usp dissertação - a crítica de platão ao discurso poético no livro x da república

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

A CRTICA DE PLATO AO DISCURSO POTICO NO LIVRO X DA REPBLICA

Adriana Natrielli

SO PAULO 2004

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

A CRTICA DE PLATO AO DISCURSO POTICO NO LIVRO X DA REPBLICA

Adriana Natrielli

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Filosofia, do Departamento de

Filosofia da Faculdade

de Filosofia, Letras e

Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho

SO PAULO 2004

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Dedico esse trabalho a todos que colaboraram para o meu desenvolvimento como pessoa: a meus parentes e amigos; a minha me, que sempre me mostrou a importncia das grandes obras da humanidade; a meu pai, que amorosamente me ensinou os primeiros passos e que nas suas exigncias me impulsionou a buscar ser quem sou; a trs mulheres especiais: Ancila (minha sempre alegre av), Alessandra e Andrea (minhas queridas irms); e, sobretudo, ao meu marido Roberto, com todo o meu amor, reconhecimento e gratido.

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Agradecimentos Aos professores do Departamento de Filosofia - USP: Caetano Ernesto Plastino, Franklin Leopoldo e Silva, Joo Verglio Gallerani Cuter, Lon Kossovitch, Lygia Araujo Watanabe, Maria das Graas S. do Nascimento, Maria Lcia Cacciola, Mrio Miranda Filho Olgria Chain Feres de Matos, Pablo Ruben Mariconda, Renato Janine Ribeiro, Srgio Cardoso. Aos Professores de Lngua e Literatura grega do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da USP: Medina Rodrigues, Jos Antnio Alves Torrano, Paula C. Corra e Henrique Murachco Aos Professores do Museu de Arqueologia e Etnologia USP: Haiganuch Sarian, Eduardo Neves e Maria Cristina Bruno Aos professores que, muito contribuindo com meu trabalho de Iniciao Cientfica, tornaram possvel tambm a realizao do Mestrado: Jos Carlos Estevo, Luiz Fernando Franklin de Matos, Moacyr Ayres Novaes Filho e Victor Knoll. equipe da secretaria do Departamento de Filosofia - USP, pela prontido e eficincia com a qual tanto me auxiliaram. E, principalmente, a meu grande professor, e depois orientador, Roberto Bolzani Filho, pelas valiosas sugestes dadas a esta presente dissertao e pelo modo to claro e objetivo com o qual me orientou, sempre me incentivando e facilitando assim minha pesquisa acadmica em Filosofia Antiga.

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SUMRIOndice . . . . . . . . . . .1

Resumo

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Abstract

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Introduo Captulo I Captulo II

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Captulo III . Captulo IV . Captulo V Concluso . .

Referncias Bibliogrficas .

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NDICE

Introduo

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Captulo I Primeira discusso sobre a poesia na Repblica 1. Livro II - poesia como paideia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 20 23 31 34 36 41

2. Livro III - anlise do estilo potico . 3. O conceito de mimese no livro III . Captulo II: Proposta de diviso do livro X 1. Pintura como paradigma de mimese 2. A produo e os efeitos da poesia

3. Quatro aspectos da crtica poesia .

Captulo III: A produo potica 1. Aspectos ontolgicos da crtica - definio de mimese . . . . . . 48 55 62

2. Aspectos epistemolgicos da crtica poetas e conhecimento 3. Alvos da crtica envolvidos na discusso da produo potica

Captulo IV: Os efeitos da poesia 1. Aspectos psicolgicos da crtica - ao da poesia nas partes da alma . 67 69 74

2. Aspectos morais da crtica - ao da poesia no comportamento do pblico 3. Alvos da crtica envolvidos na discusso sobre os efeitos da poesia .

Captulo V: A finalizao do tema da poesia no livro X 1. Articulao entre alma e cidade . . .

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79 81 85 88 93 100

2. A recusa da poesia e dos poetas na cidade perfeita . 3. Objetivos alcanados e intenes da crtica Concluses . . . . . . . . . . . .

Referncias Bibliogrficas .

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RESUMOO objetivo deste trabalho a investigao da crtica feita por Plato poesia mimtica e a todo gnero imitativo, principalmente no livro X da Repblica, a qual visa compreender quais seriam as razes da hostilidade de Plato no que diz respeito experincia potica e quais as respectivas intenes dessa crtica. No livro X da Repblica, Plato retoma dos livros II e III a questo dos regulamentos que deveriam ser impostos criao potica, de forma mais acentuada e objetiva, passando da dimenso coletiva da cidade, para a dimenso individual da alma. nessa articulao plis/psych que o retorno da discusso sobre a poesia se faz necessrio, para que seja estabelecida a relao entre a poesia e as partes da alma e, por fim, reafirmada de forma categrica a condenao. Vemos, logo no incio do livro X, se esboar algumas provveis intenes da crtica platnica poesia. Uma dessas intenes poderia ser ento a de oferecer ao pblico um antdoto para os danos provocados pela poesia, ou seja, esclarecer a opinio comum sobre a verdadeira natureza da poesia: a mimese. Por outro lado, tambm observamos no texto uma clara inteno de desqualificar os poetas, pelos quais todos os gregos certamente nutriam tanto respeito e admirao desde a infncia, e, talvez, at mesmo a inteno de gerar uma nova mentalidade. Desse modo, surge como tema tambm central na crtica poesia, a desqualificao dos poetas pelo fato de no possurem qualquer cincia (episteme), ou mesmo uma opinio correta (doxa), a respeito dos assuntos dos quais falavam. Cabe ento a este trabalho tentar compreender como o tema central da crtica se desloca da desqualificao do poeta imitador, para de que forma a poesia acaba por prejudicar a inteligncia dos espectadores ao estimular a pior parte de suas almas. Quanto a metodologia utilizada, a presente dissertao tem como objetivo propor uma anlise da primeira metade do livro X da Repblica, buscando compreender sistematicamente trs elementos fundamentais da crtica de Plato experincia potica: os critrios utilizados, que nos remetem aos diferentes aspectos dessa crtica e esclarecem suas razes; e os alvos da crtica, que, como veremos, variam entre as obras e os autores. Quanto ao alvo da crtica, notamos que Scrates por um lado se dirige poesia e pintura como formas de mimese (imitao) e, por outro, ao poeta (principalmente Homero) e aos pintores enquanto imitadores. Quanto aos critrios, adotaremos como ponto de partida a existncia de

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basicamente quatro aspectos da crtica: ontolgico, epistemolgico, psicolgico e moral, distribudos pelo dilogo. Mas, h ainda uma terceira possibilidade que o trabalho dever analisar: em que medida a crtica, seja poesia ou ao poeta, se destina ao pblico e ao senso comum. Por fim, consideramos fundamental compreender, nas relaes estabelecidas entre o pblico e a experincia potica, quais intenes esto por trs da argumentao de Plato, o qual, cumprindo seu papel propriamente filosfico, certamente se posicionou de modo contrrio s opinies pouco questionadas de sua poca quanto ao papel da poesia e dos poetas na sociedade grega.

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AbstractThe objective of this work is the investigation of Platos critic to the mimetic poetry and all imitative genre, mainly X book of Republic, which aims to understand what would be the reasons for Platos hostility to the poetic experience and what intentions those critics have. In Book X of Republic, Plato takes from Books II and III the subject of the rules that should be imposed to poetic creation, in such a more emphasized and objective way, going beyond the public dimension of the city, for the individual dimension of the soul.

It is in this link polis/psyche that the return to the debate on poetry makes itself necessary, in order to establish the relation between poetry and the parts of the soul and, finally, to reaffirm in an explicit form the sentence.

In the very beggining of book X, some possible intentions of the platonic critic to poetry are sketched. One of these intentions could be to offer the public an antidote to the damages caused by poetry, that means, to clarify the common opinion on the true poetry nature: the mimese.

On the other hand, we can also notice in the text a clear intention to disgrace poets, to whom all greeks surely had consideration and admiration since childhood, and maybe, the intention to create a new mentality

In such a way, emerges as a central theme in poetrys critic the disqualification of poets by the fact that they do not have any science (epistheme), or even an accurate opinion (doxa) about the themes that they talk about.

So it is up to the present work to try to understand how the central theme of the critic comes from the disqualification of the imitating poet to by which way poetry ends up damaging the spectators by stimulating the worst part of their souls.

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Regarding to the methodology used, the present dissertation has as an objective to propose an analysis of the first half of book X of Republic, in order to understand systematically three fundamental elements of Platos critic to the poetic experience: the criteria used, that remit us to the different aspects of this critic and clear its reasons up; and the targets of the critic, that, as we are going to see, vary between writings and the authors.

Regarding to the targets of the critic, we notice that Socrates for one side addresses himself to the poetry and to painting as forms of mimese (imitation) and for another side to the poets (mainly Homero) and to the painters as imitators .

Regarding the criteria, we will adopt as starting point the existence of basically four aspects of the critic: Ontologic, epistemologic, psychologic and moral, distributed by the dialog. But there is a third possibility that this work will analyse: in what proportion the critic, to the poetry or to the poet, applies to the public and to the common sense.

Finally, we consider that is fundamental to understand in the relationships established among public and the poetic experience, what intentions are behind Platos argument, which, accomplishing its proper philosophical role, certainly places itself in an opposite way to the not much questioned in its time regarding to poetrys and poets role in greek society.

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Introduo O objetivo deste trabalho a investigao da crtica feita por Plato poesia mimtica e a todo gnero imitativo, principalmente no livro X da Repblica, visando compreender quais seriam as razes da hostilidade de Plato no que diz respeito experincia potica e quais as respectivas intenes dessa crtica. No livro X da Repblica, Plato retoma dos livros II e III a questo dos regulamentos que deveriam ser impostos criao potica, de forma mais acentuada e objetiva, passando da dimenso coletiva da cidade, para a dimenso individual da alma. nessa articulao plis/psych que o retorno da discusso sobre a poesia se faz necessrio, para que seja estabelecida a relao entre a poesia e as partes da alma e, por fim, reafirmada de forma categrica a condenao. Por isso, Scrates comea a explicar o retorno do tema no livro da seguinte forma: A necessidade de a recusar em absoluto agora, segundo me parece, ainda mais claramente evidente, desde que definimos em separado cada uma das partes da alma (595a) 1 Vemos tambm, logo no incio desse livro, se esboar algumas provveis intenes da crtica platnica poesia: Aqui entre ns (porquanto no ireis cont-lo aos poetas trgicos e a todos os outros que praticam a mimese), todas as obras dessa espcie se me afiguram ser a destruio da inteligncia dos ouvintes, de quantos no tiverem como antdoto o conhecimento de sua verdadeira natureza. (595 b). Uma dessas intenes poderia ser ento a de oferecer o tal antdoto ao pblico, ou seja, esclarecer o senso comum a respeito da verdadeira natureza da poesia, a mimese, mostrando como essas obras podem prejudicar a inteligncia de um pblico desavisado. Por outro lado, tambm observamos no texto uma clara inteno de desqualificar os poetas, pelos quais todos nutriam tanto respeito e admirao desde a infncia e gerar uma nova mentalidade: Tenho de o dizer confessei eu -. E contudo, uma espcie de dedicao e de respeito que desde a infncia tenho por Homero impede-me de falar. Na verdade, parece ter sido ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos poetas trgicos. Mas no se1

Adotaremos em todas as citaes da Repblica feitas nesse trabalho a traduo de M. Helena

da Rocha Pereira (Plato - A Repblica).

