discurso religioso

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Cadernos do CNLF, Vol. XVI, Nº 04, t. 1 – Anais do XVI CNLF, pág. 468 DISCURSO RELIGIOSO E AFRONTAMENTO DA DIGNIDADE HUMANA Jose Geraldo da Rocha (UNIGRANRIO) [email protected] 1. Introdução A palavra não foi feita para ser utilizada no processo de geração de divisões entre os seres humanos. A invenção da palavra está direta- mente associada ao anseio de entendimento entre as pessoas. Assim sen- do, o objetivo da mesma é dialogar. No universo religioso o discurso, re- sultado da articulação de palavras, imbuído de interesses ideológicos tem se convertido em instrumento que gera, legitima e fundamenta a violên- cia entre as diferentes religiões e consequentemente a dominação cultural e religiosa que marginaliza e exclui indivíduos e comunidades das esfe- ras da convivência humana. O presente artigo nasce da pesquisa sobre intolerância religiosa em relação aos praticantes das religiões de terreiros na Baixada Flumi- nense, estado do Rio de Janeiro. A investigação foi realizada nos anos de 2010 e 2011 e está relacionada às discussões que perpassam a linha de pesquisa Identidade, Gênero e Etnia do Programa de Pós Graduação em Letras e Ciências Humanas da Unigranrio. Dentre as descobertas feitas no processo investigativo está a demonstração da perversidade do discur- so religioso forjado no campo das relações humanas. Este além de fun- damentar a violência, a discriminação e exclusão, constitui-se em verda- deira afronta à dignidade humana. 2. A baixada fluminense O campo onde nossa pesquisa se desenvolveu foi a Baixada Flu- minense 95 , uma região composta por vários municípios que formam a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. 95 Baixada Fluminense, termo polissêmico que possui múltiplas definições. Seu recorte altera-se a partir do interesse dos pesquisadores, da escala de observação, da atuação das instituições de pes- quisa ou dos objetivos dos órgãos públicos. A expressão pode assumir configurações geográficas, econômicas, políticas e culturais diferenciadas… atualmente, a denominação designa uma série de municípios, mais próximos ao entorno da Bahia da Guanabara. (Cf. BRAZ & ALMEIDA, 2010, p.19).

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DIGNIDADE HUMANA

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  • Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 1 Anais do XVI CNLF, pg. 468

    DISCURSO RELIGIOSO E AFRONTAMENTO DA DIGNIDADE HUMANA

    Jose Geraldo da Rocha (UNIGRANRIO) [email protected]

    1. Introduo

    A palavra no foi feita para ser utilizada no processo de gerao de divises entre os seres humanos. A inveno da palavra est direta-mente associada ao anseio de entendimento entre as pessoas. Assim sen-do, o objetivo da mesma dialogar. No universo religioso o discurso, re-sultado da articulao de palavras, imbudo de interesses ideolgicos tem se convertido em instrumento que gera, legitima e fundamenta a violn-cia entre as diferentes religies e consequentemente a dominao cultural e religiosa que marginaliza e exclui indivduos e comunidades das esfe-ras da convivncia humana.

    O presente artigo nasce da pesquisa sobre intolerncia religiosa em relao aos praticantes das religies de terreiros na Baixada Flumi-nense, estado do Rio de Janeiro. A investigao foi realizada nos anos de 2010 e 2011 e est relacionada s discusses que perpassam a linha de pesquisa Identidade, Gnero e Etnia do Programa de Ps Graduao em Letras e Cincias Humanas da Unigranrio. Dentre as descobertas feitas no processo investigativo est a demonstrao da perversidade do discur-so religioso forjado no campo das relaes humanas. Este alm de fun-damentar a violncia, a discriminao e excluso, constitui-se em verda-deira afronta dignidade humana.

    2. A baixada fluminense

    O campo onde nossa pesquisa se desenvolveu foi a Baixada Flu-minense95, uma regio composta por vrios municpios que formam a Regio Metropolitana do Rio de Janeiro.

