criminalização e seleção no sistema judiciário penal

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O presente trabalho é fruto da junção de uma convivência diáriacom processos criminais, no Estado de São Paulo, especialmentenos últimos oito anos (2000/2008), e, ao mesmo tempo, daintenção de realizar uma análise dos procedimentos costumeiramenteutilizados no trato das questões criminais por parte dos operadoresdo Direito, notadamente promotores de justiça e juízes. A convivênciaestabeleceu-se, de forma inevitável, em razão de minha própriaatuação, como membro do Ministério Público de São Paulo, emsegunda instância na Procuradoria de Justiça, ao manifestar-se nosprocessos criminais em grau de recurso. Trata-se de processos jájulgados pelos juízes de primeira instância, nos quais também constavamas manifestações das partes, que são os promotores de justiçae os advogados de defesa, contendo sentenças condenatórias ouabsolutórias.

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  • capa - Monografia n.59 - 19-11-10.indd 1 19/11/2010 17:18:40

  • Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

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  • Monografia n 59 - 19-11-10 - final.indd 2 19/11/2010 15:37:26

  • 1 Edio

    SO PAULO2010

    Oscar Mellim Filho

    Criminalizao e seleo no sistema

    judiCirio penal

    Monografia n 59 - 19-11-10 - final.indd 3 19/11/2010 15:37:27

  • Desta edio - IBCCRIMProduo Grfica: Ameruso Artes Grficas e Vdeo - ME Fone: (11) 2215-3596 - [email protected]: Lili Lungarezi - [email protected]

    INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS (IBCCRIM)

    Rua 11 de Agosto, 52, 2 andarCEP 01018-010 - So Paulo, SP, Brasiltel.: (xx 55 11) 3105-4607 (tronco-chave)http://www.ibccrim.org.br e-mail: [email protected]: 4.200 exs.

    TODOS OS DIREITOS DESTA EDIO RESERVADOSExemplar de distribuio restrita e comercializao proibida.

    Impresso no Brasil - Printed in BrazilNovembro - 2010

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    M475c

    Mellim Filho, Oscar

    Criminalizao e seleo no sistema judicirio penal / Oscar Mellim Filho. - 1.ed. - So Paulo : IBCCRIM, 2010

    (Monografas / IBCCRIM ; n. 59)

    Inclui bibliografa

    ISBN 978-85-99216-31-6

    1. Poder judicirio. 2. Direito penal. 3. Processo penal. 4. Crime e criminosos. I. Ttulo. II. Srie

    10-5584. CDU: 347.9

    28.10.10 05.11.10 022222

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  • IBCCRIM - Diretoria para o binio 2009/2010

    PresidenteSrgio Mazina Martins 1 Vice-PresidenteCarlos Vico Maas2 Vice-PresidenteMarta Cristina Cury Saad Gimenes

    1 SecretriaJuliana Garcia Belloque2 SecretrioCristiano Avila Maronna

    Diretoria Executiva

    Carina QuitoCarlos Alberto Pires Mendes

    Conselho Consultivo

    Amicus CuriaeHeloisa Estellita

    Cdigo PenalMaringela Gama de Magalhes Gomes

    Corretora dos Trabalhos de Concluso do VI Curso de Direito Penal Econmico e Europeu Heloisa Estellita

    Presidentes das Comisses Especiais Defesa dos Direitos e Garantias FundamentaisRafael S. LiraDireito Penal EconmicoLudmila Vasconcelos Leite GrochHistriaAna Elisa Liberatore S. BecharaInfncia e JuventudeLuis Fernando C. de Barros Vidal

    Justia e SeguranaRenato Campos Pinto de VittoMeio AmbienteAdilson Paulo Prudente do AmaralPoltica Nacional de DrogasMaurides de Melo RibeiroSistema PrisionalAlessandra Teixeira16 Seminrio InternacionalMarta Saad

    BibliotecaIvan Lus Marques da SilvaBoletimAndr Pires de Andrade KehdiCursosAndr Adriano Nascimento SilvaEstudos e Projetos LegislativosGustavo Octaviano Diniz JunqueiraIniciao CientficaCamila Akemi Perruso

    Coordenadores-Chefes dos DepartamentosInternetLuciano Anderson de SouzaMesas de Estudos e DebatesPaulo Srgio de OliveiraMonografiasFernando SallaNcleo de de JurisprudnciaGuilherme Madeira DezemNcleo de PesquisasMaria Amlia de Almeida Teles

    Ps-GraduaoHelena Regina Lobo da CostaRelaes InternacionaisMarcos Alexandre Coelho ZilliRepresentante do IBCCRIM junto ao OLAPOCRenata Flores TibyriRevista Brasileira de Cincias CriminaisAna Elisa Liberatore S. Bechara

    1 Regio (AC, AM e RR)Luis Carlos Valois2 Regio (MA e PI) Roberto Carvalho Veloso3 Regio (RN e PB) Oswaldo Trigueiro Filho

    1 Estadual (CE) Patrcia de S Leito e Leo2 Estadual (PE)Andr Carneiro Leo3 Estadual (BA)Wellington Csar Lima e Silva

    Coordenadorias RegionaisCoordenadora-Chefe: Juliana Garcia Belloque

    Coordenadorias EstaduaisCoordenadora-Chefe: Juliana Garcia Belloque

    4 Regio (AL e SE) Daniela Carvalho Almeida da Costa5 Regio (ES e RJ)Mrcio Barandier6 Regio (DF, GO e TO) Pierpaolo Bottini

    4 Estadual (MG)Felipe Martins Pinto5 Estadual (MS)Marco Aurlio Borges de Paula6 Estadual (SP)Joo Daniel Rassi

    7 Regio (MT e RO) Francisco Afonso Jawsnicker8 Regio (RS e SC)Rafael Braude Canterji

    7 Estadual (PR)Jacinto Nelson de Miranda Coutinho8 Estadual (AP)Joo Guilherme Lages Mendes9 Estadual (PA)Marcus Alan de Melo Gomes

    Monografias [email protected] www.ibccrim.org.br

    Coordenador-Chefe: Fernando SallaAdjuntos: Fernanda Emy Matsuda, Marcos Csar Alvarez, Maria Gabriela S.M.C. Marinho e Wnia Pasinato

    Conselho Diretivo: Alessandra Teixeira, Ana Lcia Pontes Menezes Vieira, Ana Sofia Schmidt de Oliveira, Andrei Koerner, Cludio do Prado Amaral, Davi de Paiva Costa Tangerino, Ela Wie cko Volkmer de Castilho,

    Flvio Amrico Frasseto, Jos Henrique Rodrigues Torres, Kenarik Bou jikian Felippe, Mara Rocha Machado, Rodrigo G. de Azevedo, Tadeu Antonio Dix Silva e Vera da Silva Telles

    1 Tesoureirodson Lus Baldan2 TesoureiroIvan Martins Motta

    Marco Antonio Rodrigues NahumSrgio Salomo Shecaira

    Theodomiro Dias Neto

    Comisso 14 Concurso IBCCRIM de Monografias de Cincias Criminais - 2010Presidente: Mara Rocha Machado

    Membros da Comisso Julgadora: Diogo Malan, Eda Maria Ges, Fabiana Costa Oliveira Barreto, Helena Regina Lobo da Costa, Marina Pinho Coelho Araujo, Marcos Paulo Pedrosa Costa, Mariana Possas

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  • s minhas filhas Ana e Slvia

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  • PREFCIO

    Direito, seletividade, criminalizao e o estado das coisas.

    No se trata mais de constatar que toda legalidade comporta ilegalismos, como um pronunciamento corriqueiro e procedimen-tal, em meio algaravia e os silncios atemorizadores que circulam pelos corredores, salas, papis e mais papis que se avolumam em processos criminais transitando por advogados, juzes e promotores proprietrios da palavra dos que se envolvem em situaes-problema.

    No h mais como pronunciar que a seletividade do sistema penal inevitvel e que as reformas penalizando a todos, mais e melhor, incluindo os abastados, mostrar como ele permanece legtimo e imprescindvel.

    No h mais como desviar da produo do direito como resul-tado de lutas intensas que esmagam, imobilizam ou desqualificam oponentes em seus baixos comeos histricos, posteriormente rees-critos sob a forma grandiloquente de direito universal penalizador a todo cidado.

    No h mais como se satisfazer com a liberdade negativa dos liberais, a ontologia do crime, a naturalizao do castigo, a produo de medidas punitivas encarceradoras em espaos fechados das prises ou s modulaes alternativas aplicadas e monitoradas a cu aberto.

    No mais nem menos importante problematizar a Cincia do Direito por dentro e por fora, pelo trnsito dos que zelam pelos proce-dimentos, e pelos contundentes discursos de resistncias que com ela se confrontam, vindos de seu interior e de gente que vive os combates dirios derivados do mundo privilegiado da propriedade privada.

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  • 8 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    No h direito universal que no responda propriedade privada, nem criminosos mixurucas aos montes e produzidos, irremediavel-mente, para alimentar essa mquina de triturar carnes e mentes.

    Sim, preciso pronunciar um no afirmativo, para alm da denncia e da colaborao para mais uma reforma. preciso ul-trapassar a retrica com coragem de problematizar a persistncia do direito penal e suas instituies como a polcia, o Ministrio Pblico, o Poder Judicirio, suas instncias de deciso e recursos, seu atual fluxo democraticamente constitudo pelo regime da fle-xibilidade das penas.

    * * * * *

    Conheci Oscar Mellim Filho durante um Curso Livre de Abo-licionismo Penal, realizado pelo Nu-Sol (Ncleo de Sociabilidade Libertria) na PUC-SP, em meados desta dcada. Entre jovens rebel-des e alertas, colaboradores e agentes do direito penal, embolorados ou inebriados com um suposto frescor democrtico, entre o pblico e os palestrantes, encontrei um homem culto, rigoroso, disponvel e ligeiramente tmido chamado Oscar Mellim.

    Naqueles dias, trocamos mais de uma conversa sobre a crimi-nologia crtica e o abolicionismo penal, a importncia da prtica abolicionista, as ameaas de v-la restringida a uma utopia, que lhe intercepta a fora e favorece a circulao de palavras mansas, huma-nitaristas e grandiloquentes nas bocas dos tartufos.

    Falvamos de como era e imprescindvel a mudana da lingua-gem entre os operadores e produtores do direito penal e suas relaes com os movimentos sociais, cada vez mais ajustados a uma forma de participao indita na administrao das penas. A cada sesso nossas inquietaes se aproximavam e meses mais tarde, Oscar enviou-me um precioso projeto para o doutorado em Cincias Sociais, abordando a criminalizao e a seletividade no sistema judicirio.