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deve honrar um homem acima da verdade, e, antes pelo contrrio, deve-se falar, conforme eu declarei (595 b-c) Sendo assim, surge como tema, tambm central na crtica poesia, a desqualificao dos poetas pelo fato de no possurem qualquer cincia, ou mesmo uma opinio correta, a respeito dos assuntos dos quais falam: O imitador no saber nem ter uma opinio certa acerca do que imita (...) e os que se abalanam poesia trgica, em versos imbicos ou picos, so todos eles imitadores, quanto se pode ser (602 a). Cabe ento a este trabalho tentar compreender como o tema central da crtica se desloca da desqualificao do poeta imitador, para de que forma a poesia acaba por prejudicar a inteligncia dos espectadores ao estimular a pior parte de suas almas. Quanto a metodologia utilizada, a presente dissertao tem como objetivo propor um modo de anlise e interpretao da primeira metade do livro X da Repblica, buscando compreender sistematicamente trs elementos fundamentais da crtica de Plato experincia potica: os critrios utilizados, que nos remetem aos diferentes aspectos dessa crtica e esclarecem suas razes; os alvos da crtica, que, como veremos, variam entre as obras e os autores; e os destinatrios da crtica, ou seja, as consideraes sobre a relao entre o pblico e a experincia potica, atravs da qual buscaremos compreender quais intenes esto por trs da argumentao de Plato que, cumprindo seu papel propriamente filosfico, deseja se opor a idias e opinies a respeito da poesia e dos poetas que em sua poca eram pouco questionadas. Quanto ao alvo da crtica, notamos que Scrates por um lado se dirige poesia e pintura como formas de mimese (imitao) e, por outro, ao poeta (principalmente Homero) e aos pintores enquanto imitadores. Mas, h ainda uma terceira possibilidade que o trabalho dever analisar: em que medida a crtica, seja poesia ou ao poeta, se destina ao pblico e ao senso comum. Quanto aos critrios, adotaremos como ponto de partida a existncia de basicamente quatro aspectos da crtica: ontolgico, epistemolgico, psicolgico e moral, distribudos pelo dilogo.

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O papel do livro X no contexto da Repblica J. Annas 2 , por exemplo, considera que o tema principal da Repblica j se encontrava concludo no livro IX e se surpreende com o fato de que um outro livro tenha sido acrescentado. Sua postura segue e refora a considerao do livro X como uma coda ou apndice, composto num perodo diferente e acrescentado a uma obra que por si j estaria completa. Segundo a autora, encontramos no livro X inesperados ajustes sobre a poesia alm de vrias diferenas problemticas em relao a outros temas tratados nos livros centrais da Repblica. Em fim, segundo J. Annas, o livro X da Repblica, alm de gratuito e desajeitado, tambm cheio de anomalias, sendo que, na opinio da autora, o nvel de argumentao filosfica e o talento literrio que ele manifesta se situa bem longe do resto da obra. Seu comentrio explica em que consistem essas ano malias e ajustes, mostrando que o livro X apresenta vrias incoerncias em relao ao que foi dito anteriormente tanto sobre a poesia nos livros II e III, quanto sobre a teoria do conhecimento, das formas e das partes da alma nos livros centrais. Sendo assim, J. Annas julga que, para descobrirmos o que Plato verdadeiramente pensa sobre a poesia, seria melhor examinarmos apenas os livros II e III e o ltimo argumento do livro X, deixando completamente de lado a discusso da poesia com base na pintura, pois a acusao da poesia como algo sem valor no faz nenhum sentido dentro do contexto da obra. M. Helena 3 , por sua vez, concorda com J. Annas, ainda que numa posio menos crtica, no sentido de considerar o livro X como um suplemento ou apndice, levando em conta que no livro IX a discusso principal da repblica j havia terminado com o contraste entre a vida do homem justo e a do injusto e a concluso sobre a superioridade daquela (p.XXXIV). Segundo a autora, no livro X o dilogo reaberto para retomar o tema da condenao da poesia. Assim como J. Annas, M. Helena considera vlida a hiptese de que o livro X foi composto posteriormente e adicionado a uma obra j completa, acrescentando a suposio de que Plato o fez para defender da celeuma levantada pelas afirmaes se sobre o tema(p.XXXV).

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Introduction la Rpublique de Platon Plato - A Repblica

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Contudo, devemos ter em mente que a forma com a qual cada comentador julga a relao do livro X com o restante da obra algo que se encontra intimamente ligado sua prpria considerao do tema principal da Repblica como um todo. Sendo assim, notamos que a relevncia do livro X na obra ressaltada medida que o tema da poesia a tratado interpretado como sendo principal ou secundrio em relao ao tema central da obra. Levando em conta essas consideraes entenderemos melhor por que M. Helena acaba discordando de que todo dilogo puramente um ataque ao sistema educativo grego ento em vigor (p. XXXVIII), como afirma Havelock. Segundo a autora, esse fato explica a existncia do livro X, mas no sua rele vncia como tema principal da Repblica. A autora sem dvida v como uma das caractersticas principais da obra a variedade de temas abordados, mas de certa forma acaba por priorizar a questo da justia. Para ela, o sistema educativo sem dvida de grande relevo, mas isso no suficiente para o considerar o tema principal da obra como faz Havelock. Segundo a autora, a maior prova disso que o fecho da obra no o tema da poesia, mas o mito de Er, o qual enfatiza novamente o tema da justia. dentro desse contexto do questionamento sobre o tema principal da Repblica que Havelock inicia seu livro Prefcio Plato, julgando que o prprio ttulo da obra no reflete com fidelidade seu contedo e afirmando que apenas um tero da obra diz propriamente questo do Estado (p.19) . Sendo assim, para Havelock, a existncia do livro X pode ser considerada como a maior prova de que de que a Repblica no um ensaio sobre a filosofia poltica utpica, mas um ataque frontal essncia da literatura grega (p.20). Ao contrrio de J. Annas, que afirma o fracasso de Plato como escritor por acrescentar a sua obra um suplemento to inferior ao resto da obra, Havelock julga que, dado o talento literrio de Plato, no seria possvel que este permitisse uma mera divagao no final que enfim tirasse a fora de tudo o que ele disse exatamente como pensava. Assim, as afirmaes de Havelock a respeito do tema principal da Repblica nos esclarecem ento porque para o autor o livro X uma parte essencial do dilogo e mesmo o seu ponto culminante. Segundo ele, o tema principal da obra consiste no desafio colocado a Scrates para que isole o princpio geral da moralidade no plano abstrato e sua possvel existncia na alma do homem como um imperativo moral (p.27), ou seja, a ser definido e defendido em si mesmo, sendo identificado como a condio humana mais feliz.

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Sendo assim, para Havelock a questo da justia no plano moral tambm de certa forma central na obra, como j havia observado M. Helena, embora se mostre totalmente implicada na questo educacional. Isso porque, segundo Havelock, os poetas e a poesia eram tidos como principais autoridades citadas como responsveis por um certo tipo de as moralidade questionvel como aponta o desafio de Scrates (p. 28) e, nesse sentido, o autor considera a crtica poesia e aos poetas na Repblica um problema bem mais social e cultural que propriamente filosfico. Dessa forma, a posio de Havelock sobre a lgica de organizao global da Repblica explica as repetidas crticas poesia e at mesmo a existncia de mais um livro. De fato Havelock, ao considerar o desafio proposto formalmente respondido no livro IX, concorda com um certo ar de finalizao desse livro, mas observa que o tema continua a ser a causa motora da segunda metade do livro X. O retorno questo da poesia no livro X desse modo essencial obra principalmente por se direcionar a um problema que o autor julga ainda em aberto, ou seja, explicar porque a poesia excluda do novo currculo acadmico proposto nos livros VI e VII, os quais tratam da preparao do filsofo como governante da cidade ideal. Na viso de Havelock, o fato do livro X se direcionar a essa educao superior e no a educao bsica proposta nos livros II e III, torna apenas aparentes as incoerncias apontadas por J. Annas e outros comentadores entre esses livros e o livro X, no tratamento da questo da poesia. Chegamos ento ao resultado final do comentrio do autor no que diz respeito verificao da importncia do livro X em relao Repblica como um todo. Atravs de sua soluo o autor considera o livro X essencial finalizao da obra, refutando a interpretao tanto de J. Annas quanto a de M. Helena ao passo que: (a) Nega que o ataque poesia nesta parte tem o ar de apndice, ligado apenas superficialmente ao que precede; (b) Torna desnecessria a hiptese de que as restries poesia dramtica haviam se tornado conhecidas e atrado crticas nas quais Plato apressou-se a responder (n. 46, pg. 35). Tendo em vista a organizao global da Repblica, Havelock considera realmente necessria existncia de mais um livro final, pois a total eliminao da poesia da educao no poderia ser plenamente defendida no livro X, antes que primeiro essa educao fosse inteiramente definida, o que de fato ocorre nos livros centrais. E, alm disso, segundo o autor, Plato no poderia falar sobre as recompensas de uma vida justa, na segunda metade do livro X, antes que tenha estabelecido a justia como algo autnomo.

