discurso e identidade (capítulo dissertação mestrado)

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1 A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NO E PELO DISCURSO Carlos Renato Lopes, EFLCH/UNIFESP * 1. Do indivíduo moderno ao sujeito pós-moderno Traçar a história do conceito de sujeito moderno sem cair na tentação do reducionismo é tarefa sem dúvida complicada. Segundo o teórico inglês Stuart Hall, “a idéia de que as identidades eram plenamente unificadas e que agora se tornaram totalmente deslocadas é uma forma altamente simplista de contar a história do sujeito moderno” (Hall, 1992/1999: 24). Tendo essa restrição em mente, o autor acredita, no entanto, ser possível localizar três pontos estratégicos (ou estágios) durante a modernidade em torno dos quais as conceitualizações de sujeito e identidade sofreram uma mudança significativa. Teríamos, portanto, três concepções básicas de sujeito, a saber: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico (ou interativo) e o sujeito pós- moderno (ou da modernidade tardia). No entender de Hall, embora a noção de individualidade existisse, obviamente, antes da Idade Moderna, ela havia sido tradicionalmente conceitualizada em termos da ordem secular e divina das coisas. O sujeito era posicionado dentro de uma grande escala dos seres, e nunca como indivíduo soberano. Com o Humanismo Renascentista do século XVI e em especial o Iluminismo do século XVIII, no entanto, ocorreria uma ruptura no modo como se enxergava essa individualidade. O sujeito passaria a ser visto como um indivíduo uno e centrado, dotado de um núcleo interior de razão que lhe guiava a ação e a consciência. O centro do indivíduo, dentro dessa perspectiva, seria a sua identidade única e intransferível, que permanece idêntica a si mesma ao longo de uma existência. Hall nos lembra que grande parte da história da filosofia ocidental refletiu e refinou essa concepção do sujeito, e destaca a importância do filósofo francês René Descartes (1596-1650) e sua formulação analítica do sujeito. O “sujeito cartesiano” é o sujeito pensante que, dono de sua razão e consciência, situa-se justamente no centro do conhecimento. À medida que as sociedades foram se tornando mais complexas, adotando formas mais coletivas e sociais de organização, passou-se a definir o sujeito mais em função de sua localização dentro das estruturas e instituições que propriamente pela sua

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Questões sobre identidade e discurso

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    A CONSTRUO DE IDENTIDADES NO E PELO DISCURSO Carlos Renato Lopes, EFLCH/UNIFESP *

    1. Do indivduo moderno ao sujeito ps-moderno

    Traar a histria do conceito de sujeito moderno sem cair na tentao do reducionismo tarefa sem dvida complicada. Segundo o terico ingls Stuart Hall, a idia de que as identidades eram plenamente unificadas e que agora se tornaram totalmente deslocadas uma forma altamente simplista de contar a histria do sujeito moderno (Hall, 1992/1999: 24). Tendo essa restrio em mente, o autor acredita, no entanto, ser possvel localizar trs pontos estratgicos (ou estgios) durante a modernidade em torno dos quais as conceitualizaes de sujeito e identidade sofreram uma mudana significativa. Teramos, portanto, trs concepes bsicas de sujeito, a saber: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociolgico (ou interativo) e o sujeito ps-moderno (ou da modernidade tardia). No entender de Hall, embora a noo de individualidade existisse, obviamente, antes da Idade Moderna, ela havia sido tradicionalmente conceitualizada em termos da ordem secular e divina das coisas. O sujeito era posicionado dentro de uma grande escala dos seres, e nunca como indivduo soberano. Com o Humanismo Renascentista do sculo XVI e em especial o Iluminismo do sculo XVIII, no entanto, ocorreria uma ruptura no modo como se enxergava essa individualidade. O sujeito passaria a ser visto como um indivduo uno e centrado, dotado de um ncleo interior de razo que lhe guiava a ao e a conscincia. O centro do indivduo, dentro dessa perspectiva, seria a sua identidade nica e intransfervel, que permanece idntica a si mesma ao longo de uma existncia.

