discutindo o repertorio coral

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  • 7/25/2019 Discutindo o Repertorio Coral

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    Discutindo o Repertrio Coral

    Susana Ceclia Igaya

    Resumo: As reflexes que se seguem relatam a prtica educacional realizada nasatividades doComunicantus: Laboratrio Coral como espao de formao de regentese educadores corais e tambm como espao de participao musical de coralistas leigos.Discute o papel do repertrio na atividade coral como um todo, e apresenta algumaspossibilidades de trabalho sobre a questo especfica de escolha e manuteno dorepertrio coral em coros amadores. Analisa a temtica do repertrio coral a partir danoo de identidade e discute possibilidades de trabalho com o repertrio coral emquatro diferentes tradies de ensino: a tradio acadmica, que prioriza os saberesdisciplinares, a tradio da eficincia social, voltada aos saberes pedaggicos e aodomnio dos instrumentos e mtodos de ensino, a tradio desenvolvimentista,priorizando o desenvolvimento pedaggico dos atores educativos, e a tradioreconstrucionista social, focada na insero social das prticas de formao. Apresentaalguns princpios de trabalho que norteiam a prtica dos coros comunitrios ematividade noComunicantus , demonstrando que a discusso sobre repertrio coral estligada a um projeto mais amplo em canto coral. Comenta a importncia da unio de doistipos de experincia como possibilidade de trabalho no ensino superior: a prticamultidisciplinar em canto coral e a formao acadmica de carter disciplinar. Propecomo objetivo a formao de regentes e educadores bem preparados, do ponto de vistaacadmico e artstico, que sejam ao mesmo tempo profissionais crticos e criativos,atitudes que constituem base importante do perfil artstico e do perfil do educadorligado arte.

    O Comunicantus: Laboratrio Coral define-se como um espao de educao earte, em suas mltiplas conexes, e ainda como um espao de formao de indivduoscapacitados para trabalhar com o Canto Coral em suas mltiplas e ricas identidades, semperder a perspectiva dupla deatividade artstica (academicamente referenciada, commtodos, disciplinas e temticas prprias) eatividade de educao (em seu sentidoamplo, e no apenas musical).1

    A escolha de repertrio para um coro est intrinsecamente ligada definio desua identidade. A recusa ou a aceitao de uma msica no repertrio de um grupo coral

    1 O Comunicantus: Laboratrio Coral rene as atividades corais do Departamento de Msica da ECA-USP. Dele participam professores, alunos de graduao e ps-graduao. A partir doComunicantus soainda elaboradas pesquisas e atividades de extenso como concertos, palestras e workshops. De 2001 a2004 o Laboratrio manteve um curso de aperfeioamento para regentes corais. Hoje existem, comoatividade permanente, trs corais: OCoral da ECA-USP , atividade disciplinar para alunos de msica, edois corais comunitrios, oCoral Escola Comunicantus e o Coral da Terceira Idade da USP , regidos poralunos inscritos na disciplina Prticas Multidisciplinares em Canto Coral com Estgio Supervisionado.

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    passa pela discusso, por seus participantes, do que aquela obra acrescenta na identidadedo grupo. Ou como discutem Beard and Gloag:

    A Identidade, portanto, expressada atravs de um conjunto de

    atitudes que se relacionam a um grupo ou so compartilhadas por ele,a identidade insere-se na relao entre a experincia pessoal e osignificado pblico. "Textos" culturais, tais como a msica,possibilitam que as identidades sejam expressadas, formadas emantidas, por exemplo, atravs do que os psiclogos chamam de

    priming , onde uma "rede de associaes que so ligadas por conexescompartilhadas de estado de esprito ativada pela msica"2 (CROZIER, 1998, 79 apud BEARD; GLOAG, 2005, 88).

    O repertrio, nesta perspectiva, sem dvida um elemento central daconstituio da identidade do grupo e do regente, e se por um lado carrega as

    experincias individuais de seus participantes que querem reconhecer suas contribuiese seus gostos na atividade coral de que participam, por outro lado devemos perceber opotencial transformador includo na atividade de escutar, experimentar e apresentarnovos repertrios, como atitude de construo da identidade e como atitude de aberturapara o outro, representado pelos repertrios desconhecidos e incorporados. Desta forma,a necessidade de pesquisa constante, aliada a uma sensibilidade das necessidades dogrupo com o qual se trabalha, tanto do ponto de vista musical, educativo, como social,

    torna-se um objetivo de trabalho na formao de regentes corais, e a questo daidentidade includa na aceitao e rejeio dos repertrios passa a ser uma canal deconhecimento do grupo e tambm de educao, no sentido mais amplo que possareceber esta palavra. A identidade, deste ponto de vista, passa a ser um elemento emconstruo, e em construo coletiva. possvel que o regente no compartilhetotalmente a mesma identidade de seu coro, por diferenas perceptveis em aspectosculturais, sociais, econmicos, etrios, de gnero ou de formao educacional. O grupo,

    no entanto, estar sempre em busca da construo de sua identidade enquanto grupo;regente, equipe e coralistas includos, e a discusso sobre o repertrio, deste ponto devista, passa a ter um papel decisivo, para o qual preciso estar atento e bem preparado.