    O homem ligeiramente tmido nas conversas, em respeitoso tom baixo liberto da solenidade dos matreiros e poderosos senhores da lei, trazia a exatido combinada com a problematizao corajosa das leis, da profisso e de si mesmo. Um pesquisador raro e va-lioso, prximo s anlises de Michel Foucault, ao perspectivismo de Friedrich Nietzsche e atento produo crtica recente. Com-

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  • 9prometido com o rompimento da conduta crtica que tanto tem acomodado antigos e novos militantes da liberdade, propunha um caminho difcil, mas inevitvel, para redimensionar os efeitos da criminalizao e da seletividade em patamares nada reformistas.

    Durante os quatro anos de convivncia, construiu-se o volume apresentado banca de defesa de doutorado em uma sesso inesque-cvel, na qual os arguidores e o candidato produziram uma conver-sao inquietante e diferenciada, sobre a simplicidade da liberdade, os meandros da Cincia do Direito e as mirabolantes justificativas para a ampliao das punies.

    * * * * *

    O leitor transitar por um livro de escrita simples, erudita e direta. Entramos com o autor pela construo dos conceitos clssicos

    do Direito e do pensamento penal para situarmo-nos diante das distines entre o direito civil e penal, acompanhando os trata-mentos diferenciados includos nas prprias leis. Trata-se de um captulo-referncia!

    Nada como saber mais e mais sobre a interpretao! por meio dela que se escancara a seletividade no processo histrico de criminalizao das condutas. Nada como nos deter na atuao do Ministrio Pblico. Nada como acompanhar as idas e vindas por meio de exaustiva pesquisa em mais de seis mil processos. Oscar Mellim situa, enfim, a relevncia do abolicionismo penal na atualidade, no mais como uma bela utopia carregada na ala de cada lote de medi-das mais e mais punitivas, alternativas ou no, que proliferam numa sociedade modulada por direitos.

    No se trata de reformar ou substituir tribunais, dar mais e melhor formao humanista aos operadores, exigir a cumplici-dade de muitos saberes interdisciplinares, lavar as escadarias de conselhos, clarear pginas amareladas de livros, produzir mais e mais leis, discursos anticorrupo e renovar antigos valores. Este livro nos leva diretamente seletividade como dispositivo da punio e a constatar que tudo no passa, na verdade, de uma grande ao policial redesenhada no presente como dispositivos policiais de governo da sociedade.

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  • 10 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    Interessa, com este livro, olharmos para os casos infracionais em suas pessoalidades, circunstncias, intempestividades, surpresas, crueldades e infmias para alcanar um equacionamento pessoal no punitivo, prprio e alheio cultura da dor e do castigo.

    Cada vez que algum lida com uma criana aplicando-lhe uma punio como maneira certa, adequada, inevitvel e efetiva, rees-creve pelas normas as novas-velhas leis da educao hierrquica e que fomenta, em quaisquer regimes polticos, a proliferao de bajuladores e obedientes servis. Estes, sempre esto ao lado dos procedimentos legais e seus correlatos ilegalismos, reproduzindo e ampliando a regra geral que diz, assim como a moral do benfeitor, no haver Estado sem corrupo.

    No se trata de simplesmente dar as costas ao Estado, mas encar-lo de frente, redimensionar o direito, no em variedades dentro do universal, mas nas relaes diretas mantidas entre di-reito e dever entre os opositores, em uma especfica circunstncia e sempre relativa a um objeto. Isso tambm democracia para alm dos procedimentos de especialistas, tutores, julgadores e colaboradores que vivem do seqestro da palavra da vtima e do acusado. preciso no falar mais pelos outros. E isso no se corrige com a renovao da moral do bem e do mal, segundo um universal que sempre e ser particularista.

    Ao leitor destemido, o livro de Oscar Mellim coloca e repe as variadas maneiras de exerccio da lei, da jurisprudncia, do vaivm pelos tribunais amontoados de recursos que beneficiam, sempre, e por meio de variadas escalas, os setores mais privilegiados da socie-dade. No se democratiza somente por meio de leis gerais ampliadas e diversificadas, repetindo os mesmos procedimentos que dispem os perigosos para a sociedade em escalas ampliadas, sob regimes de penas variadas, com seletividades estranhamente recobertas e amplificando os seus zeladores.

    Transita-se por este livro, lenta ou ininterruptamente, segundo a coragem de cada um para enfrentar os mltiplos problemas abordados com exatido pelo autor. A leitura no espera por seguidores a uma doutrina ou teoria; no se trata de convencer ningum do que cada um j sabe de antemo, durante e depois de tomar conhecimento, mas que por escolha, dissimulao ou covardia insiste em querer colocar para o lado, para fora ou incinerar. O livro propicia a disposio para

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    alterar o atual estado das coisas, com imaginao livre e disposio para a luta, desalojando-se do consolo trazido pelas utopias, e pre-parado para algo capaz de provocar reviravoltas no presente.

    A leitura veloz ou lenta de um livro como este modifica o leitor, o que est prximo e as distncias at mesmo estelares. Ele simplifica sem ser simplrio; exigente sem arrogncia; pronuncia um sono-ro no afirmativo que redefine a timidez, produz silncios novos, centelhas inimaginveis, e muito mais pesquisas voltadas para um rompimento com o governo de polcias que nos conduz, com seus ilegalismos e at mesmo ilegalidades consentidas e admiradas como colaborao ao bom governo das prises, sejam elas fechadas ou a cu aberto.

    Edson PassettiProfessor no Departamento de Poltica e no Programa de Estudos Ps-graduados em Cincias Sociais da PUC-SP, e coordenador do

    Ncleo de Sociabilidade Libertria (Nu-Sol www.nu-sol.org)

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  • APRESENTAO

    O

    presente trabalho fruto da juno de uma convivncia diria com processos criminais, no Estado de So Paulo, especial-

    mente nos ltimos oito anos (2000/2008), e, ao mesmo tempo, da inteno de realizar uma anlise dos procedimentos costumeiramen-te utilizados no trato das questes criminais por parte dos operadores do Direito, notadamente promotores de justia e juzes. A convivn-cia estabeleceu-se, de forma inevitvel, em razo de minha prpria atuao, como membro do Ministrio Pblico de So Paulo, em segunda instncia na Procuradoria de Justia, ao manifestar-se nos processos criminais em grau de recurso. Trata-se de processos j julgados pelos juzes de primeira instncia, nos quais tambm cons-tavam as manifestaes das partes, que so os promotores de justia e os advogados de defesa, contendo sentenas condenatrias ou absolutrias.

    A ideia de utilizar esse material para estudo cientfi co muito antiga. Devo dizer que, j quando comecei a trabalhar no interior do mundo do Direito, no hesitei em lanar para ele, especialmente para o Direito Penal, um olhar de fora. Um olhar de fora dirigido por parte de algum que j se encontrava do lado de dentro. Estar dentro e ao mesmo tempo fora do mundo do Direito constituiu sempre uma marca da minha vida profi ssional e pessoal, que se deve, inevi-tavelmente, ao de operador interno do sistema e ao irresistvel desejo de buscar elementos em outras reas do saber, em especial na Filosofi a, na Sociologia e na Poltica, com que pudesse qualifi car esse outro olhar. O objetivo foi o de efetuar uma descrio, de teor analtico, de como as coisas acontecem no mbito da criminalizao e da punio, relativamente ao papel desempenhado pelo Ministrio Pblico e pelo Poder Judicirio.

    Esse desejo de descrever como as coisas acontecem estabelece-

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    se, muitas vezes, em contraposio aos discursos oficiais, legais e acadmicos dos estudiosos do Direito e, tambm, de seus principais operadores, em que a criminalizao e a punio se apresentam invariavelmente como manifestaes da natureza das coisas, fruto de regras universais e de princpios anteriores s prticas jurdicas e judicirias. O intento foi mostrar, caminhando junto com o pensa-mento de Michel Foucault, como se estabelece a produo de uma outra verdade, nascida das relaes de poder que se exercitam no varejo do sistema judicirio e responsveis por uma construo do Direito margem das regras universais e dos princpios ou servindo-se delas e destes como dispositivos e instrumentos polticos de cri-minalizao e punio, vale dizer, como ferramentas com que so selecionadas pessoas para serem ou no serem punidas, com maior ou menor intensidade.

    A anlise de alguns desses processos criminais precedida de uma justificao do tema da seletividade penal, no sentido de que, em primeiro lugar, o que se afirma como crime no passa de uma cons-truo, violao de uma norma jurdica definida como norma penal exatamente porque comina ao violador a possibilidade da imposio de uma pena. A base terica de tal proposta, pois, a da abordagem criminolgica que se desenvolveu a partir dos anos sessenta do sculo passado, aqui genericamente definida como criminologia da reao social, em contraposio quela outra que elegia como alvo do conhecimento o homem criminoso classificado como anormal. O objetivo, pois, o estudo desse processo de construo da noo de crime, que no constitui uma realidade ontolgica em si, mas um ente produzido tambm pelas leis e, sobretudo, pelas prticas judicirias.

    Parte-se da ideia de que a ordem social uma criao humana e os projetos sociais so os responsveis pela produo daquilo que Zigmunt Bauman chama de refugo humano, que se destina priso, constitudo por uma classe de pessoas que so postadas na ltima fileira dessa ordem social, as chamadas classes perigosas. Dessa ideia, prope-se uma abordagem do Direito Penal que se encontra contido nas prticas judicirias, como ferramenta alimentadora e legitimadora do sistema penal, sendo um dos elementos responsveis pela seleo dessas pessoas.

    O trabalho procede a uma coleta de casos, meros fragmentos no universo processual, em que a atuao dos juzes, em vrias moda-

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  • 15

    lidades de crimes, d mostras de uma seleo de pessoas e formao de juzo de valor sobre sua periculosidade, em contraposio a outras. Para tanto, decisiva a contribuio da instituio do Ministrio P-blico e seus membros, como atores importantes na cena que domina o sistema judicirio. O objetivo mostrar como esses operadores utilizam determinadas armas dogmticas e dispositivos da cincia do Direito para amoldar, com mais facilidade, certas aes, oriundas de determinadas pessoas, aos tipos penais e, em contrapartida, como se servem de outros desses dispositivos para motivar a flexibilizao das condenaes, reduzir penas ou at entender no caracterizadas certas infraes penais.