    95 Baixada Fluminense, termo polissmico que possui mltiplas definies. Seu recorte altera-se a partir do interesse dos pesquisadores, da escala de observao, da atuao das instituies de pes-quisa ou dos objetivos dos rgos pblicos. A expresso pode assumir configuraes geogrficas, econmicas, polticas e culturais diferenciadas atualmente, a denominao designa uma srie de municpios, mais prximos ao entorno da Bahia da Guanabara. (Cf. BRAZ & ALMEIDA, 2010, p.19).

  • Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 1 Anais do XVI CNLF, pg. 469

    Estima-se que exista na Baixada Fluminense em torno de cinco mil casas de cultos afros brasileiros, entendidas aqui como casas de can-dombl e umbanda, ainda que tais dados no sejam possveis a sua com-provao em virtude da no existncia de pesquisas com tal recorte. Os dados sobre as religies de matrizes africanas at ento levantados pelo Censo do IBGE (2000) davam conta da existncia no Brasil de apenas 0,3% da populao como pertencente a esse segmento. No se pode es-quecer que tais cifras esto em um contexto onde os vnculos com tais prticas religiosas passam por um sistema de negao. Afirmar a perten-a religiosa de matriz africana colocar-se numa esfera de no reconhe-cimento e aceitabilidade social. Os indivduos no querem ser estigmati-zados na hora de responder ao censo. Em contraposio a isso, percep-tvel nas vivncias cotidianas na regio da Baixada Fluminense, em espa-os de discusses relacionadas s culturas locais, a grande presena das expresses religiosas de tal natureza. Nesse sentido, valioso o depoi-mento de um pesquisador na regio:

    Sai com um endereo de um terreiro para entrevistar uma Yalorix. Como sempre, os terreiros esto situados nas periferias das periferias. Tomei dois -nibus para conseguir chegar no referido bairro. Ruas de terra, casas simples, no acabadas, muita gente pelas ruas, animais. Fui perguntando para as pesso-as onde existia um terreiro de candombl. Elas iam me indicando. Chegava ao terreiro e perguntava pela Yalorix, respondiam no aqui. E assim acontece-ram vrios terreiros. Quando cheguei ao terreiro que tinha me proposto visitar, havia passado por seis outros terreiros. Isso em um espao pequeno do ponto de vista geogrfico. E no foi apenas em um bairro que algo semelhante acon-teceu. (Antonio).

    A populao da regio marcadamente de afro descendentes. Do ponto de vista da religiosidade de matriz africana, a regio ostenta ser o local para onde veio o Candombl da Bahia. Assim sendo, a histria da expanso do Candombl no Rio de Janeiro estaria associada migrao dos terreiros para a Baixada Fluminense. As casas e as personalidades mais famosas do universo religiosos da matriz africana no Rio de Janeiro esto sediadas na regio da Baixada Fluminense. O Il Ax Op Afonj, com raiz em Salvador desde 1910, se estabeleceu no bairro de Coelho da Rocha em So Joo de Meriti nos finais dos anos trinta, sob a coordena-o Me Agripina, filha de Me Aninha (Eugnia Ana dos Santos) da matriz em Salvador. Outra casa de grande destaque na Baixada o terrei-ro de Joozinho da Gomeia. Tambm originrio de Salvador, chegou regio e se instalou no bairro de Copacabana Duque de Caxias no final da dcada de quarenta.

  • Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 1 Anais do XVI CNLF, pg. 470

    Em Duque de Caxias encontram se ainda outras duas casas reno-madas. O terreiro de Pai Valdemiro "Baiano" de Xang - o Il As Baru Lep, datado dos anos 40, e considerado um dos mais importantes do Es-tado do Rio de Janeiro. Atualmente o local est em processo de tomba-mento a pedido do Ministro da Cultura Gilberto Gil. Valdemiro foi guru de polticos e artistas famosos no pas.

