer os sonhos do capitalismo por meio da experincia das ruas e galerias da Paris dos Boulevares. Ele se relaciona com o urbano num perambular incgnito por entre a os corpos que transitam pelas ruas da grande metrpole, misturando-se, fazendo dela seu lar. [7: As ruas so a morada do coletivo. O coletivo um ser eternamente inquieto, eternamente agitado, que entre muros e prdios, vive, experimenta, reconhece, inventa tanto quanto os indivduos ao abrigo de suas quatro paredes... Para este ser coletivo, as tabuletas das firmas, brilhantes e esmaltadas, constituem decorao mural to boa ou melhor que o quadro a leo do salo burgus (...). O gradil, onde os operrios do asfalto penduram a jaqueta, o vestbulo e o poro, que das linhas dos ptios leva ao ar livre, o longo corredor. O que assusta o burgus para ele o acesso aos aposentos da cidade. A galeria o seu salo: nela, mais do que em qualquer outro lugar, a rua se d a conhecer como o interior mobiliado e habitado pelas massas. (idem, p195)]

Seu prazer vem do perder-se atento aos detalhes muitas vezes imperceptveis aos transeuntes, compondo e recompondo cotidianos e memrias a partir dos fragmentos de uma sociedade marcada pelo esplendor da mercadoria no capitalismo. Mas se por um lado o perambular deste personagem urbano era associado ao cio e ao descompromisso, por outro a cidade que surge cheia de nuances, fazendo emergir as contradies, tenses, paixes e desatinos de sua poca. As sutilezas urbanas despertas ao caminhar desfazem a rigidez das racionalidades urbanas e suas formas geomtricas, a solidez dos prdios, os arranjos das fachadas, o sublime das grandes avenidas e cafs parisienses que surgem dos escombros do passado. Seu vagar d vida cidades que rejeitam o puro em si dos monumentos, recusam o fascnio das mercadorias e do entorpecimento dos sentidos, transforma a rigidez das estruturas em fragmentos que se misturam ao emaranhado de existncias humanas. Atento s mincias da vida cotidiana, mescla-se aos entulhos de uma cidade que lentamente vai desaparecendo dando-lhe novos e imprevisveis usos ou como nos conta Viana (op. cit) ao comentar a Lisboa de Fernando Pessoa.

Sentindo-se em casa na cidade (...) observa tudo, no se cansa de observar todas as coisas, todas as sensaes (pois, como j foi dito, nunca se estabeleceu claramente a distino entre a coisa e a sensao). Observar, olhar mais do que seu meio de vida ou o sentido de sua vida Viver no vale a pena. S olhar vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade, mas impossvel como tudo quando costuma ser o que sonhamos. O xtase que no inclusse a vida... p 115.

As paisagens que surgem deste caminhar tencionam os ideais de grandeza da alma humana, das obras de um Hausmmam em fria demolidora, onde os indivduos pudessem, pedagogicamente, contemplar a si mesmo como triunfantes; uma paisagem fruto da fora inexorvel do progresso da imaginao e utopia dos urbanistas. A cidade que o flneur desvenda ao caminhar recusa a sanha totalizadora dos sentidos das grandes avenidas e suntuosos cafs. A metrpole que ele desvenda das infinitas sensaes que se misturam vida urbana, incorporando a existncia humana aos entalhes de prdios, ao sublime das obras de arte, s misrias humanas, s memrias urbanas, aos passados esquecidos conjurando infinitos futuros. Sua persistncia elimina as fronteiras que delimitam subjetividade e realidade objetiva como foras distintas e antagnicas, dilacera a ciso entre as Verdades interiorizadas e o espetculo cambiante das cidades, dilui-se na infinidade de estmulos e sensaes das ruas, misturando-se a ela em movimentos contnuos e incessantes, tornando-se paradoxalmente estranho a metrpole[footnoteRef:8]. [8: Sou um homem para quem o mundo exterior uma realidade interior (Pessoa apud Viana, 2006, p110).O mais pessoal, o sentimento mais interior, no deixa de estar misturado, confundido, por momentos at indistinguvel, da vida exterior. (Idem).]

Tal como na Paris de Baudelaire, a Lisboa de Fernando Pessoa a das sensaes e dos sentidos, no poderia ser diferente para um poeta em que Tudo rua pela vida (Viana: 2006. p.112). Ruas do humano toque metlico dos carros electricos, do vestido da rapariga em trnsito, decomposto em linhas, estofos, bordados, costureiras, retrs, mquinas da fbrica e operrios; das costas vulgares do homem desconhecido que passa pela calada e desperta ternura no poeta, que se encanta com os detalhes banais do cotidiano, atento a mais nfima sensao, as pequenas mincias esquecidas no emaranhado de imagens da metrpole. Ver estar distante. Ver claro parar. Analisar ser estrangeiro (Idem). O prazer de perder-se num vagar incerto e estar distante. Distante para poder ver. Se deixar afetar pela vida que passa e parar. Deixar livre a pensamento, decompondo o momento em pequenas partculas. Fragmentos to pequenos do cotidiano de uma metrpole que passam despercebidos pelos transeuntes em movimento, mas que combinados em misturas improvveis, do vida a cidades de poesia.

Talvez essa arte tenha um nome ou uma chave: ternura. Fernando Pessoa, em seus instantes mais otimistas, no prope uma antropologia terna que parta do princpio de que somos transeuntes de tudo de que nada nos diz nada, (...) [ternura] que possa, apesar de tudo (e no superando tudo), criar um espao de compreenso do modo de vida e da viso de mundo de Outros. Viana, op. cit, 119.

Diferente de uma leitura individualizante ou romntica deste sentimento chamado ternura, o que poeta/flneur encontra pelas ruas a afeio aos detalhes, ao corriqueiro e banal; afeto capaz de consumir seu esprito, provocar inquietudes em sua alma, dotando-a de argamassa e tijolos feitos de letras, com as quais constri cidades em forma de poema. Longe da Paris das luzes e do esplendor das mercadorias, distante da Lisboa do poeta, retorno a Lapa. Sigo pelos seus inmeros caminhos, atento ao detalhes esquecidos, aos entulhos e restos das intervenes urbansticas do sculo XX e incio deste. A primeira impresso do fascnio dos arcos, da idealizao da histria que se repete nostalgicamente em bares cenogrficos, nas fachadas restauradas, do sujo transformado em nobre, do degradado transformado em glamouroso. Sigo pelas ruas a passos lentos. Deixo que os ventos da cidade me carreguem pelos espaos na minha vagabundagem folha. Outras cidades ganham vida. Nelas surgem Lapas que narram sabotagens aos dogmas que clamam a morte das ruas, incitam insurgncias contra memrias pasteurizadas aliadas esttica do cotidiano. Lapas de movimentos capazes de romper como a imobilidade e o aturdimento dos sentidos no contemporneo. Nestas cidades, corpos insubordinados fazem das ruas lugar de encontros e provocaes, tomam escadarias, reivindicam esquinas, ocupam caladas e ruas, transformam passados restaurados em adornos sem sentido. Constroem cidades a partir dos farrapos esquecidos pelos urbanistas e desprezadas pelos consumidores globalizados do capitalismo contemporneo, dando outros usos s memria urbanas, forjando almas urbanas/humanas na tenso dinmica dos emaranhados de existncias humanas e racionalidades geomtricas[footnoteRef:9] dos planejamentos urbanos. [9: Gomes : 1994]

No buscaremos, portanto, a construo de uma historiografia sobre a Lapa ou mesmo descrever uma essncia da alma urbana de uma metrpole. As linhas que daro forma a esta dissertao tm a cidade como campo de tenses onde o passado a fio condutor que tece mltiplos presentes, articulados em arranjos descontnuos e imprevisveis.

(...) a cidade no conta seu passado, ela o contm como linhas da mo. Escrito nos ngulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimos das escadas, nas antenas dos pra-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhes, serradelas, entalhes, esfoladuras. Calvino: 1990.

