discurso sobre o sistema penal

Upload: rosivaldo-toscano-junior

Post on 07-Apr-2018

231 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    1/17

    Terceira Secao

    DISCURSO SOBRE 0 SISTEMA PENAL:UMA vtsxo CRITICA

    ROSIVALDO TOSCANO DOS SANTOS JUNIORProfessor da ESMARN. Juiz de Direito.

    SUMARIO: l.Jruroducao - 2. Os homens de bem versus os marginais: 2.10 quee violenciai; 2.2 Discu tindo a lib erdade ; 2.3 A c idadan ia ; 2.4 Osvalores em umaso cie da de c ap ita lis ta - 3. 0 tip o p en al: con stru ciio ideo l6 gica - 4. Mais sobreo sistem a penal.' 4.1 Criminalizacdo primaria; 4.2 Criminalizaciio secundaria:4.2.1 A soc ie dade comp le xa , a midia e 0 bizarre; 4.2.2 0 crime organizado oua soc ie dade desorganizada" ; 4.2.3 Yiolencia insti tucionalirada; 4.2.4 Mudandoo paradigma: do m icro para 0 macro; 4.3 Criminalizacdo tercidria - 5. Conclu-siies - 6 . Bibliografia.

    Resume: 0 presente trabalho tern por objetivo estudar 0 sistema penal e seus mecanismos seletivoso metodo analisado e 0 de pesquisa bibliografica. Analisa conceitos como igualdade, liberdadc.violencia, marginalidade e cidadania, e seus reflexes na ordem juridica e na realidade social. Avaliuos fatores que levam a condutas desviantes. Aponta 0 descompasso entre nossa legislacao penal c ;1realidade social do seculo XXI. Questiona se 0 Direito Penal, sozinho, resolved a questao d;1criminalidade. Prop6e mudancas, A abordagem e crftica, desafiando 0 purismo jundico e desvelaudo que 0 controle da violencia termina por gerar mais violencia, mostrando a face desigual doexercfcio do poder em Nosso Estado Democratico de Direito.Abstract: The present work has for objective to study the criminal system and its select ivrmechanisms. The analyzed method is of bibliographical research. It analyzes concepts as equality,freedom, violence, marginality and citizenship, and its consequences in the jurisprudence and Iii,'socia! reality. It evaluates the factors that take the bad behaviors. Itpoints the exaggeration betweenour criminal legislation and the social reality of Century XXI. Itquestions if the Criminal law, alour,will decide the question of crime, It considers changes. The boarding is critical, defying the legal

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    2/17

    DOUTRINA PENAL - TERCEIRA SEc;:Ao 467

    purification and exposing that the control of the violence finishes for generating more violence,showing the different face of the exercise of the power in Our Democratic State of Right.Palavras-chave: Sistema penal - Criminalizacao - Seletividade.Keywords: Criminal system - Self-induced accusation - Selectivity.

    1. INTRODUf,;AO"Quem s6 direito sabe, nem 0 direito sabe".San Thiago Dantas- Jurista e politico carioca (1911 a 1964).Toda sociedade tern camadas mais proximas e mais distantes do poder, E para manteressa gradacao, surgern os meios de controle social. 0 sistema penal e apenas urn deles.Talvez em razao de estarmos imersas nesse sistema, nao 0 percebamos facilmente, mas

    o controle social se vale de meios institucionalizados (como 0 sistema penal) ou nao (comoos meios de cornunicacao social de massa) para induzir padroes de comportamento e aneste-siar aqueles que se encontram mais distantes do poder. Esse mecanisme de cantrole e ideo-logico, I As formas com que ele se manifesta podem ser mills sutis nos pafses centrais, ondeas disparidades sao rnenores; ou mais perceptfveis, nos pafses perifericos, como 0 Brasil,onde ha mais desigualdades,E essa ideologia, ao ingressar no mundo jurfdico, proclamau 0formalisrno. E os opera-dores do direito se acostumaram, desde os bancos de faculdade, a pensar 0direito como uma"ciencia" abstrafda da realidade social, seguindo os ensinamentos do positivismo jurfdico deHans Kelsen, expresses na afamada teoria pura do direito.Quando a si propria se designa como 'pura' teoria do Direito, isto significa que ela seprop5e garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimentotudo quanta nao pertenca ao seu objeto, tudo quanta nao se possa, rigorosamente, determinarcomo Direito. Quer isto dizer que eta pretende libertar a ciencia jurfdica de todos os elemen-tos que Ihe sao estranhos, Esse e 0 seu princfpio metodologico fundamental.'Caro Ieitor, como se pode ver no pensamento kelseniano, ele separa 0jurfdico do poli-tico. E aquele nao se contamina com este, Nega-se, desta forma, as necessidades sociaisemergentes. E esse direito asseptico serve de instrumental para impedir 0 desvelamento darealidade social que 0 proprio direito visa, em seu discurso, aperfeicoar,Assim, 0 purismo jurfdico se confronta diretamente com 0 Estado Dernocratico deDireito, em que-a Jurisdicao ConstitucionaI tem finalidade transformadora da realidade so-cial, pois 56 se pode transformar aquilo que se e permitido estudar e cornpreender.'

    (2)

    (3)

    (I) Torno aqui a acepcao de ideologia como "toda crenca usada para 0 controle dos comporta-memoscoletivos,entendendo-se0 termocrenca em seu significadomillsamplo, como nocaoempenhadora para a conduta, que pode ter validade objetiva" (ABBAGNANO, Nicola.Dicionariode filosofia. Sao Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 507).KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 2003, p. I.LUIS ALBERTOWARATdiz que "a democracia se irnplementa atraves de uma praticapolftica que possibilite ao Direito, que outorgue aos centros produtores das significacoesjuridicas a capacidade de criacao permanente, de novos habitos e rotinas" (WARAT,Luis Alberto. Introduciio geral ao direito: a epistemologia jurfdica da modernidade, v. 2.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 259).

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    3/17

    468 RT-861 - JULHO DE 2007 - 96.0 ANOCarvalho Netto, com perspicacia, acentua que "A dimensao dos aplicadores e fun-

    damental. E por que 6 fundamental? Porque 0 trabalho do Legislativo, ao produzir nOI-mas gerais e abstratas, e da maior relevancia, mas, na verdade, nao esgota 0 trabalho doDireito, e apenas 0 infcio dele. 0 problema e que as pessoas nao sao gerais e as situacocxnao sao abstratas"."Fechando esse parentesis, Luis Alberto. Warat: "Para que nos serve urn saber que n;lotenha competencia para denunciar e colocar em crise os momentos em que 0 respeito a leifunciona como simulacao de uma sociedade democratica? 0 autoritarismo mais eficiente c'o que consegue diluir-se, confundir-se no interior de uma proposta discursivamente democratica. Uma proposta teorica como a de Ke1sen tern uma enorme responsabilidade frentc ;1atos autoritarios simulados''.'