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Assim como notamos que a considerao do tema central da Repblica norteia o julgamento dos comentadores a respeito da importncia do livro X, devemos levar em conta tambm a escolha do ponto central dentro do prprio livro X como fundamental para a considerao da relevncia do livro no contexto da obra. Por isso, se conforme J. Annas encontramos o que Plato realmente pensava sobre a poesia somente nos livros iniciais e no ltimo argumento do livro X, porque para a autora o ponto central do livro X o aspecto moral da crtica poesia, em sua viso de que essa no s a tese que o autor defende com mais constncia como a que d a Repblica seu sentido mximo. Segundo Cross e Woozley4 , o livro X tem a funo de acrescentar, atravs da reviso de outras partes do dilogo, fatores para justificao da condenao da poesia e no s expor novamente a mesma discusso. Por isso, segundo os comentadores, no h motivos para considerarmos o livro X apenas uma retomada desnecessria e problemtica como havia feito J. Annas. Os autores, tomando o incio do livro X, no qual Scrates se congratula por ter excludo anteriormente toda poesia imitativa, consideram como subentendido que ele havia mesmo excludo no livro III toda a poesia e que, agora, Scrates justificava essa excluso. Assim, descartam completamente, portanto, a possibilidade de haver uma mudana na posio de Plato no livro X, tentando mostrar que, se no livro X ele exclui toda poesia imitativa, ele tambm mantm algum tipo dela da mesma forma que acontece no livro III. Isso porque, segundo os autores, Plato deliberadamente se refere discusso do livro III... e se representa a ele mesmo como tendo no livro III excludo toda poesia imitativa (p. 278), o que nos impediria de dizer que Plato desfez ou esqueceu o que disse antes. Contudo, Cross e Woozley divergem um pouco de Havelock (p.30) em relao ao fato de que a questo poltica seria apenas um pretexto para a real inteno de Plato em criticar toda tradio educativa grega veiculada atravs da poesia. Para os autores, Plato de fato no estaria escrevendo um tratado de esttica ou mesmo de educao, mas sim de poltica. Essas consideraes recaem novamente na discusso do tema geral da Repblica e, nessa perspectiva, impossvel separar o plano esttico e poltico, pois, segundo os autores, se a crtica da poesia s faz sentido em termos de educao, h tambm que se considerar a

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Platos Republic; a Philosophical Commentary.

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funo social da arte dentro da esfera coletiva da cidade ideal que est sendo proposta na Repblica. Cross e Woozley observam que o fato de alguns comentadores afirmarem que o livro X tem um ar de digresso ou apndice no significa que ele seja desnecessrio obra e que deveramos simplesmente fazer de conta que ele no existe, no o considerando relevante para a compreenso da Repblica, como fez J. Annas em seu comentrio. Do ponto dos autores, o fato de Plato escrever o livro X, ainda que como um apndice ao resto da obra, significa que ele ainda se preocupava com o que havia sido dito sobre o assunto nos livros anteriores e sem dvida pensava que a obra no estaria terminada sem mais um livro (p. 284). Assim, o livro X pode at ser visto como um apndice, mas deve obrigatoriamente ser considerado como fundamental obra como um todo, principalmente por ser numa justificativa que aprofunda essa discusso. Os comentadores citam ento duas explicaes comuns entre os demais comentadores para a retomada da questo da excluso da poesia imitativa no livro X da Repblica. O primeiro que a obra havia se tornado conhecida e provocado crticas que Plato quis responder juntando um ltimo livro, mas esse motivo descartado pelos autores por no haver evidncias suficientes para ser afirmado. O outro motivo, mais provvel, que Plato quis se fortificar de novo a si mesmo contra o encanto da poesia e providenciar um antdoto mais completo e satisfatrio. No entanto, observamos que o comentrio de Cross e Woozley, apesar de discordar de J. Annas ao ressaltar a importncia do livro X dentro da Repblica, no escapa da tendncia em apontar problemas de coerncia interna do livro, ainda que numa posio menos crtica. Segundo os autores o livro X d a impresso que Plato juntou de qualquer forma todos os argumentos que conseguiu pensar com base nos vrios temas anteriormente discutidos na Repblica e, ao fazer isso, no avaliou com rigor se os argumentos utilizados estavam de acordo com o que havia dito ante e nem mesmo se eles se encaixavam uns com os outros dentro prprio livro X. Outra interpretao que tambm afirma a necessidade do livro X a de Bosanquet 5 . Numa posio um pouco diferente dos demais comentadores, a respeito de que o livro IX

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Illusionand and Emotion, and Reality of the Mindin A Companion to Platos Republic

for English Readers.

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parece encerrar o assunto principal da Repblica, o autor observa que com o fim do livro IX, o argumento contnuo da Repblica colocado em close (p.377). Com isso, percebemos que, em seu ponto de vista, o livro X no deve ser considerado suprfluo em relao estrutura geral da obra, pois tem seu tema intimamente relacionado com o argumento central da Repblica. Esse ponto ainda ressaltado medida que o autor, julgando que o livro I constitui um prlogo, considera o livro X um eplogo que tem a funo de aprofundar e confirmar o tema principal da Repblica. Mas, mesmo assim, o possvel ar de concluso do livro IX no descartado por Bosanquet, tendo em vista que este encerra a discusso do dilogo que se dedicava a uma anlise da moralidade nas partes que formam o intervalo central da obra. A necessidade do livro X para o autor se encontra na confirmao de um assunto fundamental do dilogo: a determinao do papel, tendncia e sistema de educao e de vida intelectual e imaginativa (p. 377) de uma sociedade justa e perfeita. Como o autor considera que nos livros II e III esse ponto fundamental havia sido tratado precocemente, isto , sem o auxlio da discusso psicolgica e metafsica contida no corpo do dilogo, a funo do livro X ser a de aprofundar e confirmar tal ponto com base nessa discusso central. No mbito da discusso metafsica, segundo o autor, o livro X nos d a oportunidade de ver a Teoria das Formas em seu modo mais difcil e paradoxal, mas esta no chega a constituir o problema central do livro X, o qual consiste numa crtica paralela da emoo atravs da discusso da percepo e cognio humana. Dessa forma, na interpretao de Bosanquet o livro X perfeitamente coerente com a estrutura global da Repblica, podendo at mesmo ser considerado um eplogo que, apesar de no reproduzir a mesma doutrina dos livros centrais, adapta as teorias anteriores para dar o acabamento final da obra. Tendo assim adaptado a trplice diviso da alma e combinado a ela a referncia aos quatro nveis de julgamento cognitivo distinguidos nos livros VI VIII, o autor v o livro X como um retorno ao ponto fundamental do dilogo que combina todas as linhas de discusso e a aprofunda. Temos ento uma importante diferena entre o comentrio de J. Annas e Bosanquet. Enquanto as mudanas encontradas no tratamento da teoria das formas e das partes da alma fazem a autora julgar o livro X como anmalo, para o autor, a idia de que h no ltimo livro uma adaptao dessas teorias faz com que as diferenas encontradas no sejam entendidas como um problema de coerncia interna do dilogo. Na interpretao de Bosanquet, o livro

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X, por funcionar como uma espcie eplogo, tem mesmo a funo de combinar os argumentos anteriores e para isso a presena de alguns ajustes de fato necessria a uma perspectiva mais aprofundada. importante ainda ressaltar uma diferena bsica entre as posies dos comentadores at agora citados. A interpretao mais freqente quanto ao problema de que no livro X h uma referncia ao tema da poesia como j tratado anteriormente na Repblica que o livro X de fato retorna ao mesmo assunto dos livros II e III na inteno de reforar uma idntica posio crtica. Isso sem dvida o que observa Cross e Woozley ao se basearem na prpria forma com a qual Scrates inicia o livro X. Temos como exceo at agora apenas os comentrios de Havelock e J. Annas. A autora, por considerar a primeira concepo de poesia do livro X realmente contraditria com os livros II e III e, o autor, por entender que o livro X no se refere a poesia como a mesma forma educao que os livros II e III prope, mas como uma referncia a outra parte do dilogo. Mas, sem dvida, o mais comum que se considere que o livro X confirma e aprofunda com a exposio de novos argumentos o que foi dito nos livros II e III. Pappas (A Repblica de Plato), com relao discusso do papel que o livro X assume em relao ao tema principal da Repblica, observa por sua vez que o livro X parece uma atabalhoada coleo de argumentos respeitantes s artes, apenas tendencialmente relacionados com o tema do dilogo como um todo, em contraste com uma argumentao intrincadamente estruturada q abarcou a extenso da Repblica (p. ue 209), cujo tema, em seu ponto de vista, consiste basicamente em uma comparao entre a justia e a injustia. O autor ainda considera que a passagem do livro IX para o X de fato abrupta, mas o que no significa que o livro X no seja profundamente coerente com a estrutura global de organizao da obra. Como em sua viso princpio de ordenamento o central admite largos recursos laterais (p.209), o autor no lamenta a presena do livro X que, apesar de ser considerado at mesmo como um acrscimo marginal ao tema do dilogo, pode ser visto ainda como essencial obra como um todo. Mais do que a comparao entre a justia e a injustia, Pappas identifica como tema predominante no dilogo a idia de que a vida perfeita exige o governo da razo (p. 209). Nesse sentido, como julga que o livro X no se limita apenas a uma discusso sobre as formas de arte, mas tem como finalidade ltima chegar ao mesmo tema predominante do dilogo, o autor considera o livro X de fato

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essencial obra, medida que todos seus argumentos giram em torno da teoria psicolgica do livro IV e da defesa da vida racional que encontramos nos livros VIII e IX.

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Captulo I Primeira discusso sobre a poesia na Repblica

1. Livro II - a poesia como paideia

No incio do livro X da Repblica, Scrates expe os motivos que o levam a retornar ao tema da poesia, uma vez que esse assunto j havia sido anteriormente tratado nos livros II e III. Primeiro comea dizendo que entre muitas das razes para pensar que estivemos a fundar uma cidade mais perfeita do que tudo, no das menores nossa doutrina sobre a poesia e depois, acrescenta que sua reflexo anterior consiste na recusa absoluta da parte da poesia de carter mimtico (595 a). Assim, percebemos que Scrates primeiramente relaciona o retorno da discusso sobre a poesia no livro X com a preocupao em estabelecer uma cidade perfeita. Mas, para entendermos melhor em que consistem essas reflexes anteriores sobre a cidade e a poesia mimtica que Scrates retoma agora no livro X, vejamos, ainda que resumidamente, como o tema da poesia surge na obra 6 . Na Repblica Plato descreve o dilogo no qual Scrates pesquisa a natureza da justia e da injustia. Desse modo, tentando auxiliar o entendimento do que a justia num mbito individual, a partir do livro II prope que se imagine a formao de uma, analisando assim o problema primeiramente numa esfera coletiva: Diremos que a justia de um s indivduo ou que tambm de toda a cidade? Tambm replicou. (...) Portanto, talvez exista uma justia numa escala mais ampla e mais fcil de apreender. Se quiserdes ento, investigaremos primeiro qual a sua natureza nas cidades. Quando tivermos feito essa indagao, executa-la-emos em relao ao indivduo, observando a semelhana do maior na forma do menor. (...) se considerssemos em imaginao a formao de uma cidade, veramos tambm a justia e a injustia a surgir nela? (368e9a). Prosseguindo a investigao, Scrates supe que essa cidade se desenvo lve, desde sua forma mais primitiva at se tornar mais complexa, havendo ento a necessidade de uma especializao de tarefas cada vez maior. Portanto, concluindo que uma dessas tarefas deve6

Cabe aqui esclarecer que abordaremos alguns trechos de outros livros da Repblica somente

medida que forem essenciais compreenso do livro X, pois uma analise completa do tema da poesia na obra ultrapassaria as intenes deste presente trabalho.