Comeamos esta introduo com uma pergunta principal: de que feita a alma das ruas? Aps o longo percurso que trilhamos nesta notas introdutrias podemos ter uma noo, ainda que parcial, da sua formulao entendendo que nela habitam sonhos, desejos, ideais, corpos, sensibilidades, memrias e paixes que se esparramam pelas pedras da cidade. Poderiam as almas urbanas, na sua indissociabilidade das almas humanas serem rebeldes, provocar insubordinaes e tecer rebelies? As foras que nela fremem seriam capazes de romper com os desgnios do capital, que transformam a cidade e suas histrias em objeto de consumo, produzindo o entorpecimento da vida contempornea? Para responder a tais perguntas iremos buscar nos vrios momentos da histria do bairro os elementos que serviro de molde para a fabricao desta alma etrea que paira sobre ele. Neste sentido seguiremos pelo mesmo caminho dos memorialistas, mas seguiremos por outras trilhas, resgatando destes discursos seus momentos de inflexo, suas contradies e tenses, fazendo da reminiscncia uma ferramenta e da fria da memria um instrumento capaz reconstruir cidades a partir das runas de um urbano estril rompendo com a reificao das origens e da estetizao das memrias propostas pelo capital. Buscaremos no primeiro momento desta dissertao (captulo I) discutir os embates e tenses envolvidas construo das memrias urbanas e das almas urbanas ao longo do sculo XX delimitando didaticamente este extenso perodo em trs fases distintas: a primeira delas no incio do sculo, a cidade ps-reformas do prefeito Pereira Passos dos anos 1920 a meados da dcada de 40, ou seja, o perodo de construo da imagem do bairro bomio de alma viciosa. Um segundo momento, das dcadas de 1950 ao final de 1980, perodo de abandono e degradao do bairro transformado em lugar dos malditos e por fim da dcada de 1990 at os dias atuais, da Lapa do Renascimento, do resgate nostlgico da histria e das almas bomias atreladas imagem do que ser carioca; da estetizao e fascnio da memria e da reinveno do lugar. Num breve resumo deste primeiro momento, iremos buscar na obra do escritor Machado de Assis uma primeira impresso do bairro, sendo ele descrito como sendo um aprazvel lugar entre o mar e a montanha. O bairro que fora ocupado tardiamente em relao a outras reas do centro devido insalubridade e dificuldades para a construo proporcionadas pelos brejos que existiam no local comeara a ser urbanizado somente no final do sculo XVIII[footnoteRef:10] com o saneamento das terras sendo efetivamente ocupado por famlias de comerciantes e aristocratas a partir do sculo XIX. [10: At este perodo existia naquele local apenas algumas raras e esparsas chcaras conforme nos indica Coaracy : 1988 ]

Diferentemente do bairro aristocrtico do sculo XIX descrito por Machado de Assis, a alma que inspira os projetos de reurbanizao e renascimento surge no contexto da urbe no incio do sculo XX, sendo esta descrita por Ribeiro Couto (1988)[footnoteRef:11], lugar da runa dos homens pelos vcios da luxria e do jogo, de alma viciosa que conclama ao crime e devassido, sendo digna das cidades bblicas de Sodoma e Gomorra destrudas pela Ira Divina . [11: A primeira edio deste livro foi publicada em 1923, reeditada em publicao recente do Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro (Coleo Fluminense). O cotidiano da cidade descrito pelo autor data de 1921]

- Eu queria presenciar um crime.- Comeas a perverter-te. a alma viciosa da Lapa, a influir. (grifo nosso). Ribeiro Couto, p 33, 1988

Esta alma viciosa de 20 marcar todo o sculo XX, seja pela idealizao da vida noturna e boemia, atrelada aos questionamentos da vida burguesa, da sociabilidade e convvio com marginais; lugar de encontro de intelectuais, estudantes, malandros, valentes, polticos - seja pela criminalizao do cotidiano atravs da represso aos vcios e maus hbitos da vida bomia transformada em fonte de perdio e degradao das almas urbanas/humanas. O segundo perodo entre as dcadas de 50 e final de 80 historicamente pode ser descrito pela mudana da capital do pas para Braslia, a afirmao da boemia sadia de Copacabana, em oposio boemia viciosa do perodo anterior, surgimento do sentimento de nostalgia do bairro bomio, atravs dos memorialistas da cidade e das intervenes urbanas que modificaro profundamente a fisionomia do bairro. O espao que surge da ao dos urbanistas deste perodo marcado pela velocidade dos carros, pela construo das largas avenidas da cruzaro a paisagem ligando vrios bairros da cidade. Perodo de transformao do bairro em no lugar urbano; lugar isolado, que no faz parte da cidade, cuja convivncia deve ser breve e se possvel evitada; lugar dos malditos urbanos, para onde sero removidos os indesejveis: invisveis atravs da ultra-visibilidade; lugar de meninos de rua e prticas artsticas subversivas do Circo Voador; lugar de perigo e degradao, onde a arte da poltica d lugar conteno da polcia como forma de gesto social. O terceiro e ltimo perodo deste primeiro ato se inicia nas reformas da dcada de 1990 culminando no olho do furaco das tenses da atualidade; numa cidade marcada pela intensidade dos embates cotidianos entre a estetizao da vida e as tradies e narrativas urbanas.Lapa do resgate da boemia, do renascimento, da idealizao do passado, da aura nostlgica que conclama o retorno de uma cidade de outrora; Lapa da glamourizao e do fetichismo, expressas na manuteno das memrias urbanas representadas pelo patrimnio, do passado tornado objeto para deleite do capital. Cidade suja e degradada, viciosa e temida. Cidade onde as mazelas urbanas so transformadas em exemplos de nobreza, mxima expresso da cultura urbana, espelho onde o carioca pode admirar-se em toda sua beleza e esplendor; bairro encarnao de uma alma carioca ou, conforme slogan de um grande empreendimento imobilirio erguido na esteira do fetichismo consumista do lugar, o mais carioca dos bairros.No segundo ato desta dissertao trabalharemos pequenos fragmentos do cotidiano do bairro que articulados em misturas imprevisveis produzem pequenas histrias, narram outras cidades, recriam espaos e questionam as boas intenes da preservao patrimonial. Pequenas sabotagens do dia-a-dia que emperram a estetizao da memria, do vida cidades invisveis[footnoteRef:12], afirmam o espao pblico quanto tenso e criao, fazendo da reminiscncia ferramenta que faz ruir o fascnio e a idealizao da alma bomia/carioca. Em suma, estrias que margeiam os embates entre o amor ao pblico; da alteridade das ruas, dos encontros casuais, da potncia dos passados negados ou esquecidos e saudade do Rio, expressa na cidade cenrio, na nostalgia dos espaos na estetizao da vida. [12: Pegando de emprstimo a expresso formulada por talo Calvino (1990) e nome do livro homnimo.]

PREAMBULO

... a vida da Lapa, reduto carioca to diferente de tudo mais. Para compreender a Lapa preciso viver algum tempo nela e no ser qualquer que a compreenda.Manuel Bandeira em correspondncia para Mario de Andrade

Parado perto da guia gigante e das esculturas das musas da cultura, cheias de fezes de pombo, do Teatro Municipal inicio mais uma andana rumo a Lapa. Adentro a Rua Evaristo da Veiga e ao longe, escondido ironicamente atrs dos prdios do quartel general da polcia militar do Rio de Janeiro, os imensos arcos se sobressaem. Mais acima, em direo ao morro, as luxuosas casas de Santa Teresa; mais alm o Corcovado e o cristo Redentor, de braos abertos sobre a zona sul da cidade, de costas para o bairro.Durante as muitas andanas para esta dissertao (e mesmo antes dela), nunca havia me dirigido ao Passeio Pblico. Tomado pela curiosidade (recentemente aguada pelas notcias de restaurao do parque) resolvo fazer uma visita. Cercado por turistas de uma excurso cultural ao centro, vidos por descobrir histrias atravs das placas informativas de acrlico espalhadas pelo jardim, deixo-me levar pelos contornos sinuosos das ruas e alamedas do local, com seus vendedores de biscoito Globo, casais namorando e velhinhos caminhando. Na praa da quietude das rvores, dos sussurros dos amantes e da confuso de vozes da excurso, sobressai a voz do guia da cidade que nunca se cala, contrastando com os roncos do morador de rua que tenta, desajeitadamente, encontrar a posio mais confortvel para dormir nos desconfortveis bancos de madeira espalhados pela praa. Seu sono inquieto no produz incmodo. Seu corpo imundo invisvel, no interpela as explicaes do guia, que para diante de cada placa para encenar e decifrar as histrias do lugar sob o olhar atento das pessoas que o cercam. Ao passar pelo morador, suas fisionomias de fascnio do lugar reprovao e asco. Seu corpo fedido de urina e fezes maculava o cenrio de perfeio das rvores, lembrando aos consumidores de saudades de um tempo que no viveram que a cidade tambm estava ali. Durante a minha pesquisa de campo evitei, de forma intencional, incluir a visita ao parque, que mesmo fazendo parte do bairro da Lapa daria uma dissertao parte. Neste dia lembrei de uma recente reportagem televisiva que anunciava a descoberta das fundaes do antigo Cassino Atlntico[footnoteRef:13]. [13: Localizado originalmente na entrada do parque que voltada para a Baa de Guanabara onde se localizam a fonte dos amores e as pirmides esculpidas por Mestre Valentim. No antigo poro, que compreendia a cozinha do cassino, jazia enterrado um ornamento h muito tempo dado como perdido. Construda na poca da fundao do jardim, no sculo XVIII, por Mestre Valentim a Fonte dos Amores (voltada para o interior do passeio) trazia como ornamento dois jacars de bronze, que jorravam gua pela boca. Enterrado no jardim por quase cem anos, a poucos metros do seu local original, suas bocas escancaradas e seus rabos entrelaados zombavam da busca dos memorialistas e dos caadores de histria.]