    Assim, nao se deixe iludir com os discursos assepricos, que apregoam a pureza do d 1reito, mas, na pratica, 0 afastam de seu objetivo mais importante: a busca da justica socialLembro agora as palavras de Jean Paul Sartre: "0 que importa nao e saber 0 que fizeram dl'nos, mas sim 0 que fizemos com 0 que quiseram fazer conosco". Assim, minha abordagcmconternplara 0Direito em sua interacao com seu objeto: a realidade social.2. OS HOMENS DE BEM VERSUS OS MARGINAIS

    Costumeiramente 0senso comum divide as pessoas em "homens de bern" e "marginais",Homens de bern seriam aquelas pessoas cumpridoras dos seus deveres. Os marginais, aquclcsvoltados a pratica de atos danosos a sociedade, notadamente envolvendo infracoes penais.

    Gostaria de fazer entao, uma reflexao com voce, caro lei tor. Lembrando 0 que dixsEugenio Raul Zaffaroni, t09-0S nos temos um "prontuario fntimo"." E 0 que seria isso? Dcsnfio voce a instigar sua mem6ria. Sera que alguma vez, POt exemplo, comprou produtos mudrin Paraguai? Se comprou, voce acaba de se assumir receptador, tendo infringido a regra doart. 180 do CP (pena de 1 a4 anos de reclusao, e multa). Ja deu ou tentou dar "bola" ao guardude transite? Em caso positivo, dou as boas-vindas ao care corruptorativo (art. 333 do CP: 7.a 12 anos de reclusao, e multa). J a comprou "sem nota" para reduzir 0 pre

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    4/17

    DOUTRINA PENAL - TERCEIRA SEc;:Ao

    Se as colocacoes que fiz ate.agora parecem estranhas, se voce esta intrigado, sem saberonde quero chegar com elas, posteriormente, entendera 0 porque disso. Porem, antes dessemomento, e preciso fazer uma ponderacao sobre alguns conceitos.2.1 0 que e violencia?

    E comum vermos, nos meios de comunicacao em rnassa, a palavra violencia como si-nonimo de agressao fisica, nos crimes contra 0 patrimonio ou contra a pessoa. Ocorre quenos nao paramos para discutir 0 que, na verdade, ela e .Ontologicamente, violencia e todo ato que atenta contra a dignidade do ser humano.Portanto, nao somente arraves de a~oes ffsicas agressivas ela pode se exprimir, e nem precisapartir de indivfduos. 0 proprio Estado pode agir com violencia, Nas palavras de Nilo Odalia,"0 ato rotineiro e contumaz da desigualdade, das diferencas entre os homens, permitindoque alguns usufruam a saciedade 0 que a grande maioria e negado, e uma violencia. Sao oshabitos, os costumes, as leis, que a mascaram, que nos levam a suporta-la com uma condicao

    inerente a s relacoes humanas-e uma condicao a ser paga pelo homem, por viver em socieda-de. Agimos como se a desigualdade fosse uma norma estabelecida pela Natureza da sociedadee contra a qual pouco e possfvel, enquanto 0 rnundo for mundo." (...) Toda violencia einstitucionalizada quando admito explicita ou implicitamente, que uma relacao de forca e umarelacao natural - como se na natureza as relacoes fossem de imposicao e nao de equilfbrio.?Assim, constituem violencia: a feme, a falta de sanearnento basice, as desigualdadessociais, a falta de meios de lazer e de salubridade ambiental e 0 analfabetismo, dentre outrasdisparidades. Fomos 0ultimo Estado a abolir a escravatura (tres meses apos Cuba). Portanto,nao e preciso fazer muito esforco para perceber que 0Brasil e, e sempre foi, um pafs muitoviolento com a maior parcela de sua populacao,Aproveito para trazer as palavras de Marilena Chauf: "Do ponto de vista etico, somospessoas e nao podemos ser tratados como coisas, isto e , como seres inertes, irracionais, des-titufdos de linguagem e de liberdade. Os valores eticos se oferecern, portanto, como expres-sao e garantia de nessa condicao de seres humanos ou de sujeitos racionais e agentes livres,proibindo moralmente a violencia, isto e, tudo 0 que nos transforme em coisa usada e rnani-pulada por outros.?'?E essa violencia e , muitas vezes, institucionalizada e maquiada sobre 0 pretexto demanutencao da ordem, como se cada urn tivesse seu "lugar" na sociedade. E quando essa"ordem" e quebrada, justificar-se-ia 0 usa da violencia estatal.A repressao jamais pode confessar-se como tal: ela tern sempre a necessidade de serlegitimada para exercer-se sem encontrar oposicao. Eis porque ela usara as bandeiras damanutencao da ordem social, da consciencia moral universal, do bem-estar e do progresso detodos os cidadaos, Ela se negara enquanto violencia, visto que a violencia e sempre a expres-sao da forca nua e nso da lei - e como fundar uma ordem, a nao ser sobre uma lei aceita einteriorizada? A relacao de forca vai entao desaparecer enquanto tal, sera sempre coberta poruma armadura jurfdica e ideologica."

    (8) ODALIA, Nilo. 0 que e violencia. Sao Paulo: Brasiliense, 2004, p. 30 e 35.(9) Idem, p. 35.

    (10) CHAUf, Marilena. Convite a filosofia. 13. ed. Sao Paulo: Atica, 2003, p. 308.(II) STRECK, Lenio Luiz. Hermeneutica jurtdica e(m) crise: uma exploracao hermeneutica daconstrucao do direito. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 29.