    Hall nos lembra que grande parte da histria da filosofia ocidental refletiu e refinou essa concepo do sujeito, e destaca a importncia do filsofo francs Ren Descartes (1596-1650) e sua formulao analtica do sujeito. O sujeito cartesiano o sujeito pensante que, dono de sua razo e conscincia, situa-se justamente no centro do conhecimento.

    medida que as sociedades foram se tornando mais complexas, adotando formas mais coletivas e sociais de organizao, passou-se a definir o sujeito mais em funo de sua localizao dentro das estruturas e instituies que propriamente pela sua

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    conscincia individual. O impacto da industrializao no sculo XVIII se fazia sentir em todos os aspectos da vida social e tornava o sujeito enredado nas maquinarias burocrticas e administrativas do estado moderno (Hall, 1992/1999: 30). No final do sculo XIX e incio do sculo XX, o surgimento de teorias cientficas como o evolucionismo de Darwin e das cincias sociais definidas como disciplinas teria um grande impacto nessa mudana de enfoque sobre o sujeito. A sociologia, em especial, lanava uma crtica viso individualista e racional do eu. O sujeito sociolgico era o sujeito formado na interao com outras pessoas, as quais mediavam os valores e significados que ele atribua sociedade em que vivia. Dessa forma, desenvolvia-se uma concepo que ligava o sujeito ao mundo externo. Tratava-se de:

    (...) uma explicao alternativa do modo como os indivduos so formados subjetivamente atravs de sua participao em relaes sociais mais amplas; e, inversamente, do modo como os processos e as estruturas so sustentados pelos papis que os indivduos nela desempenham. Essa internalizao do exterior no sujeito, e essa externalizao do interior, atravs da ao no mundo social (...), constituem a descrio primria do sujeito moderno e esto compreendidas na teoria da socializao. (Hall, 1992/1999: 31)

    Embora a sociologia interacionista tivesse mantido com essa distino entre universos interno e externo do interacionismo um dualismo caracterstico da viso cartesiana de sujeito, ela representava um avano terico importante ao propor a integrao constitutiva e intrnseca entre sujeito e sociedade. Uma srie de rupturas no discurso do conhecimento moderno a partir do sculo XX (em especial em sua segunda metade) viria, porm, lanar novos questionamentos ligados questo da identidade nas sociedades ocidentais. Basicamente, comeava-se a observar de modo crescente um sentimento de fragmentao, ou descentramento do sujeito em sua experincia social. Uma dessas rupturas mais significativas se relaciona descoberta por Freud do insconsciente, a instncia individual onde se originam os desejos e simbologias que estruturam a subjetividade. Segundo Hall, o inconsciente freudiano, que funciona de acordo com uma lgica muito diferente daquela da Razo, arrasa com o conceito do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada o penso, logo existo, do sujeito de Descartes (1992/1999: 36).

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    Na esteira das teorias psicanalticas de Freud, Lacan mostra como o processo de descoberta do eu como entidade una e inteira pela criana se d de modo lento e gradativo, e passa necessariamente pelo reconhecimento do olhar do Outro. Mas diferentemente do que propunha a sociologia interativista em sua formulao clssica, a construo da subjetividade se d, para Lacan, no por meio de um aprendizado consciente, mas como resultado de processos psquicos inconscientes que acompanham o indivduo por toda a vida.

    A identidade surge no tanto da plenitude da identidade que j est dentro de ns como indivduos, mas de uma falta de inteireza que preenchida a partir de nosso exterior, pelas formas atravs das quais ns imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, ns continuamos buscando a identidade e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude. (Hall, 1992/1999: 39)

    De acordo com Lacan, atravs dos sistemas de representao simblica que a criana comea a elaborar as divises internas inerentes formao inconsciente do sujeito. E dentre esses processos, o que nos interessa mais de perto aqui a lngua. Atravs da lngua, o sujeito, inescapavelmente cindido, encontra um mecanismo de unificao fantasiosa de sua identidade; isto , a lngua permite ao indivduo vivenciar as mltiplas identificaes que constituem sua subjetividade sob a forma de uma unidade ilusria. O sujeito descentrado , dentro desse raciocnio, o sujeito que no se pode definir de maneira simplista ou unvoca em funo de afiliaes a classe social, gnero, etnia, nacionalidade, profisso, ou outra categoria determinante. O sujeito descentrado, enfim, o sujeito marcado pela incompletude, contradio e fragmentao. Esses conceitos, de resto, se filiam ao discurso ps-moderno sobre cultura e sociedade que vimos abordando at aqui. Porm, preciso se guardar contra a concluso irrefletida de que no existe mais identidade na sociedade ps-moderna. Como bem lembra Kellner, ao invs de desaparecer:

    [a identidade] simplesmente sujeita a novas determinaes e novas foras, ao mesmo tempo em que oferece novas possibilidades, estilos, modelos e

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    formas. No entanto, a variedade avassaladora de possibilidades para a identidade em uma cultura afluente de imagens cria sem dvida identidades altamente instveis, enquanto possibilita constantemente novas aberturas para a reestruturao de nossa identidade. (Kellner, 1995: 257)

    Investindo na relao fundamental entre lngua e sujeito, vejamos mais de perto, na prxima seo, como se trabalha no e pelo discurso o processo de construo e (re)estruturao de identidades.

