discutir o racismo no brasil é muito complicado
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Discutir o racismo no Brasil é muito complicado. Complicado porque falta muita
seriedade no debate entre o público leigo, público tanto passivo quanto ativo às
práticas discursivas do racismo. No meio acadêmico a discussão é riquíssima
no sentido de trazer à tona novas abordagens e reinterpretações sobre o nosso
passado colonial escravocrata. Mas o debate perde em qualidade quando o
tema “racismo” se fecha, se isola nas comunidades acadêmicas. Quando isso
acontece, o alcance dos discursos racistas por parte das camadas
conservadoras é muito maior sobre a sociedade. Há necessidade dos
pesquisadores acadêmicos democratizarem os frutos das suas pesquisas nas
mídias mais acessíveis e em linguagens acessíveis aos leigos. Se isso não
acontecer, discursos preconceituosos dos Danilos Gentilis serão mais
receptivos, alimentando as práticas racistas que vemos na atualidade.
Um dos principais argumentos dos racistas, é o de que no Brasil não existe
racismo. Para eles, o que existe é um “coitadismo exacerbado” que vê racismo
em tudo. Para construírem tal argumento, utilizam o famoso bordão: “Mas que
mal há em chamá-lo de macaco? Me chamam de palmito e eu nem ligo.” É o
que dizem os Gentilis. O que eles ignoram é o fato de que a ideologia inerente
à animalização do negro, foi um fator determinante para legitimar a escravidão
dos negros africanos desde os tempos em que aquele continente se viu sob o
jugo do império islâmico. Até nos escritos gregos da Antiguidade,
principalmente nos escritos de Hipócrates e Galeno, ambos, médicos, o negro
africano é representado analogicamente à condição animal. Mas vou simplificar
e falar mais da construção da identidade nacional na perspectiva oficial para
mostrar o quanto é equivocado o argumento de que não há mal algum em
denominar um negro de “macaco” e o que isso implica na prática.
Quando se deu a Abolição, em 13 de maio de 1888, Joaquim Nabuco disse
que as conseqüências de mais de 300 anos de cativeiro perdurariam por 100
anos. Passaram-se os 100 anos e as conseqüências ainda perduram. Nabuco
errou no cálculo, infelizmente. Mas o que Nabuco realmente quis dizer? A quais
conseqüências ele se refere? Acredito que o maior visionário e que respondeu
a essa pergunta, foi Machado de Assis. Machado de Assis dizia que o negro,
após a Abolição, não conquistaria plena liberdade porque continuaria excluído
do projeto de construção da identidade nacional. Dizia que as estruturas
opressivas aos escravos se (res)significariam na opressão e exclusão dos
“cidadãos negros”. A República prometia em seu discurso a elevação de todos
os homens à categoria de “cidadão”. Isso no discurso. Na prática os negros
continuaram relegados à condição de sub-humanos. Se antes havia a figura do
capitão do mato, na República teríamos a figura do agente policial à caça de
“vagabundos”.
Sem direito à terra e expulsos das grandes fazendas, a massa de ex-escravos
ocupariam os centros urbanos. Sem emprego, exerceriam o trabalho informal,
à mercê da repressão policial. Nas antigas fazendas, no lugar do negro vieram
os europeus brancos. Enquanto vinham europeus, a entrada de africanos no
país passou a ser proibida. A estratégia oficial era o branqueamento do país. O
governo brasileiro até bancava a viagem de negros que quisessem voltar à
África. A Educação Eugênica vigorava nos currículos escolares, ensinando aos
cidadãos brancos a superioridade da “raça”. Os escritores que tentavam dar
uma identidade nacional ao Brasil, bebiam na fonte de escritores europeus que
difundiam uma concepção determinista evolucionista das raças. Neste sentido,
para Karl Von Martius e Varnhagen, historiadores do Império, o entrave para o
desenvolvimento do Brasil era a raça negra.
Para se ter uma idéia da força dessa ideologia, empresto a análise feita pelo
professor Eduardo França Paiva sobre a pintura abaixo.
O nome da pintura já nos diz muita coisa. Portanto, iniciaremos pela análise do
mesmo. Cã foi o filho de Noé que foi repreendido pelo pai por ter visto o
patriarca nu. Na tradição lendária judaica, por essa falta cometida, os
descendentes de Cã foram amaldiçoados à escravidão, os Canaanitas. Mas na
Bíblia não diz nada sobre a cor da pele desses descendentes, e mais, os
Canaanitas não eram do continente africano, mas sim vizinhos dos Hebreus no
Oriente Médio. Mas de onde Marco Feliciano tirou a idéia de que eram os
negros africanos os amaldiçoados? Aí que entra outro personagem na História:
o Islã. Na versão lendária do Islã, os africanos seriam os descendentes
amaldiçoados de Ham, outro filho de Noé. Foram os muçulmanos que deram
essa versão para legitimar a escravidão na África já no califado Abássida.