Fruto da restaurao realizada no ano de 2005 e do trabalho arqueolgico realizado no local, as antigas fundaes e o subsolo do cassino foram redescobertas quase intactos. As fundaes preservadas (assim informava a placa) fora obra dos arquitetos da poca, que no a demoliram junto com a o resto do prdio, enterrando-a intacta, na esperana de que um dia o cassino seria reconstrudo. No local ainda restavam o piso e as instalaes originais, informava o jornal local. Mas quem passa por ali no vai encontrar as runas do poro do cassino. Em seu lugar encontraro apenas um gramado, com um estranho e enigmtico caminho de pedras marcando os contornos da construo. Por rigor esttico e arquitetnico, visando preservao das formas planejadas pelos urbanistas, as runas[footnoteRef:14] que contavam histrias sobre o parque fora novamente enterrada, devolvidas a seu eterno descanso subterrneo. Nada deveria manchar a perfeio da praa de alamedas sinuosas e formas planejadas. [14: Alm das fundaes do Cassino Atlntico, foram encontrados os vestgios do aqurio de gua salgada construdo na gesto do prefeito Pereira Passos no incio do sculo XX, as fundaes do chal do arquiteto Francs que idealizara o parque, dentre outras.]

Placas de acrlico, bustos de figuras ilustres e esculturas, transformados em depsito de fezes de pombos, descrevem histrias contadas e recontadas por guias tursticos. Numa das extremidades do parque, as pirmides de pedra do escultor do sculo XVIII, que marcam sua antiga entrada voltada para a Baa de Guanabara, se sobressaem. Suas formas chamam a ateno dos turistas; seu encanto vem de saber da antiguidade da construo e de sua autoria. Pausa para fotos, mais explicaes do guia e o ruidoso grupo segue adiante para outra atrao turstica. As duas placas de mrmore branco, fixadas a meia altura das pirmides nada diziam para os colecionadores de memrias urbanas. As ps e picaretas do capitalismo contemporneo resgataram a histria degradada do Passeio Pblico. Agora ela poderia ser contada e recontada em todos seus detalhes. Para os restauradores/urbanistas o acidente de transmisso era um problema a ser solucionado. O aparente caos do primeiro Jardim Pblico do Brasil, onde vrios passados se misturavam e narravam os inmeros fazeres humanos atravs das marcas deixadas no espao, impedia que os turistas pudessem admirar a histria em todo seu esplendor. Pelas geis mos dos restauradores, o passado agora podia ser contemplado em toda sua grandeza atemporal, excluindo do tempo s imperfeies dos inmeros momentos das intervenes humanas, seus contratempos, suas paixes, angstias e desatinos. O passado, para sempre preservado, virou lembrana, depsito de recordaes para as geraes futuras: Museu a cu aberto. Eterno presente e imutvel futuro. Nada deveria escapar do planejamento dos urbanistas modernos, transformados em restauradores. As intervenes no parque foram planejadas para que os visitantes pudessem obter o mximo de bem estar. O passado esquadrinhado pelos especialistas tornava momentos relevantes e outros desnecessrios. O que fosse relevante, ou seja, a histria da praa expressa atravs dos grandes feitos dos heris em bronze e placas de acrlico, que contam sobre a altivez das suas realizaes deveriam ser ressaltados, para servir de exemplo e ao mesmo tempo encher de orgulho os herdeiros de um estilo de vida da metrpole. Atravs dele os cidados poderiam relembrar suas origens, as marcas do passado espalhadas pela cidade e assim se rejubilarem. Espao purificado, onde o passado purgado de suas imperfeies tornava-se espetculo. Memrias em exposio que contam a histria sem sobressaltos ou espantos, transformada em bem cultural da cidade. Na praa da previsibilidade dos especialistas, esquecidas e desprezadas pelos restauradores, as placas de mrmore branco, com suas letras desgastadas pelo tempo, diziam: Ao amor do pblico e saudade do Rio. Fragmentos estranhos, caticos e incompreensveis ao guias e tradutores da histria. Partculas invisveis aos olhos desatentos, quase ilegveis devido ao do tempo. Cacos de tradio relegados ao esquecimento que, ao serem reincorporados cidade em misturas improvveis, transformam a histria das placas de acrlico, dos bustos de bronze, das pedras sepulcrais, das runas enterradas em ornamentos sem nenhum atrativo. Este pequeno fragmento de cidade, perdido na imensido do parque, desprezado pelos turistas e guias, ignorado pelos restauradores, tencionava s memrias preservadas pela esttica urbana. Narrativas urbanas que no necessitam de autoria nem de explicao, que se misturam ao contemporneo e narram cidades incompreensveis aos guias urbanos e consumidores de memria. Frases talhadas no mrmore, que conspiram cidades sem o glamour das placas de acrlico nem exaltam os feitos hericos da grandeza humana. O anonimato de sua autoria no permite dar a elas um rosto, apesar de vrias faces urbanas poderem ser lidas nela. Ao amor do pblico... Mas a que o pblico se referia pequena placa? Seria esse pblico as famlias burguesas que visitavam o parque em busca de ares saudveis, da brisa do mar e da sombra das rvores ou da praa enquanto lugar de encontro para as muitas faces da cidade, uma gora da pols grega, voltada para o exerccio dos inmeros fazeres da poltica[footnoteRef:15] cotidiana? E a saudade do Rio?A que cidade a saudade se referia? Seria a cidade das placas de acrlico, cuja aura impregna o bairro da Lapa e o centro do Rio? [15: No por acaso o radical grego para cidade, plis, vai se desdobrar em poltica, arte de conviver na pols, e polcia. Pela via latina, a civilis, a cidade romana, conjuga a vida urbana em civil, civilidade. Pecham: 2003. ]

Com a imagem das pequenas placas de mrmore branco na memria, me retiro do parque, em direo ao imenso largo na entrada do bairro. Nele o gigantesco lampadrio, recentemente restaurado se sobressai, saudado por palmeiras imperiais, dispostas em filas, ordenadas para exaltar a grandiosidade das sociedades modernas, representado pelas intervenes urbanas. Ao contrrio do Passeio Pblico, a permanncia na praa torna-se incmoda. Nada ali incita permanncia. No h casais namorando, nem vendedores de biscoito Globo, muito menos mendigos fedorentos, pois no existem bancos, nem alamedas cobertas pela copas das rvores que protegiam do calor da cidade. As elegantes e esguias arvores sem sombra, com seus caules lisos onde nada se fixa, dispostas no amplo espao vazio no convidam permanncia. Sua imponncia transforma o Largo Nelson Gonalves[footnoteRef:16] numa recriao das paradas militares. Soldados/palmeiras em ordem militar saudando o Grande Lder: o progresso, representado pelo Lampadrio restaurado, na eterna espera do momento triunfal de passar a tropa em revista. [16: Historicamente o atual largo Nelson Gonalves era o antigo Largo da Lapa. Aps o perodo das demolies na ditadura militar, o imenso vazio que se abria na paisagem fora ordenado em duas praas diferentes, separados pelo estreito contorno de uma avenida que corta o bairro. A poro menor, onde se localiza o Lampadrio, ganhara outro nome (hoje Nelson Gonalves), enquanto o antigo quarteiro apelidado de Ferro de Engomar prximo aos Arcos, transformara-se em Largo da Lapa. ]

Na lisura da praa vazia, a cidade passa apressada no movimento dos carros ao redor. Ali o fedor e os roncos no incomodam, assim como no incomoda o olhar triste da vendedora de biscoito Globo. Nada se fixa no lugar que faz fluir corpos e vontades e que exalta as glrias do passado restaurado. Do outro lado da rua encontro outro grupo de atentos excursionistas, sob o olhar atento de seguranas, que visitam antiga igreja e o convento de Nossa Senhora da Lapa do Desterro. Novamente cmeras e olhares de fascnio destilam saudades sedutoras, de um passado que no viveram, mas que buscam reviver atravs dos detalhes contados pelo guia. As inscries sem autoria, incrustadas nas pirmides, assumem tons profticos, tensos e atuais. Atrados pela saudade de um Rio idealizado pela esttica consumista globalizada, turistas consumidores buscam nos monumentos do passado desvendar suas origens, saudosos de um tempo que no permitido esquecer, protegidos da cidade por guarda-costas dispostos num cordo de isolamento que apartam da mesma. O passado preservado deve ser exaltado, lembrado e relembrado infinita e repetidamente. Os turistas consumidores, lamentosos do desleixo das geraes anteriores, buscam redimir-se dos erros do passado no permitindo que nada se perca.

