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1 RENÉ DESCARTES DISCURSO DO MÉTODO PARA BEM CONDUZIR A PRÓPRIA RAZÃO E PROCURAR A VERDADE NAS CIÊNCIAS Tradução de Jacob Guinsburg e Bento Prado Jr. Notas de Gérard Lebrun

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Edição do Discurso do Método de René Descartes otimizada para leitura em eReaders.

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  • 1

    REN DESCARTES

    DISCURSO DO

    MTODO

    PARA BEM CONDUZIR A PRPRIA

    RAZO

    E PROCURAR A VERDADE NAS

    CINCIAS

    Traduo de Jacob Guinsburg e BentoPrado Jr.

    Notas de Grard Lebrun

  • in Obras escolhidas. Introduo de

    Gilles-Gaston Granger; prefcio e notas deGrardLebrun; traduo de Jacob Guinsburg e Bento Prado Jr. So Paulo: Difel DifusoEuropia do Livro, 1962 (col. Clssicos Garnier);

    21973, pp. 39-103. A paginao aquiindicada (|

    39) a da 2 ed. de 1973.

    Reproduzida na col. Os Pensadores. So

    Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. #; 21979, pp.25-71. A paginao aqui indicada (|

    25) a da 2

    ed. de 1979.

    H algumas diferenas entre as duas ediesquanto pontuao, em especial vrgulas; estosublinhados os erros tipogrficos da reproduoda col. Os Pensadores, assim como asretificaes aqui inseridas; as notasassinaladas com asterisco (*) no estavamnumeradas na ed. Difel, da a diferena comrelao numerao das notas da ed. da col.Os Pensadores.

    [Original francs: Discours de la mthode,

    pour bien conduire la raison, & chercher lavrit dans les sciences ... Leiden: Jan Maire,1637; in uvres de Descartes. Publies par Ch.

  • Adam et P. Tannery. Paris: ditions du Cerf,

    1897-1913; reimpresso revista sob a dir. de B.Rochot e P. Costabel. Paris: J. Vrin/CNRS,1964-74, 11 vols.; reimpresso: Paris, J. Vrin,

    1996, 11vols. O Discours encontra-se no vol.VI, pp. 1-78].

    2

    |39|25 DISCURSO

    DO MTODO

    PARA BEM CONDUZIR A

    PRPRIA RAZO

    E PROCURAR A VERDADE NAS

    CINCIAS1

    |26

    [em branco]

  • |27

    Advertncia

    Se este discurso parecer demasiado

    longo para ser lido de uma s vez, poder-se-

    dividi-lo em seis partes. E, na primeira,

    encontrar-se-o diversas consideraes

    atinentes s cincias. Na segunda, as principais

    regras do mtodo que o Autor buscou. Na

    terceira, algumas das regras da Moral que

    tirou desse mtodo. Na quarta, as razes pelas

    quais prova a existncia de Deus e da alma

    humana, que so os fundamentos de sua

    metafsica. Na quinta, a ordem das questes de

    Fsica que investigou, e, particularmente, a

    explicao do movimento do corao e

    algumas outras dificuldades que concernem Medicina, e depois tambm a diferena que hentre nossa alma e a dos animais. E, na

    ltima, que coisas cr necessrias para ir mais

    adiante do que foi na pesquisa da natureza e

  • que razes o levaram a escrever.

    |40|28

    [em branco]

    1. O primeiro ttulo em que pensou o autor era:Projeto de uma Cincia universal que possa elevar anossa natureza ao seu mais alto grau de perfeio. Mais osMeteoros, a Diptrica e a Geometria, onde as mais curiosasmatrias que o autor pde escolher para dar prova dacincia universal que ele prope so tratadas de tal modoque mesmo aqueles que no estudaram podementend-las. No se deve esquecer que a obra constituiuma apenas uma Introduo, que perde muito de seusentido quando separada dos trs ensaios que ela antecede.

