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Dissertação.

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  • 1

    FERNANDA REGINA VILARES

    A RESERVA DE JURISDIO NO PROCESSO PENAL

    - DOS REFLEXOS NO INQURITO PARLAMENTAR

    Dissertao apresentada ao

    Departamento de Direito Processual da

    Universidade de So Paulo como

    exigncia parcial para obteno do grau

    de Mestre em Direito Processual Penal,

    sob a orientao do Professor Doutor

    Jos Raul Gavio de Almeida

    Universidade de So Paulo

    Faculdade de Direito

    So Paulo 2010

  • 2

    Quanto maior o poder, mais perigoso o

    abuso. E. BURKE, Discurso de 07.02.1771

  • 3

    AGRADECIMENTOS

    Certa vez um amigo disse que um trabalho acadmico nunca finalizado, ele

    simplesmente abandonado. Outro, ainda, alertou sobre a necessidade de entregar a

    dissertao com comeo, meio e fim, ainda que no se tenha atingido o nvel de excelncia

    almejado, uma vez que o ttulo de Mestre s ser obtido se o trabalho estiver completo.

    Assim, certa de que o trabalho poderia ser aprimorado em muitos aspectos e de que

    eu iria alter-lo enquanto me fosse permitido, abandono esta dissertao com a convico

    de que apesar de todos os esforos empreendidos, existem falhas, e estas devem ser

    atribudas apenas a mim, considerando o apoio encontrado em todos aqueles que me

    rodeiam.

    Comeo, portanto, agradecendo a meu orientador, Professor Jos Raul Gavio de

    Almeida, pois sem sua admisso, ateno e conselhos, no teria sequer iniciado esta

    jornada. Ao Professor Antonio Scarance Fernandes, mestre na mais profunda acepo do

    termo, com quem tanto aprendi e em cuja dedicao busco inspirao. Ao Professor

    Mauricio Zanoide de Moraes, responsvel pela minha iniciao no Processo Penal, dada a

    admirvel forma de lecionar, agradeo pelo grande estmulo minha veia acadmica, seja

    pelo elogio, seja pela crtica. E ao Professor Gustavo Henrique Righi Ivahy Badar, pelas

    preciosas consideraes feitas na ocasio do exame de qualificao.

    Aos meus pais, Fernando e Rosria, raros exemplos de eternos estudantes, pelo

    constante incentivo ao meu gosto pelas letras e pela sempre pronta ajuda, ainda que

    desajeitada, nos momentos de aflio. A minha irm, Cludia, cuja admirao impulsiona-

    me a sempre dar o meu melhor, pelo temor de desapont-la e pelo dever de servir de

    exemplo. Ao amigo-irmo, Victor, pelo favor de revisar este texto. s minhas avs,

    Antonia e Lecia, que sempre rezam e torcem pelo meu sucesso.

    A todos os amigos, colegas de trabalho e colegas de estudos, cujos nomes no

    posso transcrever pelo receio de cometer a injustia de deixar de mencionar algum.

    Contudo, tenho a certeza de que todos se sentiro includos em meu agradecimento ao

    lerem a descrio de todas as atitudes afetuosas recebidas nesse perodo. Agradeo-os,

    assim, pela obteno dos textos mais inacessveis; pelo envio das mais recentes decises

    dos tribunais sobre o tema estudado; pelo esclarecimento das minhas dvidas; pelas boas

    vibraes emanadas; pelos momentos de desabafo; pelas palavras de encorajamento nos

  • 4

    momentos de desnimo; e pela compreenso diante das inmeras recusas aos reiterados

    convites.

    Por fim e, principalmente, agradeo energia csmica, que alguns chamam de

    Deus, pela fora, serenidade e concentrao a mim proporcionadas, as quais me

    possibilitaram superar todas as intempries ocorridas nos ltimos trs anos e atingir o

    grande desejo de concluir a dissertao de Mestrado.

  • 5

    RESUMO

    Este estudo tem por escopo explorar o instituto da reserva de jurisdio, analisando

    suas origens, motivaes e conseqncias. Outrossim, visa estabelecer os critrios para se

    eleger as situaes que devem ser submetidas a ela quando no houver previso expressa

    no ordenamento jurdico, alm de aplic-lo ao mbito do Processo Penal, avaliando a

    necessidade de sua aplicao nos meios de prova e nos meios de obteno de prova.

    A reserva de jurisdio consiste no impedimento de outros rgos exercerem

    atividades pertencentes ao ncleo essencial da funo jurisdicional, sendo corolrio do

    princpio da separao dos poderes, um dos pilares do Estado Democrtico de Direito.

    Embora se admita uma interpenetrao entre as funes estatais, existe uma parcela

    de cada uma delas que s permite a interveno do rgo mais adequado e aparelhado para

    desenvolv-la. No caso da funo jurisdicional, isso ocorre quando o conflito de interesses

    a ser resolvido de forma definitiva envolve um bem constitucionalmente protegido ou um

    direito fundamental e s pode ser solucionado pelo Poder Judicirio.

    No obstante, pretende-se aplicar as concluses extradas acerca da reserva de

    jurisdio a uma situao prtica que se costuma se apresentar problemtica, a investigao

    perpetrada por meio das Comisses Parlamentares de Inqurito.

    O objetivo dar ao 3 do artigo 58 da Constituio Federal, que confere aos

    membros das CPIs poderes investigatrios prprios de autoridades judiciais, interpretao

    mais consoante com a tese desenvolvida, ou seja, defender que apenas os magistrados

    podem autorizar a efetivao de medidas restritivas de direitos fundamentais necessrias

    no bojo de um inqurito parlamentar, ainda que no haja expressa previso no

    ordenamento jurdico.

    Palavras-chave: Reserva de jurisdio funo jurisdicional medidas restritivas de

    direitos fundamentais Comisses Parlamentares de Inqurito poderes investigatrios

  • 6

    ABSTRACT

    This work aims to explore the scope of the institute Judicial Reserve, analyzing

    its origins, motivations and consequences. It also seeks to establish the criteria to choose

    the situations that should be subjected to it when there is no express provision in the legal

    system, and apply it to the scope of Criminal Proceeding, evaluating the need of its

    implementation in the evidence and in the means of obtaining evidence.

    Judicial Reserve is the prevention of other agencies carry out activities belonging

    to the core of the judicial function, which is a corollary of the principle of separation of

    powers, one of the pillars of the Democratic State.

    Although it is accepted interpenetration between the state functions, there is a

    portion of each that only allows the intervention by the most suitable and equipped agency

    to develop it. In case of the judicial function, this occurs when the conflict of interests to be

    resolved definitively involves a constitutionally protected good or a fundamental right, and

    can only be resolved by the Judiciary.

    Nevertheless, we intend to apply the conclusions drawn about the Judicial

    Reserve to a practical situation that used to present problems, the investigation conducted

    by the Parliamentary Committees of Inquiry.

    The goal is to give the 3 of article 58 of the Constitution, which gives members of

    CPI investigative powers similar to the judicial powers, interpretation more consonant with

    the thesis developed, ie, defending that only judges can authorize the execution of

    measures restricting fundamental rights on an parliamentary inquiry, although there is no

    express provision in the law.

    Keyword: Judicial Reserve judicial function measures restricting fundamental rights

    Parliamentary Committees of Inquiry investigative powers

  • 7

    SUMRIO

    1. INTRODUO ................................................................................... 10

    2. DA ORGANIZAO DO ESTADO DEMOCRTICO DE

    DIREITO ................................................................................................ 13

    2.1. CONSIDERAES INICIAIS SOBRE PODER, ESTADO E DIREITO .................... 14

    2.2. HISTRICO ........................................................................................................................ 17

    2.3. OS PRESSUPOSTOS DO ESTADO DE DIREITO NA TEORIA DE CANOTILHO 22

    2.4. CARACTERIZAO DO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO NO BRASIL 26

    2.4.1. SUBMISSO LEI .................................................................................................... 30

    2.4.2. RESPEITO DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ............................................. 32

    2.4.3. PODERES HARMNICOS E INDEPENDENTES ENTRE SI ............................. 35

    2.5. DAS FUNES ESSENCIAIS AO ESTADO E SUA DIVISO ................................... 37

    2.5.1. DA EVOLUO DA TEORIA DA SEPARAO DOS PODERES ..................... 37

    2.5.2. CONTEDO DAS FUNES .................................................................................... 41

    2.5.2.1. FUNO ADMINISTRATIVA .......................................................................... 44

    2.5.2.2. FUNO LEGISLATIVA E DE CONTROLE ESPECFICO ........................ 46

    2.5.2.3. FUNO JURISDICIONAL ............................................................................... 47

    2.5.3. CONJUNTURA ATUAL: INTERPENETRAO DE PODERES E EXERCCIO

    DE FUNES TPICAS E ATPICAS ............................................................................... 52

    3. RESERVA DE JURISDIO ........................................................... 58

    3.1. RESERVA RELATIVA E ABSOLUTA ........................................................................... 60

    3.1.1. DEFINIO DO CONTEDO DOS NVEIS DE RESERVA ......................... 63

    3.1.2. HIPTESES DE APLICAO DA RESERVA ABSOLUTA .......................... 65

    3.2. FATORES JUSTIFICANTES DA CLUSULA DE RESERVA DE JURISDIO

    68

    3.2.1. A ESSNCIA DA FUNO JURISDICIONAL E SEUS ATRIBUTOS

    INDEPENDNCIA, IMPARCIALIDADE E ISENO ................................................... 68

    3.2.1.1. LEGITIMIDADE DO PODER JUDICIRIO ................................................... 72

    3.2.1.2. INDEPENDNCIA OBJETIVA E SUBJETIVA (IMPARCIALIDADE E

    ISENO) .......................................................................................................................... 73

    3.2.1.3. GARANTIAS E INCOMPATIBILIDADES ...................................................... 77

    3.2.1.4. BREVES CONCLUSES .................................................................................... 80

  • 8

    3.2.2. A NATUREZA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A

    INDISPENSABILIDADE DE UMA DECISO JUDICIAL PARA SOLUCIONAR OS

    CONFLITOS ENTRE ELES ................................................................................................ 81

    3.2.2.1. CONTEDO ESSENCIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O

    SUPORTE FTICO DA NORMA ................................................................................... 82

    3.2.2.2. CONFLITOS ENTRE NORMAS E SUAS SOLUES .................................. 88

    3.2.2.3. O POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE .............................................. 94

    3.2.2.4. CONCLUSES PARCIAIS ............................................................................... 101

    3.2.3. O DEVIDO PROCESSO LEGAL E A IMPERIOSIDADE DA MANIFESTAO

    JUDICIAL ............................................................................................................................ 102