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ser a defesa da cidade, seria preciso que houvesse nela guardies e que estes recebessem uma boa educao, a fim de que fossem brandos para os compatriotas embora acerbos para os inimigos; caso contrrio no tero de esperar que outros a destruam, mas eles mesmos se anteciparo a faz-lo (375c). Sendo assim, nos livros II e III da Repblica, Scrates descreve com detalhes qual a educao (paideia) mais adequada para formar o carter de guardies, cuja funo seria essencial para que a cidade pudesse se manter justa e perfeita. Partindo ento da paideia tradicional, is to , ginstica para o corpo e a msica (mousike) para a alma (376e), a Scrates passa a fazer uma srie de objees maneira como a mousike era ensinada s crianas. portanto nesse contexto da obra que surge pela primeira vez o tema da poesia, pois, segundo a anlise socrtica, uma das partes da mousike consiste no discurso (logos), ou seja, na fala potica 7 Alm disso, Scrates tambm distingue dois tipos de logos: um falso e outro verdadeiro, explicando essa distino pelo fato de que, antes de qualquer coisa, so contadas fbulas (mythos) s crianas e que no conjunto, as fbulas so mentiras embora contenham algumas verdades (377a). A partir dessas definies Scrates d inicio a uma srie de proscries ao mythos tradicionalmente utilizado na educao dos jovens, afirmando primeiramente que que das agora se contam, a maioria deve rejeitar-se. (...) As que nos contaram Homero e Hesodo, esses dois e os restantes poetas. Efetivamente, so esses que fizeram para os homens essas fbulas falsas que contaram e continuam a contar (377c-d). Portanto, observamos que a discusso respeito da mousike e do mythos com a qual Scrates inicia o assunto da educao dos guardies no livro II de fato essencial analise da poesia propriamente dita, medida que Plato revela desde j sua preocupao em rejeitar principalmente as obras de Homero e Hesodo. Assim, devemos entender por mythos, nesse contexto, as composies dos poetas em geral e, especificamente, uma primeira forma de poesia destinada s crianas e caracterizada sobretudo pela ambigidade. Quanto a posio do discurso filosfico frente ao pensamento mtico necessrio considerar que, antes mesmo de Plato escrever seus dilogos, o gnero trgico j havia se7

Cf. P.Vicaire, - Recherches sur les mots designant la posie et le pote dans loeuvre de

Platon (p.75) .

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consolidado, atravs dos grandes festivais dramticos, como uma releitura dos mitos, atendendo aos novos valores impostos pela cidade democrtica. Ento, podemos dizer que o discurso filosfico pretendido por Plato se contrape antes releitura dos mitos realizada pelas tragdias, incluindo tambm o gnero pico de Hesodo e Homero o primeiro mestre e guia de todos esses belos poetas trgicos (595c), do que propriamente ao pensamento mtico como um todo. O que parece ocorrer que os dilogos de Plato trazem em si um questionamento dos mitos e da religio de sua poca, assim como as tragdias tambm de certa forma os questionavam, sem no entanto se confundir com eles no que diz respeito ao tipo de linguagem utilizada. Sendo assim, a crtica poesia parece subentender um embate entre dois diferentes usos do discurso, um confronto entre o logos filosfico e o logos potico, que fica claro no seguinte trecho do livro X da Repblica: Aqui est o que tnhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia , por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte dessa espcie. Era a razo que a isso nos impelia. Acrescentemos ainda, para ela no nos acusar de uma tal ou qual dureza e rusticidade, que antigo o diferendo entre a filosofia e a poesia (607 b) Num primeiro momento, podemos at ter a impresso de que Plato estaria propondo, ainda que indiretamente, um contradiscurso demolidor do pensamento mtico que viria preencher a lacuna deixada por um discurso que no encontrava mais sua legitimidade. No entanto, parece mais correto afirmar que o que Plato pretende em seus dilogos no tanto suprimir as formas mticas de pensamento, mas antes, desenvolver paralelamente uma outra forma de pensar com base na racionalidade: a filosofia. Podemos caracterizar o pensamento mtico por uma totalidade de sentido, ou seja, uma certa simultaneidade de fatos que se completam, e pela imediatez com que os smbolos representam as coisas a que se referem8 . Por outro lado, o discurso racional dos dilogos, alm de ter como caracterstica seu prprio encadeamento lgico, deve, na falta daquela imediatez, atender a uma exigncia diversa: a adequao entre o que e o que est sendo dito, entre o ser e o dizer ser. Pensamos ento que no se trata, portanto, da substituio de um discurso por outro, mas, sendo domnios diversos, da coexistncia entre eles: um logos que capaz de pensar o8

Cf. o estudo de Jaa Torrano in Hesodo - Teogonia : Este poder da fora da palavra se

instaura por uma relao quase mgica entre o nome e a coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a presena da prpria coisa (p.15).

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mito e um mito que pode ilustrar determinado logos. No a toa que Plato tantas vezes se serviu dele 9 . Contudo, a crtica da poesia permanece. O Scrates de Plato uma figura marcada pela preocupao com a verdade e, antes de tudo, com o verdadeiro ser das coisas, na medida em que possa haver esse conhecimento e o discurso seja capaz de express- lo. portanto esse tipo de preocupao que ir fornecer as bases para o confronto do logos filosfico com as outras maneiras de uso do logos pretendidas tanto por poetas quanto por sofistas. Tanto a tcnica potica quanto a retrica requerem a habilidade de falar bem o que quer que seja dito e, tendo como objetivo principal impressionar, ou seja, causar um pathos nos ouvintes, deixam em segundo plano aquilo que Scrates mais preza e o que mais importante para a sua noo de Filosofia: a verdade. De fato, como veremos, Plato comea o livro X se referindo exatamente a esse problema, visto que Scrates observa: ...contudo, uma espcie de dedicao e de respeito que desde a infncia tenho por Homero impede-me de falar. Na verdade, parece ter sido ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos poetas trgicos. Mas no se deve honrar um homem acima da verdade, e, antes pelo contrrio, deve-se falar, conforme eu declarei (595 b-c). Mas, voltando a nossa anlise do tema da poesia no livro II da Repblica, h uma ressalva a ser feita com relao ao mythos, pois mesmo sendo falso, embora contenha algumas verdades, parece que Scrates no pretende elimin-lo por completo, ao afirmar que aquilo que se deve censurar antes e acima de tudo (...) a mentira sem nobreza (377d). O problema aqui que as mentiras contadas sem nobreza pela poesia tradicional se referem a seres que deveriam, por definio, ser os mais elevados possveis e, nesse sentido, parece que para Scrates essa poesia no estaria sendo capaz de cumprir a nica coisa que a tiraria de sua completa falsidade, isto , a simples semelhana com o objeto imitado: o que acontece quando algum delineia erradamente, numa obra literria a maneira de ser de deuses e heris, tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377e). Portanto, quanto aos temas das histrias, Scrates alega que a poesia, ou os mythos na maioria das vezes uma narrativa que mente sem nobreza sobre os seres mais elevados:9

Na Repblica, Plato utiliza, principalmente, o mito das origens do homem e das quatro raas

(414c-15c, 468e, 547a-c) e o mito de Er o Armnio (614b- 21b). No dilogo Protgoras, o mito de Prometeu (319d-22 d). No Fedro o mito do rapto de Ortia por Breas (229b - 230a) entre outros.

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Em primeiro lugar - respondi - a maior das mentiras e acerca dos seres mais elevados, que foi feita sem nobreza, que Uranos tenha tido o procedimento que Hesodo lhe atribuiu... (377e). Nesse sentido, Scrates comea a fazer consideraes a respeito do que seria ideal composio do mythos, a fim de que as histrias fossem mais semelhantes aos modelos que pretendiam representar. Assim, os moldes respeitantes teologia (typoi per theologa) sugeridos por Scrates fazem a discusso partir para uma ontologia da noo de Deus: Tal como Deus realmente, assim que se deve sem dvida representar... (379a). Os trs atributos bsicos a serem desenvolvidos at o final do livro II so: 1) Deus bom (thos agaths): Ora, Deus no essencialmente bom, e no assim que se deve falar dele? (379b); 2) Deus simples:(...) um Ser simples e o menos capaz de todos de sair da sua forma (380d); e 3) Deus verdadeiro: Por conseguinte, Deus absolutamente simples e verdadeiro em palavras e atos (382e). Ora, podemos atribuir essas caractersticas dadas a Deus tambm Idia, pois esta ser definida, no livro VI, pela sua participao no Bem. Assim, da mesma forma que temos no livro X consideraes a respeito da Idia como o modelo a ser seguido por toda a forma de fazer, pela mimese e enfim pela poesia, temos no livro II os moldes a serem seguidos pelo mthos, ou discurso potico sobre Deus, ambos fundados na noo de Bem que, por sua vez a base da noo de Idia e de Deus. No Livro VI, atravs da Imagem do Sol, Scrates definir o Bem como causa da verdade do conhecimento e do ser mesmo das coisas, da realidade; assim, o Bem da mesma forma a causa das Idias. As Idias so, por sua vez, as formas fundamentais das coisas sensveis, que existem, tem seu ser e verdade medida que so boas. Ser bom, no final das contas, atingir a finalidade para a qual uma coisa foi criada. O Bem a base para a noo de Deus e a base para a noo de Idia: as duas coisas que devem reger a criao potica respectivamente nos livros II e X.