    3

    |41|29

    PRIMEIRA PARTE

    [1] O bom senso a coisa do mundo

    melhor partilhada, pois cada qual pensa estar

    to bem provido dele, que mesmo os que so

    mais difceis de contentar em qualquer outra

  • coisa no costumam desejar t-lo mais do queo tm. E no verossmil que todos se

    enganem a tal respeito; mas isso antes

    testemunha que o poder de bem julgar e

    distinguir o verdadeiro do falso, que

    propriamente o que se denomina o bom senso

    ou a razo, naturalmente igual em todos os

    homens; e, destarte, que a diversidade de

    nossas opinies no provm do fato de serem

    uns mais racionais do que outros, mas

    somente de conduzirmos nossos pensamentos

    por vias diversas e no considerarmos asmesmas coisas. Pois no suficiente ter o

    esprito bom, o principal aplic-lo bem. As

    maiores almas so capazes dos maiores vcios,

    tanto quanto das maiores virtudes, e os que s

    andam muito lentamente podem avanar muito

    mais, se seguirem sempre o caminho reto, doque aqueles que correm e dele se distanciam.

    [2] Quanto a mim, jamais presumi que

    meu esprito fosse em nada mais perfeito do que

  • os do comum; amide desejei mesmo ter o

    pensamento to rpido, ou a imaginao to

    ntida e distinta, ou a memria to ampla ou to

    presente, quanto alguns outros. E no sei de

    quaisquer outras qualidades, exceto as que

    servem perfeio do esprito; pois, quanto razo ou ao senso, posto que a nica coisa

    que nos torna homens e nos distingue dos

    animais, quero crer que existe inteiramente em

    cada um, e seguir nisso a opinio comum dos

    filsofos, que dizem no haver mais nemmenos seno entre os acidentes, e no entre

    as formas ou naturezas dos indivduos de uma

    mesma espcie 2.

    |42

    [3] Mas no temerei dizer que

    penso ter tido muita felicidade de me haver

    encontrado, desde a juventude, em certos

    caminhos, que me conduziram a consideraes

    e mximas, de que formei um mtodo, pelo qual

    me parece que eu tenha meio de aumentar

    gradualmente meu conhecimento, e de al-lo,

  • pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a

    mediocridade de meu esprito e a curta durao

    de minha vida lhe permitam atingir3.

    Pois j

    colhi dele tais frutos que, embora no juzo que

    fao de mim prprio eu procure pender mais

    para o lado da desconfiana do que para o da

    presuno, e que, mirando com um olhar de

    filsofo as diversas aes e empreendimentos de

    todos os homens, no haja quase

    2. acidente o que pertence a um ser sem pertencer sua essncia. Os filsofos designam, como sempreem Descartes, os escolsticos.

    3. Cf. a definio de sabedoria (assimilada cincia) no Prefcio dos Princpios: O perfeitoconhecimento de todas as coisas que o homem podesaber, tanto para a conduta da vida quanto para aconservao da sade e a inveno de todas as artes.

    4

    nenhum que no me parea vo e intil, no

    deixo de obter extrema |30

    satisfao do

    progresso que penso j ter feito na busca da

  • verdade e de conceber tais esperanas para o

    futuro que, se entre as ocupaes dos homens

    puramente homens4,

    h alguma que seja

    solidamente boa e importante, ouso crer que

    aquela que escolhi.

    [4] Todavia, pode acontecer que me

    engane, e talvez no passe de um pouco de cobre

    e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei

    como estamos sujeitos a nos equivocar no que

    nos tange, e como tambm nos devem ser

    suspeitos os juzos de nossos amigos, quandoso a nosso favor. Mas estimaria muito mostrar,

    neste discurso, quais os caminhos que segui, e

    representar nele a minha vida como num

    quadro, para que cada qual possa julg-la e

    que, informado pelo comentrio geral das

    opinies emitidas a respeito dela, seja este um

    novo meio de me instruir, que juntarei queles

    de que costumo me utilizar.

    |43

    [5] Assim, o meu desgnio no ensinar aqui o mtodo que cada qual deve

  • seguir para bem conduzir sua razo, mas apenas

    mostrar de que maneira me esforcei por

    conduzir a minha. Os que se metem a dar

    preceitos devem considerar-se mais hbeis do

    que aqueles a quem as do; e, se falham na

    menor coisa, so por isso censurveis. Mas, no

    propondo este escrito seno como uma histria,

    ou, se o preferirdes, como uma fbula, na qual,

    entre alguns exemplos que se podem imitar, se

    encontraro talvez tambm muitos outros que se

    ter razo de no seguir, espero que ele ser til

    a alguns, sem ser nocivo a ningum, e que todos

    me sero gratos por minha franqueza.