    3.3. CRITRIOS PARA ELEGER OS CASOS DE RESERVA DE JURISDIO

    ABSOLUTA IMPLCITAS..................................................................................................... 107

    4. A RESERVA DE JURISDIO NO PROCESSO PENAL ........ 111

    4.1. PROCESSO PENAL: FINALIDADES E A BUSCA DA VERDADE .................... 111

    4.1.1. ESCOPOS DO PROCESSO PENAL ....................................................................... 111

    4.1.2. A VERDADE PROCESSUALMENTE POSSVEL ............................................... 115

    4.2. MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS UTILIZADAS NA

    INSTRUO PROCESSUAL E SUBMETIDAS RESERVA DE JURISDIO ......... 124

    4.2.1. CONDUO COERCITIVA DE TESTEMUNHA ............................................... 129

    4.2.2. BUSCA E APREENSO ........................................................................................... 131

    4.2.3. INTERCEPTAO E GRAVAES TELEFNICAS ....................................... 136

    4.2.4. QUEBRA DE SIGILO DE OUTROS DADOS ........................................................ 141

    4.2.5. QUEBRA DE SIGILO FINANCEIRO .................................................................... 146

    4.2.6. OUTRAS MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ......... 153

    5. COMISSES PARLAMENTARES DE INQURITO ................ 154

    5.1. O PODER LEGISLATIVO E A FUNO DE CONTROLE ................................. 154

    5.2. COMISSES PARLAMENTARES DE INQURITO CONCEITO E ESSNCIA

    156

    5.3. PRESSUPOSTOS ......................................................................................................... 159

    5.3.1. REQUERIMENTO QUALIFICADO ................................................................ 159

    5.3.2. FATO DETERMINADO ..................................................................................... 161

    5.3.3. PRAZO CERTO................................................................................................... 164

    5.3.4. COMPETNCIA ................................................................................................. 165

    5.3.5. CORRELAO ENTRE OBJETO E INVESTIGAO ............................... 166

    5.4. PARALELISMO COM O PROCESSO PENAL ........................................................... 167

    5.5. PODERES INVESTIGATRIOS ................................................................................... 169

  • 9

    5.6. LIMITES DA ATUAO ................................................................................................ 172

    5.7. POSSVEIS RESULTADOS ............................................................................................ 174

    6. REFLEXOS DA RESERVA DE JURISDIO NO INQURITO

    PARLAMENTAR ................................................................................ 177

    6.1. A INVESTIGAO REALIZADA NO MBITO DO INQURITO

    PARLAMENTAR .................................................................................................................... 178

    6.1.1. INVESTIGAES PRELIMINARES .............................................................. 179

    6.1.2. A NATUREZA DOS ATOS PRATICADOS NA INVESTIGAO

    PRELIMINAR ..................................................................................................................... 183

    6.1.3. ATOS PRATICADOS NO MBITO DO INQURITO PARLAMENTAR . 188

    6.2. COMPARAO DOS ATRIBUTOS ESSENCIAIS AOS EXECUTORES DA

    FUNO JURISDICIONAL COM AS CARACTERSTICAS DOS PARLAMENTARES

    190

    6.3. SIGNIFICADO DA EXPRESSO PODERES DE INVESTIGAO PRPRIOS

    DE AUTORIDADES JUDICIAIS ........................................................................................ 196

    6.4. APLICAO DA CLUSULA DE RESERVA DE JURISDIO NO

    INQURITO PARLAMENTAR ............................................................................................ 207

    6.5. ATOS QUE PODEM SER PRATICADOS PELAS COMISSES

    PARLAMENTARES DE INQURITO ................................................................................ 212

    6.6. O DESRESPEITO CLUSULA DE RESERVA DE JURISDIO NO

    INQURITO PARLAMENTAR CONSEQNCIAS E REMDIOS ........................... 214

    7. CONCLUSO ................................................................................... 218

    8. BIBLIOGRAFIA .............................................................................. 224

    8.1. INTERNET ........................................................................................................................ 238

  • 10

    1. INTRODUO

    A reserva de jurisdio impe-se a situaes em que a funo do Poder Judicirio

    no pode ser exercida por qualquer outro poder, porquanto existe a necessidade de se

    solucionar, de forma definitiva, conflitos de interesses que resultam em restries a bens

    constitucionalmente protegidos. A interveno do Poder Judicirio seria indispensvel

    nesses casos, por ser o nico poder imparcial e legitimado para autorizar limitaes a

    direitos e garantias constitucionais.

    O instituto conhecido, mas ainda pouco estudado, de modo que sua utilizao

    acaba se restringindo s previses expressas no ordenamento, ignorando-se seu sentido

    material, suas origens, sua razo de ser, isto , a possibilidade e a necessidade de se

    estender a exigncia de deciso judicial prvia a casos no positivados. O prprio Supremo

    Tribunal Federal vem postergando manifestao decisiva sobre o tema.

    No Processo Penal sua definio de enorme importncia, tendo em vista que nas

    fases de investigao preliminar e de instruo criminal freqente a necessidade de se

    perpetrar medidas que afetam direitos fundamentais para a obteno de elementos de

    prova. Exemplo so as interceptaes telefnicas, a quebra de sigilo de dados e a

    realizao de exames atentatrios integridade fsica da pessoa, como o teste de DNA.

    Por outro lado, as Comisses Parlamentares de Inqurito so uma realidade

    inafastvel do cenrio poltico brasileiro. raro o dia em que se abre o jornal sem a notcia

    de uma investigao levada a cabo no mbito do Parlamento, seja ele municipal, estadual

    ou federal. Alm disso, os escndalos de corrupo e a explorao miditica desses casos

    exigem uma resposta imediata ao clamor pblico por justia.

    Nessa conjuntura, o inqurito parlamentar emerge como instrumento para

    implementao da fiscalizao e controle do Poder Executivo, tarefa atribuda

    expressamente ao Poder Legislativo por determinao constitucional. Para tanto, dado

    mximo significado idia de eficincia, deixando-se de lado, muitas vezes, a legalidade.

    No af de obter o maior nmero de informaes possveis para subsidiar suas atividades,

  • 11

    os parlamentares efetivam medidas que abalam direitos fundamentais dos envolvidos,

    crentes de estarem autorizados pelo disposto no artigo 58, 3 da Constituio Federal.

    Com efeito, referido preceito constitucional confere s Comisses Parlamentares de

    Inqurito poderes investigatrios prprios de autoridades judiciais. Muitos enxergam neste

    enunciado a possibilidade de atuar da mesma maneira que um magistrado atua na fase de

    instruo processual, deferindo a realizao de todo e qualquer tipo de meio de obteno

    de prova ou meio de prova. Ocorre que no a melhor interpretao. Em se tratando de

    conceito jurdico indeterminado, h que se empreender esforo para delimitar seu exato

    contedo.

    Temos, portanto, dois obstculos a superar. O primeiro, considerado central neste

    trabalho, a conceituao do instituto da reserva de jurisdio, bem como a definio dos

    critrios para sua aplicao, tanto de forma genrica, como no plano especfico do

    Processo Penal. Para tanto, ser necessrio entender a diviso de poderes existente no

    Estado Democrtico de Direito brasileiro e, sobretudo, definir o contedo exato da funo

    materialmente jurisdicional, a qual no poder ser compartilhada com nenhum outro poder

    estatal.

    Delineados os contornos da reserva de jurisdio e estabelecidos os critrios para

    eleger os casos que a ela devem ser submetidos, importante analisar a busca da verdade

    no Processo Penal, bem como os limites a ela impostos pelos direitos fundamentais dos

    indivduos, de modo a aplicar as concluses acerca do tema central do trabalho aos meios

    de obteno de prova e aos meios de prova, os quais tambm so utilizados no bojo do

    inqurito parlamentar.

    Ultrapassada esta fase, convm tratar do segundo obstculo, definir a extenso dos

    poderes conferidos s Comisses Parlamentares de Inqurito. Trata-se da aplicao, em

    uma situao prtica que comumente se apresenta como problemtica, da teoria sobre a

    reserva de jurisdio que ser desenvolvida.

    Uma prvia anlise sobre as caractersticas do inqurito parlamentar indispensvel

    para que seja ultimada esta tarefa, mas ser dado especial enfoque definio de atos

    investigatrios, bem como comparao das caractersticas dos membros dos Poderes

  • 12

    Judicirio e Legislativo, para que, ao final, sejam definidos os atos que podem ser

    perpetrados no mbito de uma investigao parlamentar e aqueles que dependem de prvia

    autorizao judicial, por fazerem parte do ncleo essencial da funo jurisdicional.

  • 13

    2. DA ORGANIZAO DO ESTADO DEMOCRTICO DE

    DIREITO

    Se a reserva de jurisdio envolve situaes em que apenas um dos poderes estatais

    pode se manifestar sobre determinados assuntos, indispensvel analisar a estrutura desse

    Estado para que entendamos o papel que cada um de seus rgos essenciais desempenha,

    chegando, portanto, definio do contedo exato da funo jurisdicional.

    Somente trilhando este caminho podemos entender o que um ato materialmente

    jurisdicional, de maneira a conseguir definir as hipteses em que apenas o Poder Judicirio

    poder efetuar a interveno num caso concreto. Encontraremos, assim, o que

    denominaremos de ncleo essencial da funo jurisdicional, rea que no admitir a

    interveno de qualquer outro rgo.

    Outrossim, tambm objeto deste estudo estabelecer limites para atuao das

    Comisses Parlamentares de Inqurito no que tange investigao pode elas desenvolvida.

    Para tanto, fulcral lembrar que so comisses pertencentes ao Poder Legislativo, entender

    as funes deste rgo e definir, por fim, at que ponto pode se imiscuir em atividades que,

    a priori, so atribudas ao Poder Judicirio.