    4 " 6 9

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    5/17

    470 RT -861 - JULHO DE 2007 - 96." ANO

    Nao, ilustre leiter, Nao quero ser 0 dono da verdade. Minha missao aqui e convida-lo auma breve reflexao sobre 0assunto, que considero desafiante, sobretudo porque invoca a que-bra de um paradigma em que eu e voce fomos inseridos, e estamos quase que conformadosa assim pensar. Nao. A violencia hermeticamente jungida a ideia de infracao penal traz Iitonaapenas uma tacanha nocao daquilo que ela real mente significa e eu nao quero mais manter osmeus olhos vendados a realidade que se coloca a minha frente. Uma frase do teatrologo ale-mao Bertolt Brecht, a quem recorro agora, bern espelha os dois lados da moeda a que invocovoce, caro leitor, a observar: "do rio que tudo arrasta e devora se diz que e violento. Masninguem diz como sao violentas as margens que 0 oprimem"."2.2 Discutindo a liberdade

    As pessoas em geral entendern liberdade como direito de ir e vir. E e isso? Ser liberto eter a possibilidade de realizar suas possibilidades, isto e , cada pessoa tern urn potencial inato,esta consigo, ela carrega desde 0 seu nascimento e se nso se der a ela a possibilidade de de-senvolver suas potencialidades, estar-se-a assim, Ihe retirando a liberdade. 0 ser hurnanonao nasce "bandido",'? ele nao nasce "born", mas como qualquer individuo, tern aspiracoese desejos, muitas vezes baseados (inconscientemente) pelos valores sociais preconizados. 0desenvolver de sua vida, dentro do meio em que foi inserido, e diante da negacao de acessoaos meios legftimos de ascensao social, podera, em muitos casos, condiciona-lo a cornporta-mentos desviantes." 0 que nos vemos hoje como "bandido" violento poderia ser urn atleta.Sua agressividade foi desviada para a agressao aos outros. 0 estelionatario poderia ser urngrande orad or, uma pessoa capaz de propalar ideias e ideais, ser urn Iider e conduzir as pes-so as a urn futuro melhor. Entao, e preciso dar liberdade as pessoas, no sentido de elas pede-rem desenvolver de forma sadia suas potencialidades. "Eu sou eu e minha circunstancia",como disse Ortega y Gasser."2.3 A cidadania

    Em sete passagens a nossa Constituicao Federal fala em cidadania," soerguendo-a, emseu art. 1., II, a fundamento da Republica Federativa do Brasil. Em sua acepcao classica,confundia-se com os direitos de votar e de ser votado. Hoje,entretanto, significa participacaoefetiva no dia-a-dia do governo, como modo de ter vez e voz junto as instancias governamen-tais, casando-se a transparencia.da gestae publica com a possibilidade de fiscalizacao e co-branca por parte dos cidadaos.

    Na pratica, porem, vejo uma grave deformidade sobre a vi sao de cidadania em nossoEstado. Alem da ideia classica de cidadania, Lenio Streck fala da "existencia no Brasil deduas especies de pessoas: 0 sobreintegrado ou sobrecidadao, que dispoe do sistema, mas a

    (12) BRECHT, BertoIt. Poemas 1913-1956. 6. ed. Sao Paulo: Editora 34,2004, p. 140.(lJ) Recornendo interessante filme sabre 0 tema: Dersu Uzala. Direcao de Akira Kurossaua.

    Manaus: Continental, 2002. DVD (140 min.). Dolby Digital 1.0 Mono. Color. Widescreen.Legendado. Port.

    (14) MICHENER, Andrew H. et a t . Psicologia social. Sao Paulo: Pioneira Thomsom Learning,2005, pp. 556-559.(15) ORTEGA Y GASSET, Jose, apud REALI, Giovanni; ANTISERI, Dario. Hist6r ia da f ilosofia.

    v. 6. Sao Paulo: Paulus, 2006, p. 165.(16) Arts. 1.0; II; 5., LXXI, LXXVII; 22, XIII; 62, 1., a; 68, 1.0 , II; 205, caput, todos da CF/88.

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    6/17

    DOUTRINA PENAL - TERCEIRA SEc::AO 471ele nao se subordina, -e 0 subintegrado au subcidadao, que depende do sistema mas a elenao tern acesso"."

    Portanto, os subcidadaos sao aqueles alijados do processo decisorio estatal, esqueci-dos e oprimidos pelo poder. Guardadas as devidas proporcoes, haja vista a evolucao materiale as conqu is ta s t ecno log icas , as favelas de hoje n ao d ife rem muito das senzalas de ontem. Iaas sobrecidadaos usufruem dos beneficios de se estar perto do poder, imunizando-se do de-ver de nao ter mais direitos que as demais, Lembro que essa nocao cornecou cedo em nossoEstado, desde 0Brasil-Colonia e suascapitanias hereditarias - os donatarios e os nobres, noanverso, e os escravos e as indios, no verso.

    Desta forma, posso muito bern charnar 0 subcidadao de marginal. 0 que e marginal?Ao contrario do que os meios de comunicacao propalam - dando a conotacao pejorativa dealguem que contraria as leis penais -, e aquele que esta a margem, que na o tern poder, voz aureconhecimento na sociedade. Em nosso Estado hi dezenas de milhoes de marginais, e 0mais contradit6rio (para nao dizer revelador) e que a nossa Con sti tuicao inclui no seu art. 3.",entre os objetivos fundamentais, "a erradicacao da pobreza e da marginalizacao" (inciso III)e das desigualdades sociais e regionais.2.4 Os valores em uma sociedade capitalista

    Em urn Estado capitalists, num mundo complexo, em que as identidades e culturas locaisvao se perdendo frente aos standards e etiquetas globais, que "marc am" e "demarcam" aspessoas e seus espacos dentro d a soc ie dade , somos rotulados atraves do que temos, e nao doque somos. A mfdia nosempurra a buscar status social. E nao se questionam os meios paraalcancar os fins.

    Referindo-se a sociedade americana, mas em situacao que muito bern se aplica a situa-c;ao brasileira, COHEN afirma que a assuncao dos valores consumistas das camadas maisaltas por parte das camadas menos favorecidas, e as consequentes frustracoes na hora derealiza-los, haja vista a desigualdade de preparo intelectual, estrutural e familiar -, condicionamos desprestigiados a pratica de atos contra 0 patrim6nio alheio. Os jovens das classes maisbaixas estao em desvantagens para 0 almejado e p rop agand ead o sucesso, e sofrem humilha-l;!aodevido a interiorizacao da "etica do sucesso", confundido esta com a propria virtude. Equanta maiores as desigualdades sociais, mais patentes e dramaticos serao os reflexos dessasituacao." E 0 desejo (de ter) vencendo 0medo (do castigo). Alie-se is so a um meio degra-dante. E assim, os pressupostos para a futura criminalizacao estao formados.

    3. 0 TIPO PENAL: CONSTRU

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    7/17

    472 RT-86 I - JULHO DE 2007 - 96." ANO4. MAlS SOBRE 0 SISTEMA PENAL

    o sistema penal e parte do controle social, de cunho institucional (desvelado) e comdiscurso punitivo. Dentro do sistema penal 0 direito penal ocupa apenas uma parcela, 0 sis-tema penal, explica Zaffaroni," age desde 0momenta em que se detecta a suspeita de umainfracao penal ate 0 curnprimento da pena, englobando a atuacao do legislador, da popula-93.0, da cornunicacao em massa, da policia, do Judiciario, do Ministerio Publico e dos servi-dores da Execucao Penal,

    Na pratica, 0 sistema penal e bastante seletivo," como diz Zaffaroni, que nem fala emcriminoso, mas em criminalizado" - referindo-se aqueles que serao escolhidos para servi-rem de exernplo 11maioria, com 0im de silencia-la, aquieta-la, A criminalizacao ou seletividade(primaria) comeca ainda durante 0processo legislativo, isto e , na escolha dos tipos penais, naselecao das condutas que serao repro vadas no ambito penal.