O dever da memria que hoje nos imposto instaura um estado culpabilizante estimulado pela necessidade moral de rememorao. No temos mais a liberdade de esquecer, pois isto seria um crime. Esquecer ocultar, tal seria a nova regra de uma boa gesto de memrias. Censuramos as geraes que nos precederam por terem to facilmente esquecido. provvel que elas tenham achado possvel viver o tempo presente tal como ele era. A partir de agora necessrio que a lembrana nos faa sentir culpados, que ela nos provoque vergonha, vergonha causada pelo simples desejo de esquecer. Jeudy : 2006, p. 14.

Ali perto o morador de rua fedorento acordado e escorraado para fora do Passeio pela guarda municipal. Sua presena incmoda no deve macular a sensibilidade dos turistas consumidores, nem a beleza sublime da natureza ao redor. A praa histrica fora restaurada para a admirao e deleite. Seus bancos no so para dormir. A presena do morador de rua nauseabundo, cheirando a fezes e urina manchava a paisagem do lugar. Ao amor do pblico, dizia a placa de mrmore, mas poderia o mendigo amar a praa, fazer dela seu lar, zombar da privacidade do lar burgus, tomar o lugar dos guias e narrar s tenses, desgraas, alegrias e angstias da cidade contempornea?A Lapa que o capitalismo, atravs dos projetos urbanos, transforma em objeto de consumo possui uma aura cultural, que transforma as memrias, tradies, prticas e vnculos sociais em saudade nostlgica; produtos que exalam recordaes prontas para serem deliciadas pelos consumidores globalizados, vidos por antigas novidades. O morador de rua fedorento no faz parte desta cidade: ele est no lugar errado. A Lapa que surge a da beleza esttica, dos aromas e sabores programados. Suas roupas rasgadas e seu odor incmodo no tm lugar no mundo das sensaes programadas. Tambm no existe lugar para a curiosidade das crianas negras, vestidas com roupas pudas e cabelos desgrenhados, moradoras dos pequenos e maltratados sobrados da Rua da Lapa, que correm alegremente em direo aos turistas e suas mquinas fotogrficas. Sua presena mancha a perfeio do cenrio, traz apreenso aos seguranas, transforma em tenso a exaltao da memria. A cidade tem os seus tesouros talvez imaginasse os turistas enquanto focam seus olhares nos entalhes da igreja barroca o problema que alguns no sabem apreci-los, no possuem o olhar apurado e apaixonado dos consumidores. Sua sensibilidade cega, atenta ao ornamento, ignora a cidade a sua volta, transforma o mendigo nauseabundo em entulho e as crianas que correm alegremente pela Rua da Lapa em ameaa. Brbaros que no sabem se comportar como consumidores nem apreciar a beleza dos lugares histricos. S os turistas demasiadamente civilizados conseguem compreender o vazio da praa e o valor das antigas construes ao redor: elas servem para apaziguar e entorpecer o esprito, consolar os medos urbanos da violncia, dos desencontros e frustraes. Ao amor do pblico, transformado em amor ao pblico , para os turistas confinados em cordes de isolamento, a expresso de uma cidade construda para ser consumida num ato invariavelmente privado e intimista. Cidade cenrio onde desfila, triunfante, o homem apartado repleto de verdades sobre si e sobre o mundo. Para ele o espao pblico o local onde desfilam angstias desconectadas do mundo. Espao pblico no civil onde:

As pessoas possam compartilhar como personae pblicas (sic) - sem serem instigadas, pressionadas ou induzidas a tirar as mscaras e deixar-se ir, expressar-se, confessar seus sentimentos ntimos e exibir seus pensamentos, sonhos, angstias. Mas tambm significa uma cidade que se apresenta a seus residentes como um bem comum que no pode ser reduzido a um agregado de propsitos individuais e como uma tarefa compartilhada porque no pode ser exaurida por um grande nmero de iniciativas individuais, como uma forma de vida com um vocabulrio e lgica prprios e com sua prpria agenda, que (e est fadada a continuar sendo) maior e mais rica que a mais completa lista de cuidados e desejos individuais de tal forma que vestir uma mscara pblica um ato de engajamento e participao, e no um ato de descompromisso e de retirada do verdadeiro eu, deixando de lado o intercurso e o envolvimento pblico, manifestando o desejo de ser deixado s e continuar s Baumam : 2001

O mendigo nauseabundo acordado de seu sono sem sonhos junta seus trapos, pequenos fragmentos que narram acontecimentos espera de co-autoria: uma surrada carteira de trabalho de capa azul amarelada, amassada com pginas despencando, alguns recortes de jornal, que nas noites frias servem para aquecer seu corpo, fotos desbotadas e amarrotadas, perdidas entre cartas e anotaes, escritas e reescritas, que se misturam a uma trouxa de retalhos e roupas pudas; latas amassadas, transformadas em panelas e copos. Seu lento caminhar, sob os olhos atentos do guarda municipal, espalha pelas ruas o ftido odor que toma todos os lugares, entra nos bares, adentra os sales e narinas, impregnando tudo sua volta. Os turistas consumidores de memrias, cercados por cordes de isolamento, incomodados com o cheiro retribuem com olhares de asco. Os cheiros da cidade no podem ser contidos. Por toda a parte a saudade invocada, repetida incessante e monotonamente a cada passo, a cada estabelecimento. Na mesmice de suas imagens que retratam cenas do Rio antigo, paredes de tijolos de barro macio e pregos amassados, arrancados da sua invisibilidade, compem o cenrio onde tudo programado para produzir os elementos necessrios memria, para saciar a frentica busca das origens que acalentam o indivduo urbano, indicando o que ser carioca. Cai noite e os turistas em xtase pelas novas descobertas buscam se deliciar nos bares, botequins e restaurantes cenogrficos, recriaes dos ps sujos devidamente higienizados da presena incmoda dos antigos freqentadores. Nestes espaos tudo previsto: pequenas mesas, ordenadas simetricamente no espao, garons geis e impessoais, que servem pequenas pores de petiscos, outrora repugnantes, transformadas em iguarias exticas, servidas ao som de algum ritmo de raiz.

(...) Nessas mesinhas [dos cafs parisienses], a cu aberto, os clientes mais observavam a paisagem do que se envolviam em conspiraes.As grandes avenidas abertas pelo Baro Haussmann(..)encorajavam esse uso das caladas. (...) A clientela constitua-se de pessoas de classe mdia e alta, pois o preo das bebidas afastava os mais pobres. Alm disso, seus freqentadores esperavam ter o direito de ficar a ss e em silencio tal como nos trens americanos o que contrariava os costumes das classes trabalhadoras, que se mantinham fiis aos cafs intimes(sic) das ruas laterais. Os que queriam circular procuravam o servio mais rpido do bar. Por volta de 1870, por exemplo, os garons velhos estavam relegados as mesas exteriores dos cafs, cujos fregueses no consideram sua lentido um defeito; plantados ali, sem falarem com ningum, ensimesmados, eles se limitavam a olhar a mesa dos passantes. Sennet. 2004, p 278.