2. Livro III - anlise do estilo potico

Depois de analisar as histrias, Scrates passa a discutir no livro III a maneira como eram contadas e qual seria a forma mais adequada (392c). Examina ento trs tipos de narrativa utilizadas ao se contar uma histria: a simples narrativa, na qual o poeta fala de seu

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ponto de vista sem representar ser outra pessoa; a imitao, ou mimese, que pura representao e na qual o poeta se omite; e uma terceira mista, constituda pela mistura de ambas (392d). Mais frente, Scrates ir identificar cada um desses tipos de narrativa da seguinte forma: em poesia e em prosa h uma espcie que toda imitao, como tu dizes que a tragdia e a comdia; outra, de narrao pelo prprio poeta nos ditirambos que pode se encontrar de preferncia; e outra ainda constituda por ambas, que se usa na composio da epopia e de muitos outros gneros (394d). Aps isso, para decidir qual estilo de narrativa os poetas devem utilizar, pergunta a Adimanto se os prprios guardies devem ser imitadores ou no, chegando ento concluso de que o uso da mimese dever ser limitado se destinando apenas imitao dos homens de bem, pois, segundo Scrates, a baixeza, no devem ser capaz (os guardies) de pratic-la nem ser capazes de a imitar, nem nenhum dos outros vcios, a fim de que, partindo da imitao, passem ao gozo da realidade. Ou no te apercebeste de que as imitaes, se se perseverar nelas desde a infncia, se transformam em hbito e natureza para o corpo, a voz e a inteligncia? (395c) 10 . Assim, notamos que aqui Scrates desvia a discusso da questo da mimese como estilo potico para a mimese como forma educacional, medida que os guardies podem

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Plato, num primeiro momento, no considera que o problema de que os guardies fossem

imitadores se deva ao fato de que a imitao de maus modelos de comportamento possa corromper o carter dos jovens, mas quebra de um princpio estabelecido em 370c como fundamental cidade: que cada cidado pode executar bem apenas uma tarefa. Com relao a essa primeira objeo de Scrates s imitaes, concordamos com o julgamento de Pappas (A Repblica de Plato), segundo o qual, essa uma objeo abstrata, mas que, apesar disso, o mimetismo conduz os jovens maus hbitos... (p. 89). E. Havelock (Prefcio Plato), por sua vez, nos parece esclarecer de forma bastante satisfatria essa primeira objeo de Scrates ao dizer que a tarefa atribuda aos guardies no ser estritamente tcnica, mas uma outra, que exige carter e juzo tico (p. 40) Assim, embora cause certa estranheza o fato de que o problema da mimese como estilo potico seja aplicado aos guardies, uma vez que estes no sero nem poetas nem atores, podemos perfeitamente entender a utilidade educacional da poesia mimtica, se levarmos em conta que a funo dos guardies depende de um carter firmemente educado.

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passar a agir segundo os modelos de comportamento propostos pela poesia. Por isso, necessrio tambm que os poetas limitem em seu estilo o uso da mimese, se permitindo apenas as imitaes de bons comportamentos, para que os jovens, seguindo esses modelos, no imitem coisas condizentes com o carter que devem possuir os futuros guardies de uma cidade perfeita. Por fim, considerando no mais especificamente se os guardies devem ou no imitar, mas que h uma maneira de falar narrar pela qual se exprime o verdadeiro homem de bem (396c), notamos que Scrates comea a dirigir suas prerrogativas s pessoas em geral, nos levando a crer que o motivo de suas restries mimese no so mais apenas uma questo educacional ou de estilo potico, mas acima de tudo um problema moral que se relaciona com o carter de quem quer imite algo ao narrar uma histria. Dizemos isso, porque Scrates ir em seguida afirmar que o orador que no for dessa espcie (um homem de bem), quanto maior for a sua mediocridade, mais imitar tudo e no considerar coisa alguma indigna de si, a ponto de tentar imitar tudo com grande aplicao... (397a). Deduzimos ento que, na viso de Scrates, no s os guardies devem ser educados a fim de que adquiram um carter adequado sua funo na cidade, mas que todos os imitadores e principalmente os poetas, por se encontrarem incumbidos da educao dos jovens tenham um bom carter. Assim, a noo de mimese parece aqui subentender uma predisposio do imitador variedade, no s com relao aos objetos imitados, mas principalmente no que diz respeito a seu prprio carter, o que acaba denotando uma propenso a srios desvios morais. 11 Alis, veremos que essa concepo do imitador como algum capaz de imitar todas as coisas sem fazer distino entre o que moralmente bom ou mau ser fundamental, no livro X, expulso final do poeta da cidade, a qual, no livro III, j ocorre quase nos mesmos termos: Se chegasse nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido a sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com seus poemas,11

C. Lage (Mmesis na Repblica de Plato: As mltiplas faces de um conceito ) tambm

percebe o aspecto da variedade como uma das principais caractersticas do conceito de mimese, tanto nos livros iniciais, quanto no livro X. A autora afirma que livro III, a arte da mimese no caracterizada como a capacidade do poeta tomar todas as formas e imitar todas as coisas (p. 93) e entendemos que essa caracterstica, por ser a principal, de fato e mantida no livro X.

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prosternvamo-nos diante dele, como de um ser maravilhoso, encantador, mas dir-lheamos que na nossa cidade no h homens dessa espcie, nem sequer lcito que existam, e mand-lo-amos embora para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra sobre a cabea e de o termos coroado de grinaldas. Mas, para ns, ficaramos com um poeta e um narrador de histrias mais austero e menos aprazvel, tendo em conta a sua utilidade, a fim de que ele imite para ns a fala do homem de bem e se exprima segundo aqueles modelos que de incio regulmos, quando tentvamos educar os militares. (397e-8b). Alm disso, se levarmos em conta essas ltimas afirmaes, aproximamos ainda mais os dois livros no que diz respeito ao contexto no qual a poesia excluda da cidade. De fato, muitos comentadores atribuem as diferenas entre os livros ao fato de que a primeira expulso da poesia ocorre em virtude da considerao da poesia como veculo educacional e direcionada formao especfica dos guardies, enquanto que o livro X trata da recepo da poesia por um auditrio exclusivamente adulto. mas em nosso ponto de vista

3. O conceito de mimese no livro III Mas, voltemos ainda questo do estilo a ser utilizado nas narrativas. Scrates determina que o modo de exposio mais adequado ao homem de bem deveria ser semelhante forma mista utilizada nas epopias, ou seja, com imitao e narrao, mas que num discurso extenso, pouco lugar haver para a imitao (396e), uma vez que, como foi dito, este homem tende a desprezar modelos inferiores a ele mesmo, selecionando assim apenas as imitaes dignas de si. De modo contrrio, Scrates afirma que, com relao ao narrador da pior espcie, todo o discurso deste homem ser feito por meio de imitao, com vozes e gestos, e conter pouca narrao (397b), declarando logo em seguida que so estas as duas espcies de narrao que eu dizia (397b). De fato, parece ser difcil conciliar essa passagem como que foi dito anteriormente em 392d, pois Scrates falava em trs tipos de narrativa: uma totalmente imitativa como a tragdia e a comdia; outra isenta de imitao como os ditirambos; e uma terceira constituda pela mistura de ambos os processos como a epopia. Assim, para que o texto continue a fazer sentido, devemos levar em conta que Scrates, em sua primeira exposio sobre as trs

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espcies de narrativa, diante da incompreenso de seu interlocutor e admitindo sua falta de clareza, faz a seguinte advertncia: vou tentar demonstrar-te o que quero dizer com isso, tomando no o todo, mas a parte. (392d-e). Consideramos importante essa passagem, pois Scrates, em seguida, tomando como exemplo trechos isolados das obras de Homero, nos leva a crer que a classificao das narrativas utilizada por ele neste contexto inicial serve antes para explicar como funcionam partes isoladas do discurso potico, do que para caracterizar o estilo das obras como um todo. Assim, entendemos que conforme esta presente classificao, se num trecho de sua obra o poeta se expressa atravs de imitao, esse trecho deve ser considerado uma narrativa imitativa, o que no implica, como veremos, que o estilo da poesia tomada em conjunto seja imitativo. Nesse sentido, como Scrates passa a considerar em 397b duas espcies de narrao; uma a do homem de bem, semelhante forma mista, mas que num discurso extenso pouco lugar haver para a imitao (396e) e outra a do mau narrador, na qual todo o discurso deste homem ser feito por meio de imitao (...) e conter pouca imitao (397b) (grifo nosso); percebemos que Scrates de fato tem a inteno de agora se referir ao estilo do discurso como um todo e no mais a apenas parte dele. Assim, podemos dizer que a espcie de narrao do homem de bem, por num discurso extenso conter pouca imitao,

certamente se relaciona ao tipo puramente narrativo citado antes, medida que Scrates explica que como esta experimenta pequenas alteraes, ... fcil ao orador manter essa correo e harmonia nica (397b). De modo anlogo, a outra espcie de discurso feito todo por meio de imitao, mesmo contendo algumas partes em narrao, deve ser considerada como uma narrao puramente imitativa, na qual, segundo Scrates, no conveniente se manter uma harmonia nica devido ao fato de comportar todas as formas de variaes (397d ). interessante notar como neste ltimo trecho Scrates condena a multiplicidade de ritmos e harmonias, num mbito propriamente musical, do mesmo modo que condenava do ponto de vista moral a variedade caracterstica do conceito mimese no discurso potico. Scrates, portanto, adianta nesta passagem o prximo assunto a ser tratado ainda no livro III, afirmando que, aps completar o que se refere a discursos e histrias nas artes das Musas ... nos falta tratar do carter do canto e da melodia (398b-c), o que, segundo ele, engloba

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as palavras, a harmonia e o ritmo(398d)12 . Assim, tomando como princpio que a harmonia e o ritmo devem acompanhar as palavras, Scrates ir rejeitar a variedade at mesmo na fabricao de instrumentos musicais, dos quais dito que no devero ter nem muitas cordas, nem muitas harmonias (399c). Por fim, quanto aos ritmos, declara tambm que no precisam os procurar variados nem ps de toda a espcie, mas observar quais so os correspondentes uma vida ordenada e corajosa (399e), afirmao essa que nos leva novamente a perceber a constante preocupao de Plato com a influncia da poesia no comportamento e no carter dos jovens. Portanto, a partir dessa classificao dos gneros poticos, o que fica completamente rejeitado no livro III a poesia que utiliza a mimese definida como a capacidade de imitar vrias coisas. Assim, tanto a epopia, considerada um gnero misto por conter partes em que o poeta se expressa de modo variado; quanto a tragdia e a comdia, definidas como gneros imitativos puros, so excludas da cidade, medida que fazem uso da mimese no sentido de no haver nesses tipos de poesia uma distino entre a imitao do carter bom e mau. Por outro lado, o estilo de poesia proposto por Scrates, embora possa conter a imitao do homem de bem, considerado um gnero sem mistura e no imitativo, pois nele no h a ocorrncia da mimese nesse sentido da variedade, o que confirmado pelo fato de que o que por fim aceito na cidade a forma sem mistura que imita o homem de bem (397d). Portanto, percebemos que o termo mimese de fato empregado por Plato em algumas acepes diferentes. Num primeiro momento, com relao explicao dos processos narrativos utilizados em partes do discurso, Scrates define a mimese, num sentido meramente tcnico, como o simples ato do poeta se assemelhar ao personagem: ...tornar-se semelhante na voz e na aparncia imitar aquele com quem queremos parece-nos?...Num caso assim, parece-me, este (Homero) e os outros poetas fazem sua narrativa por meio da12

No livro X encontraremos essa mesma referncia aos elementos que compem a mousike,

aludindo seduo que exercem e, inclusive, os comparando com recursos pictricos, no caso, as cores: ... parece-me que o poeta, por meio de imagens e frases capaz de colorir devidamente cada uma das artes (...) com metro, ritmo e harmonia. Tal a grande seduo que estas tm, por si ss. Pois julgo que sabes como parecem as obras dos poetas , desnudadas do colorido musical, e ditas s por si (601a-b)