    Verifica-se, inicialmente, que hil umafiltragem ainda durante a fase policial. Significadizer 0 que? Ao contrario da ideia generalizada de poder que tern as autoridades judiciariase do Ministerio Publico, reside na poltcia urn poder muito maior, pois ela e quem diz 0que vaiser ou nao objeto de apreciacao pelo parquet e pelo magistrado.

    Afastando-me do discurso idealista de imaginar que em nosso pais as pessoas sao tra-tad as igualitariamente e que 0 nosso direito penal e de fato e nao de autor - a crirninalizacaosecundaria se da, na pratica, com a persecucao dos que, desfavorecidos e distanciados dopoder, foram apanhados pela teia do sistema penal. E a partir dar tambem os jufzes e promo-tores, imersos no habitus, no senso comum do dia-a-dia judiciario, reproduzem urn discursode ordem e criminalizam aqueles, movimentando 0sistema ideol6gico que protege as cama-das sociais favorecidas e oprirne, conseqtlentemente, as desfavorecidas.

    Ja a criminalizacao terciaria se da durante a execucao da pena. Nosso sistema peniten-ciario, como sera visto, e uma falacia, A contradicao entre 0 discurso da Lei de ExecucaoPenal e a realidade social e aterradora.4.1 Criminalizaciio primdria

    o saber penal dogmatista, escravo da lei, "so se preocupa da legalidade das rnaterias que 06rgao legislativo quer deixar dentro de seu ambito e, enfim, de reduzidfssima parte da realidadeque, por estar dentro desse ambito ja delimitado, os orgaos executores decidem submeter-lhe"."

    S6 para que se tenha uma ideia da irracionalidade de nossa legislacao penal, vejamosalguns exemplos, ilustre leitor: (1) e mais grave duas pessoas furtarem urn televisor do quetorturarem alguem ou arrancarem 0 brace de uma pessoa;" (2) falsificar urn creme de

    119 ) ZAFFARONI, 2001, p. 70.(20) LENIO STRECK traz dados estansticos feitos por uma Procuradora do Rio de Janeiro sobrecrimes contra 0 sistema financeiro, dizendo que das682 acoes criminais, houve apenas cincocondenacoes na primeira instancia e mais nove na segunda. Dezenove indivfduos forarn con-denados por crime do colarinho branco e nenhum deles foi para a cadeia. Vide, ob. cit., p. 35.(21) ZAFFARONI, 2001, p. 77.(22) ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sis-tema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 22.(23) (1) art. 155, 4.,N, do CPoPena: 2 a 8 anos dereclusao, e multa; art. 1.0 da Lei 9.455/97.

    Pena: 2 a 8 anos de reclusao; art. 129, 2., ill, do CPoPena: 2 a 8 anos de reclusao; (2) art.

    "

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    8/17

    DOUTRINA PENAL - TERCElRA SE~AO 473maquiagem e crime hediondo.com pen a de ate L5 anos; (3 ) cegar urn olho de alguern e me-nos grave do que adulterar a pJaca de urn carro; (4) matar alguem e punido com menor gravi-dade do que extorquir mediante sequestro ..por mais de 24 horas; (5) matar uma crianca ternpena minima menor do que 0 atentado violento ao pudor contra ela.

    A seletividade (crirninalizacao) primaria do sistema penal se toma ainda mais patentenas seguintes situacoes: (1) alguem se apropria da televisao do vizinho e a entrega antes daderuincia: pen a de 1 a 4 anos de reclusao e multa, diminuida de 1/ 3 a 2/3; (2) alguem se apro-pria da televisao do vizinho e a entrega depois da demincia: pena de 1 a 4 anos de reclusao,podendo haver abrandamento da pena-base (consequencias do crime favoraveis em razao dadevolucao da coisa); (3) urn empregador se apropria das contribuicoes recolhidas dos empre-gados e que deveriam ser repassadas a previdencia social ou um empresario sonega trezentos.milhoes de reais em tributos: pena de 2 as anos, e multa; (4) Se houver 0pagamento antes daa~ao fiscal e extinta a punibilidade; (5) Ese 0 agente parcelar em 15 anos a divida fica suspensaa pretensao punitiva; (6) Se quitar os debitos, mesmo apos 0 recebimento da demincia e 0parcelamento, extingue-se a punibilidade."

    Impressionante e que 0 ate de surrar alguem, causando lesao leve, e punido com pen ade detencao, de 3 meses a 1 ano." Ja 0furto de urn aparelho celular imp6e pena de reclusaode 1 a 4 anos, e multa." As acoes penais sao diversas, Publica condicionada a representacaoda vitima, no primeiro caso," e publica incondicionada, no segundo. Ve-se 0 valor que anossa Iegislacao penal d a a pessoa. Ela protege 0 ter e nao 0 ser (humano).4.2 Criminalizacdo secunddria

    Como foi visto acima, ate mesrno as "pessoas de bern" cometern infracoes penais. Masna sua atuacao, 0 sistema penal, nao obstante 0 discurso de direito penal do fato, se revela urndireito penal de autor, pois incide seletivamente, oprimindo os setores menos favorecidos dapopulacao, para que os chamados "crirninalizados" sirvam de exemplo aos demais." Naosornos tratados de maneira iguaL Quanto mais centrais os grupos, menos sujeitos estao aosistema penal. "Ser pobre nao e crime, mas ajuda a chegar hi", disse com propriedade 0humorista Mill6r Fernandes.