Num dos pequenos bares esquecidos pelos ventos da esttica, o velho garom Biriba atende mais um cliente. Saca de seu bolso um grande mao de dinheiro, onde guarda as notas delicadamente dobradas, a fria[footnoteRef:17] das muitas mesas servidas, que dever prestar contas ao fim do dia. Molhadas pela mo suada, umedecidas pelos ir e vir de copos e garrafas cheias de lquido, as cdulas colam umas nas outras e exigem ateno ao serem contadas. A bandeja que se equilibra sobre a palma mo carrega copos gelados, cheios da bebida amarela que brota das serpentinas e escorre, delicadamente, em direo ao objeto cilndrico de vidro transparente. Corpo do copo amarelo, bolhas de ar subindo pelas laterais e uma faixa branca de espuma. Tudo bem medido e tirado, num ritual que se repete ritmadamente durante toda a noite. [17: Em casas comerciais: dinheiro das vendas de um dia. ]

Espao de largas mesas de madeira, sem logotipo das marcas de cerveja (to caracterstico nos bares atuais), cobertas com pano branco; petiscos pendurados em cima de um balco, acumulando uma tnue camada de gordura proveniente das frituras da cozinha onde aderem poeira e detrito das ruas: salames, queijo, peas de mortadela... Tudo mostra dos fregueses. Os turistas apressados passam em frente porta que d entrada ao bar - a mesma porta que se abre ritualisticamente s dez horas da manh, em ponto, h mais de 50 anos para servir o almoo - mas evitam ultrapass-las e sentar em suas mesas. O velho garom de cabelos grisalhos e fala quase inaudvel irrita os turistas, que reclamam da lentido dos seus passos e da ateno dispensada a cada fregus que senta em suas mesas[footnoteRef:18]. [18: Um fato interessante e que vale a pena ser ressaltado, que este bar, situado na esquina da Rua do Lavradio com Mem de S, de inspirao alem (com cardpio de comidas e bebidas tpicas da regio) era chamado Bar Fritz no perodo da Segunda Guerra Mundial. Com o aumento das hostilidades que levaram o Brasil a declarar guerra Alemanha, os imigrantes alemes e os estabelecimentos comerciais que fizessem aluso ao pas do regime nazista passaram a ser hostilizados pela populao. A fim de evitar transtornos os donos resolveram apelar para o patriotismo brasileiro, mudando para o nome para Bar Brasil, mantendo o mesmo nome at hoje. ]

Nos bares cenogrficos, ao contrrio dos estabelecimentos tradicionais, os turistas se sentem mais confortveis. A agilidade e rigidez dos jovens e esguios garons retiram do consumo a espera. Todos os pedidos so atendidos de forma rpida e profissional, no h tempo conversar com os clientes e nem eles o querem: esto ali para no serem incomodados. Imersos em seus pequenos mundos, eles levantam o dedo, pedem mais algum petisco ou bebida e rapidamente so atendidos. Qualquer demora basta para causar insatisfao e transformar o prazer de consumir em tormento. Garons sem nome e sem rosto: corpos-mquina que levam e trazem bandejas. Pelas duas pequenas portas que do acesso s Ruas do Lavradio e Mem de S, o pequeno estabelecimento do garom Biriba assistira impassvel proliferao dos lugares da previsibilidade: espaos onde tudo pensado previamente para proporcionar ao turista urbano doses inebriantes da nova droga urbana, a adrenalina. Drogaditos de sensaes provocadas pela possibilidade de viver uma vida marginal, encenada como num desenho animado ou atrao de um parque de diverses: a bruxa malvada dos contos de fadas ameaava, de fato, aos mocinhos que sempre venciam no final. Na montanha russa, carrinhos velozes e suas piruetas proporcionam a sensao de perigo, que termina quando o carrinho pra podendo ser revivida ao comprar de mais um ingresso.Apesar de no apontar para esta construo terica, o comentrio de Baumam(1999, p.91) nos fornece algumas pista para pensarmos a subjetividade na cidade contempornea.

Para os consumidores da sociedade de consumo, estar em movimento procurar, buscar, no encontrar ou, ainda no sinnimo de mal-estar, mas da promessa de bem-venturana, talvez a prpria bem-venturana. Seu tipo de viagem esperanosa faz da chegada uma maldio(...)no tanto pela avidez de adquirir, de possuir, no o acmulo de riquezas no seu sentido material, palpvel, mas a excitao de uma sensao nova, ainda no experimentada, este o jogo do consumidor. Os consumidores so o primeiro e acima de tudo acumuladores de sensaes; so colecionadores de coisas apenas num sentido secundrio e derivativo. [grifo nosso]

Na Lapa contempornea a bruxa perdera seu vestido negro e verruga no nariz dos contos de fadas. Sua fisionomia ganhara terno branco, chapu Panam, calas largas, leno de seda no pescoo e navalha no bolso. Imagem que proporciona aos turistas consumidores um simulacro de marginalidade, inventando mundos onde tudo racional, artificial e apreensvel pelos sentidos.A alegre sensao de estar num lugar proibido onde pode-se triunfar sobre malandros, prostitutas, bomios, intelectuais e otrios, transformados em personagens. Espao onde a fantasia assume contornos de realidade necessitando disso para ser convincente. Espao da presena ostensiva dos carros de polcia em cada esquina, do prazer pago dos corpos prostitudos nas ruas afastadas, dos jovens vagabundos, que brotam de dentro dos cortios, morros ou nibus de vrias partes da cidade, que se aglomeram ao redor dos arcos, adentrando praas, ruas e ladeiras. Coadjuvantes da cidade/cenrio dos turistas, os vagabundos[footnoteRef:19] habitam uma outra cidade, invisvel aos olhos dos turistas cidados. Apesar de serem, de certa forma, refns do sonho de um dia se tornar turistas e poder sentar nos bares cenogrficos, seus corpos e movimentos em desacordo com cenrio denunciam a existncia de almas urbanas/humanas transgressoras.. [19: Pegando de emprstimo os conceitos de turistas e vagabundos desenvolvidos por Baumam: 2003]

Ao tomar o bairro com sua rebeldia, eles reinvidicam para o convvio coletivo o espao pblico. A rua seu refgio; lugar de encontros inesperados e paixes, onde se encontram os amigos, onde se conhecem pessoas, onde h solidariedade e tambm isolamento e perigo; lugar de brigas inesperadas, de desatinos, de duras (batidas) da polcia. Noites a perambular em busca dos melhores programas, traduzidos pela sigla grtis ou a preos mdicos, numa tenso dinmica que se refaz a cada noite. Eles tambm so consumidores[footnoteRef:20]. No de saudades imagticas, mas das barraquinhas de bebidas quente[footnoteRef:21] e comida gordurosa, espalhadas pelas ruas, ladeiras e praas, que vendem X-tudo, cachorro quente (de lingia ou salsicha: a gosto do fregus), espetinhos carne com direito a refresco de origem duvidosa, servido em copos plsticos. Tudo por 2 reais e 50 centavos, na promoo, dizia a placa do anncio. Ao amor do pblico, traduzido por amor ao (espao) pblico. [20: Tanto o turista quanto o vagabundo foram transformados em consumidores, mas o vagabundo um consumidor frustrado. Os vagabundos no podem realmente se permitir as opes sofisticadas em que se espera que sobressaiam os consumidores; seu potencial de consumo to limitado quanto seus recursos. Essa falha torna precria sua posio social. Eles quebram as normas e solapam a ordem. So uns estraga-prazeres meramente por estar por perto, pois no lubrificam as engrenagens da sociedade de consumo. So inteis, no nico sentido de utilidade em que se pode pesar numa sociedade de consumo ou de turistas. E por serem inteis so tambm indesejveis. Como indesejveis, so naturalmente estigmatizados, viram bodes expiatrios. Mas seu crime apenas desejar ser como os turistas... Sem ter os meios de realizar os desejos dos turistas.Baumam(2003, p.105) ] [21: Bebidas que no precisam ser geladas como a cerveja: os diversos tipos e misturas com cachaa, catuaba, conhaques dentre outros.]

Para os turistas, os corpos dos vagabundos dispostos pelas ruas transformam o cenrio mais atraente ao consumo. Aumenta a adrenalina provocada pela sensao de perigo, ao mesmo tempo correm o risco do incmodo programado se tornar real; corpos que impedem o trnsito dos carros, ocupando o espao dos carros, ameaando adentrar os redutos da esttica: corpos que no compartilham os mesmos ideais de cidade dos turistas. Corpos invisveis na extrema visibilidade, separados por uma linha tnue que pode a qualquer momento ser ultrapassada, esgarada e por vezes rompida. Para os turistas/consumidores a cidade um shopping a cu aberto, representado pelos estabelecimentos cenogrficos de fachadas restauradas. Ao invs das inmeras tentaes e da diversidade de estmulos e mercadorias vendidas nestes estabelecimentos, os shoppings, a cidade museu tm em sua vitrine uma nica mercadoria cujo rtulo estampa em letras garrafais: cidade. Dentro desta embalagem se encontram as memrias e narrativas urbanas transformadas em imagem, onde o lugar maldito da primeira metade do sculo XX d lugar a um bairro de malandros domesticados e prostitutas cheirosas no convvio de intelectuais famosos (Manuel Bandeira, Villa Lobos, Candido Portinari, dentre outros). Personagens cujas narrativas formas amansadas, engolidas e digeridas em imagens steres e sem vida. Tradio cristalizada e travestida em cultura; histria transformada em objeto; sociabilidade urbana em consumo individual, privado, acessvel para quem tem dinheiro para consumir. Espao pblico cuja fronteira com o privado torna-se imperceptvel. Espaos que se misturam e por vezes se confundem na apropriao privada do pblico. Amor ao Pblico traduzido por consumo privatizado.Na sesso de opinio dos leitores de um jornal carioca, um turista conclama ao Poderes Pblicos o ordenamento das caladas da cidade[footnoteRef:22]. Sua indignao nos fala muito da Lapa atual. Ela fora restaurada para o deleite dos turistas. [22: uma vergonha a presena de ambulantes em lugares como a entrada do Circo Voador e Fundio Progresso. Nas barraquinhas so preparadas comidas de procedncia duvidosa, sem menor controle da vigilncia sanitria. Alm de oferecerem um risco sade pblica, ainda atravancam a passagem com seus carrinhos que esto espalhados por toda parte. A prefeitura deveria tomar providncias urgentes no sentido de livrar a Lapa destes focos de doenas e confuso Jornal o Globo, 2 de setembro de 2001, sesso de cartas dos leitores. ]