    Desta feita, o entendimento acerca da composio de um Estado Democrtico de

    Direito mostra-se como ponto de partida para nossos escopos. Passamos, portanto,

    abordagem das noes iniciais de poder, Estado e Direito, para, depois de apresentar um

    breve histrico sobre o desenvolvimento do Estado de Direito, enumerar seus pilares

    essenciais e tratar de forma mais detalhada um deles, ponto central da primeira parte deste

    estudo, a separao dos poderes ou diviso de funes. Neste ltimo tpico que

    estudaremos as atribuies de cada rgo componente do Estado, dando especial ateno

    funo jurisdicional, vedete de nosso trabalho.

    Todo este esforo remete no apenas inteno de demonstrar a origem dos

    institutos estudados, mas tambm e, principalmente, para dizer que, ao se afrontar a

  • 14

    clusula de reserva de jurisdio, seja explcita ou implcita, estar-se- afrontando, em

    ltima instncia, a prpria essncia do Estado Democrtico de Direito, o que

    inadmissvel numa sociedade que se diga defensora da liberdade e protetora da dignidade

    da pessoa humana.

    2.1. CONSIDERAES INICIAIS SOBRE PODER, ESTADO E DIREITO

    O poder necessrio em qualquer dimenso de atividade humana e existiu desde as

    sociedades mais primitivas, exercendo uma funo de coordenao e coeso. Na sua

    acepo ligada ao conceito de Estado, apareceu j na Grcia antiga, mediante as palavras

    kratos (poder) e arch (fora) e permeia todas as designaes das formas de Estado como

    democracia ou aristocracia.1

    Orlando Viegas Martins Afonso preleciona que o poder do Estado, por um lado,

    traduz-se como um controle sobre as situaes sociais e, por outro, como uma supremacia

    sobre as pessoas, revelada pela capacidade de impor seus interesses a elas.2 Tal pode se

    concretizar de diferentes formas, o que ensejar as diversas qualificaes do poder.

    Noberto Bobbio nos ensina que direito e poder so duas faces da mesma moeda. Ao

    mesmo tempo em que s o poder tem o condo de criar o direito, sendo essencial sua

    positivao, s o direito capaz de limitar o poder.3 Em decorrncia dessa reciprocidade,

    temos que o Estado, como expresso do poder, tem uma permanente relao com o

    direito.4

    1 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Teoria do Estado e Cincia Poltica, 4 Ed. So Paulo, Editora Saraiva,

    1999, p. 76; AFONSO, Orlando Viegas Martins, Poder Judicial Independncia in dependncia, Coimbra, Livraria Almedina, 2004, p. 11. 2 AFONSO, Orlando Viegas Martins, Poder Judicial..., p. 11. Nesse sentido a definio de poder dada por

    Weber, segundo o qual poder a probabilidade de impor a prpria vontade dentro de uma relao social,

    mesmo contra toda a resistncia e qualquer que seja o fundamento desta probabilidade. Ver DUTRA, Delamar

    Jos Volpato, A legalidade como forma do Estado de Direito, in Kriterion, n. 109, Belo Horizonte,

    Jun/2004, p. 61, obtido em www.scielo.br, acesso em 17.11.2008. 3 BOBBIO, Noberto, O futuro da democracia, Marco Aurlio Nogueira (trad.), 10 ed., So Paulo, Paz e Terra,

    2000, p. 23. 4 A definio sociolgica de Estado preconizada por Weber revela adequadamente o fato do Estado ser uma

    expresso do poder. Para ele, o Estado um instituto poltico que mantm a ordem atravs do monoplio da

  • 15

    A relao supra mencionada tambm constatada por Dalmo Dallari, segundo o

    qual qualquer sociedade humana revela a presena de uma ordem jurdica e de um poder.

    Na verdade, o autor defende que o conceito de poder estatal est contido no conceito de

    ordem jurdica, a ponto de conceituar o Estado como a ordem jurdica soberana que tem

    por fim o bem comum de um povo situado em determinado territrio.5

    Nos termos desse conceito, todo poder possui qualificao jurdica. Apesar disso,

    impossvel afastar totalmente o vis poltico da sua configurao. Por tal razo, a idia de

    graus de juridicidade usada para explicar a alternncia dos fatores jurdico e poltico na

    qualificao do poder:

    ...quando se diz que o poder jurdico isso est relacionado a uma graduao de

    juridicidade, que vai de um mnimo, representado pela fora ordenadamente

    exercida como um meio para atingir certos fins, at a um mximo, que a fora

    empregada exclusivamente como um meio de realizao do direito e segundo as

    normas jurdicas.6

    Da mesma forma, Dalmo Dallari apresenta duas vertentes acerca da definio de

    Estado, a poltica, que se liga idia de fora, e a jurdica, que d primazia ao componente

    jurdico, destacando o elemento da ordem.7 Assim, sendo o Estado uma expresso de

    poder, como dito por Bobbio, podemos traar um paralelo entre as duas noes e concluir

    que, atualmente, busca-se o mximo de juridicidade em ambas, mas sempre so

    encontradas notas polticas nelas.

    No mesmo sentido, Celso Ribeiro Bastos assevera que o Estado de Direito

    preconizado pelos modernos estudiosos, deve significar a subordinao do poder a normas

    fora fsica, porquanto pode contar com a coero externa (o poder). Ver DUTRA, Delamar Jos Volpato, A

    legalidade como forma do Estado de Direito..., p. 61. 5 DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado, 22 Ed., So Paulo, Editora Saraiva,

    2001, p. 111 e 118. Para o autor, a noo de Estado deve dar maior nfase ao fator jurdico, sem, contanto,

    ignorar os fatores no jurdicos. 6 DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado..., p. 113-114.

    7 DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado..., p. 116-117.

  • 16

    jurdicas cuja positividade foi por ele declarada. Todavia, o poder nunca puramente

    jurdico, de modo que mesmo no grau mximo de juridicidade, haver um vis poltico.8

    Como se pode perceber, conquanto se reconhea a relao intrnseca entre direito e

    poder, a idia de Kelsen, segundo o qual o Estado uma ordem jurdica isenta de

    elementos polticos9 afastada pela maior parte dos autores, que temem o desvirtuamento

    do Estado Legal preconizado pelo estudioso austraco, pois, conforme Delamar Jos

    Volpato Dutra, o autor confundiu os conceitos de Estado Legal e Estado de Direito,

    deixando de se perguntar acerca da questo de legitimidade ou justia, o que possibilita

    justificar qualquer contedo.10

    Com efeito, em diversos momentos histricos, a legalidade

    formal foi utilizada para dar vestes legtimas a ditaduras, do que se pode citar o nazismo e

    o fascismo como exemplos.11

    Assim, o que diferenciar um Estado legtimo de uma ditadura sero os detentores

    do poder. Como se sabe, um governo classificado como autocrtico quando o poder

    exercido por apenas uma pessoa e denota a personalizao do poder, havendo uma

    dominao de cima para baixo. J a democracia verificada nos governos em que o poder

    conferido e exercido pelo povo como um todo, de baixo para cima, sendo conceito muito

    mais abrangente que o de mero Estado legal kelseniano12

    . O verdadeiro Estado de Direito

    8 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Teoria do Estado e Cincia Poltica, 4 Ed., So Paulo, Editora Saraiva,

    1999, p. 79. 9 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito..., p. 317. Delamar Jos Volpato Dutra afirma que tanto para Weber

    quanto para Kelsen, o Direito visto como uma ordem de coero, ou organizao da fora. Ocorre que para

    Kelsen validade da norma depende apenas de sua existncia. Para ele, o direito regula sua criao. o

    Direito que regula a conduta dos indivduos que praticaro os atos de Estado que criaro o Direito. Ora,

    diante disso, falar em Estado de Direito seria tautolgico, um pleonasmo, j que todo Estado, como ordem

    jurdica, Estado de direito. Cf, A legalidade como forma do Estado de Direito..., p. 62-63. 10

    DUTRA, Delamar Jos Volpato, A legalidade como forma do Estado de Direito..., p. 63. 11

    DALLARI, Dalmo de Abreu, Estado de Direito e Cidadania, in Direito Constitucional Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides, Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (org.), So Paulo,

    Malheiros Editores, 2001, p. 196; VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito, Agassiz Almeida

    Filho (trad. e pref.), Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 7; SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de

    Direito, in Direito Constitucional Brasileiro perspectivas e controvrsias contemporneas, Regina Quaresma e Maria Lcia de Paula Oliveira (coord.), Rio de Janeiro, Editora Forense, 2006, p. 11. 12

    SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.7. Noberto Bobbio afirma que por regime

    democrtico entende-se o conjunto de regras para a formao de decises coletivas em que est prevista e

    facilitada a participao mais ampla possvel dos interessados. Ver BOBBIO, Noberto, O futuro da

    democracia..., p. 22; SILVA, Jos Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, 22 ed. rev. e atual.,

    So Paulo, Malheiros Editores, 2003, p. 124.

  • 17

    deve ser entendido a partir da democracia, pois a partir desta que se revela a legitimidade

    do Direito.13

    Nessa esteira, segundo Bobbio, quando o poder pertence a apenas um indivduo ou

    a um seleto grupo deles, temos um Estado desptico, que o ideal do ponto de vista do

    poder. Por outro lado, quando o poder pertence ao povo e exercido pelo maior nmero de

    pessoas possvel, temos um Estado Democrtico, ideal do ponto de vista do Direito.14

    Ora, indubitvel que a evoluo histrica da humanidade nos defronta com as

    mais diversas formas de governo e de exerccio de poder, evoluo esta que merece anlise

    para que possamos compreender o sentido do Estado Democrtico de Direito preconizado

    como a forma ideal de exerccio do poder de acordo com as normas jurdicas. Sendo assim,

    passamos descrio da histria do desenvolvimento do Estado de Direito, desde sua

    forma mais simples e liberal, equivalente ao Estado Legal, passando pelo Estado Social,

    at chegar no atual Estado Democrtico de Direito, em que encontramos a configurao da

    separao dos poderes e donde brota o instituto aqui estudado da reserva de jurisdio.

    Sabemos da importncia do estudo das razes do surgimento de um instituto para

    seu perfeito entendimento. Portanto, passamos a um breve esboo histrico do nascimento

    do Estado Democrtico de Direito na histria da humanidade.