    2. Sujeito discursivo, sujeito dialgico

    A Anlise do Discurso, tal como originada nos anos 60 na Frana com Michel Pcheux, traz em seu bojo um projeto terico fundamental: dar conta de como o sujeito e o sentido se interdependem no trabalho simblico com a linguagem. Para a AD, o sujeito descentrado na medida em que afetado pela materialidade da lngua e da histria e no tem controle sobre como isso ocorre. O que equivale a dizer que o sujeito discursivo e os sentidos com que (se) significa so constitudos por processos ideolgicos e inconscientes. Palavras, expresses e enunciados no tm seu sentido fixado a priori no sistema abstrato da lngua. Como ressalta Orlandi, as palavras simples do nosso cotidiano j chegam at ns carregadas de sentidos que no sabemos como se constituram e que no entanto significam em ns e para ns (1999:20). Dentro dessa perspectiva, cabe dizer que os sujeitos so levados a abraar os sentidos em seus possveis efeitos.

    Pcheux retoma e expande o conceito de Althusser de interpelao do sujeito para explicar melhor esse processo. Em sua verso mais esquemtica, a interpelao

    entendida como o processo atravs do qual os sujeitos so instados a assumir determinada posio subjetiva correspondente a determinada construo ideolgica. Fiske exemplifica por meio de uma imagem simplificada, porm bastante didtica:

    Se voc ouve algum na rua gritar, Hey, voc!, voc pode ou se voltar, na crena de que est sendo chamado, ou ignorar o chamado, porque voc sabe que ningum, mas ningum fala com voc desse jeito: voc ento rejeita o relacionamento implcito nesse chamado. (Fiske, 1990: 175)

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    Ou ainda, nos dizeres de Brando, a interpelao ideolgica que permite a identificao do sujeito por meio de um efeito retroativo. ela que justifica a resposta absurda e natural sou eu pergunta quem est a?, mostrando que eu sou o nico que pode dizer eu falando de mim mesmo (1995: 64). O chamado, para Althusser, vem fundamentalmente das instituies que ele denomina Aparelhos Ideolgicos do Estado (AIE): a escola, a famlia, a igreja, e em particular os meios de comunicao em massa. Esses aparelhos so organizados hierarquicamente em formaes ideolgicas que reproduzem as desigualdades scio-econmicas da lgica capitalista (Montgomery & Allan, 1992). Dessa maneira, a ideologia opera ao longo dos mecanismos institucionais atribuindo a cada classe ou grupo sua ideologia respectiva e naturalizando os sentidos, processo esse mascarado pela aparente transparncia da lngua. Pcheux prope, porm, uma caracterizao do fenmeno da interpelao que tende a aliviar um certo determinismo atribudo a Althusser. Para Pcheux (1975/1995), os AIE influem de maneira desigual e contraditria nos processos de reproduo e transformao de divises sociais e hierrquicas, dependendo de suas especificidades locais. Os AIE no podem agir de maneira uniforme sobre os sujeitos, pois ao mesmo tempo em que eles fundamentam as condies ideolgicas de assujeitamento, eles so locais onde possvel haver resistncia. A viso althusseriana de que o indivduo se torna sujeito pela ao da ideologia posicionando-o, por assim dizer, em seu devido lugar aponta para um certo automatismo que oblitera a discusso sobre os mecanismos discursivos e inconscientes da constituio da identidade, bem como a possibilidade de resistncia desse sujeito. Nessa linha de argumentao, Pcheux retoma o conceito de formaes discursivas proposto por Michel Foucault para (re)lanar uma perspectiva mais propriamente discursiva (e formal) sobre a constituio dos sujeitos. As formaes discursivas se definem como conjuntos de regras annimas que numa formao ideolgica dada ou seja, a partir de uma posio dada em uma conjuntura scio-histrica dada determina[m] o que pode e deve ser dito (1969 apud Orlandi, 1999: 43). Isso significa que as palavras, expresses e proposies recebem seu sentido da formao discursiva na qual so produzidas, (...) nas relaes que [elas] mantm com outras palavras, expresses ou proposies da mesma formao discursiva (Pcheux, 1975/1995: 160-1). As formaes discursivas, por assim dizer, consubstancializam em discurso as