Sentados na Pizzaria Guanabara (ou em qualquer outro estabelecimento cenogrfico), com sua mesa sob a calada, cercada por pequenos vasos de flores que marcam os limites da pequena calada que restara aos pedestres, ele reivindica a rua para si. Ele tem razo: um cidado que paga seus impostos para ter o direito de poder usufruir dos caros shows do Circo Voador ou da Fundio, sem ser incomodado pelo odor das frituras e dos cheiros no programados, nem pela gua imunda que escorre dos isopores dos vendedores de bebidas que suja e mancha seus sapatos. As barraquinhas onde se aglomeram os vagabundos ocupam o espao que deles, servem de estacionamento para os carros dos turistas e existem para seu consumo. Os vagabundos tambm tm o direito cidade. Eles s esto no lugar errado.

A pureza uma viso das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam se no fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e uma viso da ordem, isto , de uma situao em que cada coisa se acha em seu justo lugar e nenhum outro (...). No so as caractersticas intrnsecas das coisas que transformam em sujas, mas to somente sua localizao e, mais precisamente, sua localizao na ordem das coisas idealizadas pelos que procuram pureza. Baumam :1998. p114

Nestes espaos pblicos, corpos anestesiados pelo espetculo da diferena premem pela permanncia e no pela interao: nas mesas dos estabelecimentos cenogrficos cada mesa uma ilha formando um arquiplago sem pontes nem comunicao entre si ou com o continente - nada deve desviar a ateno dos turistas consumidores de sua intencionalidade, consumir[footnoteRef:23]. [23: Idem, ]

No avisaram menina pobre vendedora de balas que circula entre as mesas fugindo dos seguranas e garons que seu lugar no ali. Sua persistncia torna o sorriso amarelo, incomoda, cala momentaneamente as falas despreocupadas. Seus olhos tristes, suas roupas pudas, suas splicas transformadas em loas, teimam em lembrar aos consumidores que a cidade no pode ser contida pelos diques da esttica.Aqui nos sentimos mais cariocas afirma um turista urbano repleto de imagens. A Lapa o bero da malandragem[footnoteRef:24] comenta outro. Saudades do Rio, dizia a placa. Saudade tranqilizadora de um Rio de Janeiro nostlgico, que invoca passados estreis na busca de um sinnimo capaz de descrever a Alma Carioca. Poderia essa alma conjurar rebelies invisveis capazes de romper a letargia da memria? Do que feita a alma carioca? Que elementos ela comporta? Que foras nela fremem? Seria a saudade do Rio, profetizada na placa esquecida das pirmides, que transformava pessoas em cariocas? O mendigo nauseabundo expulso dos bancos de madeira do Passeio, a vendedora de balas, as meninas dos cortios da Rua da Lapa, os vagabundos que vagam pelas noites da Lapa, tambm so cariocas? [24: Nota extrada do dirio de campo.]

Para responder tais perguntas iremos buscar nas memrias, ou melhor, nas memrias do bairro, contadas pelos entulhos e fragmentos deixados pelas intervenes urbanas do sculo XX dar corpo Alma venerada pelos turistas, desmontar a aura etrea que habita os lugares, mapear os momentos em que ela se constitui, seus momentos de insurgncia e paradoxos resgatando da letargia as memrias urbanas, fazendo delas ferramenta capaz de fazer ruir a imagem nostlgica e a partir destas runas inventar outras cidades.

CAPTULO I

I.I A ALMA VICIOSA DA LAPA DO DESTERRO

Os tipos por aqui tem uma fisionomia especial, da Lapa... populao noturna,vive da crpula, entre os azares da campista e as rixas por causa de mulheres. - Presta ateno, a maioria destes sujeitos da Lapa so rapazes ainda bem novos. a flor...Ribeiro Couto, p 31, 1998.

Historicamente a urbanizao do espao que hoje compreende o bairro da Lapa ocorreu de forma tardia no contexto da zona central da cidade ao qual se insere. Incrustado entre as franjas do morro de Santo Antnio e do macio de Santa Teresa, povoada de brejos e pntanos at o sculo XVIII fora lugar de pequenas chcaras e esparsas casas. Com o aterramento da Lagoa do Boqueiro[footnoteRef:25] para a construo do primeiro jardim pblico do pas (Passeio Pblico) e o saneamento das terras o bairro comeara a crescer. Datam deste perodo os casares mais antigos, ocupados por famlias abastadas da sociedade[footnoteRef:26]. [25: A disposio geogrfica dessa lagoa tinha como localizao uma parte do antigo Largo da Lapa e Passeio Pblico, aterrada pelo Vice Rei Lus de Vasconcellos (sculo XVIII) devido ao alto grau de insalubridade decorrente dos dejetos do curtume que localizava nas suas margens. O material utilizado no aterro proveio do desmonte do Morro das Mangueiras, primeira demolio do gnero na cidade, que se situava anexo ao Morro do Desterro (antiga denominao do Bairro de Santa Teresa). Neste mesmo perodo fora construda a Igreja e convento imolados ao culto de Nossa Senhora da Lapa, que, devido ao fato de estar aos ps do Morro do Desterro, passara a compor o nome a este pedao da cidade Lapa do Desterro. Data deste perodo a construo do aqueduto definitivo em 1750 (o aqueduto provisrio construdo em 1742 rura). Esta construo permanece na entrada do bairro, apelidado de Arcos da Lapa. Coaracy: 1988 ] [26: Com a mudana da capital da colnia para o Rio de Janeiro, em 1763 a cidade assistira um crescimento populacional vertiginoso, que, mais tarde, fora incrementada com vinda da famlia real e da corte portuguesa, em 1808. Com o aumento do nmero de moradores tornou-se imprescindvel a construo de novas edificaes, ampliando os limites da cidade para regies ainda pouco exploradas, como Lapa, Glria, Catumbi, Cidade Nova e Sade. Para as anlises histricas que seguem fora utilizada como referencia as obras de Velasques : 1994; Coaracy : 1988 ]

Ao final do sculo XIX o bairro era ocupado por comerciantes e famlias tradicionais da sociedade, que ocupavam os grandes casares. Referncias ao bairro encontram-se espalhadas por toda a obra do escritor Machado de Assis, dando um panorama dos primrdios do bairro que surgia[footnoteRef:27]. A Lapa machadiana do sculo XIX, no entanto, em muito diferia da descrita pelos cronistas da primeira metade do sculo XX[footnoteRef:28] e que os projetos de interveno urbana buscam resgatar. [27: Uma referencia ao bairro na obra de Machado de Assis a descrio da Rua Matacavalos, atual Rua do Riachuelo, moradia inicial do personagem do livro homnimo, Don Casmurro. ] [28: Dentre a variada literatura sobre este perodo na Lapa, iremos utilizar como referncia a coletnea de texto Antologia da Lapa de Gasparino Damata (1978), a obra de Manuel Bandeira (s/d), Ribeiro Couto (1998) dentre outros. ]

Com as seguidas epidemias de febre amarela ocorridas na metade do sculo XIX e melhoria nos meios de transporte (surgimento dos primeiros bondes para a zona sul, uma rea ainda pouco habitada) a zona central lentamente deixara de ser moradia dessas famlias. Segundo Challoub (1999) os saberes cientficos que comeam a se consolidar no sculo XIX, atribuem aos hbitos, tradies e prticas corporais dos pobres[footnoteRef:29] (principalmente dos que transitavam, moravam e comercializavam produtos nas ruas da regio central e arredores) a fonte de todos os males que assolavam a cidade, sendo estes patologizados, tornando-os alvo das teraputicas urbanas postas em prtica no incio do sculo seguinte. [29: Challoub: 1999]