    [6] Fui nutrido nas letras 5 desde a

    infncia, e por me haver persuadido de que,

    por meio delas, se podia adquirir um

    conhecimento claro e seguro de tudo o que

    til vida, sentia extraordinrio desejo deaprend-las. Mas, logo que terminei esse curso

    de estudos, ao cabo do qual se costuma serrecebido na classe dos doutos, mudei

  • inteiramente de opinio. Pois me achava

    enleado em tantas dvidas e erros, que me

    parecia no haver obtido outro proveito,

    procurando instruir-me, seno o de ter

    descoberto cada vez mais a minha ignorncia. E,

    no entanto, estivera numa das mais clebres

    escolas da Europa6,

    onde pensava que deviam

    existir homens sapientes, se que existiam em

    algum lugar da Terra.

    4. Os homens puramente homens so homens

    considerados ao nvel da exclusiva luz natural,abstraindo-se qualquer assistncia que Deus possaproporcionar-lhes. doutrina constante em Descartes queo filsofo deva deixar ao telogo toda investigao dosobrenatural: Para o filsofo, basta considerar o homemna medida em que, nas coisas naturais, s depende de si;e eu, de meu lado, escrevi minha filosofia de modo quepossa ser recebida em toda parte, mesmo entre osturcos, e que eu no cause escndalo a ningum (Col.com Burman, A.T. VI, 550). No devemos submeter ateologia a raciocnios.

    5. Isto : a Gramtica, a Histria, a Poesia, a Retrica.

  • 6. O colgio dos jesutas de La Flche, fundado em1604, onde Descartes entrou em 1606. Descartes nuncadepreciou La Flche, como pretende a lenda,permanecendo sempre em bons termos com seus mestres.Assim, a excelncia do ensino em La Flche s acusamelhor ainda a insuficincia da tradio cultural.

    5

    Aprendera a tudo o que os outros aprendiam,e mesmo, no me tendo contentado com

    cincias que nos ensinavam, percorrera todos

    os livros que tratam daquelas que soconsideradas as mais curiosas e as mais raras,

    que vieram a cair em minhas mos. Alm disso,

    eu conhecia os juzos que os outros faziam de

    mim; e no via de modo algum que me

    julgassem inferior a meus condiscpulos,

    embora entre eles houvesse alguns j

    destinados a preencher os lugares de nossos

    mestres. E, enfim, o nosso sculo parecia-me

    to florescente e to fr- |31 til em bons espritos

    como qualquer dos precedentes. O que me levava

  • a tomar a liberdade de julgar por mim todos os

    outros e de pensar que no existia doutrina no

    mundo que fosse tal como dantes me haviam

    feito esperar.

    |44

    [7] No deixava, todavia, de estimar

    os exerccios com os quais se ocupam nas

    escolas. Sabia que as lnguas que nelas se

    aprendem so necessrias ao entendimento dos

    livros antigos; que a gentileza das fbulas

    desperta o esprito; que as realizaes

    memorveis das histrias o alevantam, e que,

    sendo lidas com discrio, ajudam a formar o

    juzo; que a leitura de todos os bons livros

    igual a uma conversao com as pessoas mais

    qualificadas dos sculos passados, queforam seus autores, e at uma conversao

    premeditada, na qual eles nos revelam

    to-somente os melhores de seus pensamentos;

    que a eloqncia tem foras e belezas

    incomparveis; que a poesia tem delicadezas e

    ternuras muito encantadoras; que as Matemticas

  • tm invenes bastante sutis, e que podem

    servir muito, tanto para contentar os curiosos,

    quanto para facilitar todas as artes e diminuir

    o trabalho dos homens; que os escritos

    que tratam dos costumes contm muitos

    ensinamentos e muitas exortaes virtude queso muito teis; que a Teologia ensina a ganhar