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    formaes ideolgicas que lhe so correspondentes, fazendo com que todos os sentidos sejam sempre determinados ideologicamente:

    No h sentido que no o seja. Tudo que dizemos tem, pois, um trao ideolgico em relao a outros traos ideolgicos. E isto no est na essncia das palavras mas na discursividade, isto , na maneira como, no discurso, a ideologia produz seus efeitos, materializando-se nele. (Orlandi, 1999: 43)

    por isso que Pcheux fala em efeitos de sentido agindo sobre sujeitos de discurso. Os sujeitos so interpelados, sim, mas atravs da identificao com determinada formao discursiva (da o termo formas-sujeito). E mais fundamentalmente: eles so interpelados como sujeitos de seu prprio discurso. De acordo com o que o autor (1975 apud Orlandi, 1999: 34-6) chama de esquecimento nmero 1 (ou esquecimento ideolgico), o sujeito se cr origem do seu dizer, a fonte primordial do sentido de suas palavras: suas palavras so originais porque so originadas exclusivamente por ele. De forma semelhante, o sujeito, atravs do esquecimento nmero 2 (ou iluso referencial) acredita que existe uma relao de correspondncia nica e natural entre a linguagem e o mundo: para cada coisa existe tal palavra e no outra. Os dois esquecimentos de Pcheux convergem para o apagamento da materialidade histrica da lngua. Quer dizer, ns nos esquecemos que os sentidos apenas se realizam em ns, uma vez que so construdos na articulao entre lngua e histria. Mas os esquecimentos no so voluntrios; so, na verdade, estruturantes da prpria constituio do sujeito e dos sentidos. Em ltima instncia, eles esto na origem mesma da inscrio do sujeito no universo simblico da linguagem. A noo de interpelao ideolgica ganha aqui, portanto, um refinamento, na medida em que ideologia, sujeito e linguagem so conceitualizados em sua inter-relao constitutiva:

    O efeito ideolgico elementar a constituio do sujeito. Pela interpelao ideolgica do indivduo em sujeito inaugura-se a discursividade. Por seu lado, a interpelao do indivduo em sujeito pela ideologia traz necessariamente o apagamento da inscrio do sujeito na histria para que ela signifique produzindo o efeito de evidncia do sentido (sentido-[sempre-j] l) e a impresso do sujeito ser a origem do que diz. Efeitos que

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    trabalham, ambos, a iluso da transparncia da linguagem. No entanto, nem a linguagem, nem os sentidos nem os sujeitos so transparentes: eles tm sua materialidade e se constituem em processos em que a lngua, a histria e a ideologia concorrem conjuntamente. (Orlandi, 1999: 48)

    Diretamente associados questo da constituio discursiva dos sujeitos, vemos se interpor, ainda, dois conceitos fundamentais: o dialogismo a presena da voz do outro no discurso do eu de que nos lembra Bakhtin (1929/1997; 1952-3/1992) e a interdiscursividade fenmeno que evidencia a interpenetrao de discursos de vrias ordens (Pcheux, 1975/1995; Maingueneau, 1987/1997; e seus comentaristas Montgomery & Allan, 1992 e Brando, 1995) no discurso do sujeito. Procedemos, assim, a uma breve discusso desses conceitos. A questo da constituio de sentidos no e pelo discurso formulada de modo seminal, ainda na dcada de 20, pelo terico russo Mikhail Bakhtin. Sua teoria dos gneros do discurso se revela como um substrato bastante relevante s teorias do discurso sobre o sujeito esboadas acima. Notadamente em A Esttica da Criao Verbal (1952-3/1992), Bakhtin aponta para a natureza dialgica dos gneros discursivos, segundo a qual os enunciados no se constituem seno em uma relao de oposio e complementaridade entre si, inserindo-se sempre em um fluxo de discurso que no por eles iniciado. A obra do terico russo fundamenta ainda a anlise da interdiscursividade, atravs da qual o discurso incorpora em si uma srie de vozes, articuladas de forma apenas parcialmente consciente pelos seus sujeitos. Na sesso daquele livro intitulada Os Gneros do Discurso, Bakhtin discute os enunciados e suas diferentes modalidades (os gneros do discurso) que caracterizam toda e qualquer troca lingstica. Ele toma o enunciado concreto, estritamente delimitado pela alternncia dos falantes, e no a orao, como a verdadeira unidade da comunicao verbal. A orao enquanto unidade da lngua desprovida por si s de expressividade ou tom valorativo, quer dizer, no pertence a ningum. O enunciado, ao contrrio da orao, construdo socialmente, isto , nasce no ponto de contato entre a palavra e a realidade efetiva, as circunstncias de uma situao real, e como tal suscita sempre uma atitude responsiva do outro locutor. Tanto no dilogo simples como nas formas mais complexas de manifestao artstica e intelectual, o princpio da atitude responsiva ativa da enunciao se faz presente. Alm disso, toda e qualquer troca