    A exclusao social no Brasil e uma aberracao, permeando toda a nossa historia, Einodizer de Marcio Pochmann, a resistencia ao enfrentamento da exclusao social nso advemsomente de govemos historicamente lnconsequentes ou de politic as sociais erradas, mas dasproprias classes superiores que se alheiam ao apartheid social (0 grupo das famflias mais

    273 do CP e art. 1.", VII, b. Pena: 10 a 15 anos de reclusao, e multa; art. 2. da Lei 8.072/90;(3) art. 129, 1.", III, do CPoPena: 1 as anos de reclusao; art. 31 I do CPOPena: 3 a 6 anosde reclusao, e multa. (4) art. 121, caput, do CP. Pena: 6 a 20 anos de reclusao; art. 159 1.",do CPoPena: 12 a 20 anos de reclusao. (5) art. 121, 4., do CPoPena: 8 a 26 anos e 6 mesesde reclusao; art. 213 doCP e 9. da Lei 8.072/90. Pena: 9 a 15 anos de reclusao,

    (24) (1 ) art. 168, caput, do CP, c/c art. 1 6 do CP; (2 ) art. 168, caput, na forma do art. 1 6, do CP(3 ) art. 168-A, caput, do CPoarts. 1 .0 e 2. da Lei 8.137/90. (4 ) art. 168-A, 2.", do CP. (5 )art. 9.0 da Lei 1 0 .68412003 . ( 6) art. 9.", 2., da Lei 1 0 .6841 200 3. .

    (2S) Art. 129, caput, do CPo126) Art. 155 , caput, do CPo1271 Art. 88 da Lei 9.099/95.128) ZAFFARONI, 2001, p. 76.

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    9/17

    474 RT-86J - JULHO DE 2007 - 96.~ ANOficas brasileiras, que constitui 0,001 % da populacao, possui urn patrimonio que representa40% do PIB brasileiro)," passando 0 discurso da desigualdade como urn "fenomeno natu-ral" para "Uma cornpreensao mais comoda que vincula 0 ambiente -da pauperizacao acriminaJidade, cabendo, nesse sentido, 0 incremento do aparato de seguranca e 0 aurnento darepressao sobre as classes pobres 'perigosas'. Assim, a exclusao social tern sido concebidafundamentalmente como uma consequencia do fracasso na trajet6ria individual dos propriosexcluidos, incapazes de eIevar a escolaridade, de obter uma ocupacao de destaque e de rnaiorremuneracao, de constituir urna familia exemplar, de encontrar uma carreira individual desucesso, entre outr os apanagio s da alienacao da riqueza't."

    Gasta-se, no Brasil, mais com seguranca publica e privada do que com polfticas so-ciais." Enquanto isso, "No limiar do seculo XXI, 0 Brasil registra uma manifestacao surdamas poderosa - ainda que nao articulada em torno de fins politicos - dos seguimentos exclui-dos da cidadania, esgarcados numa sociabilidade marcada pela violencia urbana e pelo 'gan-ho facil' no trafico de drogas, na prostituicao e nacorrupcao; ou ainda, sujeitando-se ao tra-balho infantil e ao trabalho quase forcado executado por milhoes de jovens com insercaoprofundamente precaria, abrindo assim novas formas espurias de valorizacao do capital"."

    Mais uma vez deixando de lado 0 formalismo idealizador e alienante de Kelsen, ve-seque 0 sistema penal termina por etiquetar (labeling)J) 0 criminalizado, gerando achamadadelinquencia cfclica," isto e, a reincidencia contumaz. Cria-se urn estigma, principalmenteem re la ca o a qu ele s que entram no cicio de criminalizacao e possuem varies processos. In -conscienternente, 0 senso COllum dos juristas e de predisposicao a condenacao, Maiores saoas chances de aplicacao de pena aquele individuo que se express a usando girias que se iden-tificam com 0 discurso dos "marginais", Candidatos potenciais tambern sao os dependentesde entorpecentes ou que possuem uma conformacao ffsica "marginalizada", como a presen-ca de tatuagens no corpo.Com efeito, nao obstante as disparidades gritantes das leis incriminadoras, 0 sistemapenal nao funciona de acordo com 0 que esta previsto nas normas garantidoras dos direitosdos criminalizados. Possui mecanismos proprios que revelam urn dj.reito penal de autor, enao de fato, Como ja dito, 0 Judiciario e 0Ministerio Publico imaginam ter mais poder queo aparato policial, s6 que afiltragem e feita na fase investigativa."

    Apos dezoito anos da Constituinte e quase dois da Reforma do Judiciario," muitosestados-membros ainda nao possuem Defensorias Publicas funcionando, Quem conhece a

    (29) POCHMANN, Marcio, et al. (Org.), Atlas da exclusdo social no Brasil: os ricos no Brasil.v. 3. Sao Paulo: Cortez, 2004, p. 29.(30) Idem, p. 10.(31) Ibidem.(32) Idem, p. 33.(33) ZAFFARONI, 2001, p. 74.(34) Processo individual e social pelo qual 0 criminalizado fica 0 estigmatizado, nao mais con-seguindo se readequar a vida em sociedade, retornando ao carcere.05) Na pratica, 0 poder Judiciario e 0 Ministerio Publico s6 vern a ter conhecimento das infra-

    ~5es que a polfcia formaliza, deseja, E esta, dada a desestruturacao e submissao ao PodcrExecutive, nao possui independencia para investigar pessoas ligadas aos grupos centrals dopoder, Os que assim insistem sao, niio raras vezes, perseguidos e punidos por estarem cumprindo 0 seu dever funcionaL

    (36) Arts. 134, l.ne 168 daCF/88, com redacao da EC 45/2004.

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    10/17

    DOUTRINA PENAL - TERCEIRA SE

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    11/17

    476 RT-86! - JULHO DE 2007 - 96." ANO

    passado, reconhecfvel ja na patine de urn tempo gasto. As coisas caem, no tempo do instante,em mem6ria e s6 podem ser reconhecidas, nao como presente mas tao-so como rememoracao,como historia.?"Isso contribui para que tenhamos incertezas e, consequentemente, sensacao de insegu-

    ranca. E esse paradoxo da forca aos discursos alienantes de maior criminalizacao.Portanto, e precise retirar os veus (para nao dizer as cortinas negras) que velam e quecegam, ofuscam e poem na escuridao a maioria de nossa populacao, pois Beccaria ja dizia hiduzentos anos que mais vale a certeza da punicao do que a gravidade da pena para efeito deprevencao..2.2 0 crime organizado ou a sociedade desorganizada?

    Ve-se hoje muito se falar em crime organizado. Os recentes atentados atribufdos aorimeiro Comando da Capital, 0chamado PCC, nos trazem uma sensacao de que tal fenome-no e recente e esta aumentando. Contudo, as idades antiga e media conheceram as hordasue surpreendiam os nascentes burgos. 0 que dizer de Gengis Kan, que por onde passava naoeixava homem em pe?! 0 que falar dos saqueadores, durante a idade media, que ficavam a sargensdas estradasesperando suas vitimas?! No mesmo diapasao, Francis Rafael Back:o crime em larga escala tambem nao e urn fenomeno recente em uma perspectiva his-torica, 0 contrabando, par exemplo, teve momentos de alta dose de sofisticacao, como noaso das grandes quadrilhas que atuavam na Franca durante 0 antigo regime. Os piratas doseculos XVI e XVII, por sua vez, tinham uma organizacao ainda mais estavel, contando compoio de algumas nacoes e uma estrurura de trabalho que contava com receptadores para asercadorias roubadas, e portos seguros."o que dizer da mafia, seja a italiana cosa nostra, a yacusa japonesa, a mafia chinesa erussa?! 0 que dizer do nosso cangaco'l Eram, todos, grupos organizados e que muitas ve-enfrentavam 0poder institucionalizado.