    2.2. HISTRICO

    A apario do Estado de Direito est ligada a uma determinada fase histrica da

    evoluo do estado absoluto ao liberal. Com efeito, os monarcas absolutistas que

    governavam o mundo at o sculo XVII, criavam e impunham as normas de forma livre,

    de maneira que o poder era exercido ilimitadamente. A partir do momento em que se

    passou a exigir o ajuste do exerccio do poder a prescries legais formuladas por um

    13

    DUTRA, Delamar Jos Volpato, A legalidade como forma do Estado de Direito..., p. 59. 14

    BOBBIO, Noberto, O futuro da democracia..., p. 23.

  • 18

    parlamento, iniciou-se um processo que culmina com o surgimento do Estado Democrtico

    de Direito.15

    Inocncio Mrtires Coelho tem interessante passagem sobre o surgimento do

    Estado de Direito, a qual vale transcrever:

    Precisamente por isso que, no plano histrico, sem discrepncias, juristas,

    filsofos e cientistas polticos assinalam o surgimento do Estado de Direito no

    momento em que se consegue pr freios atividade estatal por meio da lei, vale

    dizer, no instante em que o prprio Estado se submete a leis por ele criadas, ainda

    que isso possa parecer um paradoxo, e to embaraoso paradoxo, que j houve

    quem estabelecesse comparao entre a idia do Estado de Direito e o mistrio

    teolgico do Deus-Homem, o mistrio do criador da Natureza submetido a essa

    mesma Natureza.16

    poca da Revoluo Francesa, o desenvolvimento do capitalismo, bem como as

    exigncias do mercado ensejaram a alterao dos padres de governo absolutista, impondo

    a regulamentao do poder e do Estado pelo Direito. A limitao do poder real era vista

    como um desenvolvimento dos direitos inatos do indivduo, defendidos por tericos como

    Locke e Montesquieu, cujo meio de garantia seria a aplicao da regra tcnica da

    separao de poderes. Corolrio dessa tendncia, o artigo 16 da Declarao Universal de

    Direitos do Homem de 1789 consignou que s possua Constituio o Estado que

    assegurasse a garantia de direitos e estabelecesse a separao de poderes. 17

    A classe burguesa consolidou os valores do liberalismo dando particular nfase

    liberdade e proteo do indivduo. Nesse primeiro momento, surge o chamado Estado de

    15

    VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito..., p. 1-5; COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil

    Constitucional do Estado Contemporneo: o Estado Democrtico de Direito, in Revista de Informao

    Legislativa, ano 30, n. 118, abril\junho 1993, Braslia, p. 6. 16

    COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 6. 17

    VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito..., p. 4; COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil

    Constitucional do Estado Contemporneo...., p. 10.

  • 19

    Direito Liberal, classificado como meramente formal, pois o individualismo era o valor

    preponderante.18

    Esta forma de Estado de Direito apresentava como caractersticas bsicas

    a primazia da lei e do sistema hierrquico de normas, a observncia da legalidade por parte

    da administrao, a diviso dos poderes estatais e o reconhecimento e garantia dos direitos

    individuais, classificados como direitos fundamentais de primeira gerao.19

    Essas exigncias continuaram a existir nos modelos posteriores, embora o modelo

    proposto tenha esgotado suas possibilidades em virtude de ser unilateral. A igualdade por

    ele pregada era meramente formal, fundada na generalidade das leis. A garantia das

    liberdades propiciou o desenvolvimento capitalista, o que gerou novas tenses e lutas

    sociais. Nessa conjuntura, houve a necessidade desse Estado formal de Direito se

    transformar em Estado material de Direito com o escopo de realizar a justia social,

    preenchendo-se de contedos ticos, culturais e sociolgicos. Essa evoluo coincidiu com

    o surgimento da segunda gerao dos direitos fundamentais, os chamados direitos

    econmicos e sociais implementados pelas Constituies Russa de 1917 e de Weimar de

    1919.20

    Surge, assim, o Estado Social de Direito, cujo escopo converter em direito

    positivo, aspiraes sociais, conferindo-lhes garantias jurdicas claras e seguras. Para Jos

    Afonso da Silva, a palavra social pode ser interpretada de vrias maneiras, de modo que

    este modelo de Estado serve tanto para a democracia quanto para o totalitarismo. Diante

    18

    VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito, Agassiz Almeida Filho (trad. e pref.), Rio de Janeiro,

    Forense, 2007, p. 6; COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 7.

    Pablo Verd esclarece que as bases ideolgicas do Estado Liberal se fundamentam em pressupostos

    jusnaturalistas, que possuem carter individualista por estarem assentados no homem, titular desses direitos

    anteriores sociedade. A medida em que o Estado evolui, esses direitos passam a ser vistos como concesso

    dele, e se fundamentam na prpria lei positiva. p. 79-80. 19

    SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.8; VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado

    de Direito..., p. 13. 20

    SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p. 7, 11 e 15; COELHO, Inocncio Mrtires, O

    Perfil Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 10-11; VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de

    Direito..., p. 77-78; CORTEZ, Lus Francisco Aguilar, Judicirio e Democracia: organizao e funcionamento

    do Judicirio na Constituio Federal de 1988, Tese de Doutorado apresentada Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, 2004, p. 161-162. Pablo Verd afirma que a Constituio Alem no economiza

    no uso de expresses ricas em aspectos ticos, tais como dignidade humana, direitos sagrados e inviolveis,

    respeito moral, famlia e ao casamento, ver p. 78.

  • 20

    desta observao e da necessidade de se extirpar o sentido burgus da expresso Estado

    de Direito, o autor prope que a palavra social seja acoplada aps a mesma. 21

    Inocncio Mrtires Coelho observa que este modelo foi insuficiente, tendo em vista

    que no conseguiu realizar a democratizao econmica e social, no se concretizando a

    participao poltica do povo. Como se sabe, em muitos locais, a tentativa de aplicao do

    Estado Social de Direito ensejou o surgimento de regimes totalitrios, como o fascista e o

    nazista.22

    Para combater essa realidade, foram promulgadas as declaraes de direito ps-

    segunda guerra mundial, tentando instaurar um novo constitucionalismo, o que s se

    solidificou na dcada de 80, tendo em vista que a diviso do mundo em blocos retardou a

    disseminao da democracia.23

    Nessa conjuntura, revelou-se a necessidade de se integrar os valores da liberdade,

    preconizado pelo Estado Liberal, e igualdade, grande escopo do Estado Social, o que se

    buscou atingir por meio do Estado Democrtico de Direito.24

    por isso que Jos Afonso

    da Silva preleciona que este terceiro modelo de Estado um novo conceito que incorpora

    os princpios dos dois modelos anteriores, superando-os, uma vez que agrega um

    componente revolucionrio de transformao do status quo. O Estado Democrtico de

    Direito emana, portanto, como uma frmula na qual convergem as concepes atuais do

    socialismo e da democracia, sem deixar de lado, por bvio, as liberdades fundamentais.25

    Assim, resta patente que o Estado Democrtico de Direito representa uma evoluo

    do prprio Estado Liberal, no podendo ser rotulado como algo a ele contraposto. De

    acordo com Noberto Bobbio, o Estado Liberal pressuposto jurdico do Democrtico.

    Alm disso, o autor defende que o poder democrtico indispensvel para garantir a

    21

    SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.12-13; VERD, Pablo Lucas, A luta pelo

    Estado de Direito..., p. 79. 22

    COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 11-17; SILVA, Jos

    Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p. 15. 23

    CORTEZ, Lus Francisco Aguilar, Judicirio e Democracia..., p. 162-163. Foi o que ocorreu no Brasil, onde

    a democratizao foi deflagrada apenas na dcada de 80, com a campanha diretas j e culminou na

    promulgao da Constituio Cidad em 1988. 24

    COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 12-14. 25

    SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p. 8 e 16.

  • 21

    existncia e garantia das liberdades fundamentais, havendo, portanto, uma relao de retro-

    alimentao entre liberdade e democracia.26

    Bobbio construiu uma definio mnima de democracia, segundo a qual:

    ...por regime democrtico entende-se primariamente um conjunto de regras de

    procedimento para a formao de decises coletivas, em que est prevista e

    facilitada a participao mais ampla possvel dos interessados.27

    Fica claro que num regime delineado desta maneira, um nmero muito elevado de

    membros tem aptido para a tomada de decises. Ademais, no se deve menosprezar o

    compromisso entre as partes de realizar o livre debate para a formao da maioria, tendo

    em vista que a regra da maioria a fundamental na democracia.28

    Para tanto,

    indispensvel que os cidados possuam liberdade de pensamento e de expresso. Ao

    mesmo tempo, o fato das decises serem tomadas pelo povo assegura que seus direitos

    fundamentais no sero violados, o que comprova a tese de retro-alimentao.

    Logo, a democracia permite que o Direito segundo o qual o Estado ser constitudo

    seja manifestado livre e originariamente pelo povo. o que lhe confere legitimidade, nos

    termos da teoria de Habermas, no bastando a mera observncia da legalidade, embora esta

    tambm seja indispensvel. Neste Estado, o poder pertence ao povo, mas como no pode

    26

    BOBBIO, Noberto, O futuro da democracia..., p. 32-33. 27

    Idem, p. 22. 28

    Idem, p. 31. Embora no se possa deixar de lado a importncia da regra da maioria, deve-se consignar as

    crticas tecidas por Fbio Konder Comparato, baseado em Rousseau. Para ele, a vontade que deve ser levada

    em considerao no a da maioria, mas a geral. Elas diferem porque esta no pode ser obtida pelo mero

    cmputo numrico, mas sim pela homogeneidade de contedo ou objeto das diversas manifestaes de

    vontade. Nas palavras do autor: A expresso da soberania popular no fica, assim, confinada ao nmero dos votantes, mas qualidade dos votos. No rigor lgico desse raciocnio, a opinio da minoria, ou mesmo

    de um s, deveria ser tomada como expresso da vontade geral e, portanto, da soberania, se todos os demais votantes defendessem, com seus votos, interesses particulares e no o interesse geral. Cf. COMPARATO, Fbio Konder, Para Viver a Democracia, So Paulo, Brasiliense, 1989.