    A seletividade, apontada no presente trabalho, implica que os criminosos, assim definidos pelo sistema judicirio penal, no so necessariamente os violadores da ordem jurdica penal na medida de sua criminalizao. E que, de outra parte, nem todos os violadores da ordem jurdica penal so classificados como criminosos, o que se deve em muito atuao dos promotores e juzes na construo dessa categoria de pessoas. Autores de crimes patrimoniais so invariavel-mente pequenos e miserveis ladres. Os condenados por crimes de apropriao indbita e estelionato so os pequenos falsrios, donas de casa que adquirem mercadorias de consumo domstico e roupas com cheques sem fundos ou furtados, insignificantes empregados que se apropriam de pequenas quantias de que tm a posse para efetuar pagamentos etc.

    Os chamados bodes expiatrios no fogem a esse sistema se-letivo, j que igualmente selecionados em meio a grande nmero de infratores de estratos sociais superiores, cuja criminalizao forada acaba por resultar em futuras absolvies, confirmando a regra. As prises provisrias e preventivas a que so midiaticamente submetidos duram dias porque foradamente decretadas, ao arrepio das prprias leis, como que a querer demonstrar que o sistema le-gtimo e no seletivo. Mas essas aes pretensamente antisseletivas acabam por reforar o sistema penal e seus operadores e resultaro em mais punio aos clientes cativos de sempre. O que ficar dessa democratizao da punio um reforo do esprito punitivo, que confere definitiva vitalidade Polcia, ao Ministrio Pblico, aos Juzes e Tribunais e, num movimento circular, aos procedimentos seletivos que no morrem jamais.

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  • 16 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    O desenvolvimento do trabalho e a maturao das ideias que o animaram no teriam sido possveis sem a valiosa colaborao dos professores do Departamento de Cincias Sociais da PUC-SP, a quem devo, pelos ensinamentos recebidos e convvio mantido durante o curso de ps-graduao, em nvel de doutorado, o desenvolvimento do interesse pelas cincias sociais e pela pesquisa.

    Um agradecimento muito especial devo dirigir ao Professor Edson Passetti, que aceitou o encargo da orientao de meu projeto de pesquisa e me acolheu com dedicao, fazendo-o com pacincia, firmeza e criatividade, compreendendo minhas dificuldades e limita-es, definindo rumos, apontando equvocos e sugerindo alteraes quando elas eram necessrias. Foi no ambiente libertrio criado e alimentado por Edson Passetti que me senti encorajado a desatar algumas amarras que me impediam de desenvolver esse projeto, h muitos anos gestado e guardado como objeto de uso personalssi-mo. Agradeo tambm aos demais membros da banca do exame de qualificao e tambm de defesa, os professores Nilo Batista, Srgio Salomo Shecaira, Silvana Ttora e Salete Oliveira, que apresentaram crticas e sugestes valiosas, honrando, sobremaneira, o trabalho e seu autor.

    Por ltimo, uma palavra de agradecimento ao Instituto Brasileiro de Cincias Criminais pelo acolhimento e publicao do presente trabalho, que significa uma grande distino, considerando o lugar e o papel da instituio no cenrio brasileiro das cincias criminais.

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  • RESUMO

    T rata-se de uma anlise do sistema judicirio penal brasileiro, mais especifi camente a ao de promotores de justia e juzes como operadores do Direito e responsveis por parcela signifi cativa da seletividade penal que o sistema realiza, a partir do exame emp-rico de processos criminais em grau de recurso no Tribunal de Jus-tia e no extinto Tribunal de Alada Criminal do Estado de So Paulo como universo exemplar. A hiptese a ser verifi cada a do papel relevante da prtica judiciria na gesto do sistema penal, observadano trabalho desses operadores do Direito na construo do crime e do criminoso. Essa seleo se faz no s pelas leis penais, como tambm pelos dispositivos da cincia do Direito utilizados no momento da apurao de fatos classifi cados como criminosos e no julgamento das pessoas acusadas. A anlise da seletividade constata a assimetria no tratamento jurdico das pessoas, acusadas da prtica de determinados crimes, sob a gide da universalidade dos disposi-tivos da cincia do Direito, inclusive no procedimento de aplicao e individualizao das penas, servindo-se de categorias da dogmti-ca penal e, de forma expressiva, da hermenutica jurdica, culminan-do com a concluso de que a abolio da seletividade signifi ca abolir as penas e a ideia de castigo e dor, de forma a apontar para novas formas de soluo de confl itos, afastada a universalidade do Direito, com nfase nos interesses das pessoas e nas situaes con-cretas.

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  • SUMRIO

    INTRODUO ..........................................................................21

    PARTE IAS LEIS E A CINCIA DO DIREITO

    CAPTULO 1 - AS LEIS ...........................................................47

    CAPTULO 2 - A CINCIA DO DIREITO ............................87

    PARTE IIOS OPERADORES DO DIREITO

    CAPTULO 3 - O MINISTRIO PBLICO ........................137

    CAPTULO 4 - JUIZES E TRIBUNAIS ...............................187

    CONCLUSO: VARIAES SELETIVAS .........................249

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................273

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  • INTRODUO

    Q uando observamos o que se chama de ordem humana, a socie-dade e as normas, tendemos a ver nelas e em seu projeto existencial uma cpia adaptada da ordem transcendental, que parece presidir naturalmente a classifi cao das pessoas e grupos sociais, a incluir aquelas que a prpria sociedade passa a defi nir como seres imprprios convivncia das pessoas. certo, contudo, que a ordem social, como um concerto histrico, uma criao humana, e os projetos que implicam ordem e criao, como os projetos sociais, costumam gerar excedentes e objetos descartveis destinados a serem o suprfl uo e o refugo, como resultado do arranjo que se d s coisas. No entender de Zygmunt Bauman, onde h projeto, h refugo: Para que algo seja criado, deve-se destinar alguma coisa ao lixo 1.

    Na elaborao e execuo dos projetos sociais, sobram seres humanos refugados, o que se v com maior nitidez no movimento da modernizao, como efeitos de uma nova ordem mundial. Citando Mary Douglas, sustenta Bauman que nenhum objeto refugo por suas qualidades intrnsecas nem tampouco por sua lgica interna: recebendo o papel de refugo nos projetos humanos que os objetos materiais, sejam eles humanos ou inumanos, adquirem todas as qualidades misteriosas, aterrorizantes, assustadoras e repulsivas2.

    Para o desenvolvimento do lixo humano, conforme explica Bauman, impe-se tambm construir novas prises, aumentar o nmero de delitos, de sentenas mais duras e penas longas em prol dessa atividade industrial de intensa criminalizao dos problemas sociais.

    1 Vidas desperdiadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar

    Editor, 2005, p. 32.2 Op. cit., p. 32.

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  • 22 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    Michel Foucault aponta, historicamente, as crises econmicas que atingiram a Europa no sculo XIX como nascedouro do que denomina ilegalismos populares, direcionados contra leis restritivas e a propriedade da terra, momento em que se multiplicam os roubos e pilhagens. Nesse instante que surge o conceito de que o crime de toda uma classe de pessoas e os criminosos pertencem ltima fileira da ordem social, constituindo a delinquncia, que deve ser controlada3.

    Na mesma linha, de forma semelhante, coloca-se o pensamento de Nils Christie, no sentido de que o surgimento do excedente popu-lacional advindo do crescimento do desemprego, para o que contri-buram o progressivo ingresso da mulher no mercado de trabalho e a queda dos regimes socialistas do leste, trouxe tona a questo de como controlar as classes perigosas e os que no possuem trabalho, chamados por ele de acionistas do nada. Uma destas formas de controle se d por meio das drogas: a guerra contra as drogas abriu caminho para a guerra contra as pessoas tidas como menos teis e potencialmente mais perigosas da populao4.

    Partindo da construo de Bauman sobre uma imensa categoria de pessoas destinadas ao refugo da sociedade, prope-se, no presente trabalho, uma anlise do Direito Penal como ferramenta alimenta-dora e legitimadora do sistema penal, constituindo-se, assim, num dos responsveis pela seleo de seres humanos sobre quem recair a qualificao de criminosos e perigosos, que, portanto, devem ser afastados do convvio social e controlados de qualquer maneira.

    Para tanto, impe-se a anlise da seleo que se faz nas duas grandes frentes dessa batalha surda que se trava no interior do sistema penal, que so a criao da legislao penal e sua aplicao pelos operadores do Direito, como instncias de construo do conceito de crime e da punibilidade de seus agentes.

    O estudo do Direito como cincia tem-se limitado, sobretudo a partir do sculo XX, ao exame do universo das normas e do ordena-mento jurdico, tomados sob o prisma lgico, tcnico ou deontol-gico, circunscrevendo-se, fundamentalmente, s fontes legislativas. Nesse contexto, a chamada dogmtica jurdica, constituda por um

    3 Vigiar e Punir. Trad. Lgia M. Pond Vassalo. Petrpolis: Ed. Vozes, 1977, pp. 242-243.

    4 A indstria do controle do crime. Trad. Lus Leiria. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1998,

    p. 65.

    Monografia n 59 - 19-11-10 - final.indd 22 19/11/2010 15:37:28

  • 23INTRODUO

    corpo de regras, doutrinas e de teorias que visam a uma proposta de soluo tcnica dos conflitos interpessoais, parece no levar em conta a dinmica da realidade social que subjaz s normas jurdicas, fazendo pouco da contnua criao do Direito, formada pelo trabalho de sua interpretao e aplicao pelos operadores jurdicos.

    Segundo Nilo Batista, seletividade, repressividade e estigmati-zao so algumas caractersticas centrais de sistemas penais como o brasileiro. No pode o jurista encerrar-se no estudo necessrio, importante e especfico, sem dvida de um mundo normativo, ig-norando a contradio entre as linhas programticas legais e o real funcionamento das instituies que as executam5.

    No mbito de um estudo crtico do Direito Penal, disciplina ju-rdica incumbida da classificao das aes consideradas delituosas e seu tratamento por meio da imposio de penas, tem-se j como certo o que se deve influncia de um moderno pensamento cri-minolgico, desenvolvido nos anos sessenta do sculo passado que o crime constitui uma realidade construda pela sociedade e, em especial, pelo Estado e seus operadores jurdicos, sendo, assim, um dos pressupostos da seletividade penal.

    O chamado crime se define como uma infrao, ou violao, da norma do Estado, ideia contida no famoso aforismo nullum crimen sine lege, utilizado como sustentculo do princpio da legalidade dos delitos. S crime aquilo que as leis definem como tal. Seu es-tudo, para alm das regras e princpios dogmticos do Direito Penal, , tambm, objeto da criminologia, disciplina que, historicamente, procurou dedicar-se apenas figura do criminoso, violador das nor-mas penais e assim classificado por elas, sendo considerado como ente anormal ou perigoso, que necessitaria de tratamento punitivo ou teraputico, com base nos antecedentes sociais ou psicolgicos de sua conduta considerada patolgica.