A heterogeneidade das ruas do centro da cidade neste sentido, tornara-se perigosa. Bairros ainda pouco habitados como Santa Teresa e outros da zona sul, como Glria, Catete e Botafogo (que ainda mantinham caractersticas rurais), tornam-se moradia dos migrantes em busca de ares mais sadios e espaos exclusivos, longe das multides e do contgio dos pobres. Em meados do sculo XIX e incio do XX os amplos casares tornaram-se penses para pobres e pequenos cortios abrigando uma populao em busca de moradia barata perto do centro da cidade (em especial trabalhadores do novo porto do Rio[footnoteRef:30]) bem como pessoas de passagem pela cidade (como os estudantes do Largo de So Francisco, polticos, marinheiros, dentre outros). A concentrao desta populao no bairro comea a atrair um tipo de comrcio diferente do existente at ento. [30: Apesar de ser uma cidade porturia com grande comercializao de mercadorias pela via martima (escoamento da produo de caf e importao de mercadorias para o consumo na capital) a cidade do Rio de Janeiro no possua um porto permanente e de grande porte. No incio do sculo XX foram aterradas as franjas da Baa da Guanabara, prximas ao bairro da Sade, Gamboa e Santo Cristo para a construo de um porto permanente, que hoje abrange na sua forma mais visvel a Avenida Rodrigues Alves e os antigos armazns do Porto do Rio muitos dos quais abandonados ou utilizados para atividades culturais. ]

Constituam o mundo ecltico da Lapa, seus bares, seus cafs, suas penses e conventinhos, seus rende-vous, de rameiras disfaradas em mocinhas de comrcio ou colgios. Mais ainda: seus bilhares, suas farmcias, engraxates, vendas, aougues, quitandas e cutelarias Mrio de Andrade, S/D, p.47.

Se durante o dia os moradores do centro buscavam aliviar o calor nos caminhos do Passeio Pblico e as carolas buscavam a salvao da alma nas igrejas e conventos durante a noite outras formas de comrcio comeam a surgir. Cafs danantes, cabars, bilhares, bares, bordis, cassinos e hotis[footnoteRef:31], comeam a marcar presena no bairro e seus arredores, proporcionando intenso movimento noturno e a convivncia, nem sempre pacfica ou harmoniosa, de diferentes personagens. [31: Devido localizao do bairro, prximo ao palcio do Catete e dos centros de poder poltico da nao, os hotis do bairro, com destaque ao Grande Hotel localizado onde hoje a Sala Ceclia Meirelles de msica, eram frequentemente ocupado por polticos de todas as regies do pas.]

Segundo Damata (1978) A partir de 1910 a Lapa tinha dupla personalidade: as residncias familiares misturavam-se s penses das decadas, embora estas de portas fechadas (grifo nosso). Mas, se na primeira dcada do sculo XX a Lapa comeava a ser insone, nos anos seguintes ela seria referncia de vida noturna da cidade. Os inmeros relatos deste perodo, resgatados pelos memorialistas da cidade a partir dos anos 1960[footnoteRef:32], nos apresentam a descrio de um bairro com intenso convvio social que conjugava intelectuais, artistas, malandros e valentes de toda espcie, polticos e prostitutas no espao pblico. neste contexto que comea a surgir um personagem urbano que ir simbolizar a noite do bairro: o bomio. [32: Segundo Velasques (1994) aps a mudana da capital da repblica para Braslia, iniciou-se um processo de valorizao do passado visando a construo de uma nova identidade para o Rio de Janeiro.]

Se o Rio da primeira metade do sculo XX tinha como modelo de cultura, sociedade e cidade a capital francesa faltava-lhe um bairro que fosse correlato ao bairro bomio europeu: o Montmatre[footnoteRef:33]. Com sua origem religiosa, igreja, convento, contraventores, marginais e prostitutas, o bairro a passou a ser local de confraternizao da intelectualidade, transformando-o de lugar obscuro[footnoteRef:34] e temido, na concretizao do ambiente intelectual europeu. A Montmatre dos trpicos era a Lapa. [33: Bairro parisiense onde se localiza a Catedral e o convento de Montmatre se tornou famoso devido aos seus bordis, dentre eles o Molin Rouge, e o convvio de bomios e intelectualidade. Nas palavras de Manuel Bandeira, tais caractersticas muito se aproximam das descritas do bairro francs Basta dizer que a Lapa um centro de meretrcio todo especial (onde vivem as mulatas mais sofisticadas do Rio), esse meretrcio se exerce em ambiente mstico irradiado da velha igreja e convento franciscanos.] [34: Dentre estes locais obscuros da cidade, com forte presena de prostituio, podemos citar, em especial, a rea do Mangue, que hoje compreende a chamada Cidade Nova. Aps a demolio do casario e das reformas no local a prefeitura construiu o prdio de sua sede administrativa, logo foi apelidado de piranho pela populao, dando a sede administrativa uma dupla conotao onde poder municipal a prtica de prostituio tornam-se, de forma jocosa, indissociveis.]

Pois a bomia possui vrios componentes, alis, claramente vistos por Murger, os amadores, jovens que desertam do lar da famlia para viver as aventuras de uma vida errante, mas a ttulo provisrio antes de se assentarem, e os artistas. Estes, em sua maioria a boemia ignorada- vivem pobres e desconhecidos, esticos, passivos, sem nunca alcanar a notoriedade. Eles morrem, em sua maior parte, dizimados por essa doena qual a cincia no ousa dar seu verdadeiro nome, a misria (...) Os outros uma minoria logram xito e reconhecimento: seus nomes so famosos. Perrot apud Velasques, 1994 p.22.

Imbudos deste esprito bomio, jovens solteiros atravs do convvio nas ruas buscam questionar o modelo burgus de famlia e sociedade. Seduzidos pela vida noturna, tecem um contraponto entre a vida do trabalhador diurno e a convivncia na assepsia do lar burgus, seus valores e modelo de famlia se sociabilidade[footnoteRef:35]. [35: De forma bem ampla podemos traar alguns limites desta sociabilidade burguesa atravs do modelo de famlia que ela prega. Este modelo, centrado no poder patriarcal, transforma o pai em grande provedor da famlia, a mulher - esposa, me a rainha do lar, responsvel pelo afazeres domsticos e educao dos filhos. Por ltimo e no menos importante o filhos, os reizinhos da casa burguesa futuro da nao e da famlia, devendo ser educado, corrigido e disciplinado de forma a ser apto a replicar os valores familiares adquiridos e o amor ao o trabalho. ]

Fascinados pelo que chamam de vida intelectual buscam no contato com a marginalidade e a pobreza uma forma de questionar valores.

A boemia constri um modelo simetricamente inverso vida privada burguesa. Primeiramente por sua relao invertida com o tempo e o espao; vida noturna sem horrios o bomio no usa relgio de intensa sociabilidade tendo como palco a cidade, os sales, os bares e avenidas. Perrot apud Velasques, 1994, p. 23. (grifo nosso)

Velasques (1994), em suas anlises sobre a Lapa bomia, traa a imagem do bomio como uma entidade que paira acima da cidade transita por ela de modo inclume sem se deixar afetar utilizando as ruas como espao do transitrio e passageiro, de experimentao de prazeres e dramas da juventude. Assim as almas sujas da cidade no incomodariam, no trariam desassossegos nem questionamentos. Malandros, prostitutas e travestis eram vistos como componentes de um cenrio repleto de tenses, mas ao mesmo tempo de encanto e fascnio. Alguns memorialistas deste perodo reforam esta perspectiva, mas se em suas falas estes buscam afirmar que nenhum se perdeu para a boemia, o que fica claro a constante tenso entre a alteridade e a imprevisibilidade permanente das ruas proporcionada pela vida bomia e o determinismo do intimismo burgus.

A boemia estaria ento entre a ingenuidade e a criminalidade. Encarnava, portanto, a ambigidade, o duplo, logo era perigosa. Artistas jovens ou no, radicais polticos, visionrios, excntricos, pobres ou ocasionalmente pobres, os rejeitados por suas famlias, todos estariam vivendo baseados em uma existncia marginal, que se opunha a admitir uma identidade social estvel e limitada. O estilo de vida deste grupo acabaria por representar os conflitos inerentes ao carter burgus. Velasques : 1994, p.85.

Fomos bomios sim, por sermos jovens. Muitos excessos praticamos, algumas loucuras fizemos. Mas as nossas almas e nossos caracteres no se contaminaram, no se macularam, no se deformaram. Permanecemos ntegros e intactos. Continuamos, pela existncia a fora, homens de bem, como ramos antes. Lus Martins apud Velasques, 1994, p.26.