  • 22

    ser exercido por todos concomitantemente, ser conquistado mediante legtimos e normais

    processos democrticos. 29

    Neste ponto, interessante observar uma questo terminolgica. A Constituio

    portuguesa traz a expresso Estado de Direito Democrtico. Conquanto no se possa tax-

    la de equivocada, a expresso Estado Democrtico de Direito, adotada pela Constituio

    brasileira, muito mais adequada, pois o ideal que o adjetivo democrtico qualifique

    diretamente o Estado, de sorte a irradiar valores da democracia sobre todos os seus

    elementos constitutivos, sobretudo a ordem jurdica, conforme exposto no pargrafo

    anterior.30

    E por falar em Constituio Portuguesa, no poderiam ser olvidados os

    apontamentos de J.J. Gomes Canotilho sobre pressupostos do Estado de Direito, pois, alm

    do brilhantismo de sua teoria, ela serve perfeitamente justificao da defesa da reserva de

    jurisdio, haja vista o autor ser um dos precursores do tema objeto deste estudo.

    2.3. OS PRESSUPOSTOS DO ESTADO DE DIREITO NA TEORIA DE

    CANOTILHO

    Optou-se por abrir um item especfico para apresentar a viso de Canotilho sobre o

    Estado de Direito por esta ser bastante peculiar. Os autores que tratam do tema no

    costumam mencionar sua sistematizao, mas, em ltima instncia, aproxima-se do

    defendido pelos demais doutrinadores, apresentando, por bvio, uma admirvel evoluo.

    Canotilho enumera os pressupostos do Estado de Direito, englobando os materiais e

    os formais. Com efeito, pressuposto, em sua acepo jurdica, definido

    29

    REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito e o Conflito das Ideologias, 2 ed. rev., So Paulo,

    Saraiva, 1999, p. 2 e 9; DUTRA, Delamar Jos Volpato, A legalidade como forma do Estado de Direito..., p.

    59. 30

    SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.15; DALLARI, Dalmo de Abreu, Estado de

    Direito e Cidadania..., p. 196-197.

  • 23

    como circunstncia ou fato em que se considera um antecedente necessrio de outro31.

    Sendo assim, o ilustre doutrinador portugus elenca circunstncias que devem ser

    implementadas para que possa surgir um ambiente propcio ao desenvolvimento do Estado

    de Direito. So pressupostos materiais a juridicidade, a constitucionalidade e os direitos

    fundamentais; e so formais a diviso de poderes e a administrao local autnoma.

    A juridicidade relaciona-se idia de ordenao atravs do direito, ponto que j foi

    abordado em tpico anterior. No mesmo sentido do exposto, a lei formal no suficiente,

    apontando-se para a idia de Justia, exigindo-se proteo aos direitos e equidade na

    distribuio de direitos e deveres fundamentais.32

    Diz o autor:

    A justia far, assim, parte da prpria idia de direito (Radbruch) e esta

    concretizar-se- atravs de princpios jurdicos materiais cujo denominador

    comum se reconduz afirmao e respeito da dignidade da pessoa humana,

    proteco da liberdade e desenvolvimento da personalidade e realizao da

    igualdade.33

    A constitucionalidade pressupe a existncia de uma constituio normativa

    estruturante de uma ordem jurdico-normativa fundamental vinculativa de todos os poderes

    pblicos. Seu principal dote a supremacia da constituio, expresso do primado do

    Direito essencial ao Estado de Direito. Possui importantes implicaes, as quais passamos

    a abordar.34

    Deriva da constitucionalidade a necessidade do legislador se vincular

    constituio, de maneira a elaborar as leis em conformidade com o que nela est prescrito,

    isto , pelo rgo nela determinado, seguindo o procedimento nela firmado e dando-lhe a

    forma necessria. Outrossim, o contedo da constituio o parmetro material dos atos

    31

    Dicionrio Houaiss, disponvel em http://houaiss.uol.com.br, acesso em 06.12.2008. 32

    CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituio, 7 ed., Coimbra,

    Almedina, 2003, p. 243-245. 33

    Idem, p. 245. 34

    Idem, p. 245.

  • 24

    legislativos, que no podem contrari-la. Tambm devem possuir conformidade com a

    constituio todos os atos dos poderes pblicos. Tudo isso tem a ver com a fora normativa

    da constituio, que, apesar de no ter o condo de realizar uma regulao completa de

    todos os atos, no poder ser ignorada quando o fizer.35

    Ainda, a supremacia da constituio exprime-se atravs da reserva de constituio,

    segundo a qual determinadas questes no devem ser objeto de leis ordinrias. Sua

    concretizao d-se, basicamente, por meio de dois princpios: o princpio da tipicidade

    constitucional de competncias e o princpio da constitucionalidade de restries a direitos,

    liberdades e garantias.36

    O terceiro e ltimo pressuposto material do Estado de Direito o sistema de

    direitos fundamentais. Trata-se da necessidade de haver uma base antropolgica que o

    estruture, o que pode vir consignado por meio do respeito e garantia de efetivao dos

    direitos fundamentais, ou pelo embasamento na dignidade da pessoa humana.37

    Estes trs pressupostos j apontados relacionam-se idia de ordenao subjetiva, a

    qual confere aos indivduos um status jurdico ancorado nos direitos fundamentais. Porm,

    a seu lado, situa-se a ordenao objetiva que, conquanto no deixe de se relacionar com a

    constitucionalidade, tem como princpio estruturante o quarto pressuposto do Estado de

    Direito, a diviso de poderes.38

    Na verdade, Canotilho enxerga o princpio da diviso de poderes como uma das

    dimenses do princpio da separao de poderes que, por sua vez, possui uma dimenso

    negativa e uma positiva. A diviso de poderes a dimenso negativa, a qual implica a

    diviso, controle e limite do poder. Por sua vez, a dimenso positiva consiste na

    constitucionalizao, ordenao e organizao do poder. A primeira garante e protege a

    esfera dos indivduos, evitando a concentrao de poder. J a segunda, assegura a

    35

    CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituio..., p. 246-248. 36

    Idem, p. 247. 37

    Idem, p. 248. 38

    Idem, p. 250.

  • 25

    ordenao das funes do Estado, servindo de esquema de competncias, tarefas, funes e

    responsabilidades dos rgos constitucionais da soberania.39

    Por fim, o quinto pressuposto seria a garantia de administrao autnoma local, que

    tem relao com a problemtica do princpio democrtico, porquanto a democracia

    descentralizada possibilita uma maior participao dos cidados. O prprio autor admite

    que a conexo com o Estado de Direito no to clara, mas explica que a descentralizao

    funciona como limite ao poder central.40

    Expostos os pressupostos ao Estado de Direito, circunstncias que possibilitam seu

    surgimento na realidade ftica, h que se afirmar que o princpio do Estado de Direito

    propriamente dito um conceito constitucionalmente caracterizado, uma forma de

    racionalizao, cujos elementos podem ser identificados no texto fundamental. Canotilho

    afirma que, em geral, so considerados elementos do Estado de Direito a supremacia da

    Constituio; a legalidade da administrao; a diviso dos poderes; a independncia dos

    tribunais e a vinculao do juiz lei (que pode estar englobada no item anterior); e a

    garantia da proteo jurdica, isto , dos direitos fundamentais.41

    Deste rol, podemos extrair dois elementos essenciais discusso acerca da reserva

    de jurisdio, a diviso dos poderes e a garantia dos direitos fundamentais, os quais sero

    exaustivamente mencionados no decorrer deste trabalho.

    Aps essa breve explanao terica, torna-se indispensvel anlise do Estado de

    Direito existente na Constituio do Brasil de 1988, de modo a identificar e analisar a

    presena desses elementos na estrutura erigida pelo Constituinte.

    39

    CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituio..., p. 250. 40

    Idem, p. 253. 41

    Idem, p. 255.

  • 26

    2.4. CARACTERIZAO DO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO NO

    BRASIL

    Nossa Constituio Cidad incorporou os anseios da sociedade, abrindo

    perspectivas para a realizao social profunda mediante a prtica de direitos sociais e

    instrumentos de cidadania, fundando-se na dignidade da pessoa humana.42

    Nesse sentido, o

    artigo 1 da Constituio Federal do Brasil proclama e funda o Estado Democrtico de

    Direito nos seguintes termos:

    Art. 1 A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos

    Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de

    Direito e tem como fundamentos:

    I - a soberania;

    II - a cidadania;

    III - a dignidade da pessoa humana;

    IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

    V - o pluralismo poltico.

    Pargrafo nico. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de

    representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio.

    O regime democrtico est consignado no pargrafo nico, ao se afirmar que todo

    poder emana do povo. Observe-se, ainda, que a democracia estabelecida a representativa,

    42

    SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.17; CORTEZ, Lus Francisco Aguilar,

    Judicirio e Democracia..., p. 167.

  • 27

    uma vez que a Constituio fala em exerccio do poder por meio de representantes. O

    princpio da soberania popular , destarte, o fundamento maior do Estado Democrtico de

    Direito, impondo a participao efetiva e operante do povo na coisa pblica, possibilitando

    a garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana.43

    Os fundamentos previstos nos incisos do artigo so caractersticas decorrentes da

    adoo da democracia como fator legitimador da ordem jurdica brasileira e merecem

    ateno.

    Segundo Miguel Reale, a soberania nacional o direito que cada Nao tem de

    preservar sua prpria identidade cultural e salvaguardar seus prprios interesses.44 Com

    efeito, pressupe a excluso da subordinao do povo e do Estado brasileiros a

    determinantes externas de conduta ou atuao.45

    A cidadania e a dignidade da pessoa humana so fundamentos que devem ser

    interpretados conjugadamente, j que possuem ntima conexo. A cidadania pressupe o

    respeito dignidade da pessoa humana, uma vez que este confere a dimenso jurdico-

    poltica que cada cidado adquire nos termos no artigo 5 da Constituio. Alm do mais,

    ambos so ncleos de irradiao dos demais direitos fundamentais.46

    Alguns interpretam o valor da livre iniciativa como contrrio ao princpio

    democrtico. No entanto, ao consignar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o

    constituinte pretendeu apenas vedar a estatizao da economia, sem que isso indique

    inobservncia dos direitos sociais.47

    43

    SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.13-15. 44

    REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 3. 45

    SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p.13-15. 46

    REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 3; SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico

    de Direito..., p.17. 47

    REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 4; SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico

    de Direito..., p.19.