    A partir de meados do sculo XX, a nfase do estudo criminolgi-co se deslocou da anlise da conduta ou da ao considerada delituosa do agente e sua personalidade, assim classificadas pela sociedade, para o processo de criao das normas e sua aplicao, uma vez que o sistema penal que formula o conceito de crime e estabelece suas

    5 Introduo crtica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 4 ed., 2001.

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    consequncias, que so as penas. A chamada criminologia da reao social, expresso que, na verdade, contm diversas correntes teri-cas, difere da criminologia tradicional, cuja funo implcita, como esclarece Lola Aniyar de Castro, a de dar suporte de aparncia cientfica s atividades de controle social formalizado6.

    A nova abordagem criminolgica, ainda segundo a mesma autora, objetiva conhecer como se d a criminalizao de condutas lcitas mediante a criao de normas penais e como tal operao interfere na criminalidade dos indivduos e perpetuao do papel delitivo, contendo em si algumas teorias, como da rotulao, do estigma e do esteretipo. Essa perspectiva, em termos gerais, acaba por constituir importante ferramenta de anlise crtica do sistema penal, principal-mente sob o ponto de vista de sua seletividade.

    O crime , assim, um fato institucional, criado e alimentado pelas instituies sociais, o que, para os estudiosos dessa vertente criminolgica desenvolvida sob o enfoque da chamada reao social, assemelha-se a um jogo de qualquer espcie, que no existe como coisa em si, mas apenas como construo normativa. o sistema penal que sustenta o chamado crime como criatura social e jurdica, apesar da inegvel realidade ftica da conduta do agente, que efeti-vamente existe no mundo dos acontecimentos.

    O crime, pois e tambm a punio construo cultural, sujeita ao crivo valorativo da sociedade enquanto sistema penal, cons-tituindo realidade selecionada por esta ltima dentre a multiplicidade de condutas praticadas por seres humanos determinados. Inexiste, assim, uma ontologia do crime, no sentido de constituir um ser em si, dotado de uma essncia, a partir da qual se extrairiam necessaria-mente consequncias para outros seres. Nils Christie afirma que o crime no existe. criado. Primeiro existem atos. Segue-se depois um longo processo de atribuir significado a esses atos7.

    O sistema penal seleciona algumas dessas condutas e as erige con-dio de aes perigosas sociedade, definindo, assim, o que chama de crime e o criminoso. Mais do que isso, tal sistema seleciona o refugo hu-

    6 Criminologia da reao social. Trad. Ester Kosovski. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983,

    p. 53.7 A indstria do controle do crime. Trad. Lus Leiria. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1998,

    p. 13.

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  • 25INTRODUO

    mano da sociedade como alvo do arranjo da prpria ordem jurdica penal. Como sustenta Zygmunt Bauman, a norma precede a realidade e o que seria uma ontologia do ser humano, criando uma categoria universal de marginalizados/excludos, e o direito de estabelecer um fora dos limites, fornecendo assim o lugar de despejo dos que foram excludos, reciclados em refugo humano8. Loc Wacquant aprofunda a mesma imagem, apon-tando a transformao histrica de uma comunidade includente do estado social em passagem para um estado penal excludente, com a formao de guetos urbanos como depsitos de lixo para o refugo humano9.

    Segundo Alessandro Baratta, o sistema penal realiza a repro-duo das relaes sociais e de manuteno da estrutura vertical da sociedade, colocando em ao processos marginalizadores e criando contraestmulos integrao de setores mais baixos e marginalizados do proletariado10. Tal processo se verifica na chamada criminalizao primria, que vem estabelecida nas normas jurdicas, e tambm na secundria, a cargo das instituies sociais, como a Polcia, o Mi-nistrio Pblico e a Justia Penal.

    Michel Foucault situa a seletividade no interior da prpria le-galidade, merc da criao de uma proibio em seu entorno, ou seja, um campo de prticas ilegais, sobre o qual se chega a exercer controle e a tirar um lucro ilcito por meio de elementos ilegais, mas tornados manejveis por sua organizao em delinqncia11. Em tal organizao, exercem papis importantes os operadores do Direito e as agncias oficiais de controle. Para Foucault, resulta claro que a ao seletiva consiste em atender demanda para a criao de uma delinquncia, diferenciando as ilegalidades. A justia criminal desempenha o papel de cauo legal e de princpio de transmisso12.

    Com efeito, num primeiro momento de atuao do sistema penal, a seleo estabelecida pelas leis. So as normas estatais que definem, em primeiro plano, as condutas que iro classificar como crimes e quais as consequncias propostas. As tcnicas jurdicas usadas nas classi-8 Vidas desperdiadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,

    2005, p. 43.9 As prises da misria. Trad. Andr Telles. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2001.

    10 Criminologia Crtica e Crtica do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de

    Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999.11

    Vigiar e Punir. Trad. Lgia M. Pond Vassalo. Petrpolis: Ed. Vozes, 1977, p. 246.12

    Op.cit., p. 248.

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    ficaes, por exemplo, costumam agravar as solues penais para as condutas normalmente atribudas a membros das camadas populares, o que ocorre nos crimes patrimoniais como furto e roubo, que deixam pouco espao para solues absolutrias ou de baixa punibilidade. J os crimes contra a ordem tributria, por exemplo, trazem, na prpria lei, vias alternativas e estratgicas de despenalizao.

    Em segundo lugar, o processo de seleo feito pelas instituies incumbidas da aplicao das leis, a comear pela Polcia, que realiza seleo considerada de pequeno calibre, com filtragem grossa, muito embora, em um contato inicial com as condutas humanas, no deixe nunca de interpret-las a seu modo e realizar uma primeira seleo penal, relevando aes que, em tese, esto contidas nas normas pe-nais, e sobrevalorizando outras, a incluir a adoo de mecanismos punitivos colocados claramente margem da lei.

    A seletividade mais apurada das condutas humanas aumenta a partir do transcurso da investigao pela Polcia, pelo Ministrio P-blico, pelo Poder Judicirio e pelos rgos incumbidos da execuo penal. Da porque questionvel que se estabeleam como objeto da pesquisa social as pessoas que cumprem pena em presdios ou delegacias como amostragem dos comportamentos criminosos, uma vez constiturem elas prprias produto de processos de seleo social em diversos estgios mediante procedimentos variados, a incluir o prprio universo da vida no crcere.

    Tais procedimentos, seja no mbito das aes policiais, seja no interior do processo criminal, em que dispositivos do sistema penal so colocados disposio do Ministrio Pblico e do Poder Judici-rio, que iro demonstrar de que maneira se realizar a seleo de condutas e pessoas, subtraindo algumas destas do sistema e incluindo outras, a serem controladas ou descartadas como refugo humano.

    Segundo Massimo Pavarini, a criminologia, desde seu incio, autolimitava seu prprio interesse unicamente pelo delinquente que pode ser conhecido no crcere, ignorando deste modo a realidade social em que viveu e em que voltar a viver. O objeto dessa crimi-nologia no assim tanto o delinquente quanto aquele delinquente reduzido a desviado institucionalizado, isto , o encarcerado13.

    13 Control y Dominacin. Traduo para o espanhol de Ignacio Muagorri. Buenos Aires:

    Siglo Veintiuno Editores, 2003.

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  • 27INTRODUO

    Nesse sentido que se situa a definio de delinquente, apresen-tada por Foucault, fruto do internamento carcerrio, que comea a definir-se no sculo XIX:

    Procurou-se constituir, no prprio interior das massas popu-lares, um pequeno ncleo de pessoas que seriam, por assim dizer, os titulares privilegiados e exclusivos dos comporta-mentos ilegais. Pessoas rejeitadas, desprezadas e temidas por todo mundo14.

    Assim, a priso, como mecanismo de seleo, suas tcnicas e procedimentos, transformam o infrator em delinquente, para o que tambm exercem papel relevante os juzes e tribunais. o mesmo Michel Foucault quem explica: a vigilncia policial fornece priso os infratores que esta transforma em delinqentes, alvo e auxiliares dos controles policiais que regularmente mandam alguns deles de volta priso15.

    Este retorno priso deve muito no s prpria ao dos con-troles policiais, como futura seleo que a Justia penal far, no exatamente sobre a conduta, mas fundamentalmente sobre as pessoas desses recalcitrantes, tidos como perigosos ou anormais. Aqui se situam, especificamente, os arsenais de normas que diferenciam os que so reincidentes ou possuem antecedentes criminais e tambm os inumerveis dispositivos jurisprudenciais e doutrinrios que serviro de base s novas selees e incriminaes.

    O objeto da ao dos juzes e tribunais passa a ser, pois, o in-divduo perigoso construdo a partir de elementos biogrficos, tal como aparece, com alguma clareza, nos exames psiquitricos de insanidade, realizados nos processos criminais. Procedendo a uma anlise histrica dos exames psiquitricos a que eram submetidos autores de crimes, Michel Foucault deixa claro que o Poder Judicirio transforma-se em

    14 Entrevistas, com Roger Pol-Droit. Trad. Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. Rio

    de Janeiro: Ed. Graal, 2006, p. 47.15

    Vigiar e Punir. Trad. Lgia M. Ponde Vassalo. Petrpolis: Ed. Vozes, 1977, p. 248.

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    instncia de controle do anormal, tratando-se do monstro de conduta, o monstro moral, como indivduo a ser corrigido na justa medida: De Pierre Rivire a esses criminosos de hoje, sempre o mesmo tipo de discurso que se faz16.

    No mbito das instituies penais, a seletividade, a incidir sobre as pessoas, opera com diversas variveis, como classe social e raa, por exemplo, demonstrando preferncia por pobres, miserveis, desempregados, negros e mulatos, alm de jovens, contestadores e rebeldes, que fornecero um perfil pessoal, racial, poltico e profis-sional apropriado a receber as etiquetas do sistema penal.

    A seleo d-se mediante a influncia de vrios outros fatores que se harmonizam com as variveis apontadas, como a maior ou menor visibilidade da ao humana, as circunstncias do fato, a aparncia das pessoas e sua posio social, a habilidade em evitar o registro da ocorrncia na Polcia, com eventual poder de negociao, no s nos casos de crimes praticados no mundo empresarial ou em meio a simples desentendimentos familiares.