    2 No original: "Identity, therefore, is expressed through a set of attitudes that relate to, or are shared with,a group; identity inheres in the relationship between personal experience and public meaning. Cultural"texts" such as music, enable identities to be expressed, formed and sustained, for example throug whatpsychologists call priming, where 'a network of associations that are linked by shared mood connectionsis activated by music' ".

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    Desde o incio, e como princpio de trabalho, temos incentivado os alunos e oscoralistas a se aproximarem de novos repertrios, mesmo que isso signifique novosdesafios culturais, lingsticos e perceptivos (novas combinaes sonoras, diferentesescolhas estticas, temticas no-cotidianas), acreditando que essa busca do outro e dodiferente, atravs do repertrio coral, faz parte da construo da tolerncia e da aberturade horizontes to cara e to importante em nosso mundo de hoje, acreditando ainda sereste um valor fundamental a ser trabalhado na formao de regentes e coralistas dofuturo.

    Outro princpio, complementar e interdependente, a divulgao, criao e oaprimoramento do repertrio brasileiro, atravs da exigncia de qualidade sonora naexecuo deste repertrio, da manuteno e do conhecimento dessa rica cultura que abrasileira, construda a partir de dilogos e de hibridaes entre elementos culturais svezes prximos, s vezes distantes. Trabalhar com a msica brasileira, e mesmo ser umregente coral brasileiro de qualidade implica em saber que o repertrio musicalbrasileiro amplo, diversificadas so as expresses culturais que formam esserepertrio, e amplo e diversificado tambm o pblico que nos procura: coralistas,pblico de concerto, organizadores de eventos.

    Em nossa prtica com alunos universitrios de msica, encontramos um universo

    heterogneo de alunos, cada um com suas prticas, vivncias e pressupostos sobre orepertrio coral, unificados pela participao numa comunidade especfica, quepoderamos definir como o meio erudito universitrio musical. Assim, as normas,regras, convenes e cdigos de leitura desta comunidade so, em primeiro lugar, os doambiente universitrio, ligado, por sua vez, ao ambiente musical externo universidade(as orquestras, coros, teatros, associaes musicais, sociedades de concerto, instituiesde ensino), que formam um conjunto do qual se pode identificar a coeso, mas que est

    longe de ser homogneo. O que significa, neste contexto, desenvolver as habilidadesdos alunos, no que se refere especificamente ao repertrio coral?

    Poderamos discutir o papel que tem sido atribudo ao repertrio coral nas maisreconhecidas tradies de ensino. Se, por um lado, enquanto disciplina oferecida noscurrculos de msica para alunos de regncia, canto e licenciatura, o estudo doRepertrio Coral encontra a necessidade de definio de um programa, com tpicosestabelecidos e mtodos de abordagem e avaliao que so os do ensino acadmico, por

    outro lado parece ser um consenso, hoje, o fato de que as disciplinas isoladamente no

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    conseguem dar conta dos problemas educacionais, o que torna necessrio um ensino queacolha aes inter, multi e transdisciplinares, ainda que seja mais fcil verificar suanecessidade terica do que propor efetivas prticas pedaggicas.

    O ensino do Canto Coral, por sua vez, j h algum tempo vem priorizando o queseria a segunda tradio de ensino citada por Zeichner e Liston, voltada para a eficinciasocial, que prioriza os saberes pedaggicos e o domnio dos instrumentos e mtodos deensino. (ZEICHNER; LISTON, 1990, apud NVOA, 2002, p. 38). No ambiente coral,isto poderia ser traduzido pela nfase nas tcnicas de ensaio, nas frmulas deaquecimento vocal, na tcnica do arranjo coral ou ainda do arranjo coletivo, naestruturao do trabalho coral em etapas que garantem um bom resultado final, tudo istovisto como conhecimento de como fazer um determinado grupo chegar aos resultadosesperados. Com relao ao repertrio, esta tradio parece priorizar o cnone, as obrasreconhecidas como importantes, ou teis, ou mesmo funcionais, o que leva a uma certarepetio e, portanto, desgaste. Um lema, nesta tradio, poderia ser a opo pelo que jprovou sua eficcia, jogar no certo, repetir as obras j trabalhadas. Em sua posiomais extrema, esta postura tende a uma desconfiana pelas novidades e pela prpriarenovao das interpretaes. Por outro lado, o conhecimento do cnone e o domniodas tcnicas continuam sendo requisitos importantes para qualquer profissional e, de

    qualquer forma, teis, pontos que garantem a continuidade desta tradio.As experincias corais com grupos infantis, sobretudo os escolares, muitas vezes

    se vem voltadas musicalizao, entendida como um processo de descoberta dashabilidades e percepes musicais dos educandos que, no contato com a msica, tantodespertam potencialidades musicais, como so trabalhados em seu contato social e emoutras habilidades, sejam elas habilidades motoras, capacidade de concentrao,criatividade, ou tantas outras, dependendo do projeto pedaggico e do perfil dos

    educandos, dos educadores e da instituio a que esto ligados. O repertrio, neste caso,seria escolhido em funo de suas capacidades propiciadoras deste processo decrescimento desejado. Na prtica escolar, a busca da definio do repertrio por seupotencial musicalizador s vezes esbarra na necessidade dos resultados a seremapresentados nas festas e comemoraes que, muitas vezes, so o que justifica, perante aviso da comunidade de pais, por exemplo, a prpria presena da msica nos currculos.Este choque do repertrio desejado e do repertrio imposto pelas circunstncias

    externas construo em sala de aula parece ser um problema a ser enfrentado pelos

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    professores que pretendem adotar esta tradio educacional como linha principal deao.