  • 28

    Por fim, o pluralismo poltico deve ser visto como a vedao ao totalitarismo e o

    partido nico, que impedem o desenvolvimento de uma sociedade participativa, bem como

    da efervescncia de idias tpicas de uma democracia.48

    Vale mencionar, tambm, que para Jos Afonso da Silva o verdadeiro Estado

    Democrtico de Direito que tiver os fundamentos acima expostos dever resultar na

    realizao de alguns princpios relevantes, quais sejam: o princpio da constitucionalidade;

    o princpio democrtico; a garantia da efetividade dos direitos fundamentais; o princpio da

    justia social; o princpio da igualdade; e a diviso de poderes, esta ltima prevista no

    artigo 2 da Constituio Federal.49

    Miguel Reale defende, ainda, que os artigos 5 e 6 da Constituio brasileira, os

    quais trazem em seu bojo a definio dos direitos individuais e sociais, so

    desdobramentos do artigo 1 ora em estudo, de maneira que tambm devem integrar o

    conceito de Estado Democrtico de Direito.50

    Isso porque o terceiro modelo de Estado no

    abandonou os preceitos do Estado Liberal e do Estado Social. Ao contrrio, simboliza uma

    sntese de ambos com a adio dos princpios democrticos.

    Essa breve anlise diz respeito estritamente aos contornos do Estado Democrtico

    de Direito delineado pela Constituio Federal brasileira de 1988. No entanto, para uma

    abordagem crtica completa, imperiosa a correlao com os pressupostos e elementos do

    Estado de Direito preconizados por Canotilho e apresentados no item 2.3.

    No que tange aos pressupostos, temos que a juridicidade nsita ao prprio

    conceito de Estado como ordem jurdica, nos termos dos itens iniciais deste estudo, sendo

    indiscutvel sua presena no Estado brasileiro. A constitucionalidade tambm resta patente

    a partir do momento em que a ordem jurdica normativa fundamental do pas estruturada

    por meio de uma constituio. Mencionamos, desde j, a presena indiscutvel da

    descentralizao administrativa, haja vista o federalismo institudo.

    48

    REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 4; SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico

    de Direito..., p.19. 49

    SILVA, Jos Afonso da, O Estado Democrtico de Direito..., p. 20-21. 50

    REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 3.

  • 29

    Os dois pressupostos faltantes merecem ateno especial. Alm de serem de

    extrema importncia, ambos acabam implicando ou se relacionando com o que Canotilho

    denominou de elementos do Estado de Direito e foram por ns destacados como centrais

    nas discusses sobre as justificativas da reserva de jurisdio. Assim, passamos a analis-

    los, tratando, em seguida, dos demais elementos.

    O sistema de direitos fundamentais algo essencial ao Estado de Direito, e foi

    lembrado com honras pelo constituinte brasileiro. Com efeito, no obstante a dignidade da

    pessoa humana ter sido eleita como seu fundamento, os artigos 5 e 6 da Carta Magna e

    seus inmeros incisos foram dedicados construo de um sistema de direitos e garantias

    tpicos de um Estado cuja preocupao central o indivduo, a pessoa humana. Lembrando

    que alm do sistema ser um pressuposto para a existncia do Estado de Direito, a garantia

    desses direitos tida como um elemento do instituto, e os inmeros mecanismos de

    proteo previstos nos dispositivos mencionados e em todo o texto constitucional

    comprovam sua existncia no Estado brasileiro.

    No que tange diviso de poderes, pressuposto e elemento do Estado de Direito

    para Canotilho, ela est prevista no artigo 2 da Constituio de 1988, conforme j

    mencionado acima, em dispositivo que deixa clara sua dimenso negativa, ao consignar a

    independncia e harmonia dos poderes, claro mecanismo de controle recproco que ser

    analisado pormenorizadamente adiante. Outro elemento aludido pelo autor portugus que

    pode ser considerado corolrio deste a independncia do Poder Judicirio, tambm

    insistentemente presente em nossa ordem jurdica.

    Finalmente, o nico elemento que no constitui pressuposto do Estado de Direito

    para Canotilho o princpio da legalidade. Em ltima instncia, por bvio, acaba se

    relacionando com a idia de juridicidade e respeito lei, relao esta to natural e evidente

    que, s vezes, deixa de ser mencionada expressamente.

    Temos, portanto, que o Estado Democrtico de Direito possui as caractersticas

    essenciais do Estado Liberal mencionadas em tpico anterior51

    , conjuntamente com as

    51

    Primazia da lei e do sistema hierrquico de normas, observncia da legalidade por parte da administrao,

    diviso dos poderes estatais e o reconhecimento e garantia dos direitos individuais.

  • 30

    caractersticas decorrentes da adoo do regime democrtico, que Canotilho divide em

    pressupostos e elementos e ns as identificamos na ordem jurdica brasileira.

    Diante da relevncia extrema de trs dos elementos estudados e das reiteradas

    aluses feitas pelos autores consultados, eles sero explorados com maior profundidade,

    at porque so erigidos por muitos como verdadeiros pilares do atual Estado Democrtico

    de Direito brasileiro: o princpio da primazia da lei; a dignidade da pessoa humana; e a

    independncia dos poderes.

    2.4.1. SUBMISSO LEI

    Como exposto acima, a primazia da lei um princpio que surgiu com vistas a

    limitar o poder absoluto exercido pelos monarcas at o sculo XVI, que possuam livre

    atividade criadora. Segundo Pablo Lucas Verd, a formalizao do Direito, a partir da qual

    o Estado insere-se na juridicidade, iniciou-se com a escola naturalista protestante, que vai

    de Grcio a Kant. A partir de ento, a lei passa a ser vista como esquema geral, formal e

    obrigatrio, apoiada na fora do aparato estatal.52

    E se a lei, ou melhor, o Direito, fruto da vontade do povo, ainda que por meio da

    representao parlamentar, todos devem se submeter a ela, inclusive e, sobretudo, o

    governante, evitando-se, assim, o cometimento de atos com abuso de poder. Essa a razo

    maior de ser do surgimento do Estado de Direito.

    Segundo esclio de Jos Afonso da Silva, a submisso ao imprio da lei a nota

    primria do conceito de Estado de Direito, considerando-se a lei como ato formalmente

    emanado do Poder Legislativo, o qual se compe de representantes do povo. Essa lei deve

    ser geral e abstrata, para que dela deflua a igualdade.53

    J sabemos que essa igualdade

    meramente formal se legalidade no forem acrescentados elementos democrticos, razo

    52

    VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito..., p. 16. 53

    SILVA, Jos Afonso da, Curso de direito constitucional positivo..., p. 112-118.

  • 31

    pela qual para que haja um verdadeiro Estado de Direito, no basta a submisso lei,

    sendo necessrios, no mnimo, o respeito dignidade humana e a diviso de poderes.

    Muito pertinente a transcrio de um trecho da obra de Jos Joaquim Gomes

    Canotilho em que discorre sobre o tema:

    O princpio da legalidade postula dois princpios fundamentais: o princpio da

    supremacia ou prevalncia da lei (Vorrang des Gesetzes) e o princpio da reserva

    de lei (Vorbehalt ds Gesetzes). Estes princpios permanecem vlidos, pois num

    Estado democrtico-constitucional a lei parlamentar , ainda, a expresso

    privilegiada do princpio democrtico (da sua supremacia) e o instrumento mais

    apropriado e seguro para definir os regimes de certas matrias, sobretudo dos

    direitos fundamentais e da vertebrao democrtica do Estado (da a reserva de

    lei).54

    De qualquer maneira, resta patente que a legalidade foi um parmetro

    implementado para proporcionar aos cidados tratamento digno e equnime. Digno

    porquanto no sero admitidos atos abusivos por parte dos detentores do poder e equnime

    porquanto todos recebero o mesmo tratamento de acordo com os ditames legais. Nesse

    sentido, Miguel Reale aduz que o princpio da legalidade:

    consiste em no pretender que a vontade individual ou coletiva seja superior

    vontade objetivamente consubstanciada nos mandamentos da Constituio e das

    Leis.55

    54

    CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituio..., p. 256. 55

    REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 9.

  • 32

    Observe-se que o conceito de legalidade evoluiu a ponto de desenvolver diversos

    vieses. Sob o ponto de vista de um cidado comum, a legalidade um direito negativo, por

    assegurar que no ser obrigado a fazer ou deixar de fazer nada se no houver uma lei que

    lhe imponha o dever. Mas sob o ponto de vista do Estado, que o verdadeiro

    desenvolvimento da primazia da lei atinente aos primrdios do Estado de Direito, traz a

    idia de que a administrao s pode ser exercida em conformidade com a lei. o que se

    denomina legalidade estrita.56

    A primazia da lei, portanto, contrape-se a qualquer exacerbao personalista dos

    governantes e ope-se a qualquer forma de autoritarismo, pois sua raiz a idia de

    soberania popular, na medida em que o poder emana do povo e os executores do poder so

    meros representantes deles. Como tais, devem observar estritamente os enunciados legais,

    que nada mais so do que a expresso da vontade do povo.57

    Adiante, veremos que a existncia de um rgo judicial fulcral para garantir a

    legalidade. Antes, porm, cumpre discorrer sobre a dignidade da pessoa humana.