    No trabalho da Polcia, a seletividade assume, s vezes, a forma de amostragem, incidindo sobre clientes prospectivos, que, por sua vez, influenciaro a posterior seleo judicial. o que esclarece Jock Young:

    A Polcia deixou de suspeitar de indivduos e passou a sus-peitar de categorias sociais. Por exemplo, quanto a parar e revistar: mais efetivo suspeitar das categorias consideradas mais propensas a cometer infraes (e.g. negros, irlandeses, homens jovens da classe operria) do que suspeitar de indiv-duos. Joga-se o arrasto em guas de resultados mais provveis e ricos, em vez de se tentar a sorte de achar a ma no cesto, isto , de efetuar prises procedendo na base de indivduo por indivduo. A velha evocao prenda os suspeitos de sempre se transforma em prenda as categorias de sempre17.

    16 Os anormais. Trad. Eduardo Brando. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001, p. 45.

    17 A sociedade excludente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2002, p. 74.

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  • 29INTRODUO

    Alessandro De Giorgi vai ainda mais alm ao afirmar que o recru-tamento da populao carcerria ocorre com base na identificao de classes de sujeitos consideradas produtoras de risco, potencialmente desviantes e perigosas para a ordem constituda. Assim,

    no so mais tanto as caractersticas individuais dos sujeitos que constituem o pressuposto (e ao mesmo tempo o objeto) das estratgias de controle, mas sim aqueles indcios de pro-babilidades que permitem reconduzir determinados sujeitos a classes perigosas especficas. Isso significa, concretamente, que categorias inteiras de indivduos deixam virtualmente de cometer crimes para se tornarem, elas mesmas, crime18.

    Ilusria, pois, a impresso de que o sistema penal foi concebido para oferecer resposta totalidade das infraes legais. Como afirma Edson Passetti,

    o prprio sistema penal no foi criado para responder a todas as infraes a ele encaminhadas. Desta maneira, conclui-se que o sistema penal processa, prende e sentencia pelo dispositivo da seletividade, e os seus alvos principais se ampliam ou se concentram a partir das populaes pobres e miserveis, das pessoas que atentam contra a moral e dos rebeldes contesta-dores do conformismo19.

    Grande parte das solues seletivas atua, basicamente, em est-gio anterior judicializao dos conflitos, ocorrendo no momento da entrada em cena das instituies policiais, em que a definio de condutas como criminosas encontra seu primeiro teste social, trans-formando suspeitos sociais em alvos concretos do sistema penal. A par da criminalizao de alguns, o descarte de suspeitos e a busca de uma negociao entre as partes envolvidas em determinados

    18 A misria governada atravs do sistema penal. Trad. Srgio Lamaro. Rio de Janeiro:

    Ed. Revan, 2006, p. 98.19

    Ensaio sobre um abolicionismo penal, in Revista Verve, vol. 9. So Paulo: Ncleo de sociabilidade libertria, 2006, p. 91.

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    conflitos constituem procedimentos que parecem a todos como expedientes considerados naturais, deixando entrever sinais de um modelo penal alternativo, no sentido de legitimar a imunidade penal de determinadas condutas humanas e agentes sociais em detrimento de outras, para as quais reservada uma eficaz atuao punitiva, de que so exemplos extremos as execues de pessoas por parte dos policiais em sua tarefa diria de investigao e abordagem dos que consideram suspeitos.

    Como exemplo, pode-se citar a figura do delito de sequestro, com definio normativa geral no art. 148 do Cdigo Penal brasilei-ro, que abrange a totalidade das condutas que significam a privao da liberdade de determinada pessoa, a incluir o sequestro de filho menor por pai ou me separados, desprovidos da guarda da criana, em quadro de conflito familiar. Tal situao, porm, em um caso concreto, manipulada pelas instituies penais (Polcia, Ministrio Pblico e Justia penal), dificilmente seria considerada tpica do crime de sequestro, o qual, de fato, e considerando o mundo das prticas policiais e judiciais, limita-se s hipteses de aes envolvendo pessoas (acusados e vtimas) de espectro social diferente, em que os suspeitos sejam classificveis em um quadro de marginalidade.

    O fato apontado na primeira hiptese poderia ser facilmente interpretado, j nos registros policiais, ressalvada a possibilidade de crime de subtrao de incapaz (art. 249 do Cdigo Penal), como mero desentendimento familiar ou desinteligncia, expresso genrica utilizada na definio de conflitos que carecem de caracterizao tcnica, a critrio da autoridade policial, tratando-se, pois, de conflito que deve ser resolvido na esfera civil, muito diversa do sistema penal.

    O que as novas abordagens criminolgicas procuram demonstrar e trazer como contribuio para o conhecimento da criminalizao a ideia da efetiva problematizao do que se chama como crime, no sentido de que o desvio fruto de avaliao e construo humanas. Jock Young toma como exemplo o homicdio:

    matar algum pode ser um ato de herosmo se cometido por policiais ao enfrentar ladres armados, ou pode ser um ato de extrema imoralidade se cometido pelos ladres. Injetar morfina pode ser um ato legal de ditosa necessidade se empreendido

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  • 31INTRODUO

    por doentes terminais, e pode ser um ato evocador de todos os poderes proibitivos do Estado se cometido por um viciado de rua20.

    O mesmo autor apresenta, ainda, como exemplo de problemati-zao atual da criminalizao, que tambm pode ser constatada no universo do sistema judicirio penal, a questo do estupro, vista por outro ngulo, a partir da posio das pesquisadoras feministas, no sentido de que as definies convencionais de tal ao criminosa no guardam correspondncia com a realidade, trazendo para o debate sobre o que constitui o estupro as relaes sexuais foradas no casa-mento ou em contextos de encontro, questionando, assim, os limites da coero e do consenso nos relacionamentos sexuais21.

    Ao apresentar tais exemplos, Young sustenta que a realidade consiste em uma srie de gradaes, que, portanto, abrem caminho a avaliaes diferenciadas, inclusive, como buscaremos demonstrar, por parte do sistema penal e de seus operadores na classificao das aes criminosas, com vistas aos resultados punitivos almejados.

    A multiplicidade de condutas humanas de toda espcie, envol-vendo pessoas diversas, constitui manancial que desafia as solues normativas genricas contidas nas leis penais, em que as descries das condutas consideradas delituosas apresentam-se com caracteres universais, contaminados por expresses ambguas e vagas. Os com-portamentos, embora classificveis genericamente em tais moldes normativos, podero ou no sofrer a incidncia das normas penais; vale dizer, a definio do que constitui crime, em cada situao, depender exclusivamente de uma operao de ajuste do fato lei, ou desta ao fato, a ser realizada pelos agentes do sistema penal. Da resultar a criminalizao de algumas condutas, relativas a certas pessoas, e o afastamento de outras do mbito de incidncia das normas penais, em perfeita convivncia com o discurso jurdico da igualdade de todos perante as leis.

    A operao de ajuste pode ser melhor definida como gerncia, gesto ou modulao, considerando o conceito de sociedade de con-

    20 A sociedade excludente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002, pp.

    67-68.21

    Op. cit., pp. 69-70.

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    trole a que se refere Deleuze, de que o exerccio do sistema penal, para alm da universalidade esttica da lei, constitui um exemplar notvel.

    Nesse sentido que deve ser compreendida a diversidade de instrumentos postos a servio dos juzes e tribunais na classificao definitiva das condutas a serem efetivamente criminalizadas e apli-cao das penas, o que se v, com maior clareza, por exemplo, nas operaes de adequao dos fatos s leis penais, na quantificao, na escolha de modalidades punitivas, na substituio da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos e outras, compondo realidade que pode ser associada com o que Deleuze chama de um novo regime de dominao22.

    Segundo Michel Foucault,

    compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que a regra, ele introduz, como um imperativo til e resultado de uma medida, toda a gradao das diferenas individuais23.

    Tais diferenas iro confluir naquilo que o pensador francs procura definir como ilegalismos, que so fruto do prprio aparelho policial e tambm judicirio, e no podem ser vislumbrados como algo negativo ou irregular. Muito pelo contrrio,

    o ilegalismo no um acidente, uma imperfeio mais ou menos inevitvel. um elemento absolutamente positivo do funcionamento social, cujo papel est previsto na estratgia geral da sociedade. Todo dispositivo legislativo organiza espa-os protegidos e aproveitveis, em que a lei pode ser violada, outros em que ela pode ser ignorada, outros, enfim, em que as infraes so sancionadas24.

    22 Ps-scriptum sobre as sociedades de controle. In Conversaes. Trad. Peter Pl Per-

    bart. So Paulo: Ed. 34 Letras, 2004, p. 225.23

    Vigiar e Punir. Trad. Lgia M. Pond Vassalo. Petrpolis: Ed. Vozes, 1977, p. 16424

    Entrevistas, com Roger Pol-Droit. Trad. Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2006, p. 50.

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  • 33INTRODUO

    sobre o trabalho dos operadores do Direito, portanto, que se impe direcionar primordialmente a anlise social da seletividade penal, objeto da presente pesquisa, visando esclarecer como as ins-tituies penais, por seus agentes, leem as condutas consideradas infracionais, colocando-as a servio dos esteretipos previamente criados no seio mesmo da aplicao das leis.

    O trabalho seletivo dos operadores resulta na criao de um novo contexto normativo, algo diverso das normas estatais propriamente ditas, muito mais rico de possibilidades e interessante como terri-trio de seleo e gesto de pessoas. No dizer de David Garland, o extraordinrio apego dos governos s solues penais para lidar com o comportamento de populaes marginalizadas deve-se ao fato de possurem baixo custo e poucos oponentes polticos, harmonizando-se com o senso comum no que concerne s fontes da desordem social e adequada atribuio de culpa. E tambm

    Porque elas se amparam em sistemas de regulao exis-tentes, deixando intocados os arranjos sociais e econmicos fundamentais. Sobretudo, porque elas concentram o controle e a condenao de grupos excludos, deixando relativamente livre de regulao e censura o funcionamento dos mercados, das empresas e das classes sociais mais favorecidas.

    Sem embargo do princpio da legalidade dos delitos e das penas, os tribunais e operadores jurdicos agem algo discricionariamente, movendo-se no espao da incerteza das normas por meio das cha-madas regras de julgamento, alimentadas continuamente pelos dados construdos pela cincia jurdica. As normas primrias so as prprias leis definidoras de comportamentos criminosos.

    certo, igualmente, que tanto a criao das leis penais quanto sua aplicao pelos operadores do Direito sofrem influncia direta do mundo da informao e da mdia, que transforma o delito e a punio em notcia, reconstruindo crimes, selecionando-os e agindo sobre a Polcia, o Ministrio Pblico, o Poder Legislativo e os julgamentos pelos juzes e tribunais. A imprensa constitui, portanto, ferramenta governamental com importante papel na definio de condutas e pessoas, contribuindo, assim, para o papel seletivo do Direito Penal.