    A outra casa a que se refere, o terreiro de Giselle Cossard Binon mais conhecida como Ominarewa. Sua casa, o Ile Ax Atara Magba est localizada no bairro de santa Cruz e conta com mais de 400 filhos de Santo. Ominarewa, atualmente com mais de 80 anos de idade, continua frente do seu terreiro, zelando pelos Orixs e pelas tradies Africanas no Brasil.

    Tambm os terreiros de Umbanda vo encontrar na Baixada flu-minense um espao de expanso a partir do seu surgimento no Rio de Ja-neiro por volta do ano 2009.96

    A regio tambm caracterizada pelo baixo poder aquisitivo da maioria da populao. As condies socioeconmicas da populao aca-baram contribuindo para as pessoas buscarem na esfera da religio as so-lues para os sues problemas. Talvez esteja aqui uma das explicaes para a instalao e crescimento de inmeras igrejas de denominaes crists. Com promessas de curas para todos os males inclusive a prospe-ridade financeira, desencadeou-se nessa regio uma avalanche religiosa. Em contrapartida, o aumento dos conflitos com os praticantes das religi-es de matrizes africanas foram ficando cada vez mais evidenciados. Dentre tantos os males a ser combatidos pelo neopentecostalismo, es-

    96 Segundo Reginaldo Prandi, em seu artigo Linhagem e legitimidade no candombl paulista, a umbanda, nascida no Rio de Janeiro do contato do candombl com o kardecismo, profundamente in-fluenciada pela moralidade crist j incorporada pelos espritas, veio, em oposio ao candombl como religio de populaes negras, a se firmar como religio para todos, sem limites de raa, cor, geografia, origem social. Enquanto o candombl continuava como expresso de uma sociedade de molde estamental, escravocrata na origem, a umbanda espalhou-se como a religio brasileira para a sociedade de classes, industrializada, urbanizada, de intensa mobilidade geogrfica e social. A um-banda, ao se fazer como religio independente, adotou o uso da lngua portuguesa, abandonou o sacrifcio ritual de sangue e a iniciao sacerdotal com recluso e mortificao, deixou de lado o or-culo do candombl (especialmente o jogo de bzios) que d ao chefe do grupo de culto a prerrogati-va de decifrao do destino e dos males e oportunidades da pessoa; incorporou do kardecismo a noo bsica da caridade, que deslocou o eixo do culto para a prtica da cura atravs da interven-o dos espritos desencarnados ou encantados, no rito do transe, reduzindo a importncia dos ori-xs e minando a estrutura rgida da autoridade centrada na me ou pai-de-santo que caracteriza o candombl. (Disponvel em: .

  • Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 1 Anais do XVI CNLF, pg. 471

    tava a expulso do demnio presente nas praticas dos terreiros. Inici-almente tratava-se apenas de um exerccio de converso pela via da pregao e do convencimento. Com o passar do tempo, a pregao pas-sou a ser um ato de desmoralizao dos praticantes das religies de ter-reiros at chegar a agresses verbais e fsicas, alm dos ataques e depre-daes aos espaos de cultos denominados terreiros.

    3. Publico entrevistado

    Ao longo do trabalho de coleta de dados, foram entrevistadas 42 pessoas praticantes das religies de matrizes africanas. Quando observa-dos pela tica das relaes de gnero, constata-se que 33% dos entrevis-tados so do gnero masculino e 67% feminino. Nesse caso mais uma vez se comprova o quanto as mulheres so maioria no zelo pelas realida-des religiosas

    Grfico 1: Distribuio dos entrevistados segundo sexo

    Dentre nossos entrevistados, verificou-se que 38% se encontram na faixa etria superior a 50 anos. 26% entre 41 e 50 anos; 24% na faixa de 21 a 40 e 12 % com idade inferior a 20 anos. Esses dados revelaram-se importantes na medida em que possvel verificar que a intolerncia religiosa caracteriza-se como uma violncia que vitima todas as faixas etrias indistintamente.