    Portanto, esse discurso da existencia da criacao do crime organizado como fenomenoos-moderno e tambem uma falacia. 0 que ocorre e que os meios tecnolcgicos de que seilizam se sofisticaram.Quanto ao propagado Primeiro Comando da Capital- pec (antigamente falava-se emomando Vermelho, tambern), ve-se que sobrevive a partir do esfacelarnento do sistemaarcerario brasileiro, juntamente com a falta de perspectivas dentre os membros das camadas

    enos favorecidas. Dentro dos presidios a realidade e des umana e quem nao fizer parte dema dessas faccoes nao tera seus direitos respeitados, au sera prejudicado em beneffcio da-ueles que sejam membros de urn desses grupos.2.3 Violencia institucionalizada

    Nao costumarnos tambern fazer uma avaliacao hist6rica da violencia institucionaliza-a em nosso pais. Os maus-tratos contra os negros no Brasil eram comuns. 0 que dizer da

    (42) COSTA, Jose de Faria, apud FERNANDES, Paulo Silva. Globalizaciio, "sociedade de ris-co" eo futuro do direito penal: panoramica de alguns problemas comuns. Coimbra: Livra-ria Almedina, 2001, pp. 31-32.(43) BACK, Francis Rafael. Perspectivas de controle aos crimes organizado e critica (I

    flexibilizaciio das garantias. Sao Paulo: IBCCRIM, 2004, p. 56.

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    12/17

    DOUTRINA PENAL - TERCEIRA SE

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    13/17

    478 RT-86 I - JULHO DE 2007 - 96." ANOcondicoeaseja pela baixa probabilidade de punicao, seja porque a punicao e dernorada e, P"Iisso mesmo, poucos a consideramcomo consequencia logica dos seus atos (impunidadc)."4.2,4 Mudando 0 paradigma: do micro para 0 macro

    Como ja foi visto, nosso sistema penal (incluindo 0direito penal) e individualista. Stletivo, moralista e patrimonialista. Precisamos fazer uma mudanca do paradigma criminal. ( IDireito Penal hoje, em uma sociedade complexa, deve cuidar corn mais atencao dos 1lL'1i'jurfdicos meta-individuais, E essa mudanca de modelo deve ser realizada atraves da consutuicao de urn Novo Ordenamento Criminal. Deve-se dar maior destaque aquele infrator qUI'em sua conduta Iesiona urn ruimero grande, indeterrninado, ou ate rnesmo a propria coleuvidade como urn todo, 0 sistema penal, na pratica de hoje, dirige-se a punir infratores e in 1 1 : 1goes menores, principalmente de natureza patrimonial individual. Nao estou falando qurdevamos descriminalizar desenfreadamente a maioria das condutas hoje tipificadas. Coutudo, devemos ponderar para diminuir as distorcoes, contradicoes e inconstitucionalidades tI:1grantes que, infelizmente, na praxis judiciaria, terminam sendo aceitas como "normais" Pi:los operadores do direito,

    Em uma sociedade complexa como a nos sa, 0 verdadeiro crime organizado nao LIS"armas de fogo. Usa gravatas ou roupas de grife. 0 verdadeiro crime organizado mata, sileuciosamente, dezenas de rnilhares de pessoas todos os anos, sonegando ou desviando verbaxpublicas que poderiam ser utilizadas para a construcao de hospitais, escolas, estradas e casaspopulares. Impede, assim, a inclusao social e a diminuicao da revolta e da violencia dos menoxfavorecidos contra as camadas mais privilegiadas.Ensina 0jurista Paulo Silva Fernandes" que "0 crime por excelencia na era global C IIcrime economico. E 0 multiplicar, em termos ineditos, tanto da crirninalidade econornica COJT!l I

    da delinquencia de colarinho branco, como ainda e por ultimo, dos crimes of powerful em largnescala, de circuitos criminosos que englobam a circulacao de grandes capitais e a movimenui-C;aode inumeras pessoas e organizacoes, frequentemente a escala internacional ou global, emprol de urn tim comum, a obtencao de lucros fabulosos provenientes ciapratica criminosa" ."Aproveito para trazer uma outra vertente, que ouso chamar de "crimes de macrocorpora-goes" oriunda de grupos empresariais poderosos (na maioria das vezes sociedades anonimas I.'ate concessionarias de services piiblicos), A cupula dirigente se aproveita de seu poderio e e~trutura tecnologica para, deliberadamente, apos concerto interno premeditado, mercado16gica

    (47) MICHENER, 2005, p. 343.(48) 0 autor luso acima faz uma distincao entre crimes do colarinho branco, crimes economicose criminalidade dos poderosos. Os primeiros (white collar ciminality) sao as cometidos pOI'pessoas das camadas mais altas de uma determinada sociedade, em urn determinado mo-menta hist6rico; a charnada criminalidade economica afasta-se urn pouco mais dos cenrrosdo poder, mas ainda considera a colocacao do agente como relevante.no meio social a lhcpermitir a pratica desses crimes em menor escala (exemplo: c1onadores de cartoes de eredito). Por fim, a criminalidade dos poderosos e vista sob urn duplo aspecto, social e depoder, utilizando-se diretamente desses dais elementos para cometimento de abusos com 0intuito de manutencao e/ou reforco desse mesmo poder, revelando-se sob 0 aspecto politico

    (violencia policial, genocfdio, tortura) ou economico (corrupcao ativa e passiva, lavagemde dinheiro, crimes contra 0 sistema financeiro). Ob. cit., p. 36-37 (rodape),(49) FERNANDES, Paulo Silva. Globalizaciio, "sociedade de risco" e 0futuro do direito penal:panoramica de alguns problemas comuns. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, pp. 36-37.