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  • 34 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    Para Foucault,

    as prticas judicirias a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na histria do ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em funo dos erros que haviam cometido, a maneira como se imps a determinados indivduos a reparao de algumas de suas aes e a punio de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas pr-ticas regulares, claro, mas tambm modificadas sem cessar atravs da histria me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relaes entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas25.

    A seleo das infraes, segundo o pensador francs, na verdade, encobre a seleo dos indivduos, que passam a constituir-se em alvo da punio e necessitam ser controlados e domados em sua suposta periculosidade e agressividade, segundo critrios cientficos obtidos das humanidades. No se punem os delitos, mas as paixes, os ins-tintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptaes, os efeitos do meio ambiente ou de hereditariedade. Cumpre, assim, para Foucault, cincia penal, como criminologia e medicina,

    dar aos mecanismos da punio legal um poder justificvel no mais simplesmente sobre as infraes mas sobre os in-divduos; no mais sobre o que eles fizeram mas sobre o que eles so, sero ou possam ser26.

    Em Vigiar e Punir, Michel Foucault procede a uma anlise histrica daquilo que chama de as ilegalidades de bens em contrapo-sio s ilegalidades dos direitos, a partir do final do sculo XVIII, com o desenvolvimento do capitalismo. A primeira mais acessvel

    25 A verdade e as formas jurdicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo

    Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003, p. 11.26

    Vigiar e punir. Trad. Lgia M. Pond Vassalo. Petrpolis: Ed. Vozes, 1977, p. 22.

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  • 35INTRODUO

    s classes populares transferncia violenta da propriedade que hoje poderamos associar aos crimes de furto, roubo e extorso. A segunda reservada burguesia:

    a possibilidade de desviar seus prprios regulamentos e suas prprias leis; de fazer funcionar todo um imenso setor da circulao econmica por um jogo que se desenrola nas margens da legislao margens previstas por seus silncios, ou liberadas por uma tolerncia de fato27.

    Na cincia penal, domnio dos especialistas e estudiosos das normas penais, a tarefa de manipulao das ilegalidades e constru-o dos chamados ilegalismos deve ser atribuda primordialmente hermenutica jurdica, dentre outros dispositivos nomeadamente cientficos que servem aplicao seletiva das normas penais.

    O trabalho dos operadores jurdicos em especial, os aplicadores que faro nascer as decises dos conflitos interpessoais implica, pois, tarefa de conhecimento ou um saber especializado, que se estrutura sobre o conceito de interpretao das leis. Hans Kelsen, considerado pai do positivismo jurdico moderno, cuja obra constitui um esforo de criao de uma cincia pura do Direito, denomina a interpretao realizada pelos juzes e tribunais de interpretao autntica, exatamente por ser aquela que fixar definitivamente, para o caso em exame e, talvez, para casos semelhantes futuros, a pretensa verdade do Direito.

    Kelsen pretendeu construir uma teoria rigorosa da logicidade do sistema jurdico, o qual, a seu ver, no chega a apresentar lacunas, uma vez que o prprio ordenamento jurdico que as institui, municiando os juzes e tribunais das ferramentas tcnicas para a integrao das normas, vale dizer, o preenchimento de tais lacunas. Admite, porm, ele prprio que os tribunais acabam por criar o Direito ao transfor-marem a regra geral em direito individual, dentro de uma ordem jurdica genrica. Como afirma, a deciso judicial a continuao, no o comeo, do processo de criao jurdica28.27

    Op. cit., p. 80.28

    Teoria pura do direito. Trad. Joo Batista Machado. So Paulo: Ed. Martins Fontes,

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  • 36 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    Continuando, Kelsen assevera que

    na aplicao do direito por um rgo jurdico, a interpretao cognoscitiva (obtida por uma operao de conhecimento) do direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o rgo aplicador do direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas atravs daquela mesma interpretao cognoscitiva (...). Com este ato, ou produzida uma norma de escalo inferior, ou executado um ato de coero estatudo na norma jurdica aplicanda29.

    Kelsen deixa entrever, ainda, que o ato interpretativo capaz de produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa.

    Na obra Estado de exceo, o filsofo italiano Giorgio Agam-ben sustenta que o espao de aplicao do Direito constitui uma tcnica de governo, caracterizadora de um estado de exceo sem direito, que se mostra essencial ordem jurdica. A deciso judicial constitui uma zona de indiferenciao entre fato e direito, estratgia dos juzes para definir, em ltima anlise, qual o direito. Nos casos de necessidade, e mesmo de lacuna jurdica, a deciso configuraria, assim, um verdadeiro estado de exceo que escapa universalidade do ordenamento jurdico, situando-se, ao mesmo tempo, dentro e fora deste30.

    Carl Schmitt deixa claro que o caso de exceo pode escapar da norma geral, cabendo ao soberano sua incluso no contexto nor-mativo. Aps criticar a proposta kelseniana de um estado de direito absoluto, com caractersticas teolgicas, que, em sua racionalidade, no admite a exceo, Schmitt afirma que a ordem jurdica como toda ordem repousa em uma deciso e no em uma norma31. A norma implica a existncia de um meio homogneo, ou uma ordem, para que a ordem jurdica tenha um sentido a partir de uma situao normal assim decidida pelo soberano.

    1996, p. 283.29

    Op. cit., p. 394.30

    Estado de exceo. Trad. Iraci D. Poleti. So Paulo: Boitempo Editorial, 2004.31

    Teologia poltica. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Ed. Rel Rey, 2006, p. 11.

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  • 37INTRODUO

    Imperiosa, assim, a tarefa de um exame crtico da hermenutica jurdica, que ainda sustentada pela ideia de busca de um sentido ltimo das coisas, o qual possa legitimar, no mbito do Direito Penal, com foros de cincia, a seleo feita sobre pessoas e atos. Assim, os dispositivos legais movem-se ao sabor da compreenso realizada por seus operadores, que reconstroem situaes descritas nas normas e tambm os prprios fatos postos sob julgamento, avaliando provas, direcionando solues para pessoas determinadas no tempo e no espao, nas quais se encontram implicados os prprios operadores.

    No exame do processo de criao das normas penais, no mbito legislativo, contribuio terica importante a dos pensadores de orientao marxista, que se debruam sobre as leis do Estado como instrumento de dominao de uma classe sobre outra. Nesse sentido, podem-se apontar tpicos importantes para a compreenso do carter seletivo do sistema penal brasileiro, como a hiptese da valorizao dos crimes patrimoniais e as normas que garantem privilgios, no Direito Penal e no Direito Processual Penal, para determinadas classes de pessoas, com reflexos no processo de criminalizao de condutas.

    Porm, na aplicao de tal estoque normativo por parte das insti-tuies sociais que se v com maior clareza a presena da seletividade penal objeto da presente pesquisa. Importa considerar, por exemplo, como as instituies penais retratam as situaes concretas em que julga necessria a decretao da priso preventiva de suspeitos ou o que entendem por periculosidade social de tais pessoas, muito embora ainda nem sequer condenadas por uma deciso judicial. O ingresso de suspeitos no sistema carcerrio d-se, portanto, tambm atravs de decises provisrias de juzes e tribunais em situaes pontuais, considerando caractersticas pessoais de determinados acusados, seu passado e um prognstico sobre seu futuro.

    A pesquisa buscou elementos tericos na criminologia da reao social, criminologia crtica ou nova criminologia, que viceja a partir dos anos sessenta do sculo passado, preocupada com a compreen-so da realidade do crime como construo social e modalidade de controle dos indivduos.

    J no incio do sculo XX, a Escola de Chicago parece ter con-tribudo para o lanamento do embrio da nova viso criminolgica, entendida como um problema de interpretao do comportamento

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  • 38 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    delituoso, reduzindo a importncia do positivismo e do pensamento criminolgico clssico, o qual, elegendo os criminosos e perigosos como objeto de estudo, no questionava o processo de criminalizao.

    A Escola de Chicago desenvolveu a importncia da pesquisa em-prica e, num primeiro momento, significou um deslocamento para o que ocorria nas cidades, na movimentao das pessoas, nos problemas relacionados ao trabalho e moradia, com vistas formulao de uma poltica criminolgica reformista e preventiva.

    O deslocamento da anlise para fora da pessoa do criminoso abriu caminho para um pensamento criminolgico preocupado com a prpria definio social do crime e do criminoso e seu condicio-namento, de que so exemplos, na chamada Segunda Escola de Chicago, a teoria do etiquetamento, a etnometodologia e os trabalhos de Erwin Goffman32.

    Tal criminologia, porm, marcada pelo vis funcionalista, sofreu uma criao ainda maior nos anos sessenta, com o aumento do teor crtico, merc da adoo, por vrios de seus pensadores, da teoria marxista do conflito e do interacionismo aplicado ao crime.

    Para o pensamento interacionista, a ao e a leitura da ao se confundem. a linguagem que produz os fatos, tais como se nos apresentam, diferindo os chamados fatos institucionais dos demais fatos que no sofrem a interveno construtiva do ser humano, cha-mados de fatos brutos. O crime uma realidade institucional; sem a norma, ele um simples gesto.

    A anlise criminolgica, sob tal perspectiva, traz em si questes a respeito dos caminhos que antecedem a existncia das normas penais, bem como dos interesses por elas protegidos e os alvos de sua ao repressiva. Num segundo momento, impe-se a compre-enso sobre a reao social e institucional em face de determinadas condutas humanas.

    Como esclarece Srgio Salomo Shecaira,

    a teoria do labelling, tambm chamada de interacionista ou da

    32 Alain Coulon. A Escola de Chicago. Trad. Toms R. Bueno. Campinas: Ed. Papirus,

    1995, pp. 123-126.

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  • 39INTRODUO

    rotulao social, parte da premissa segundo a qual a sociedade no um todo consensual, mas que vivemos em uma sociedade pautada pelo conflito. A pergunta, formulada at ento, para saber quais eram as razes que levavam algumas pessoas a ter motivaes delituosas, substituda pela indagao: por que pessoas convencionais no seguem os impulsos desviantes que todos tm? Partindo-se desse relativismo moral, chega-se concluso que o cometimento de um delito a chamada desvia-o no uma qualidade ontolgica da ao, mas o resultado de uma reao social; conclui-se, tambm, que o delinqente apenas se distingue do homem normal devido estigmatizao que sofre, particularmente aquela decorrente do recolhimento s chamadas instituies totais, em especial a priso33.