    O grfico a seguir nos propicia visualizar com maior nfase o que acabamos de afirmar.

  • Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 1 Anais do XVI CNLF, pg. 472

    Do ponto de vista da localizao geogrfica, nossa pesquisa levou em considerao a diviso administrativa do municpio de Duque de Ca-xias. O objetivo era colhermos informaes nos diferentes locais do mu-nicpio. Este se divide em quatro distritos que por sua vez se dividem em bairros, a saber:

    1 Duque de Caxias primeiro distrito: Centro, Jardim 25 de Agosto, Parque Duque, Periquitos, Vila So Luiz, Gramacho, Sarapu, Centenrio, Doutor Laureano, Olavo Bilac, Bar dos Cavaleiros, Jardim Gramacho, Parque Centenrio, Mangueirinha de Caxias e Corte Oito.

    2 Campos Elseos segundo distrito: Jardim Primavera, Sara-curuna, Vila So Jos, Parque Fluminense, Campos Elseos, Pilar, Can-gulo, Cidade dos Meninos, Figueira, Chcaras Rio - Petrpolis, Chcara Arcampo, Eldorado.

    3 Imbari terceiro distrito: Santa Lcia, Santa Cruz da Serra, Imbari, Parada Anglica, Jardim Anhang, Santa Cruz, Parada Morabi, Taquara, Parque Paulista, Parque Equitativa, Alto da Serra, Santo Ant-nio da Serra.

    4 Xerm quarto distrito: Xerm, Parque Capivari, Mantiquei-ra, Jardim Olimpo, Lamaro, Amap.

    O quadro a seguir demonstra o percentual dos participantes da pesquisa segundo a sua pertena geogrfica dentro do municpio.

    Quadro 3: Distribuio dos entrevistados segundo distrito

    Grupo Nmero de entrevistados Percentual de entrevistados 1 DISTRITO 13 31% 2 DISTRITO 10 24% 3 DISTRITO 10 24% 4 DISTRITO 9 21% Total 42 100%

    4. Discursos religiosos que legitimam a violncia e fundamentam a excluso

    Os depoimentos coletados na pesquisa nos permitem compreender em que nvel tem chegado o desrespeito aos valores de cunho religiosos relacionados s religies de matrizes africanas no dia a dia de seus prati-cantes. o que Sennett (2004) vai chamar de escassez de respeito. Real-amos que nosso intuito na pesquisa foi verificar como era sentido e vi-venciado pelo povo de terreiro a discriminao e a intolerncia religio-

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    sa. Por razo de confidencialidade, todos os nomes dos depoentes sero mantidos em sigilo. Portanto os nomes que aparecem nos relatos so fic-tcios.

    Sinto-me severamente ultrajado, porque esse senhor me humilhou, humi-lhou o meu povo, se desfez dos meus Orixs; disse que era religio de preto, que era vodu, que era culto ao demnio, ao satans. Eu observo que dentro das prprias religies evanglicas, nos cultos que eles fazem dentro das igrejas os pastores incentivam aos seus fiis a descriminarem as pessoas de religies de matrizes africanas, seja ela Umbanda ou Candombl; eles incentivam a des-criminao e at mesmo a agresso. Eu j presenciei um grupo de jovens e-vanglicos agredindo uma Ya, arrebentando os fios de contas, rasgando suas roupas, o pano da costa e o de cabea, isso foi no centro de Duque de Caxias, prximo ao Supermercado Guanabara. Foi um grande tumulto e muita gente foi em defesa dessa senhora e acabamos sem apoio das autoridades competen-tes, s ns que samos na defesa e proteo dessa senhora. (Paulo)

    Pelo depoimento possvel notar a indignao da pessoa discri-minada. A vivncia religiosa caracterizada como elemento estruturante da existncia humana (ROCHA, 1998). So valores fundantes no sistema de convices que esto sendo postos em xeque. A palavra tem fora destrutiva nesse tipo de discurso religioso, pois atinge a profundidade da alma humana. um discurso que gera no s a violncia simblica, mas induz s prticas de violncia fsica inclusive (SANTOS, 2009).