Como o Islã dominou a Península Ibérica, da qual faz parte Portugal, os
portugueses se apropriaram dessa versão muçulmana para legitimar a
escravidão africana nas suas colônias.
Analisando agora a pintura em si, a mulher mais negra é a alegoria dos
descendentes de Cã e do passado colonial. Não esqueçamos que a pintura é
de 1895, já na República. Portanto, ela nos diz muito sobre o ideal de nação da
oficialidade do poder. No centro, há a moça mulata, filha da velha negra. A
mulata já sofreu o processo de mestiçagem. O homem, mais branco, é a
analogia do típico italiano camponês. A criança, já de pele totalmente branca, é
a analogia do futuro. Um futuro em que não haveria mais negros por conta do
processo de mestiçagem. O futuro da República e do desenvolvimento. A velha
negra levanta as mãos aos céus se redimindo, agradecendo aos céus por não
legar um futuro negro à nação. A criança faz um sinal de “Abenção”, que
remete ao Cristianismo primitivo, como se quisesse dizer “Amém”.
Como podemos ver, numa só pintura analisada, podemos sintetizar vários
discursos dos intérpretes não só do Império, como também dos posteriores à
Abolição. De fato, essa ideologia de exclusão do negro na formação da nação
por meio da mestiçagem, já que acreditavam que quanto mais mestiçagem
mais branca seria a Pátria, refletiu na exclusão do negro na conquista pela
cidadania.
Só para citarmos como exemplo como se deu essa exclusão, basta uma
simples abordagem sobre a Revolta da Vacina, ocorrida na cidade do Rio de
Janeiro em 1904. A República vinha com a promessa de modernizar e isso
implicaria reformas urbanas. É quando o pais quer se mostrar desenvolvido aos
olhos do mundo. Como vimos que desenvolvimento era sinônimo de
branqueamento, tendo como espelho a Europa, especialmente a Paris da Bélle
Epocque, não seria bem quisto um Rio de Janeiro cujo centro urbano
transbordava negros para todo lado. Nos diários de viajantes da época há
relatos de abominação à cidade por conta da grande quantidade de negros.
Os negros eram descritos como “fezes sociais” nos relatórios de polícia. Os
responsáveis pelo atraso, pela desordem. Aí que a política higienista de
Oswaldo Cruz caiu como uma luva para expulsar os negros do centro da
cidade. Durante a matança de negros pela polícia, nos relatórios oficiais os
negros eram rebaixados às doenças contagiosas as quais a reforma higienista
se propunha a neutralizar. Os que conseguiram sobreviver, ocuparam os
morros, que hoje são as favelas. Outros foram colocados em porões de navios
e asfixiados com cal e mandados para trabalhos forçados na Amazônia. Muitos
nem sobreviveram à viagem.
Excluídos do projeto de nação, os negros não tiveram acesso a direitos sociais
básicos que lhes proporcionassem ascensão social. Não conseguiam trabalhos
formais, eram em sua maioria analfabetos e por serem analfabetos, não tinham
nem direito ao voto. Então, temos que vasculhar o passado e ver quais as
conseqüências desse passado no nosso presente. Ao negar a humanidade de
um ser Humano, chamando-o de macaco, estamos trazendo à tona um
discurso utilizado por centenas de anos para legitimar a segregação e a
exclusão. Esse discurso preconceituoso reflete nos dados estatísticos sobre
repressão policial, defasagem educacional, desigualdade social. Reflete na
dificuldade de lutar pelos direitos políticos e sociais. Não adianta dizermos que
não há racismo quando no Brasil a pobreza, o analfabetismo e os cemitérios
têm como cor dominante a cor negra.
Está mais do que na hora dos acadêmicos e pesquisadores envolvidos com os
temas relacionados ao racismo tomarem os espaços dos propagadores
conservadores. É inadmissível que sujeitos como Danilo Gentili permaneçam à
vontade para difundir o racismo sem respostas à altura da sua audiência. Ao
acadêmicos, peço que deixem essa redoma universitária de congressos e
seminários, e venham para a rua. Ocupem os jornais mais populares, as
rádios, os canais de TV. Fiquem cara-a-cara com a sociedade e dialoguem
numa linguagem acessível. De nada adianta escrevermos somente para
revistas científicas se tais mídias não chegam às mãos daquele aluno de
Ensino Médio que assiste pela TV a difusão do racismo velado e hipócrita. Se
tal iniciativa não partir daqui de baixo, não vai partir nem de Globo, nem de
SBT e nem de nenhuma mídia de grande audiência, uma vez que tal iniciativa
afeta diretamente os interesses dos que se mantém no privilégio rebaixando os
demais pela cor da pele.