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    14/17

    DOUTR1NA PENAL - TERCElRA S E < : : A o 479l' . i uridicamente assessorado - onde se pondera a relacao custo/risco/resultado da pratica pre-tcndida -, obter lucros iIfcitos arraves docometimento de crimes contra a ordem tributaria e/oucconornica, os -consumidores, 0meio ambiente e 0 Estado, ou destruindo a concorrencia compraticas predat6rias.-1.3 Criminalizaciio tercidria

    Quanto a seletividade terciaria, que se da durante a execucao da pena, informo os se-guintes dados do ultimo Censo Penitenciario Nacional:" Custo medic de cada vaga: 35 milreais: custo mensal de urn preso: 3,5 salaries mfnimos; mandados de prisao nao cumpridos:275 mil. Crimes: roubo _(33%), furta (18%), homicfdio (17%), trafico (10%), lesao corporal(1%) estupro (3%), atentado violento ao pudor(2%), extorsao (1%). Idade media: 53% commenos de 30 anos (no auge da forca de trabalho); ociosos por falta de trabalho dentro dosistema prisional: 55%; sern 0 1. grau completo: 87%; pobres: 95%; sem condicoes finan-cciras de constituir urn advogado., 85%; reincidencia: 33%.

    No plano mundial, nossos indicadores sociais mais importantes, dentro de urn universode 175 pafses estudados, sao os seguintes: Indice de exclusao social: 109" posicao; pobreza(renda diaria inferior a US$ 2.00/dia): 71.; desigualdade social (relacao entre os 10% maisrices e os 10% mais pobres): 167' posieao; alfabetizacao: 93' posicao (arras do Zimbabue, 88.",c Paraguai, 69.); -escolarizacao superior: 84" posicao; homicidios: 161' posicao em 175 paises(neste caso, quanta pior a colocacao, rnaior 0mimero de homicfdios por 100 mil habitantes). 5 I5. CONCLUSOES

    Para que possamosdiminuir a violencia criminal, e necessario respeitar a dignidade dapessoa humana (abolir os sobrecidadaos e os subcidadaos). Nem os intocaveis, nem osoprimfveis.

    Bern ensina Oriol Romani quando fala que""Ya no es p6ssible mantener, em el contexte del saqueo de los Estados del Bienestar,unos discursos tan contradictorios com la puzante realidade del incremento de la desigualdad,pormas consumo y espectaculo que medien la situaci6n; esmas, la ideologfa hegenonica predicaque este consumo y espectaculo hay que ganarselo individualmente em el mercado't.PComo ja foi dito, somente a exclusao de grande parte dos tipos penais (sao mais de doismil) e a mudanca de paradigma para urn direito penal metaindividual irao acabar com 0 sim-bolismo de nossa legislacao penaL Alem disso, valorizar 0 indivfduo em detrimento do

    patrimonio. 0er antes do ter. Mudar 0 enfoque para podermos ter UrnDireito Penal efetivo

    Ijll) MOLINA, 2002, pp. 671-674.lSi) PORCHMANN,Marcio, et, al..Atlas da exclusiio social no Brasil: a exclusao no mundo, v. 4.Sao Paulo: Cortez, 2004, pp. 56-68.IS2) ROMANI, Oriol. Prohibicionismo y drogas: i,um modelo de gestion esgotado? In:BERGALLI, Roberto (Org.), Sistema penal y problemas sociales. Valencia: Tirant 10Blanch,2003, p. 440.(53) "Ja nao e posstvel manter, no contexte do esfacelamento dos Estados do Bem-Estar, unsdiseursos tao contradit6rios com a aberrante realidade do incremento da desigualdade, maspor consumo e espetaculo que equilibrem a situacao; e mais, a ideologia hegemonica predicaque este consumo e espetaculo tern que ser ganho individualmente no mercado".

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    15/17

    480 RT-86l - JULHO DE 2007 - 96." ANOque proteja 0ser humano, ao inves de oprirni-lo. Assim, tambem, diminuiremos a superlotacaodos nossos presidios, transformados em verdadeiras "universidades do crime", Na pratica.quem comete urn pequeno delito e hi fica por urn tempo prolongado -sai degenerado.

    Como 0 sistema e seletivo em suas tres fases (selecionando os pobres) e os setoreselitizados vivem encasteladosem areas protegidas (relativamente imunizados, pais s6 po-dem circular em areas "seguras"), a classe media e quem mats sofre com a reacao a violenciai,institucionalizada contra os oprirnidos. Andrew Michener chama esse fenomeno da psicolo-Igia social de agressiio deslocada:o fato de, muitas vezes, as pessoas que nos provocam terem 0poder de retaliacao f~v,surgir a ideia de agressiio deslocada, definida como a agressao direcionada ao alvo, que excedeaquilo que qualquer provocacao por parte deste alvo justificaria; instigada por uma fontcdiferente, a agressao e deslocada para urn alvo menos poderoso."

    A caracteristica dessa agressividade deslocada e a hierarquizacao da relacao algoz-vi-tima, estando aqueIe sernpre em posicao de supremacia. Exemplificando: urn policial, nocumprimento de seu dever, e humilhado por um chamado supercidadao, durante uma blitz.Nao pode reagir. Desloca, entao, a reacao a agressao inicial, quando da prisao de urn assal-tante, espancando-o. Este, por sua vez, ira deslocar a violencia sofrida a uma futura vftima{que pode ser ate urn supercidadao) que atacar, ja que, nessa situacao, 0 assaltante, armado,estara em supremacia. Surge, assim, urn ciclo interminavel de agressoes, Ha recente filme,Crash: No Limite, tratando desse terna."

    Aproveitando 0 exemplo, criar uma verdadeira Policia Judiciaria e essencial para cons-trucao de uma sociedade melhor, Ela nao podeficar, como hoje, submetida aos interesses doPoder Executivo. Alern dis so, precisa ser instrumentalizada com recursos tecnol6gicos quepossibilitem investigacoes mais precisas e profundas em crimes complexos. Isto certamenrenao agradaria as camadas privilegiadas - pois os deIitos de inteligencia (dentre os quais estaoos chamados "crimes do colarinho-branco") seriam, enfim, melhor investigados, abrindo-se,tambern, maior possibilidade de punicao. Mas somente assim diminuirfamos a violenciareinante e poderfamos viver em uma sociedade menos conflituosa.

    Os dados estatisticos acima demonstram as graves contradicoes de nossa sociedade eque a questao do crime nao sera resolvida pelo direito penal. Nao sob 0manto atua! de pro-tecao dos delitos contra 0 parrimonio (quem nao tern, tirando de quem tern). Precisamoscombater a origem do problema (que e socio-econornico) e nao sua consequencia.Para finalizar, certa vez, urn estudante de direito, ao pagar a cadeira de Direito Penal,teve a oportunidade de visitar uma penitenciaria,Antes, ele teve 0 cuidado de ler a Lei 7.210/84, que trata da Execucao Penal no Brasil.La ele viu que eram direitos de todo preso, dentre outros, os seguintes: alimentacao suficien-te e vestuario; atribuicao de trabalho e sua remuneracao; previdencia social; exercfcio dasatividades profissionais, intelectuais, artfsticas edesportivas anteriores, desde que compati-veis com a execucao da pena; assistencia material, a saiide, jurfdica, educacionaI, social creligiosa; protecao contra qualquer forma de sensacionalismo; igualdade de tratamento sal-vo quanta as exigencies da individualizacao da pena; e contato com 0mundo exterior pormeio de correspondencia escrita, da leitura e de outros meios de informacao que nao com-prometam a moral e os bons costumes."