    Disseram que eu no tinha noo do que era vida espiritual que a evan-glica, e que s l que Deus existe. (Mariza)

    O fanatismo religioso tem levado alguns segmentos confessionais absolutizao da verdade. A verdade nica e est na minha igreja, no meu jeito religioso de ser. Com esse modo de pensar, as demais expres-ses de f, religiosidades no podem existir fora da minha igreja. A pre-sena do diferente incmoda e no deve ser tolerada. A existncia de Deus fica condicionada ao seu universo religioso.

    Os valores da f professados pelos diferentes passam a ser trata-dos com desprezo, desrespeito e ridicularizados.

    Chamaram-me de forma violenta de macumbeiro, dizendo que o sou feiti-ceiro, bruxo e at me imitando, satirizando nos gestos das danas. (Francisco)

    Em determinadas situaes, o desrespeito chega a ao de violn-cia fsica contra os indivduos dos outros segmentos religiosos e seus bens. A intimidao passa a funcionar como uma artimanha para desen-corajar a continuidade da prtica religiosa do outro.

    Para se ter uma ideia, aqui, neste Barraco, onde eu trabalho para ganhar o meu sustento e onde vivo tambm, j foi apedrejado vrias vezes, jogaram

  • Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 1 Anais do XVI CNLF, pg. 474

    pedras no meu porto, chutaram ebs que despachei, passaram gritando de dentro do nibus. Tudo o que podem fazer para me causar medo j fizeram. Tudo para me amedrontar e tentar acabar com as funes no Terreiro. (Lucas)

    Ningum, ao nascer discrimina! A discriminao aprendida no cotidiano da vida, nos processos de interao social (CHARON, 2004), na educao que o individuo recebe desde o ambiente familiar at s uni-versidades. Do mesmo modo que uma criana pode aprender os valores da f em conformidade com sua tradio religiosa, ela pode aprender a desrespeitar os valores relacionados tradio religiosa daquele que lhe diferente. O depoimento a seguir evidencia como tal questo perpassa o universo da famlia e da escola.

    A minha histria di muito porque aconteceu com minha filha, que tem 12 anos e precisou usas algumas contas, at para ir para a escola. Os colegui-nhas dela quando viram as contas perguntaram o que era, e ela - como tem in-formaes porque frequenta o Terreiro comigo disse que era do santo dela. Imagino como ela explicou, pela idade e entendimento. Algumas crianas com certeza - contaram para os seus pais; e no dia seguinte foi um transtorno s, para a minha filha, que foi chamada de filha do diabo, que ela no era de Deus. Com certeza isso veio das bocas dos pais dessas crianas; e elas j esto crescendo com orientao violenta e perigosa. (Jussara)

    O impacto da fala, a fora da palavra, a opresso, a eminncia da excluso contida no discurso da patroa diante da empregada que se ini-ciou na religio de matriz africana denota o quanto o elemento religioso interfere nas relaes no mercado de trabalho. O que nos narra a senhora Rosa realidade que fomenta marginalizao e constitui-se em violncia e intolerncia religiosa.

    Trabalhei por alguns anos como balconista, sempre frequentei o meu ter-reiro e chegou o momento em que eu precisei tomar umas obrigaes no Bar-raco e precisei usar umas contas, contra egum, enfim, estar dentro dos precei-tos. Passei por todo o processo e depois desse, quando tive que retornar ao trabalho. E quando eu cheguei, a minha patroa disse que se eu no tirasse as minhas contas que eu no iria trabalhar. (Rosa)

    Joga fora! O grito do senhor com seu filho foi seguido de mais trs aes ou atitudes reveladoras de uma concepo religiosa onde a pra-tica de f do outro significa uma afronta aos valores de sua religio. Ele simplesmente arrancou das mos do menino o pacote de doces. No foi suficiente o seu grito joga fora. O arrancar das mos de uma criana um doce caracteriza uma violncia exacerbada. O que se sucedeu ao gesto de arrancar das mos o doce, ainda mais violento. Joga ao cho, pisa em cima e professa o discurso religioso, que em seguida legitimado e ou fundamentado com a utilizao ou malversao da bblia.