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    lingstica se insere em um continuum comunicativo do qual se tornar um elo. Nos dizeres do autor, qualquer obra ou dilogo:

    (...) visa a resposta do outro (dos outros), uma compreenso responsiva ativa, e para tanto adota todas as espcies de formas: busca exercer uma influncia didtica sobre o leitor, convenc-lo, suscitar sua apreciao crtica, influir sobre mulos e continuadores, etc. A obra predetermina as posies responsivas do outro nas complexas condies de comunicao verbal de uma dada esfera cultural. A obra um elo na cadeia da comunicao verbal: do mesmo modo que a rplica do dilogo, ela se relaciona com as outras obras-enunciados: com aquelas a que ela responde e com aquelas que lhe respondem, e, ao mesmo tempo, nisso semelhante rplica do dilogo, a obra est separada das outras pela fronteira absoluta da alternncia dos sujeitos falantes. (Bakhtin, 1952-3 /1992: 298)

    Talvez a contribuio mais relevante aqui da teoria dos gneros do discurso esteja na proposio de que a experincia verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interao contnua e permanente com os enunciados individuais do outro (op. cit., op. cit.: 313- 4). Isso significa dizer que em todo enunciado possvel ver ressoar, de modo mais ou menos explcito, as palavras do outro, com as quais ele vem estabelecer uma relao dialgica. Esse processo de alteridade se d no apenas entre um enunciado e os que o precedem, mas tambm entre um enunciado e os que lhe sucedem na cadeia da comunicao verbal. Portanto, todo enunciado uma resposta a enunciados anteriores, e ao mesmo tempo suscita outras respostas futuras, e assim ciclicamente em um fluxo histrico de comunicao verbal. De fato, o domnio que os falantes aprendem ao longo da vida a ter dos diferentes gneros do discurso lhes permite moldar suas falas s formas desses gneros, isto , adaptar-se sua extenso, entonao ou gravidade. Mas, ao mesmo tempo, isso s pode ocorrer se se levar em conta o outro e o porvir de sua resposta:

    Enquanto elaboro meu enunciado, tendo a determinar [uma] resposta de modo ativo; por outro lado, tendo a presumi-la, e essa resposta presumida, por sua vez, influi no meu enunciado (precavenho-me das objees que estou prevendo, assinalo restries, etc.). Enquanto falo, sempre levo em conta o

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    fundo aperceptivo sobre o qual minha fala ser recebida pelo destinatrio: o grau de informao que ele tem da situao, seus conhecimentos especializados na rea de determinada comunicao cultural, suas opinies e suas convices, seus preconceitos (do meu ponto de vista), suas simpatias e antipatias, etc.; pois isso que condicionar sua compreenso responsiva de meu enunciado. Esses fatores determinaro a escolha do gnero do enunciado, a escolha dos procedimentos composicionais e, por fim, a escolha dos recursos lingsticos, ou seja, o estilo do meu enunciado. (Bakhtin, 1952-3 /1992: 321)

    O princpio dialgico discursivo de Bakhtin , em resumo, duplamente articulado: por um lado, todo discurso remete sempre a outros discursos que o constituem; por outro lado, ele se volta para o outro da enunciao para fazer sentido. Nas palavras de Authier-Revuz:

    [Trata-se de] um duplo dialogismo no por adio, mas em interdependncia que colocado na fala: a orientao dialgica de todo discurso entre os outros discursos ela prpria dialogicamente orientada, determinada por este outro discurso especfico do receptor, tal como ele imaginado pelo locutor, como condio de compreenso do primeiro. (Authier-Revuz, 1982 apud Brando, 1995: 53)