    Cumpre debruar-se, portanto, sobre a distino construda entre criminosos e no criminosos, fruto no s do pensamento criminolgico tradicional, como tambm de uma imprecisa, embora interessada, classificao entre violadores e no violadores da lei. O criminoso o produto de um processo de seleo e esse processo, como fato institucional, que necessita ser analisado e estudado. O processo, no entanto, heterogneo, compondo um quadro amplo, marcado, no caso da atuao dos operadores do Direito, pelos ca-minhos e dispositivos estabelecidos pela dogmtica penal, composta pelas leis penais, doutrina e jurisprudncia, por meio da construo de categorias jurdicas que sustentam a seleo e lhe do legitimidade.

    No se ignora, porm, a existncia de desequilbrios e resistncias no interior do sistema penal relativamente aos processos de seleo, que impedem um perfil harmnico do sistema, alimentado por ins-tituies e pessoas que no atuam monoliticamente, como a Polcia, membros do Ministrio Pblico e os juzes e tribunais.

    Para tanto, constitui objeto privilegiado de estudo a adoo de entendimentos diversos na prtica do sistema penal, em determinadas situaes concretas, por parte das principais instituies incumbidas do controle punitivo. Tais instituies so dotadas de vises de mundo relativamente diferentes sob o ponto de vista do sistema penal e com diversificado grau de permeabilidade poltica.

    33 Criminologia. So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 366.

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  • 40 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    Nesse quadro que se prope, juntamente com a Justia crimi-nal, o exame da instituio do Ministrio Pblico, como dotada de interessante heterogeneidade, mormente no caso brasileiro, em que o promotor de justia, na esfera criminal, divide-se em papis distintos: o autor da ao penal, incumbido de formular a acusao, e o fiscal da lei, atento regularidade formal do processo e ao respeito aos di-reitos das pessoas envolvidas, com papel garantista e legalista muito prximo do iderio adotado, em termos gerais, pelo Poder Judicirio.

    O presente trabalho envolve a anlise pontual da atuao de membros da instituio do Ministrio Pblico e da Justia penal, compreendido aquele em seu papel de agente e interveniente nos processos criminais com vistas construo de um modelo de se-letividade penal, a ser recepcionada e alimentada pragmaticamente por esta ltima.

    Tomaram-se como universo de pesquisa qualitativa tpicos da jurisprudncia brasileira a propsito de algumas questes penais e processuais penais, bem como alguns dados colhidos em processos criminais em grau de recurso, distribudos em segunda instncia ao Tribunal de Justia de So Paulo e tambm do recm-extinto Tribunal de Alada Criminal, que detinha a competncia para o exame de parcela significativa do universo penal, como os crimes patrimoniais. Cuida-se do exame de fragmentos de um grande universo de processos criminais, sem preocupao com a apresen-tao de regularidades numricas como verdades quantitativamente comprovadas.

    Tais dados foram retirados de processos criminais dos anos de 2000 a 2008, abrangendo aproximadamente 4.700 processos, e tambm de pesquisa jurisprudencial realizada em repertrios de jurisprudncia relativos a processos criminais que tramitaram nos anos anteriores, a incluir outros tribunais superiores, como o Supe-rior Tribunal de Justia e o Supremo Tribunal Federal. Os processos examinados referem-se primordialmente a crimes cujo julgamento era da competncia do Tribunal de Alada Criminal de So Paulo, passando, com a sua extino, a partir de 2005, ao Tribunal de Jus-tia de So Paulo. Antes da extino, competia quele tribunal o julgamento dos processos relativos a todos os crimes apenados com deteno e crimes patrimoniais, bem como por crimes de uso e trfico de entorpecente (antiga Lei 6.368/76).

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  • 41INTRODUO

    Tais feitos, com a extino, passaram competncia do Tribunal de Justia. Desse universo de processos que foram retirados, no perodo indicado, os processos referidos, a mim distribudos para parecer, como membro do Ministrio Pblico em segunda instncia, em grau de recurso, feitos j com sentenas de primeiro grau, oriun-dos de todas as comarcas do Estado de So Paulo. Englobam crimes patrimoniais (furto, roubo, extorso, extorso mediante sequestro, dano, apropriao indbita, estelionato, outras fraudes, receptao), todos os crimes apenados com deteno, e outros de leis esparsas, como uso e trfico de entorpecente, crimes contra a ordem econmica e tributria, crimes contra o consumidor, contra o meio ambiente, crimes de porte de arma e crimes de trnsito, alm de todos os inci-dentes de execuo penal.

    Todos esses processos foram examinados quando da anlise para parecer, tratando-se de recursos de apelao, recurso em sentido estri-to, embargos infringentes, reviso criminal e agravo em execuo. A anlise, para efeito de coleta de dados, dirigiu-se, com maior nfase, nos processos recebidos nos anos de 2006, 2007 e 2008, num total de 1897 processos, os quais apresentam a seguinte conformao, quanto ao nmero de feitos e natureza dos crimes mais recorrentes:

    Ano de 2006: total de 605 processos, sendo 249 por crimes de roubo e extorso, 100 por crimes de furto, 98 por uso e trfico de droga, 40 por porte ilegal de arma, 37 por receptao, 29 por estelio-nato, 08 por apropriao indbita e 01 por crimes das Leis 8.137/90 e 8.176/91 (contra a ordem tributria e a ordem econmica). Outras espcies de crimes constituem quantidades extremamente baixas, sem nenhuma significao, como crimes de imprensa (02), dano (01), leso corporal (03), contra a honra (02), invaso de domiclio (01), resistncia e desacato (01).

    Ano de 2007: total de 670 processos, sendo 235 por crimes de roubo e extorso, 142 por furto, 111 por uso e trfico de droga, 65 por porte ilegal de arma, 28 por receptao, 42 por estelionato, 10 por apropriao indbita, 06 por crimes das Leis 8.137/90 e 8.176/91. Desprezaram-se os demais delitos, devido quantidade insignificante.

    Ano de 2008: total de 622 processos, sendo 213 por crimes de roubo e extorso, 111 por furto, 155 por uso e trfico de droga, 53 por porte ilegal de arma, 29 por receptao, 10 por apropriao ind-

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  • 42 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    bita, 03 por crimes das Leis 8.137/90 e 8.176/91. Da mesma forma, desprezaram-se os demais delitos, devido quantidade insignificante.

    O primeiro captulo apresenta os conceitos clssicos da concep-o contratualista do Direito, em sua construo a partir do sculo XVIII, a explicitar o papel do princpio da legalidade na formao do pensamento penal, em que a tarefa da interpretao, a cargo dos juzes, retratada com extrema desconfiana, deixada em segundo plano, em nome da preservao da figura de um legislador onipotente, onisciente e imparcial.

    No universo penal brasileiro, so examinadas algumas leis e dispositivos do Cdigo Penal como representativos da seletividade realizada pela via legislativa, seja em contraposio s leis civis, es-clarecendo, portanto, como se d a diferenciao entre Direito Civil e Direito Penal, seja no interior das prprias leis penais, que contm tratamento diferenciado aos responsveis pelas prticas delituosas.

    As leis penais so apresentadas, portanto, como instrumento ex-plcito de seleo social, a qual, no entanto, para legitimar-se procura servir-se de princpios estratgicos da moderna dogmtica penal, como os conceitos de lesividade, fragmentariedade e minimalismo penal, como definidores do Direito Penal e da atuao do sistema penal. O objeto explcito de estudo sero tpicos da legislao penal e processual penal, notadamente em sua evoluo recente, tendo em conta o trabalho de seleo legislativa a partir de valores sociais, relaes de poder, esteretipos e diferenas de classe.

    O segundo captulo dedicado apresentao da construo terica do trabalho que os operadores do Direito realizam atravs de ferramentas da cincia jurdica, notadamente a hermenutica, o que fazem a partir de sua justificativa filosfica, em confronto com a concepo legalista clssica. Importa realar o papel ativo que a interpretao desempenha na construo interessada do saber penal, seja por meio da linguagem, seja utilizando as tcnicas e princpios da hermenutica jurdica e sua aplicao em situaes exemplares do universo penal a partir do carter ambguo das leis. A interpretao, assim realizada pelos operadores do Direito, constitui a base terica e prtica com que o sistema penal, principalmente no mbito das instituies judicirias, busca legitimar a seletividade no processo de criminalizao.

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  • 43INTRODUO

    Nos terceiro e quarto captulos, o trabalho se concentra na apre-sentao terica da tarefa seletiva a cargo do Ministrio Pblico e da Magistratura (promotores de justia, juzes e tribunais), focalizando a instituio ministerial, sua histria recente e a multiplicidade de sua atuao processual e social, passando em seguida para a apresentao de situaes, extradas do exame de processos criminais instaurados em todo o Estado de So Paulo, em que se pretendem demonstrar os caminhos, no campo penal e processual penal, utilizados pelos opera-dores do Direito para construo da criminalidade e da punibilidade.

    Acreditamos como relevante o papel desempenhado pelos diver-sos nveis de seletividade para a compreenso do sistema penal e do processo de criminalizao. Ao se referir s imagens deste processo, que considera autopoitico, Louk Hulsman estabelece a proposta, aqui encampada inteiramente, no sentido de que devemos trabalhar pela reconstruo dessas imagens a partir da compreenso da sua seletividade34.

    a partir da compreenso da seletividade penal, mormente na atividade prtica do sistema penal por seus operadores, que nos parece possvel apontar o percurso para uma sada de perfil abolicionista para a questo penal que ponha fim ao modelo universal e teolgico da punio e abra as portas para uma soluo dos conflitos humanos, desprovida de classificaes, que, acima de tudo, consiga abdicar da ideia de castigo.

    34 Entrevista. In Discursos sediciosos, vols. 5/6, Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora,

    1998, p. 12.

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  • PARTE I

    AS LEIS E A CINCIA DO DIREITO

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  • CAPTULO 1AS LEIS

    1. Bem antes de se proceder a uma anlise da seletividade levada a efeito por parte dos operadores do Direito no trabalho de compreenso e aplicao das leis, imperioso debruar-se sobre o processo de seleo feito pelas prprias normas penais, como mo-mento inicial da considerao sobre o crime como objeto de defi ni-o social.

    Necessrio admitir, antes de tudo, que as normas jurdicas, tanto de natureza civil como criminal, so fruto de uma elaborao tc-nica pelo Estado, encarnado na fi gura do legislador, a partir de seu prprio desejo, enquanto interesse de uma classe, agrupamento ou mesmo de um nico indivduo. O objetivo das normas exatamente o de trazer para o mundo institucional um determinado nmero de condutas que devero merecer controle e tratamento legal, no sen-tido de delimitar-lhes a prpria existncia enquanto fenmenos que interessam ao Estado como produtores de consequncias na hiptese de sua violao.