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    No dia de Cosme e Damio j tradio eu dar os doces. Nesse ano quando distribua os doces na rua a crianada se juntou rapidamente. De re-pente um senhor gritou com um menino e sete ou oito anos para jogar fora o pacotinho de doces que acabara de receber. O Menino relutou e ele arrancou das mos do menino o pacote de doces e jogou no cho. Pisou em cima e gri-tava: Repreende, Senhor! No satisfeito pegou a sua bblia e comeou ali mesmo uma pregao em nome de Jesus. (Carlos)

    As formas de afrontamento religioso (SILVA, 2009) organizado por determinadas confisses religiosas presentes em algumas igrejas dos segmentos evanglicos objetivam a desmoralizao da pratica de f da-queles que professam a religio dos terreiros. Caracterizar os espaos re-ligiosos dos outros como lugares de manifestao do demnio passou a ser corriqueiro na contemporaneidade.

    H 4 anos atrs elas se juntaram para desmoralizar e agredirem a gente. Numa festa de Ogum os fiis dessas igrejas fizeram uma caminhada pelas ruas prximas e - depois ficamos sabendo que era para nos ofender quando pas-saram na rua do nosso Terreiro jogaram sal grosso e enxofre, e disseram que ali era a casa do demnio e de tantas outras coisas. Eles falaram tantas coisas ruins, negativas. (Ana)

    De modo semelhante ao que fazem em relao aos barraces onde acontecem os cultos das religies de matrizes africanas, nos espaos onde se realizam algumas atividades religiosas como a mata, a cachoeira, a en-cruzilhada tambm so feitas tentativas de interdies.

    Aqui perto ns temos uma parte da floresta aonde podemos colocar nos-sos presentes para os Orixs, e nesse momento que eles vm para c tentar a-terrorizar a gente. Isso sempre. Eles distribuem panfletos com propaganda contra a gente e contra o que fazemos e at tentam interromper nossos rituais. J houve poca de tentar interromper de forma forada o que a gente fazia u-sando at alto-falantes e tentaram destruir nossos presentes. (Amanda)

    interessante pensar o estreitamento presente na compreenso te-olgica a respeito da salvao oferecida por Deus humanidade. Isso re-porta ao tempo da escravido (ROCHA, 2007), onde o catolicismo en-tendia que melhor seria para os negros serem batizados e escravizados do que ficarem pagos e irem para o inferno. A igreja passava a ser ento a salvao para os negros. Essa concepo se modernizou no seu discurso e nas suas prticas. Combater o culto ao demnio presente na pratica religiosa do outro passou significar condio para a sua salvao. A salvao s para aqueles que aceitam Jesus ao seu modo e sua com-preenso. Aos demais, o inferno.

    Por vrias vezes fui discriminado pela minha religio, em todas s vezes me senti muito mal, o que no de se estranhar, quando se violentado na sua f. E di muito quando acontece na sua rua, no seu bairro, onde voc vive e

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    exerce sua f. Fui agredido na minha rua por uma pessoa evanglica que dis-criminou uma filha de santo minha, quando ela estava de resguardo. E eu fi-quei muito chateado e fui tomar satisfao com ele e a ele me disse pala-vras grosseiras e disse que ns fazamos culto ao demnio, que Jesus ia salvar somente a ele e que eu para o inferno. (Paulo)

    To forte a convico de que so donos da verdade sobre Deus, que at nas ruas, em lugares pblicos, onde todos tm o direito de fre-quentar, indivduos evanglicos, sentem no dever de alertar os pratican-tes de religies de matrizes africanas, estigmatizadas, quando identifica-dos, (GOFFMAN, 2008) que sua pertena religiosa coisa do diabo e que os mesmos necessitam se libertarem de tal prtica religiosa. A seguir apresentamos relatos que nos propicia uma reflexo de tal violncia pra-ticada.