    Pressupondo a teoria ideolgica de Althusser, e de certa forma ecoando as idias de Bakhtin, Pcheux (1975/1995) prope uma interessante articulao do fenmeno da interdiscursividade e sua relao com a constituio dos sujeitos. Para o autor, a iluso do sujeito de sua autonomia e centralidade no discurso iluso possvel em funo dos esquecimentos fundadores do discurso discutidos anteriormente encontra-se ancorada no interior mesmo do jogo do seu prprio discurso. Assim, Pcheux prope desenredar o fio interdiscursivo do sujeito (Montgomery & Allan, 1992) ao reconhecer nele dois elementos constitutivos fundamentais: o pr-construdo e o articulado. De acordo com essa formulao, o pr-construdo equivale ao sempre-j l da interpelao ideolgica. Trata-se do fator de determinao simultnea dos sentidos e das posies subjetivas j disponveis sob a forma de uma universalidade, isto , aquilo

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    que todo mundo sabe diante das evidncias do contexto situacional (Pcheux, 1975/1995: 171). J o elemento articulado promove a sustentao, aparentemente exclusiva e insubstituvel, do sujeito em relao queles sentidos. Trata-se de operaes do tipo como ia dizendo antes ou como demonstrarei adiante, que transcorrem no nvel do intradiscurso, ou seja, do discurso que diz respeito a si mesmo. O que temos, portanto, so dois planos de discurso interdependentes: o discurso horizontal do sujeito ou intradiscurso e o discurso emprestado das formaes discursivas pr-existentes ou interdiscurso. De fato, as relaes de sentido que se do no plano do intradiscurso so em grande parte afetadas por discursos advindos de outros lugares, outras formaes discursivas agindo no intradiscurso como um campo de foras. Como colocam Montgomery e Allan:

    Em certos pontos cruciais no plano do intradiscurso, elementos do interdiscurso podem irromper como j l: esses elementos pr-construdos so lembretes laterais de material estabelecido em uma outra formao discursiva. Dessa forma, uma linha ou plano de discurso pode se intersectar com outra, fornecendo suporte tcito de outro lugar do interdiscurso para uma enunciao intradiscursiva. (Montgomery & Allan, 1992: xx)

    A interseco desses dois planos denominada por Pcheux de discurso transverso o que garante ao sujeito a experincia de coerncia e unidade em seu discurso. Mas o conceito de interdiscursividade e o de formao discursiva a ele associado seria ainda reavaliado por autores como Maingueneau (1987/1997), dentro de uma perspectiva de reviso crtica de alguns princpios fundamentais da Anlise do Discurso que poderiam ser interpretados de modo reducionista. Para Maingueneau, o interdiscurso poderia ser erroneamente concebido como uma mera coexistncia ou justaposio de formaes discursivas individuadas e estveis em um todo contraditrio. Essa viso representaria o interdiscurso como a soma regular de seus componentes. No entanto,

    [a] essa concepo que afirma implicitamente a existncia prvia de contrrios individuados na relao contraditria, deve-se preferir aquela que coloca o primado da contradio, que une e divide ao mesmo tempo os

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    discursos, que faz da prpria individuao um processo contraditrio. (Maingueneau, 1987/1997: 113)

    Uma formao discursiva, segundo o autor, no deve ser entendida como um bloco compacto que se oporia a outros por exemplo, o discurso do talk show popular em oposio ao do programa jornalstico srio , mas como uma realidade constitutivamente heterognea. De fato, uma formao discursiva revela-se como um domnio inconsistente, aberto e instvel, e no a projeo, a expresso estabilizada da viso do mundo de um grupo social (1987/1997: 112-3). Nesse sentido, Maingueneau prope definir uma formao discursiva a partir do seu trabalho no interdiscurso, e no o contrrio. justamente por serem fluidas e instveis que as formaes discursivas instauram definitivamente no discurso o interdiscurso. A obra de Maingueneau e a de contemporneos seus como Courtine, Marandin e Authier-Revuz a chamada segunda gerao da Anlise do Discurso na tradio de Pcheux (Fairclough, 1992: 34) apresentam em comum a noo de que o discurso deve ser entendido como espao intrinsicamente heterogneo de construo de sentidos e identidades. Isso os faz aproximar-se do pensamento do crculo de Bakhtin, que s viria a ser redescoberto nessa poca, e, em ltima anlise, avanar tendncias importantes nessa rea de estudos reclamada pela Anlise do Discurso.

    * Texto extrado da dissertao de Mestrado Identidades, Poderes e Saberes em um Programa Popular da Televiso Brasileira: uma abordagem discursiva, defendida na FFLCH, USP em setembro de 2000. Para

    eventuais citaes, referir-se verso disponvel em www.teses.usp.br.