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imitao (394c). Aps isso, determinando que os guardies no devem ser imitadores, adiciona ao conceito de mimese a caracterstica da variedade. Desse modo a mimese passa a significar no s o recurso tcnico que o poeta utiliza, mas principalmente um recurso que, pressupondo a imitao de todas as coisas, do ponto de vista moral, indica um desvio de carter da parte do narrador. portanto nesse contexto que a mimese proibida ao jovem guardio, o qual deve ser educado de modo a no adquirir o hbito de imitar nada que seja contra o carter e o comportamento exigidos por sua funo na cidade. Ainda nesse sentido, Scrates faz uso do termo mimese para definir o conjunto da narrativa na qual o poeta faz uso da imitao variada, sendo nessa acepo que a tragdia e a comdia so chamadas mimese (395a). Por outro lado, a espcie de poesia proposta por Scrates nunca poderia, nessa ultima acepo, ser denominada mimese, uma vez que nela o poeta mantm aquela harmonia nica" e no executa qualquer tipo de imitao variada, mas apenas de aes moralmente corretas e adequadas a seu prprio carter. A partir desta perspectiva, entendemos que no livro III Scrates de fato aceita a mimese enquanto ao isolada, uma vez que fica clara a utilidade da imitao do bom carter na educao dos guardies, mas, com relao ao conjunto das aes que fazem parte de determinado discurso potico, em nenhum momento aprova o uso indiscriminado da mimese. Ora, como no estilo proposto por Scrates a imitao seletiva, no podendo por isso ser chamada de mimtica e como nos gneros poticos empricos, isto na tragdia, na comdia e na epopia no h outra coisa seno a mimese que pressupe uma habilidade variada, ser justamente a essa poesia mimtica emprica que Plato dirigir severas crticas principalmente no livro X, o qual tem incio com uma importante afirmao de Scrates: Ora, a verdade que prossegui eu - entre muitas das razes para pensar que estivemos a fundar uma cidade mais perfeita do que tudo, no das menores nossa doutrina sobre a poesia, a qual consiste na recusa absoluta da parte da poesia de carter mimtico (595 a). Vejamos ento a posio de alguns comentadores a respeito da retomada do tema da poesia no livro X da Repblica. Na viso de Havelock, o retorno ao tema da poesia no livro X se dedica a explicar porque a poesia excluda, no da educao bsica proposta nos livros II e III, mas do novo currculo acadmico necessrio ao preparo do filsofo como governante da cidade ideal proposto nos livros VI e VII, o que torna apenas aparentes as

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incoerncias apontadas por J. Annas e outros comentadores entre esses livros e o livro X. A soluo dada pelo autor para essa aparente contradio portanto que o programa educacional proposto pela Repblica acontece em dois nveis distintos. Se nos livros II e III a poesia mimtica parcialmente aceita por Scrates, porque est relacionada com a educao no nvel escolar, dirigida aos jovens guardies e, se no livro X a poesia mimtica totalmente rejeitada, porque esta se refere ao projeto de educao superior dirigido formao do filsofo. Dessa forma, o livro X pode excluir toda a poesia mimtica sem maiores problemas de coerncia com o que foi dito antes. E Havelock completa seu argumento mostrando que no h incompatibilidade entre o sistema de educao exposto nos livros II e III e nos livros VI e VII, sendo que as duas partes representam linhas de pensamento radicalmente diferentes. Cross e Woozley, por sua vez, tomando o incio do livro X no qual Scrates se congratula por ter excludo anteriormente toda poesia imitativa, consideram como subentendido que ele havia mesmo excludo no livro III toda a poesia . Mas como no livro III era permitida a poesia que imita o homem virtuoso (395c), e esse tipo de poesia era de fato imitativo, isso trs uma sria dificuldade sobre a relao entre os livros III e X. Contudo, Cross e Woozley, julgando haver uma discrepncia apenas aparente entre o tema da poesia tratada nos livros iniciais e no livro X, pretendem assim como Havelock resolver essa dificuldade de alguma forma. Segundo Havelock, a relao entre os livros no se encontrava afetada em virtude da constatao de que o livro X trata, num outro contexto, de um tipo de educao diferente dos primeiros livros. Mas, na interpretao de Cross e Woozley, o contexto de fato o mesmo e no h nenhum motivo para pensarmos que se trata de outro tipo de educao. fundamental nessa leitura que a discusso esteja ocorrendo numa mesma perspectiva e no em outra para que possam chegar concluso de que as duas partes da Repblica so coerentes. O modo encontrado pelos autores para resolver essa dificuldade apela para a busca de alguma passagem no livro X na qual houvesse uma concesso poesia imitativa semelhante a que ocorreu antes no livro III. Dessa forma, os autores passam a analisar o trecho do livro X no qual os hinos aos deuses e elogios aos homens de bem (607a) so permitidos como uma concesso semelhante a que havia sido feita no livro III a um tipo de poesia que tambm possa ser considerada imitativa. Cross e Woozley descartam completamente a

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possibilidade de haver uma mudana na posio de Plato no livro X com relao ao que tinha dito antes, atravs da tentativa de mostrar que, se no livro X ele exclui toda poesia imitativa, ele tambm mantm algum tipo dessa poesia da mesma forma que acontece no livro III. Isso porque, segundo os autores, Plato deliberadamente se refere discusso do livro III... e se representa a ele mesmo como tendo no livro III excludo toda poesia imitativa (p. 278), o que nos impediria dizer que Plato desfez ou esqueceu o que disse antes. Por outro lado, aceitar os hinos aos deuses e elogios aos homens de bem como uma representao de tipo imitativo, faz o livro X coerente com o livro III, mas no resolve o problema da coerncia interna do livro X medida que ele declara no incio excluir toda poesia imitativa. Uma outra soluo proposta pelos autores seria a de considerar que toda poesia imitativa num sentido mais abrangente como o que estaria proposto no livro X e no num sentido puramente estilstico como no livro III. Desse modo, consideramos essa distino entre os sentidos de mimese fundamental para a compreenso do livro X, no qual a mimese rejeitada se refere ao estilo de imitao variado e existente nos gneros poticos tradicionais, e no ao simples ato de imitar, em sentido tcnico, aceito por Scrates no livro III em sua proposta de poesia, na qual de fato era bom que os guardies se assemelhem aos homem de bem. No livro III da Repblica, a concluso que o uso da mimese dever ser limitado se destinando apenas imitao dos homens de bem, pois, segundo Scrates, a baixeza, no devem ser capaz (os guardies) de pratic-la nem ser capazes de a imitar, nem nenhum dos outros vcios, a fim de que, partindo da imitao, passem ao gozo da realidade (395c). Sendo assim, em nossa viso, fica completamente excluda tanto no livro III, quanto no livro X, a mimese como ela realmente acontecia, fosse nas dramatizaes trgicas ou cmicas dos festivais gregos de teatro, ou nas simples declamaes de Homero por rapsodos, e como se mostrava aos olhos de Plato: uma variada representao na qual o poeta ou o autor falando em seu nome poderia assumir qualquer personalidade, sem se preocupar com o tipo de carter do personagem em no nome do qual fala e principalmente com o exemplo de moralidade que era transmitido ao pblico. Assim, permanece como conceito forte de mimese na Repblica a caracterstica da variedade necessria aos gnero potico tal como eles existiam na poca e no o simples processo do qual eles se valiam. Portanto, se considerarmos que o conceito emprico de

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mimese retirado por Plato da observao do processo imitativo encontrado nos gneros poticos existentes at ento, no possvel admitirmos, pelo menos na crtica poesia tal como a encontramos na Repblica de Plato algum tipo de boa mimese, como propem certos comentadores como, por exemplo Tate (Imitation in Platos Republic e Plato and imitation . in Classical Quartely) e Cross e Woozley ( latos Republic; a Philosophical P Commentary). Cross e Woozley procuram de alguma maneira fazer com que haja uma consistncia entre os livros III e X e baseiam sua soluo numa interpretao que j havia sido proposta antes por Tate. Em seu comentrio, Tate procura resolve r essa dificuldade afirmando a existncia de dois sentidos do termo mimese na Repblica: imitao no bom e no mau sentido. A imitao no mau sentido chamada por Cross e Woozley de imitao irrestrita (p.279), medida que o pior poeta o que est pronto a imitar tudo e todas as coisas, enquanto que a imitao no bom sentido ou imitao restritiva, corresponde um tipo de poesia no- imitativo e se refere aos casos de poesia permitidos em ambos os livros. Ento, quando no incio do livro X Plato se refere excluso de toda a poesia imitativa isso passa a ser consistente com os livros anteriores, ao entendemos que se refere a toda poesia imitativa em um mau sentido, ou seja, com a exceo dos casos se poesia imitativa que foram permitidos tanto no livro III: a poesia que imita o homem virtuoso (395d) e no livro X : os hinos aos deuses e elogios aos homens de bem (607a), que so restritivas e podem ser chamadas de imitao no bom sentido, ou no- imitativas. Sendo assim, o livro X da Repblica visto pelos autores como uma forma de Plato justificar o que havia dito com novos argumentos. Ele tende a reforar o assunto e no desfazer o que disse, expondo algo contrrio e, para que isso seja possvel, Cross e Woozley encontram na explicao de Tate uma forma de conciliar o livro X ao contexto da Repblica, admitindo a existncia de um tipo de imitao que seja permitido, ainda que toda poesia imitativa tenha sido excluda, no comeo do livro X. importante ainda ressaltar uma diferena bsica entre as posies dos comentadores at agora citados. A interpretao mais freqente quanto possvel incoerncia entre o tratamento da poesia nos livros iniciais e no ltimo livro da Repblica que o livro X de fato retoma o mesmo assunto dos livros II e III n inteno de reforar uma idntica posio a crtica. Isso sem dvida o que observam Cross e Woozley ao se basearem na prpria forma

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com a qual Scrates inicia o livro X. Temos como excees, por exemplo, os comentrios de Havelock e Annas. A autora, por considerar a primeira concepo de poesia do livro X realmente contraditria com os livros II e III e, o autor, por entender que o livro X no se refere a poesia como a mesma forma educao que os livros II e III prope, mas como uma referncia a outra parte do dilogo. Mas, sem dvida, o mais comum que se considere que o livro X confirma e aprofunda com a exposio de novos argumentos o que foi dito anteriormente nos livros II e III. Pappas (A Repblica de Plato), por exemplo, observa que de fato h uma continuidade entre o livro X e a discusso anterior sobre a poesia nos livros II e III, mas a diferena geral entre os livros III e X tentativa inicial de Plato em achar alguma poesia que seja a vlida e a mais recente suspeita que essa coisa no existe (p. 219). Percebemos ento no comentrio do autor a mesma tendncia em encontrar solues para possveis incoerncias entre o livro X e o restante da obra, que a observada em outros comentadores. A forma pela qual aborda a problemtica relao entre a primeira censura da poesia nos livros II e III com a rejeio final de toda imitao artstica no livro X, no nega as diferenas entre as estratgias e os pressupostos dos livros, mas estas so consideradas bem pequenas confrontadas com a igualdade de intentos e frente ao resultado final que proporcionam, pois ambas sees rejeitam a maior parte da literatura grega e expulsam-na da cidade perfeita e, segundo, ambas justificam o seu tom sensrio conjeturando sobre os efeitos dessa literatura sobre o auditrio (p. 249). Mas, ainda que a considerao das conseqncias ltimas da crtica nos dois livros aponte para um nico resultado e faam a reconciliao dom tema do livro X com o restante do dilogo, Pappas analisa com muito cuidado as diferenas. Segundo o autor, muitas das posies defendidas no livro X, o livro III nem pensa em sugerir, como, por exemplo, o diagnstico epistmico da imitao e a afirmao de sua intrnseca depravao. Sendo assim, a soluo de Pappas se baseia na considerao de que h um mesmo objetivo geral nas duas partes da Repblica e afirma que, aquilo que poderia ser concebido como diferente ou incoerente , na verdade, um mero detalhe frente inteno principal de Plato. O autor de fato enumera as diferenas, mas as considera intraduzveis em qualquer inconsistncia prtica, pois as duas crticas, por fim, deixaro a cidade com os mesmos diminutos fragmentos de poesia (p. 251).