    Uma outra possibilidade de trabalho prioriza uma educao voltada ao nasociedade em contraposio a uma educao mais voltada ao indivduo, considerandoainda o seu carter de interveno e visando a uma transformao social. Poderamosver como produto desta tradio a grande quantidade de projetos ligando canto coral eeducao, principalmente os voltados a coros em comunidades carentes (comunitrios,religiosos, sociais); projetos culturais governamentais, com cunho de assistncia social;projetos patrocinados por empresas que oferecem atividades culturais, entre elas aatividade coral, tratada no mbito da incluso social; e projetos com um cunho polticodeterminado, independentemente do projeto poltico em questo. No que diz respeito aorepertrio coral, as atividades que estamos filiando a esta tradio coral por vezesapresentam uma grande dvida sobre o que fazer, que nos remete dvida primeiradesta reflexo: penetrar no universo coral no , apenas, participar de uma atividademusical, mas adaptar-se, transformar e criar novas comunidades de leitura de umsuposto repertrio coral, com seu cnone e com suas aberturas, descobrir e construir suaidentidade como grupo. Nesta discusso, assumem um papel importante os arranjos ouadaptaes corais, que sempre fizeram parte da histria do repertrio coral e, por

    diversas vezes, operaram mediaes entre os universos cultos e populares, ou entreuniversos culturais distintos. Como prtica inerente ao canto coral, desde sempre, oexemplo histrico poder servir como elemento para as discusses e para as aesconcretas de apropriao e criao de um repertrio significativo para determinadacomunidade ou grupo coral.

    A breve exposio sobre a relao do repertrio coral com quatro diferentestradies de ensino demonstra, por um lado, que essas tradies no se apresentam de

    uma maneira pura ou estanque, por outro pode ser um parmetro para a discusso dasaes pedaggicas no momento atual, se procurarmos entender o que, destas diferentestradies, formam as grandes linhas de ao e de pensamento em canto coral, e de comoo estudo do repertrio pode, ao utilizar o que de melhor se produziu e se conseguiu emcada uma delas, retirar suas questes fundamentais.

    Entre os aspectos prticos na discusso do repertrio coral, poderamos citaralgumas questes fundamentais que fazem parte das discusses de qualquer regente e

    que, num processo formativo em que os estudantes se deparam com coros concretos,

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    como o trabalho noComunicantus com os coros comunitrios, passam a fazer partedo cotidiano de preocupaes e tema recorrente nas aulas. Entre eles esto questesligadas seleo de vozes, ao planejamento de repertrio dos coros no mdio e longoprazo, necessidade de prever os reais compromissos que esto por vir e definirobjetivos de crescimento, discusso e decises sobre renovao e manuteno dorepertrio.

    na confluncia dos dois tipos de experincias que se molda uma maneira depensar e de viver o repertrio coral: a experincia de cunho mais ligado tradioacadmica como disciplina autnoma nos currculos, voltada a um contedo especfico,e a da prtica multidisciplinar e dinmica no projeto de trabalho com um coro concreto,com caractersticas de estgio prtico. Trabalhando dessa perspectiva pretendemoscontribuir para a formao de um aluno bem preparado, do ponto de vista acadmico,mas tambm um profissional crtico e criativo, atitudes que constituem base importantedo perfil artstico e do perfil do educador ligado arte.

    Muito mais do que um problema de formao cultural, de acesso ao materialexistente, do juzo de valor ou do gosto individual e social dos participantes, a discussosobre o repertrio s adquire um sentido amplo se pensada frente ao projeto musicalcomo um todo: os objetivos do trabalho coral, o sentido da prtica coral, a busca da

    fruio esttica, a dimenso educativa do canto coral e o papel social dos grupos corais,entre tantos outros aspectos que a atividade se prope a trabalhar nesta longa, contnua esempre transformada e transformadora trajetria.

    REFERNCIAS:BEARD, David; GLOAG, Kenneth. Musicology: The Key Concepts . London and NewYork: Routledge, 2005.

    IGAYARA, Susana Ceclia. Reflexes sobre o ensino do Repertrio Coral. In: Relatriode Atividades e de Pesquisa . Universidade de So Paulo. 2006.

    NVOA, Antnio.Formao de professores e trabalho pedaggico . Lisboa: Educa,2002.

    RAMOS, Marco Antonio da Silva.Canto Coral: do Repertrio Temtico Construodo Programa. Dissertao de Mestrado. Universidade de So Paulo, 1989.