    2.4.2. RESPEITO DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

    A idia do ser humano como valor absoluto originou-se com o surgimento do

    Cristianismo e consolidou-se aps a obra de Kant sobre o tema, para quem o ser humano

    um fim em si mesmo e a dignidade humana seria decorrente da razo e liberdade

    humanas.58

    56

    MELLO, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 25 Ed. rev. e atual. at a EC 56 de

    10.12.2007, So Paulo, Malheiros Editores, 2008, p. 101 e 105. Observe-se que a legalidade como direito do

    cidado prevista no inciso II do artigo 5 da Constituio Federal, enquanto que a legalidade a que se

    submete o aparato estatal, est consignada no artigo 37, caput, da mesma. 57

    MELLO, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo..., p. 100-101. 58

    COSTA, Helena Regina Lobo da, A Dignidade Humana: teorias de preveno geral positiva, So Paulo,

    Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 21 e 24; GARCIA, Edins Maria Sormani, O fundamento da

    consagrao da pessoa humana no texto constitucional brasileiro de 1988, in 15 anos da Constituio

    Federal: em busca da efetividade, Jos Roberto Martins Segalla e Luiz Alberto David Araujo (coord.),

    Bauru, EDITE, 2003, p. 212; WAJNGARTEN, Aron e BRIANI, Alberto, Aplicao do Princpio da Dignidade

  • 33

    Segundo Miguel Reale, o valor da pessoa humana :

    valor fonte, ou seja, aquele do qual emergem todos os valores, os quais somente

    no perdem sua fora imperativa e sua eficcia enquanto no se desligam da raiz

    de que promanam.59

    Por isso, o princpio da dignidade da pessoa humana considerado o fundamento

    filosfico dos direitos fundamentais, expressando-se por meio deles. O princpio da

    dignidade da pessoa humana uma diretriz estrutural e axiolgica que determinou a

    inscrio dos direitos fundamentais em nossa Constituio e, ainda, exerce influncia sobre

    o trabalho hermenutico do legislador, do administrador e do julgador. Note-se que

    prevaleceu uma conceituao ampla dele, abrangendo tanto os direitos individuais quanto

    os sociais.60

    Conforme preleciona Flvia Piovesan, os direitos fundamentais so elemento bsico

    de realizao do princpio democrtico. A Constituio de 1988 elegeu a dignidade da

    pessoa humana como valor essencial, o que significa que a pessoa o fim e o fundamento

    da sociedade e do Estado e, conseqentemente, da ordem jurdica.61

    A dignidade da pessoa humana no apenas princpio fundamental da constituio,

    mas tambm de todo ordenamento jurdico e das aes estatais. Com sua positivao, fica

    Humana, in 15 anos da Constituio Federal: em busca da efetividade, Jos Roberto Martins Segalla e Luiz

    Alberto David Araujo (coord.) Bauru, EDITE, 2003, p.41; TAVARES, Andr Ramos, Princpio da Dignidade

    da Pessoa Humana, in 15 anos da Constituio Federal: em busca da efetividade, Jos Roberto Martins

    Segalla e Luiz Alberto David Araujo (coord.) Bauru, EDITE, 2003, p. 16. 59

    REALE, Miguel, O Estado Democrtico de Direito..., p. 100. 60

    COSTA, Helena Regina Lobo da, A Dignidade Humana..., p. 31 e 37; MORAES, Maurcio Zanoide de,

    Presuno de inocncia no Processo Penal Brasileiro: anlise de sua estrutura normativa para a

    elaborao legislativa e para a deciso judicial, Tese apresentada Egrgia Congregao da Faculdade de

    Direito da Universidade de So Paulo como exigncia parcial obteno do ttulo de Livre-Docncia em

    Direito Processual Penal, So Paulo, 2008, p. 227. 61

    PIOVESAN, Flavia, Direitos Humanos e o direito constitucional internacional, 7 ed. rev., ampl. e atual.,

    So Paulo, Editora Saraiva, 2006, p. 26-28; WAJNGARTEN, Aron e BRIANI, Alberto, Aplicao do Princpio

    da Dignidade Humana..., p.40.

  • 34

    claro que o homem o incio e o fim da sociedade, do Estado e do Direito, no sendo o

    meio para a consecuo de algum outro objetivo.62

    Nesse sentido, o Estado existe em funo de todas as pessoas e no o contrrio. O

    mesmo deve ser dito com relao ao Direito. Uma prova disso no direito posto que o

    captulo referente aos direitos fundamentais em nossa Constituio antecede ao captulo

    que trata da organizao do Estado.63

    Outrossim, deve ser destacado que a forma com que

    a Constituio Federal de 1988 protege a pessoa humana denota que ela o valor supremo

    da democracia, raiz antropolgica constitucionalmente estruturante do Estado.64

    O seguinte excerto de Edlson Pereira Farias expressa muito bem o papel exercido

    pela pessoa humana na ordem jurdica:

    "A pessoa humana hoje considerada como o mais eminente de todos os valores

    porque constitui a fonte e a raiz de todos os demais valores. Representa 'a fonte

    principal de enriquecimento e de dinamismo da sociedade'. Por conseguinte, a

    pessoa humana expressa a fonte e a base mesma do direito, revelando-se, assim,

    critrio essencial de legitimidade da ordem jurdica."65

    No mbito especfico do Processo Penal tambm se constata que o ser humano

    um valor supremo contra o qual o Estado no pode perpetrar nenhuma ao violadora. Isso

    porque os direitos fundamentais dirigidos a este ramo jurdico exigem que as investigaes

    sejam levadas a cabo respeitando-se os limites e formas legtimas.66

    Assim, retomando a idia de Estado de Direito material abordada em tpico

    anterior, afirmamos que ele s ser realizado plenamente se houver respeito dignidade

    62

    MORAES, Maurcio Zanoide de, Presuno de inocncia..., p. 236-237. 63

    WAJNGARTEN, Aron e BRIANI, Alberto, Aplicao do Princpio da Dignidade Humana..., p. 41; TAVARES,

    Andr Ramos, Princpio da Dignidade da Pessoa Humana..., p. 27. 64

    GARCIA, Edins Maria Sormani, O fundamento da consagrao da pessoa humana..., p. 224. 65

    FARIAS, Edilson Pereira, Coliso de Direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a

    liberdade de expresso e informao, 2ed. atual., Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 56. 66

    MORAES, Maurcio Zanoide de, Presuno de inocncia..., p. 233.

  • 35

    humana e aos direitos fundamentais. O Estado Democrtico de Direito, ao contrrio do

    Estado Legal, no se legitima por meio da mera subordinao lei. necessrio, tambm,

    que se observem os valores fundamentais consubstanciados na dignidade humana.67

    Por tal

    razo, temos que o princpio da dignidade da pessoa humana um dos grandes pilares do

    modelo de Estado Democrtico de Direito.68

    Diante de tamanha importncia, essencial que exista um rgo com atributos que

    permitam promover sua proteo da melhor maneira possvel. Nessa estrutura estatal

    exposta, este rgo o Poder Judicirio e nenhum outro poder se imiscuir nessa atividade.

    O porqu dessa conjuntura comea a ser explicado pelo estudo da teoria da separao dos

    poderes, o que passamos a fazer no item seguinte.

    2.4.3. PODERES HARMNICOS E INDEPENDENTES ENTRE SI

    Os tericos do sculo XVII, como Locke e Montesquieu, conceberam a regra

    tcnica da separao de poderes como meio de garantir o primado da lei e a limitao do

    poder, com vistas a proteger os direitos fundamentais. Em suma, a teoria da separao dos

    poderes foi concebida com vistas a garantir o Estado de Direito. Por tal razo, foi

    consignada na Declarao de Direitos do Homem e do Cidado como requisito

    indispensvel em uma constituio.69

    A evoluo dessa teoria at os dias atuais possui inmeros fatores relevantes para o

    objeto deste estudo, em funo do que ser tratada em item especfico. No entanto, por ora,

    basta afirmar que o artigo 2 da Constituio Federal de 1988 consagrou a diviso de

    poderes do Estado Democrtico de Direito brasileiro nos seguintes termos: so poderes

    da Unio, independentes e harmnicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judicirio.

    67

    COSTA, Helena Regina Lobo da, A Dignidade Humana..., p. 37. 68

    GARCIA, Edins Maria Sormani, O fundamento da consagrao da pessoa humana..., p. 222. 69

    VERD, Pablo Lucas, A luta pelo Estado de Direito..., p. 4; COELHO, Inocncio Mrtires, O Perfil

    Constitucional do Estado Contemporneo..., p. 10; TAVARES, Andr Ramos, Repartio de funes estatais:

    fundamento, estrutura e finalidade, in Revista do Advogado, Ano XXIII, n. 73, novembro de 2003, p. 21-23.

  • 36

    Extrai-se do texto constitucional que no foi imposta ao Brasil a teoria radical de

    separao total de poderes pregada por alguns que, como se ver, sequer foi defendida por

    Montesquieu. A organizao dos Poderes de Estado brasileiros tem grande influncia da

    teoria dos freios e contrapesos elaborada pelos tericos norte-americanos e, em virtude

    disso, deve obedecer a essas duas premissas: independncia e harmonia.

    Segundo Jos Afonso da Silva:

    A independncia dos poderes significa: (a) que a investidura e permanncia das

    pessoas num dos rgos do governo no dependem da confiana nem da vontade

    dos outros; (b) que, no exerccio das atribuies que lhes sejam prprias, no

    precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorizao; (c)

    que, na organizao dos respectivos servios, cada um livre, observadas apenas

    as disposies constitucionais e legais.70

    Sendo assim, todos os Poderes do Estado possuem total liberdade para o exerccio

    de suas competncias, sem que os demais se imiscuam em seus assuntos. Todavia, para

    no haver uma total segmentao da atuao governamental, tendo em vista a unicidade do

    poder, h que se observar a harmonia em sua atuao.

    A cortesia deve pautar a conduta de todos os rgos representantes dos Poderes

    estatais, havendo respeito recproco s prerrogativas e faculdades de cada um. Por outro

    lado, com vistas a atingir o equilbrio necessrio realizao do bem da coletividade,

    evitando-se arbtrios e desmandos, a Constituio Federal permite, em alguns casos,

    interferncias de um Poder no outro, de modo que a independncia preconizada acima no

    pode ser tomada como absoluta. Exemplos dessas ingerncias so o poder de veto do

    70

    SILVA, Jos Afonso da, Curso de direito constitucional positivo..., p. 110.

  • 37

    Presidente da Repblica em face de atos legislativos e a declarao de

    inconstitucionalidade das leis por parte dos tribunais.71

    A existncia de uma colaborao entre os Poderes estatais facilmente depreendida

    do exposto, sendo um dos pilares que sustentam o atual Estado Democrtico de Direito.

    O tema, no entanto, enseja grandes discusses quando adentramos ao estudo de

    cada uma das funes exercidas pelos poderes, tarefa que devemos empreender, haja vista

    o objeto deste trabalho. Com efeito, pretendemos delinear com exatido a funo que deve

    ser exercida por cada um dos Poderes estatais para, ento, demonstrar que a funo

    essencial do Poder Judicirio no pode ser exercida por qualquer outro rgo. Alm disso,

    pretendemos provar que a restrio de direitos fundamentais na aplicao da lei a casos

    concretos no est contida no rol de atribuies relativas funo legislativa.