Essa alma bomia do bairro inspirava a perverso dos seus freqentadores. A marginalidade[footnoteRef:36] era o combustvel que alimentava a rebeldia transgressora dos jovens. A vida noturna, os hbitos desregrados, a sociabilidade em bares e avenidas se contrapunham aos ditames da moral burguesa, intimidade e ao conforto do lar e transcendncia do poder disciplinador do trabalho. [36: No sentido estrito do termo, ou seja, aqueles que vivem a margem da sociedade. ]

A tenso entre a assepsia dos valores burgueses e as insurgncias da vida urbana subvertia aos planos de salvao contidos na formao do sujeito moderno repleto de individualidades, construdo por si atravs do acmulo de sensaes e lies que somadas dizem quem ele .Longe da proteo do lar intimista, misturado na confuso de corpos da cidade com suas vontades, volpias, paixes e desatinos o espao pblico, lar do bomio, proporcionava a construo de sensibilidades singulares, capazes de desmontar a pretenso do projeto de sujeito herico inserindo num campo de infinitas possibilidades, insinuando movimentos imprevisveis, desestruturando verdades, compondo e recompondo sociabilidades e polticas.Na vida noturna, personagens narravam o cotidiano do Rio de Janeiro bomio. Nela habitavam mulheres morenas de sotaque carregado, cocotes fugindo da pobreza e da misria, que teciam sonhos na penumbra dos quartos de penso. Corpos mquina na busca da realizao do desejo alheio. Sonhos negados e relembrados pelo sono tenso, com medo do escuro, pois na espreita da solido de seus quartos esto s lembranas e desejos de uma vida diferente. Sonhos que se esvaem ao final do expediente. Ao cair da noite de mais uma noite de trabalho a esperana contada e recontada atravs das escassas moedas. Dinheiro acumulado numa corrida desigual: ter o suficiente para sair da prostituio antes que a tuberculose, a sfilis ou a pior de todas as desgraas abatesse sobre elas - a degenerescncia, o fim da beleza ou da juventude.Tambm conviviam ali os negros pobres que voltavam para casa retornando da estiva enquanto outros ganhavam a vida na explorao de corpos para a prostituio, com pequenas bancas de jogos, na venda de proteo para bares, enfim numa ampla gama de atividades (quase sempre enquadradas como contraveno). Ali capoeiras, malandros feitos e outros valentes convivem na busca de subsistncia, sem conseguir com algumas raras excees[footnoteRef:37] sobreviver represso policial ou mesmo s brigas to freqentes. Alheios a misria que os cerca, polticos de passagem pela capital, empresrios, famlias aristocrticas, traam os rumos do pas em mesas de jogos dos cassinos ou rodadas de conversa no saguo do grande hotel da Lapa. [37: Um destes casos se tornou famoso na dcada de 1970, a partir de entrevista no extinto jornal Pasquim(n65, de 24/041971). Ali o malandro Madame Sat conta um pouco de sua vida, bem como do cotidiano da Lapa da primeira metade do sculo XX. Tal entrevista tornou-se famosa, transformando o malandro uma referncia que perdura at os dias atuais contando, inclusive, como filme homnimo lanado em 2004.]

O bomio, o malandro, as prostitutas, os polticos fragmentos de histrias que se perpassam, se misturam, se confundem, se estranham em conflitos explcitos ou velados, fazem do cotidiano um espao de produo de polticas baseadas na negociao, marcadas pela radicalidade da alteridade.Histrias que se entrelaam dando contornos sujos e imprevisveis alma bomia impedindo a fixao dos seus limites ou a totalizao de suas formas. Colocaremos a construo desta alma urbana/bomia no plural, manchando a concepo de espao idlico construdo pelos memorialistas. Trataremos este perodo a partir de agora como o perodo de gestao das almas bomias, ou seja, como um espao de infinitas possibilidades, capaz de inventar sociabilidades, tradies e experincias urbanas, atravs da tenso do espao pblico e negociao de polticas cotidianas; misturando prdios, corpos, ruas e praas ao emaranhado das experincias humanas. A cidade que surge a partir da abordagem baseada numa cartografia dinmica[footnoteRef:38] na tenso entre a racionalidade geomtrica das intervenes urbanas e o emaranhado de existncias humanas a da multiplicidade de estmulos e sentidos que ultrapassam a descrio fsica do mobilirio urbano ou das vidas transformadas em cenrio. [38: Gomes : 1994 ]

Tomadas nesta perspectiva as estrias emudecidas, os passados negados, projetos arquitetnicos e polticos ganham corpos, vontades, sensibilidades e desejos que se misturam frieza das pedras, prdios, praas e ruas. A leitura dos seus muitos momentos tem a marca da incompletude permanente, prpria da dinmica urbana e suas infinitas possibilidades, ou seja, apreend-la sem que seja apreendida, (ilegvel enquanto totalidade) devido multiplicidade que a compem[footnoteRef:39]. [39: Idem, p. 25.]

Diferente da cartografia que adotamos nesta dissertao, a alma urbana dos memorialistas que retratam este perodo tem um rosto voltado para a imutabilidade da histria tornando as contingncias ou imprevisibilidades em momentos totalizadores e perenes. Para estes a cidade possui uma identidade monoltica, que afirma, atravs dos rastros do passado, uma cidade que no pode vir a ser, mas que . Tal concepo muito se assemelha experincia divina da alma da crist, que dissocia corpos, desejos e sensibilidades de uma essncia pr-determinada e divina que transcende ao corpo fsico. Ao ser aplicado na cidade, essa alma metafsica transforma prdios, ruas, corpos e desejos em objeto de inmeras intervenes que visam purgar do espao as imperfeies do passado, mantendo uma determinada essncia, tornada imortal, produzindo um presente refm de um futuro imutvel, fadado a repetir-se perpetuamente, livre de vcios, pecados e contingncias.

Na condio de cidade capital, o Rio de Janeiro viveu uma situao particularmente tensa entre patrimonialistas e rememorialistas [...] Enquanto as representaes patrimonialistas tentavam fixar a histria atravs de um discurso esttico constitudo por objetos e paisagens, a experincia (dos rememorialistas) trazia as cenas naturais humanizadas pelo olhar. Esta perspectiva de pensar a histria implica torn-la no apenas um discurso do passado, mas, sobretudo enquanto construo voltada para o presente. Dessa maneira as identidades passam a ser forjadas no cotidiano a partir de escolhas e prticas. Veloso : 2004, p. 49.

Nesta cidade identitria repleta de si, o passado, revestido de auras de fascnio e adorao, assume contornos transcendentes, torna-se uma entidade de onde emanam verdades universais e eternas, inspirando uma Idia de cidade enquanto salvao dos perigos da barbrie promovidos pelas aglomeraes humanas. Dessa forma, patrimonialistas, memorialistas dentre outros inspirados pelo temor dos inesgotveis fazeres e astcias dos seres mortais - para quem as belezas e barbries so frutos no da Idia, mas dos atos, silncios, conflitos e experimentaes - do vida cidades cadavricas, cuja frieza sepulcral adorna uma alma que diz quem somos, o que devemos ser e para onde devemos ir, indicando a verdade de ser e no ser[footnoteRef:40], aplacando as angstias do indivduo burgus, que ante aos perigos do apagamento dos rastros que dizem quem ele , v na idealizao do passado a possibilidade de manter viva as lembranas de suas origens, preservando para a posteridade as marcas de sua trajetria espalhadas pelo tecido urbano. Podemos, no entanto, estranhar a insero desta alma neste ponto da dissertao, mas sua presena proposital, pois partir destes discursos que surge a aura bomia do bairro. [40: Para o desenvolvimento das anlises dos dois pargrafos acima, pegamos de emprstimo as algumas idias desenvolvidas por Baptista (2006) com algumas alteraes. ]

Este movimento, que comea a tomar forma no final de dcada de 1960, vai marcar a literatura e as crnicas que utilizamos nesta dissertao. nas brechas destes discursos, nos momentos em que ele escapa que podemos traar os contornos sempre indefinidos das almas bomias.Por outro lado, tambm no podemos deixar de questionar a emergncia de uma outra alma que surge no incio do sculo XIX, se insinua nos projetos de reformulao do incio do sculo e deixar profundas marcas na cidade. Chamaremos esta etrea, amorfa e quase divina de alma dos especialistas do urbano[footnoteRef:41]; alma que inscreve o espao como agente civilizador, articulado em torno de novas formas de conhecer e intervir no campo social. [41: "Todo o esforo que se observa no sculo XIX de se ela