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Assim, julgamos que, como no livro X h um deslocamento do foco da discusso e esta recair unicamente sobre a parte da poesia de carter mimtico (595a), no abordada mais a utilidade da mimese do ponto de vista da educao dos guardies como nos livros iniciais, alm do que, tambm no encontraremos no livro X a presena do modelo ideal de estilo narrativo, no qual Scrates prope que a mimese, tomada num sentido meramente tcnico, seja um valioso instrumento educativo. No livro X h portanto, como tema principal, uma absoluta rejeio da mimese, tal como era encontrada nos gneros poticos correntes da poca, enquanto que deixada de lado a proposta de um modelo alternativo de poesia que poderia utilizar a mimese em sentido tcnico, bem como, a discusso sobre os guardies e a funo unicamente educativa da poesia. Sendo assim, o problema do livro X no mais o de determinar se a poesia imitativa seria ou no adequada educao dos jovens daquela cidade ideal, mas o de mostrar por que ela no deveria mais ser executada nem ouvida, ao que parece, por ningum dessa cidade justa.

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Captulo II: Uma proposta de diviso do livro X

Quanto aos motivos alegados por Scrates para o retorno ao tema da poesia no incio do livro X, vimos que se relacionam primeiramente com sua preocupao em reafirmar a perfeio da cidade, estabelecida como paradigma da definio de justia em ampla escala durante todo o dilogo. Contudo, apesar dessa referncia inicial cidade perfeita, devemos admitir que no esse o assunto que ocupa a maior parte da discusso da poesia no livro X. Assim, ser somente aps todo o desenvolvimento da crtica que Scrates ir retomar em tom conclusivo o problema da recusa da poesia na cidade. Alm disso, Scrates acrescenta no incio do livro X um outro motivo para voltar refletir sobre a poesia. A recusa absoluta da parte da poesia de carter mimtico, a qual entendemos ter de fato ocorrido nos livros II e III, agora no livro X ainda mais necessria, segundo Scrates, desde que definimos em separado cada uma das partes da alma. (595 a)13 . Este ser, portanto, um dos principais assuntos tratados ao longo do livro X, a saber, a anlise dos efeitos malficos que a poesia traz alma do pblico ao se associar pior parte em detrimento da parte mais sbia e racional que deveria governar as demais (602c-5a). Mas, antes de chegar a essa discusso, Scrates percorre um longo caminho, passando pela caracterizao ontolgica da mimese, a qual a base da poesia imitativa (595c8b), bem como pela demonstrao de que os poetas no tm conhecimentos verdadeiros (episteme) sobre os assuntos de que parecem falar to bem (598d602c). Contudo, no devemos esquecer que uma das caractersticas mais marcantes que acompanha o dilogo que os assuntos so sempre tratados tendo em vista a relao entre as esferas individual e coletiva, entre a alma e a cidade. Portanto, apesar de percebemos que Plato no livro X de fato d mais ateno anlise dos efeitos da poesia sobre o indivduo, do que propriamente relao entre esses efeitos e a vida social e poltica da cidade, devemos considerar que o objetivo mais importante da crtica do livro X de fato deve estar13

No livro IV (435e-441c), Scrates oferece uma detalhada anlise das trs partes da alma

(racional, irascvel e desejante), a qual retoma de modo um pouco diferente no livro X, pois, desenvolvendo uma viso essencialmente bipartite, distingue apenas a melhor e a pior parte da alma (respectivamente as partes racional e irracional, 602e-5a; 606a-b). Trataremos esse assunto com mais detalhes ao abordarmos a crtica aos efeitos psicolgicos da poesia no livro X da Repblica.

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alm da excluso da poesia da cidade dita bem governada. Podemos dizer ento que paralelamente recusa da poesia na cidade, o que parece ser a nfase do tratamento do tema nos livros II e III, encontramos tambm no livro X da Repblica o combate da poesia mimtica na alma e a preservao do governo interior dos ouvintes, como dito em 608 a: ... no devemos preocupar-nos com essa poesia, como detentora da verdade, e como coisa sria, mas o ouvinte deve estar prevenido, receando pelo seu governo interior.... Em termos gerais, podemos dizer ento que uma caracterstica importante da discusso sobre a poesia no livro X que somente em seu comeo e fim, vemos Scrates relacionar sua censura poesia e ao poeta com a preocupao em estabelecer uma cidade perfeita, o que no acontece explicitamente no desenvolvimento da crtica. Evidentemente, no desenvolvimento da crtica que a maioria dos comentrios sobre o livro X da Repblica se concentra e, dessa forma, com exceo de poucos comentadores se preocupam em avaliar as relaes entre a condenao da poesia e a cidade perfeita; parece- nos que muitos deixam de lado o fato de que os motivos e as conseqncias dessa crtica da poesia recaem sobre a funo da poesia e do poeta na cidade imaginada por Scrates como vimos, desde o incio do livro II 14 .

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Pappas, parece ser o autor que mais desenvolve a relao entre o desenvolvimento e as

concluses da crtica poesia no livro X, pois, ao dividir a em trs argumentos fundamentais, julga ser o ltimo o que determina que a poesia deve ser banida da cidade perfeita (606e 608b). Contudo, segundo o autor, sendo essa ltima concluso imediata, o esforo de todo o livro X no se aplica a essa passagem, mas principalmente em discutir de onde vm os feitos da poesia, ou seja, em mostrar que a poesia apela s partes piores da alma (602c606d) (p.210). Mesmo assim, como Pappas deixa claro em seu comentrio que o que est em primeiro plano no ltimo livro da Repblica de fato a concluso de que o governo da razo deve prevalecer na alma e na vida dos cidados de uma cidade justa e perfeita, percebemos o contnuo esforo do autor em relacionar a condenao da poesia no livro X e o contexto da obra.

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1. A Pintura como paradigma de mimese

Quanto ao desenvolvimento da crtica, julgamos que a primeira coisa a se destacar o fato de que a acusao dirigida poesia e aos poetas no livro X possui dois procedimentos argumentativos distintos. 15 Numa primeira argio, a partir da pergunta feita por Scrates: Sers capaz de me dizer em geral o que a mimese? (595c), Plato desenvolve sua crtica com base na definio da natureza da mimese e na analogia entre poesia e pintura:

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Devemos considerar a observao dessa variao nos procedimentos argumentativos utilizados

por Plato ao tratar do tema da poesia no livro X como a base do comentrio de J. Annas. A autora marca notavelmente a diferena entre o ltimo argumento contra a poesia feito de forma independente da comparao com a pintura (606c608b) e outros primeiros que, utilizando tal analogia, segundo ela, so descabidos em virtude da estreiteza da anlise forjada unicamente para desvalorizar a poesia. Assim, J. Annas diz a respeito dos primeiros argumentos que vemos que Plato procura (sem sucesso) assimilar a poesia pintura e a uma forma degradada de pintura, tanto quanto possvel (p.429). Contudo, a autora julga que isso se deve ao fato de que o livro X revela duas concepes contrrias de poesia: uma que, baseada na comparao com a pintura, critica a poesia como algo estpido e sem valor e outra que, ao conceber a poesia como algo importante e perigoso, contradiz o que era dito antes no prprio livro X. Concordamos com J. Annas que de fato h uma certa variao no modo como Plato julga a poesia nos dois casos, mas, em nossa viso, isso no implica em nenhuma contradio, pois, como veremos no prximo captulo deste trabalho, a diferena entre esses dois modos de argumentao acontece em virtude de haver critrios de julgamento tambm distintos. Nesse sentido, julgamos mais correta a interpretao de Pappas, a qual discorda da tese de J. Annas de que a analogia entre poesia e pintura no vlida. No obstante o fato de que o autor percebe na primeira parte do livro X o problema de um avano precipitado na passagem do que dito sobre a pintura para a poesia, ao observar uma certa impreciso no uso do termo mimese por Plato, ele nos sugere que a nfase do livro X no recai sobre a imitao em si mesma, mas sobre o que chamamos a descrio mais geral de seu objeto, a aparncia de uma coisa em lugar da verdadeira natureza da coisa (p.212) Assim, segundo Pappas, o ponto fundamental da analogia entre a poesia e a pintura a concluso de que os poetas so to ignorantes quanto os pintores acerca da verdade relativa aos seus motivos (p. 213), tese que de fato nos parece merecer destaque na compreenso da crtica de Plato poesia como um todo.