    Quando estvamos descendo a rua em direo ao calado de Caxias, um grupo de pessoas que estava na sorveteria bem perto da esquina do colgio comeou a gritar que ela estava com o diabo e que s Jesus poderia livr-la daquilo etc. Eles gritavam sem parar e alto. (Luiz)

    Seguindo a mesma lgica do acontecimento na sorveteria da es-quina, dessa vez a vtima est em um transporte coletivo.

    Entrei num nibus em um bairro em Duque de Caxias e o trocador disse Jesus te ama eu estava com minhas guia no pescoo e meu oj na cabea. - ento eu lhe disse Oxal nos ama a todos ele ficou indignado e iniciou um discurso religioso, uma verdadeira pregao em nome de Jesus para que eu um dia pudesse conhecer a Jesus e o aceitasse em meu corao, na minha vida. Fiquei surpresa com a atitude das outras pessoas no nibus. Umas cinco pes-soas se juntaram a ele para orar pela minha vida. Ao tentar argumentar que o nibus no era um templo da igreja deles. O trocador, mostrando uma bblia dizia que o nome de Jesus devia ser pregado a todos os povos, em todas as na-es, em todos os lugares em todos os tempos. Diante do clima de animosida-de que se formou, desci do nibus antes do meu ponto de destino. Ao sair ou-via as pessoas dizerem quase que gritando Repreende, Senhor! (Rafaela).

    O discurso religioso conforme se pode perceber, deixou de ser instrumento de comunicao da boa noticia propalada como fundamento do cristianismo, para tornar-se discurso de opresso, discriminao e marginalizao. A afirmao da f identificada com uma determinada tradio religiosa, no necessariamente precisa navegar pelo campo da intolerncia, do desrespeito e execrao do diferente. O mundo tem pre-senciado inmeros acontecimentos atestando o quanto as afirmaes re-ligiosas tm fundamentado conflitos e guerras entre os povos. O enten-dimento e a paz no mundo esto diretamente relacionados ao entendi-mento entre as religies (KUNG, 1993) O papel das religies na constru-o da paz exige como condio, trilhar os caminhos da no violncia. A

  • Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 1 Anais do XVI CNLF, pg. 477

    palavra no foi feita para dividir as pessoas, os povos. Ao contrrio, seu objetivo propiciar dilogo. No dilogo se reconhecem as diferenas. Nas diferenas se reconhecem os direitos e nesses, a dignidade humana.

    As prticas de dominao, geradoras de violncia e excluso in-corporaram em seus discursos uma terminologia caracterizada em deter-minadas afirmaes como s Jesus salva, repreende senhor, ta amarra-do, coisa do demnio. Tais afirmaes constituram-se em cavalos de ba-talhas da intolerncia religiosa e da suplantao da dignidade do religio-samente diferente. S Jesus salva, na lgica de pregao fundamentalista e proselitista, acaba significando uma contradio com a prpria proposta do evangelho e a vida de Jesus. A realizao da proposta salvfica de Deus se processa por meio das culturas vivenciadas pelos povos. Dife-rentes povos, diferentes culturas, diferentes valores, diferentes tradies, diferentes contextos diferentes modos de vivenciar a salvao oferecida por Deus humanidade. Deus magnnimo e benigno e sua magnanimi-dade e benignidade esto ao alcance de todos os povos, de todas as cultu-ras em todos os lugares e em todos os tempos.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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  • Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 1 Anais do XVI CNLF, pg. 478

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