    O Direito, portanto, entendido como um conjunto de normas (direito positivo), seletivo por sua prpria natureza operacional, pois, do universo infi ndvel de aes humanas que podem resultar em confl itos, resolve apropriar-se de um pequeno nmero delas, para o fi m de defi nir-lhes uma especial natureza e consequncias, estabelecendo proibies e permisses. Deve ser visto, pois, como um importante dispositivo de dominao, disciplina e controle.

    A identifi cao do Direito com a lei, como emanao soberana, constitui caracterstica daquilo que Foucault chama de sociedade de

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  • 48 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    soberania, marcada pela existncia de um poder originrio, nascido, nos tempos modernos, do conceito de pacto. O foco principal de sua anlise, no entanto, transfere-se da lei para a norma, ao se debruar sobre a moderna sociedade disciplinar, em que esto em ao a dis-ciplina, o jogo do poder, a guerra permanente e o governo, no sentido de gesto e governamentalidade.

    Apesar disso, Foucault considera a lei como um dos dispositivos do poder, especialmente quando vislumbrado em meio ao que chama de ilegalismos, zona incerta de aplicao da lei, sustentada pela pr-pria legalidade. Trata-se de um dispositivo direcionado dominao, travestido de elemento pacificador, compondo quadro normativo de construo de uma ordem, da qual resultam, como decorrncia necessria, os resduos, os inclassificveis que sero destinados ao refugo, de que nos fala Zygmunt Bauman.

    A seleo operada pelas leis serve-se inicialmente da prvia e clebre separao entre os campos do Direito e da Moral, que se encontra em todos os manuais e tratados de iniciao ao estudo do Direito. A separao inspira-se fundamentalmente na doutrina kan-tiana, que reserva para a Moral o trato das questes internas ou de foro ntimo, definindo o Direito como a esfera das relaes sociais, com reflexos para terceiros.

    Bem a propsito, a partir do sculo XIX, o Direito passa a ser definido como o mnimo tico, a significar que as normas jurdicas se diferenciam das normas morais exatamente por sua destinao especfica a um pequeno nmero de condutas humanas, cuja ilici-tude se mostra extremamente relevante para uma dada sociedade, no sentido de sua vigilncia e controle, exigindo especial tutela do Estado.

    Segundo a teoria do mnimo tico, desenvolvida por George Jellinek, o Direito constitui o mnimo da Moral, por ser considerado imprescindvel para o desenvolvimento da vida em sociedade. Aes imorais podem no ser antijurdicas por opo da sociedade, como a legitimidade jurdica de determinadas clusulas contratuais con-vencionadas por duas pessoas, embora inaceitveis pelo sentimento moral de dada sociedade35.

    35 Miguel Reale. Lies preliminares de direito. So Paulo: Ed. Saraiva, 2002.

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  • AS LEIS 49

    No interior da doutrina do Direito, distinguem-se os diversos ramos da rvore jurdica, dos quais se destacam, para o interesse do nosso estudo, a separao entre o Direito Civil e o Direito Penal. Tal diviso ilustra com clareza um primeiro grande momento da seletividade no mbito do edifcio jurdico, significando, em termos amplos, que a natureza das infraes s normas jurdicas e tambm as suas consequncias sociais que devero definir a morada desses dois ramos do Direito e sua relevncia para as relaes sociais.

    Define-se o Direito Penal como o ramo do Direito Pblico constitudo pelo conjunto de normas que tm como objetivo a definio dos crimes e das penas aplicveis aos autores das violaes a referidas leis. Diferenciam-se as infraes penais, assim classificadas em sentido amplo, a englobarem crimes e contravenes penais, das demais violaes de natureza no penal, denominadas ilcitos civis. Estes constituem infraes s leis civis, que produzem, como resultado, as sanes civis, caracterizadas pela reparao, de natureza compensatria ou restitutiva, sem contedo explicitamente punitivo.

    Os ilcitos penais, por outro lado, so violaes a leis especficas as normas penais que podero resultar, para o autor da ofensa, na imposio de uma sano penal, de carter punitivo, com a ca-racterstica de castigo.

    V-se, entretanto, que, ao longo do tempo, a doutrina jurdica jamais conseguiu estabelecer, com nitidez, apesar de pretender, uma diferena ontolgica entre crime e infrao civil. O que continua a sustentar-se, nas reiteradas tentativas, por parte dos juristas, de expli-cao da diferena entre ambos, que determinadas violaes legais assumem uma importncia tal que, a par das eventuais consequncias civis (reparao, restituio etc.), se torna necessria a previso de uma pena, no sentido de castigo, para o seu responsvel.

    As razes que costumam levar os legisladores a definir determi-nadas aes ilcitas como crimes so atribudas, de forma genrica e retrica, gravidade da conduta do agente e suas consequncias para a sociedade. A insuficincia da sano civil, portanto (assertiva carente de delimitao), que justificar o transporte de determina-das transgresses do campo civil para o penal, levando, assim, sua classificao como crimes ou contravenes.

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  • 50 CRIMINALIzAO E SELEO NO SISTEMA jUDICIRIO PENAL

    Segundo o penalista Nlson Hungria, a nica diferena entre o ilcito civil e o penal est na maior gravidade do delito penal, que provoca uma mais extensa e intensa perturbao social:

    se o fato contra jus no de molde a provocar um intenso ou difuso alarme coletivo, contenta-se ele com o aplicar a mera sano civil (ressarcimento do dano, execuo forada, restitutio in pristinum, nulidade do ato). O Estado s deve recorrer pena quando a conservao da ordem jurdica no se possa obter com outros meios de reao, isto , com os meios prprios do direito civil (ou de outro ramo do direito que no o penal)36.

    Da a qualificao do legislador, feita pelo prprio Hungria, como um oportunista, vocbulo que pode ser lido tambm em seu sentido popular, a atribuir a essa entidade fictcia a posse de um dispositivo poltico, nascido de determinados interesses, de controle seletivo das aes das pessoas.

    As classificaes realizadas pelos legisladores caracterizam-se, assim, por um primeiro momento da seletividade penal, visto que pro-cedero seleo de determinadas condutas humanas, normalmente atribuveis a certas pessoas e determinadas circunstncias, erigindo-as categoria de crimes, com prejuzo de outras, que permanecero na condio de ilcitos de natureza civil.

    O desrespeito a uma clusula contratual constitui, em tese, ilcito civil, no sendo classificado, primeira vista, como infrao penal. Se a mesma ao, no entanto, vem acompanhada de outras circuns-tncias, igualmente definidas em lei, poder ser classificada, por exemplo, como crime de estelionato, ou de apropriao indbita, ou algum outro. Tais circunstncias legais, portanto, so o expediente de que se serve o legislador para a definio do crime em determinadas situaes em que a seleo se lhe apresenta como oportuna.

    A seleo penal no mbito da criao legislativa no se circuns-creve, entretanto, escolha de aes humanas que iro compor o quadro das infraes consideradas de natureza penal. Dirige-se

    36 Comentrios ao Cdigo Penal, vol. I. Rio de Janeiro: Forense Editora, 1984, p. 173.

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  • AS LEIS 51

    tambm ao tratamento punitivo a ser dado a cada uma das condutas j classificadas como crimes, constituindo, assim, uma segunda etapa da mesma seleo. As leis penais definem no s as condutas que consideram criminosas, como tambm as penas respectivas, que va-riam de acordo com a natureza de cada ilcito definido nelas prprias.

    O crime de estelionato, por exemplo, sofre, no interior da lei penal, determinado tratamento punitivo que se diferenciar de outro crime, tambm componente do universo das leis penais, seja no tocan-te espcie de pena prevista na lei (recluso ou multa, por exemplo), seja no que se refere sua quantidade ou quanto a circunstncias que influenciaro no grau da punio e forma de seu cumprimento pelo agente.

    A seleo amplia-se, atingindo tambm as leis processuais pe-nais, que trazem em si, igualmente, um forte contedo seletivo, ao definirem regras que presidiro a apurao das condutas tidas como criminosas com vistas futura aplicao das penas por parte do Estado. No exame de seus dispositivos, constata-se o mecanismo de escolha de determinadas aes criminosas em contraposio a outras, relativamente aos procedimentos a serem observados para apurao da verdade e posterior deciso judicial.

    De tais procedimentos, fazem parte normas a respeito dos atos policiais, realizados no inqurito policial, da caracterizao da priso em flagrante, da decretao da priso preventiva, da produo de provas e dos critrios de sua avaliao, bem assim sobre o mbito e as consequncias dos recursos contra sentenas condenatrias ou absolutrias.

    No mbito da cincia do Direito, percebe-se a existncia de um grande esforo terico e argumentativo para buscar uma justificativa racional e segura da seleo penal realizada pelas leis, de tal forma que lhe possa conferir a necessria legitimidade. Modernamente, o critrio mais comumente aceito pelos penalistas e doutrinadores para justificar a criminalizao de determinadas condutas humanas, e no de outras, repousa sobre o conceito de bem jurdico.

    Sustenta-se, assim, que a funo da lei penal proteger deter-minados bens, considerados essenciais vida em sociedade. O bem jurdico se situa no limite entre o Direito Penal e o que se pode denominar como poltica criminal, atribuindo-se-lhe a condio de

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    fruto da experincia social, a conter em si um interesse considerado vital para a sociedade, como a vida, a propriedade, a incolumidade pblica etc.37.

    Segundo tal ponto de vista, o Direito Penal define-se como o ramo especializado do Direito, cujo objetivo a proteo desses bens jurdicos, servindo-se, para tanto, de alguns parmetros norteadores de sua existncia, como os denominados princpios da interveno mnima e da fragmentariedade. Esses princpios significam que a interveno das leis penais s se deve dar em situaes especiais, para defesa de determinados bens que no podem ser objeto de proteo apenas das leis civis.

    Por interveno mnima, pois, se quer dizer que, no universo das aes humanas violadoras das normas sociais, uma parcela muito pequena ser objeto de apropriao por parte das leis penais como ltimo recurso jurdico. Da a utilizao rotineira da clssica definio do Direito Penal como ultima ratio.

    Por sua vez, a recolha de aes ilcitas parece dar-se de forma arbitrria e no sistemtica, ao sabor do que se possam considerar as necessidades sociais em dado momento histrico, assim definidas pelo legislador. As leis penais constituem simples fragmentos q