    Destarte, faremos uma breve exposio acerca da teoria da separao dos poderes

    para, depois, examinar pormenorizadamente o contedo das funes exercidas por cada um

    deles. Considerando a amplitude do assunto, ele ser abordado em tpico especfico.

    2.5. DAS FUNES ESSENCIAIS AO ESTADO E SUA DIVISO

    2.5.1. DA EVOLUO DA TEORIA DA SEPARAO DOS

    PODERES

    Embora a teoria da separao dos poderes s tenha ganhado corpo e divulgao no

    sculo XVII, sua elaborao remete Antiguidade, quando Plato e Aristteles

    desenvolveram a teoria da constituio mista e sua idia de equilbrio de foras diversas.72

    71

    SILVA, Jos Afonso da, Curso de direito constitucional positivo..., p. 110-111.

  • 38

    J sob a influncia do movimento iluminista, John Locke delineou a existncia de

    trs Poderes no Estado, o Legislativo, que seria responsvel pela edio de leis; o

    Executivo, a quem caberia a aplicao das leis; e o Federativo, cuja atribuio era cuidar

    das relaes exteriores, sobretudo de assuntos ligados a paz e guerra. Enquanto o Poder

    Legislativo deveria ser exercido pelo Parlamento, os demais eram conferidos ao monarca.73

    Como se percebe, o autor ingls no mencionou o Poder Judicirio.74

    Mas foi Mostesquieu, estudioso francs que se debruou sobre a realidade inglesa,

    que elaborou a grande sistematizao sobre a separao de poderes na obra Do Esprito da

    Leis. O autor norteou-se pela idia de pessimismo antropolgico, partindo do pressuposto

    de que todo aquele que possui poder sem limites tende a se corromper, de modo que devem

    ser criados mecanismos que impeam qualquer abuso.75

    O estudioso transplantou para mbito da teoria poltica uma viso mecanicista do

    universo, em que os trs rgos do Estado apresentariam um equilbrio semelhante quele

    que se verifica na trajetria dos astros.76

    A teoria de Montesquieu vislumbrou trs funes, as quais deveriam ser

    desempenhadas por trs rgos, ou centros de autoridade, distintos, os quais foram

    denominados de poderes em sua obra.77

    Karl Lowenstein esclarece que a teoria da

    separao de poderes significa que, por um lado, o Estado tem de cumprir vrias funes e,

    por outro, os cidados so beneficiados quando elas so exercidas por diferentes rgos.

    72

    REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio e Separao de Poderes, in

    Direito Constitucional Brasileiro perspectivas e controvrsias contemporneas, Regina Quaresma e Maria Lcia de Paula Oliveira (coord.), Rio de Janeiro, Editora Forense, 2006, p. 195; RUSSOMANO, Rosah, Curso

    de Direito Constitucional, 5 ed. rev. e atual., Rio de Janeiro, Freitas Bastos Editora, 1997, 136; CORTEZ,

    Lus Francisco Aguilar, Judicirio e Democracia..., p. 171. 73

    REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio... p. 196; RUSSOMANO, Rosah,

    Curso de Direito Constitucional..., p. 137 74

    REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio..., p. 197; CORTEZ, Lus

    Francisco Aguilar, Judicirio e Democracia..., p. 171. 75

    REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio..., p. 197; TAVARES, Andr

    Ramos, Repartio de funes estatais..., p. 22. 76

    REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio..., p.. 197. 77

    KORZENIAK, Jose, La separacion de los poderes del gobierno, in Defensa de La Constitucion Nacional,

    Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Montevideo, 1986, p. 25; RUSSOMANO, Rosah, Curso de Direito

    Constitucional..., p. 137.

  • 39

    Trata-se, portanto, de uma distribuio de funes estatais com o escopo de controlar o

    arbtrio.78

    Rosah Russomano afirma que o Montesquieu tratou do Poder Legislativo, Poder

    Executivo do Direito Internacional e Poder Executivo do Direito Civil, mas os demais

    autores costumam adaptar a terminologia, falando em Poder Legislativo, Executivo e

    Judicial, respectivamente.79

    Com efeito, para Montesquieu, a funo legislativa seria aquela responsvel pela

    elaborao das leis gerais e abstratas, podendo alter-las ou ab-rog-las. O Poder Executivo

    do Direito Internacional, ou apenas executivo, trata dos assuntos de guerra e paz, defende a

    soberania, ou seja, cuida das relaes internacionais e executa as leis. Finalmente, o Poder

    Executivo do Direito Civil, ou Judicial, tem a atribuio de punir os crimes ou julgar as

    querelas dos indivduos. Cumpre ressaltar que o Poder Executivo deve ser exercido pelo

    monarca, porquanto necessite de uma ao imediata; o Legislativo deve ser confiado aos

    representantes do povo; e o Poder de julgar deve ser exercido por pessoas extradas do

    corpo do povo que possuam mandatos temporrios.80

    Merece destaque a dissidncia existente entre os autores acerca da natureza do

    Poder Judicial. fato que, para o autor, o Judicirio deveria ser apenas a boca que

    pronuncia as sentenas da lei. Em vista disso, Antonio Umberto de Souza Junior entende

    que o Judicirio seria nulo, como resposta desconfiana que existia com relao ao

    magistrado da fase absolutista.81

    J Luiz Francisco Aguilar Cortez propugna que a funo

    judicial residual nesse contexto, uma vez que no possui autonomia e os tribunais no

    seriam permanentes.82

    Dalmo Dallari esclarece que a limitao da atribuio de julgar do

    Estado decorre de uma excessiva preocupao com a liberdade individual, deixando-se de

    78

    LOWENSTEIN, Karl, Teora de La Constitucin, Alfredo Gallego Anabitarte (trad.), Barcelona, Ediciones

    Ariel, 1970. p. 55. 79

    KORZENIAK, Jose, La separacion de los poderes del gobierno..., p. 25; RUSSOMANO, Rosah, Curso de

    Direito Constitucional..., p. 137. 80

    KORZENIAK, Jose, La separacion de los poderes del gobierno..., p. 25; RUSSOMANO, Rosah, Curso de

    Direito Constitucional..., p. 137; REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder

    Judicirio..., p. 198. 81

    SOUZA JUNIOR, Antonio Umberto de, Entre a primeira e a ltima palavras ensaio sobre a amplitude da

    reserva constitucional de jurisdio, in Revista da Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro

    Universitrio de Braslia, n. 13, janeiro/junho 2006, p. 79. 82

    CORTEZ, Lus Francisco Aguilar, Judicirio e Democracia..., p. 171.

  • 40

    lado a eficincia da atividade.83

    Nesse sentido, pertinente a transcrio do seguinte

    excerto:

    Quanto funo de julgar, v-se o relevo dado por Montesquieu, e pelos

    Iluministas em geral, legalidade como proteo dos direitos individuais, naquele

    momento histrico em que o processo, de carter inquisitorial, colocada acusados

    merc do julgador.84

    De todo o exposto, percebe-se que Montesquieu sempre pregou o controle

    recproco, expondo uma realidade de combinao de poderes. Foi a Revoluo Francesa

    que deturpou a teoria e exagerou na idia de separao das funes. Outrossim, a expresso

    poder referia-se to somente a elas, e no a rgos subjetivos.85

    Para evitar que a excessiva rigidez dos limites entre as funes prejudicasse a

    harmonia propugnada, foi elaborado por Bolinbroke o sistema de checks and balances

    (freios e contrapesos). O escopo era justamente permitir o controle recproco entre os

    rgos estatais, autorizando seu entrosamento com harmonia. Esse modelo aperfeioado

    pelos federalistas, comprometidos com a democracia, aumentou a relevncia do papel

    desempenhado pelo Judicirio, que seria o responsvel pela fiscalizao da observncia das

    regras e princpios que garantiriam o equilbrio. 86

    83

    DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado..., p. 218. 84

    REIS, Jos Carlos Vasconcellos dos, Controle externo do Poder Judicirio..., p. 198-199. 85

    RUSSOMANO, Rosah, Curso de Direito Constitucional..., p. 139. 86

    Idem, p. 140; SOUZA JUNIOR, Antonio Umberto de, Entre a primeira e a ltima palavras..., p. 80-81;

  • 41

    2.5.2. CONTEDO DAS FUNES

    Canotilho explica que, ao se falar em separao de poderes, no se est

    referindo a uma repartio do prprio poder do Estado, mas sim diviso da sua atividade,

    de modo a resultar na existncia de diversas funes estatais diferenciadas.87

    Para melhor

    compreender o tema, imprescindvel a definio da idia de funo e sua relao com os

    rgos e Poderes estatais.

    Jorge Miranda preleciona que a expresso funo do Estado pode ser dotada de

    dois sentidos: o primeiro seria relacionado com a idia de necessidade coletiva, finalidade

    estatal, e sofre grande alargamento em virtude do crescimento exponencial das

    necessidades humanas;88

    j o segundo sentido denotaria os atos e atividades desenvolvidos

    pelo Estado, sendo manifestao especfica do poder poltico. Nesta ltima acepo, a

    funo deve ser entendida como meio para atingir o fim.89

    Neste sentido de atividade, a funo se caracteriza como um complexo ordenado de

    atos destinados a um ou vrios fins. Apresenta como caractersticas: a permanncia; o fato

    de ser um conjunto de atos; e as especificidades que lhe so atribudas por seus elementos

    materiais (suas causas ou resultados), formais (seus trmites) e orgnicos (os quais se

    revelam por seus agentes).90

    Observe-se que a determinao do rgo ou agente ao qual ser atribudo o

    exerccio da funo apenas um de seus elementos caracterizadores, de maneira que

    devemos dar especial ateno ao contedo material da funo para diferenci-la das demais

    e mais ainda s caractersticas que lhe so atribudas pelo prprio Direito. Na verdade,

    87

    CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituio..., p. 551 e 552. 88

    Nesse sentido, esclarecedor o trecho da obra de Celso Antonio Bandeira de Mello, para o qual funo pblica, no Estado Democrtico de Direito, a atividade exercida no cumprimento do dever de alcanar o

    interesse pblico, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessrios conferidos pela ordem

    jurdica. Cf. MELLO, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo..., p. 29. 89

    MIRAN