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Assentemos, portanto, que, a principiar em Homero, todos os poetas so imitadores da imagem da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais compem, mas no atingem a verdade; mas, como ainda h pouco dissemos, o pintor far o que perece ser um sapateiro aos olhos dos que percebem to pouco de fazer sapatos como ele mesmo, mas julgam pela cor e pela forma? (600e-601a). Contudo, a partir da passagem na qual Scrates anuncia que far sua maior acusao poesia (605c), observamos uma considervel mudana no modo de conduo dos argumentos. Nessa fase final de sua crtica, Plato passa a no mais se apoiar nas relaes entre poesia e pintura que utilizava at ento para defender a posio de que a poesia, sendo uma forma de mimese, executa as suas obras longe da verdade, e, alm disso, convive com a parte de ns mesmos avessa ao bom senso (603b). Mas, antes de destacarmos algumas caractersticas da ltima fase da crtica, ve jamos como se desenvolve a crtica aos poetas e poesia mimtica que se apoia na anlise da pintura como paradigma do conceito de mimese. Para encontrarmos alguns dos objetivos da crtica nessa parte, observamos que h no texto passagens que colocam em paralelo duas razes diferentes para a comparao entre pintura e poesia. Um dos trechos aquele no qual Scrates, aps determinar que existe na alma dos indivduos um elemento que melhor, que faz f na medida e no clculo, e outro que, de modo contrrio, pior, diz: Era a este ponto que eu queria chegar, quando dizia que a pintura e, de um modo geral, a arte de imitar, executa as suas obras longe da verdade, e, alm disso, convive com a parte de ns mesmos avessa ao bom senso, sem ter em vista, nessa companhia e amizade, nada que seja so ou verdadeiro (603b) (grifo nosso). Verificamos tambm uma semelhante recapitulao dos objetivos presentes na utilizao da pintura como paradigma de imitao, na seguinte analogia feita por Scrates entre pintores e poetas: Por conseguinte, temos razo em nos atirarmos a ele (ao poeta) desde j, e em o colocar em simetria com o pintor. De fato, parece-se com ele no que toca a fazer trabalho de pouca monta em relao verdade; e, no fato de conviver com a outra parte da alma, sem ser a melhor... (605b) (grifo nosso). Assim, percebemos que ambas as passagens nos revelam as razes pelas quais a argumentao de Scrates se baseia na analogia com a pintura, nos mostrando dois objetivos diferentes de sua crtica poesia e aos poetas: provar que toda a imitao se encontra longe da verdade e que a poesia imitativa se associa ao pior elemento da alma do pblico.

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Contudo, devemos notar que no primeiro trecho citado, o alvo da crtica ainda no a poesia, mas a arte de imitar. Isso se deve ao fato de que a analogia entre a pintura e a poesia no feita por Plato de forma direta, medida que o filsofo procede sua argio primeiro analisando a pintura e a imitao em geral, com a finalidade definir o conceito de mimese, para somente depois, estabelecendo que a poesia tambm imitao, estender as mesmas concluses a ela. De fato, o prprio Plato, pelo menos quanto a considerao dos efeitos psicolgicos da mimese, parece no achar suficiente a desqualificao da poesia que se baseia no paradigma da pintura como observamos na seguinte afirmao de Scrates em 603b-c: No faamos f, contudo, apenas na semelhana com a pintura, mas avancemos at aquele setor do esprito que convive com a imitao potica, e vejamos se ele inferior ou valioso. Essa passagem pode ser considerada, portanto, um importante marco divisor no desenvolvimento da crtica. Dizemos isso, porque finalmente aqui Scrates retoma seu principal objetivo, tal como havia anunciado no incio do livro X: ...no aceitar a parte da poesia de carter mimtico (...) agora, segundo me parece, ainda mais claramente evidente, desde que definimos em separado cada uma das partes da alma. (596 a). Uma transio semelhante pode ser observada em 598d:Temos ento a considerar, depois disto, a tragdia e o seu corifeu, Homero..., medida que, somente aps toda uma anlise preliminar da mimese via pintura (595c-8d), Scrates volta sua ateno novamente poesia, procurando desqualificar os poetas e principalmente Homero por serem imitadores e, consequentemente, no possurem o conhecimento atribudo eles pelo pblico em geral16 . Desse modo, Scrates somente deixa de lado a anlise das relaes entre poesia e pintura ao anunciar sua maior acusao poesia, ou seja, a denuncia do dano que ela pode causar at s pessoas honestas (605c). Assim, outra mudana que verificamos nessa fase final do desenvolvimento da crtica que Scrates parece levar em conta a recepo da poesia por um tipo de pblico diferente do qual vinha considerando at agora. Se antes, com a utilizao da pintura como paradigma da noo de mimese, falava da recepo da poesia por um pblico comum como crianas e homens ignorantes (598c), pblico esse que em

16

Cf. D.Lopes (A Repblica Livro X Traduo, ensaio e comentrio crtico; p. 117-118) e

Halliwell (Plato: Republic 10 ; p.121)

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sua ingenuidade podia ser facilmente enganado por um charlato e um imitador (...), devido a ele no ser capaz de extremar a cincia da ignorncia e da imitao (598c-d), agora passa a considerar o dano que a poesia pode causar at s pessoas honestas17

. Portanto,

enquanto as razes apresentadas para que o poeta fosse banido da cidade em 605a-c se referiam unicamente sua relao com um pblico desqualificado, agora, para que a poesia, por sua vez, seja excluda da cidade perfeita, ser necessrio falar sobre sua recepo por um tipo de pblico de nvel mais elevado, o qual Scrates chamar em 605d de melhores os entre ns. Contudo, necessrio esclarecer que voltaremos a analisar com mais rigor esse assunto ao tratarmos dos alvos da crtica envolvidos na discusso sobre os efeitos da poesia, pois nossa inteno apresentar aqui apenas algumas observaes gerais sobre o desenvolvimento do livro X.

2. A produo e os efeitos da poesia

Em termos gerais, podemos dizer que a crtica de Scrates no livro X possui basicamente os dois objetivos: um que consiste em demonstrar que a poesia e o poeta, fazendo uso da mimese, imitam unicamente as aparncias das coisas e, por isso, se encontram longe da verdade; e, outro, o objetivo de censurar a poesia e os poetas em virtude dos efeitos malficos que causam na alma dos espectadores. A partir dessa constatao, se deixarmos de lado a diferena entre os dois modos de argumentao citados anteriormente, teremos ento uma nova forma de diviso do desenvolvimento da crtica. Para alcanar seu primeiro objetivo, Scrates desenvolve uma crtica poesia e aos poetas do ponto de vista da produo das obras, as quais so feitas atravs da mimese (595c 602c), como vemos, por exemplo em 598b: ... a arte de imitar est bem longe da verdade e se executa tudo, ao que parece, pelo fato de atingir apenas uma pequena poro de cada17

Nesse sentido, concordamos com de G. Ferrari (Plato and Poetry in The Cambridge History

of Literary Criticism) ao observar que a inteno desse ltimo trecho citado to prepare us for how poetry can trick a far more sophisticated audience (...) and with far more dangerous consequences (p. 128).

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coisa, que no passa de uma apario 18 . Para chegar ao segundo objetivo, Scrates passa a tratar dos efeitos causados por essas obras na alma do pblico (602c-6e), como de fa to o que conclui em 606d: quanto ao amor, a ira e a todas as paixes penosas ou aprazeis da alma, que afirmamos acompanharem todas as nossas aes, no produz em ns os mesmos efeitos a imitao potica? 19 . Temos, portanto, a discusso sobre a forma na qual a poesia produzida a partir do momento em que Scrates pergunta: Sers capaz de me dizer em geral o que a mimese? (595c) e a anlise dos efeitos, na segunda parte, por sua vez, tambm com uma pergunta de Scrates em 602c: Alm disso, em que parte do homem exerce o poder que detm?. Observaremos ainda, mais frente, uma outra caracterstica dessa diviso: a parte que trata dos efeitos da poesia tende a levar em conta a influncia que a poesia exerce sobre o pblico bem mais que a parte que julga a poesia por si mesma em virtude de sua forma de produo.18

G. Ferrari bem claro na abordagem do problema da mimese como forma de produo da

poesia. Segundo o autor, Scrates ao perguntar em 595 c o que a mimese, he is thinking of imitation in the first instance as a kind of making, the making of images (p.126).19

Pappas tambm observa essa ntida diviso dos argumentos que apontamos no

desenvolvimento da crtica. Segundo o autor, o argumento contra toda a poesia (p. 210) pode ser divido em: (1) A poesia imita as aparncias (595d-602c), parte que julgamos tratar da forma de produo potica; (2) A poesia apela s partes piores da alma (602c-6d), que se refere ao problema dos efeitos psicolgicos que a poesia causa nos espectadores; (3) A poesia deve ser banida da cidade perfeita, o que entendemos se tratar da concluso da crtica. Pappas ainda afirma que, como todo o esforo do livro X se concentra principalmente na discusso dos efeitos da poesia, o segundo argumento da crtica poesia em sua diviso deve ser considerado o mais importante, enquanto que o primeiro argumento desenvolvido somente em funo de introduzir o segundo . A diviso dos argumentos feita por J. Annas, por sua vez, tambm recai sobre nossa distino entre as partes da crtica baseada por um lado na caracterizao da produo e por outro nos efeitos provocados pela poesia. A autora analisa basicamente dois argumentos contra a poesia, ambos apoiados na analogia com a pintura: um primeiro que pretende mostrar que todos os artistas (595a602c) no tem nenhum acesso ao conhecimento (p. 425) e um segundo que se estende de 602c a 605d, no qual, segundo a autora, Plato deseja mostrar que a poesia refora a parte desejante e inferior da alma (p. 427).

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Porm, devemos ressalvar que essa diferenciao entre uma crtica baseada, por um lado, na caracterizao da produo potica e, por outro, nos efeitos que decorrem dessa produo, no pode ser considerada irrestrita e, nesse sentido, observamos que o assunto da poesia no livro X se mostra bem coeso. O fato que Scrates no s discute a forma de produo potica j abordando alguns efeitos dessa produo, como tambm, comea sua anlise dos efeitos da poesia na alma humana, ainda levando em conta alguns dados sobre o modo pelo qual a poesia era produzida a fim de gerar esses mesmos efeitos. Tomemos ento alguns exemplos da conexo entre produo e efeitos nessas duas partes do desenvolvimento da crtica no livro X. Quando na primeira parte (595c602c), a qual julgamos tratar predominantemente da produo potica, Scrates diz: parece-me que o poeta, por meio de imagens e frases capaz de colorir devidamente cada uma das artes sem entender delas mais do que saber imit-las de modo que a outros tais, que julgam pelas palavras, parecem falar muito bem (...) com metro, ritmo e harmonia.. Tal a grande seduo que estas tm, por si ss (601a-b), devemos levar em conta j dois efeitos que a poesia provoca nos espectadores 20 . Um dos efeitos, que diz respeito aos recursos de produo potica citados como o metro, ritmo e harmonia, a seduo que a poesia causa no pblico atravs do prazer que esses elementos suscitam. Plato, na concluso de sua crtica, voltar a se referir a esse efeito puramente hedonstico da poesia exatamente para afirmar seu vazio moral do ponto de vista da utilidade, mais precisamente em 607c-e: se a poesia imitativa voltada para o prazer tiver argumentos para provar que deve estar presente numa cidade bem governada, a receberemos com gosto, pois temos conscincia do encantamento que sobre ns exerce (...) Concederemos certamente aos seus defensores, ... que fal