    (54) MICHENER, 2005, p. 338.(55) Crash: no limite. Direcao de Paul Haggis. Manaus: Imagem Filmes, 2005 (112 min.). DVD.Legendado e Dublado. Colorido. Dolby Digital5.L Widescreen,(56) Art. 41 da Lei das Execucoes Penais.

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    16/17

    DOUTRINA PENAL - TERCEIRA SEC;:AO 481Ao final, Iegislacaoembaixo do brace, dirigiu-se a urn estabelecimento prisional e laele observou que tudo nao .passava de retorica: deparou-se com urn ambiente insalubre, pre-sos desassistidos -sob todos os aspectos, superlotacao das celas e muita revolta. Dias depois,houve uma fuga desse mesmo estabelecimento horrendo. Ocorreram mortes de dois dos quetentaram escapar. Depois de ler a reportagem, 0 estudante se debrucou sobre urn cademo ecompos urn soneto:Sai no jornal: mais uma fuga do presidio.A "Joao Chaves" e 0 inferno neste mundo.E Hamurabi retornando do -esquecidoE propalando 0animalismo mais profundo.Combate, 6 norma, 0 que .gera 0 crirninoso:Seja a miseria, 0 abandono, 0 desengano.Traz para 0 pobre a esperanca de algo novo.Nao so nascer, crescer ever passarem os anos.Que teia e essa que s6 prende vaga-lumes?Pois os "gravatas" agem livres e impunes.Sera 0Direito urn inseticida social?Corrupcao nos palacetes do .poder,Milhoes nos campos que mal tern 0que comer...Nesse pais 0 absurdo e tao normal!o ana era 1994. A penitenciaria, a Colonia Penal Dr. Joao Chaves, conhecida como 0"Caldeirao do Diabo", em Natal, RN, e 0 estudante-poeta, eu.

    6. BIBLlOGRAFiAABBAGNANO, Nicola. Dicionario de filosofia. Sao Paulo: Mestre Jou, 1982.BACK, Francis Rafael. Perspectivas de controle aos crimes organizado e critica a flexibiliracaodas garantias. Sao Paulo: IBCCRIM, 2004.BARATA,Francese. Los mass media y el pensamiento criminologico, In: BERGALLI, Roberto(org.), Sistema penal y problemas sociales. Valencia: Tirant 10 Blanch, 2003.BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-/956. 6. ed. Sao Paulo: Editora 34, 2004.CARVALHO NETIO, Menelick de. Racionalizacao do ordenamento jurfdico e democracia.

    Revista Brasileira de Estudos Politicos. Belo Horizonte, n, 88, dez. 2003, p. 81-108,apud PRATES, Francisco de Castilho. 0 conceito de ciencia subjacente ao projetomoderno de racionalizacao do Direito: a questao epistemo16gica da busca de seguran9ajurfdica. Disponfvel em: . Acesso em: 09.07.2006.

    CHASH: no limite. Direcao de Paul Haggis. Manaus: Imagem HImes, 2005. DVD (112 min.),Legendado e Dublado. Colorido. Dolby Digital 5.1. Widescreen.CHAUf, Marilena. Convite it filosofia. 13. ed. Sao Paulo: Atica, 2003.COHEN, A., apud DIAS, J01:gede Figueiredo Dias; ANDRADE, Manoel da Costa. Criminologia:o homem delinqiiente e a sociedade criminol6gica. Coimbra: Coimbra Editora, 1997.COSTA, Jose de Faria, apud FERNANDES, Paulo Silva. Globalizaciio, "sociedade de risco"e 0futuro do direito penal: panoramica de alguns problemas comuns. Coimbra: LivrariaAlmedina, 200 L

  • 8/4/2019 Discurso Sobre o Sistema Penal

    17/17

    482 RT-86 I - JULHQ DE 2007 - 96." ANODERSU UZALA. Direcao de Akira Kurossaua. Manaus: Continental, 2002. DVD (140 miu.)Dolby Digital LO Mono. Color. Widescreen. Legendado. Portugues,FERNANDES, Paulo Silva. Globelizacdo. "sociedade de risco" e 0 futuro do direito peu

    panoramica de alguns problemas comuns. Coimbra: Livraria Almedina, 2001.KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 2003.MICHENER, Andrew H. et al. Psicologia social. Sao Paulo: Pioneira Thomsom Learning, 200".MOLINA, Garcfa-Pablos de; GOMES, Luiz Flavio, Criminologia: introducao a seus fundamcntos teoricos: introducao as bases criminolcgicas da Lei 9.099/95: lei dos juizados espcciui-criminais. 4. ed. rev., atual. e ampl, Silo Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.ODALIA, Nilo. 0 que if f violencia. Sao Paulo: Brasiliense, 2004.ORTEGA Y GASSET, Jose, apud REALI, Giovanni; ANTISERI, Dario. Historia da filosoji.v. 6. Sao Paulo: Paulus, 2006.PEDROSO, Regina Celia. Yiolencia e cidadania no Brasil: 500 anos de exclusao. Silo Paulo:

    Atica, 2002.POCHMANN, Marcio, et al. (Org.), Atlas da exclusiio social no Brasil: as ricos no Brasil. v.3. Silo Paulo: Cortez, 2004.ROMANI, Oriol. Prohibicionismo y drogas.vurn modele de gestion esgotado? Tn:BERGALl.I.Roberto (Org.), Sistema penal y problemas sociales, Valencia: Tirant 10 Blanch, 200.1.STRECK, Lenio Luiz, Hermeneutica Jur(dica. e(m) crise: uma exploracao herrneneutica d;1construcao do direito. 5. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.VERGARA, Rodrigo, apud PEDROSO, ReginaCelia. Violencia e cidadania no Brasil: 500 ani,de exclusao. Sao Paulo: Atica, 2002.WARAT,Luis Alberto. Introduciio geral ao direito, ll: a episternologia jurfdica da modernidadc.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.ZAFPARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistemapenal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.___ . PIERANGELI, Jose Henrique. Manual de dire ito penal brasileiro. 3. ed. rev. e atuul,Silo Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.