    o cu; que a Filosofia d meio de falar comverossimilhana de todas as coisas e de se fazer

    admirar pelos menos eruditos; que a

    Jurisprudncia, a Medicina e as outras

    cincias trazem honras e riquezas queles que

    as cultivam; e, enfim, que bom t-lasexaminado a todas, at mesmo as mais

    supersticiosas e as mais falsas, a fim de

    conhecer-lhes o justo valor e evitar ser por elas

    enganado.

    [8] Mas eu acreditava j ter dedicado

    bastante tempo s lnguas, e mesmo tambm leitura dos livros antigos, s suas histrias e

    s suas fbulas. Pois quase o mesmo que

  • conversar com os de outros sculos, o viajar. bom saber algo dos costumes de diversospovos, a fim de que julguemos os nossos mais

    smente e no pensemos que tudo quanto

    contra os nossos modos ridculo e contrrio razo, como soem proceder os que nadaviram. Mas, quando empregamos demasiado

    tempo em viajar, acabamos tornando-nos

    estrangeiros em nossa prpria terra; e quando

    somos demasiado curiosos das coisas que se

    praticavam nos sculos passados, ficamos

    6

    praticam no presente. Alm do mais, as

    fbulas fazem imaginar como possveis muitos

    eventos que no o so, e mesmo as histriasmais fiis, se no mudam nem alteram o valor

    das coisas para torn-las mais dignas de serem

    lidas, ao menos omitem quase sempre ascircunstncias mais baixas e menos ilustres, de

    onde resulta que o resto no parece tal qual , e

  • que aqueles que regulam os seus costumes

    pelos exemplos que deles tiram esto sujeitos

    a cair nas extravagncias |45 dos paladinos de

    nossos romances e a conceber desgnios que

    ultrapassam suas foras 7.

    [9] Eu apreciava muito a eloqncia e

    estava enamorado da poesia; mas pensava que

    uma e outra fossem dons do esprito, mais do

    que frutos do estudo. Aqueles cujo raciocnio

    mais vigoroso e que melhor digerem 8 seus

    pensamentos, a fim de torn-los claros e

    inteligveis, podem sempre persuadir melhor os

    outros daquilo que pro- |32 pem, ainda que

    falem apenas baixo breto 9 e nunca tenham

    aprendido retrica. E aqueles cujas invenes

    so mais agradveis e que as sabem exprimircom o mximo de ornamento e doura no

    deixariam de ser os melhores poetas, ainda que

    a arte potica lhes fosse desconhecida 10.

    [10] Comprazia-me sobretudo com asMatemticas, por causa da certeza e da

  • evidncia de suas razes; mas no notava ainda

    seu verdadeiro emprego, e, pensando que

    serviam apenas s artes mecnicas,

    espantava-me de que, sendo seus fundamentosto firmes e to slidos, no se tivesse edificado

    sobre eles nada de mais elevado11.

    Tal como, ao

    contrrio, eu comparava os escritos dos

    antigos pagos que tratam de costumes a

    palcios muito soberbos e magnficos,

    erigidos apenas sobre a areia e a lama.

    Erguem muito alto as virtudes e apresentam-nascomo as mais estimveis entre todas as coisas

    que existem no |46 mundo; mas no ensinam

    bastante a conhec-las, e amide o quechamam com um nome to belo no seno uma

    insensibilidade, ou um orgulho, ou um

    desespero, ou um parricdio 12.

    7. Descartes dir que as lnguas, a Geografia, aHistria, so adquiridas sem nenhum discurso da razo:

    elas recorrem apenas memria, jamais razo. Essa

  • distino entre as cincias racionais e histricas fundamental nos Clssicos; ser mantida por Kant.

    8.* Digerem: ordenam, segundo o sentido primitivo dolatim digerere, cf. Littr [(N. do T.)].

    9. Sinal da pouca importncia que Descartesconcede lngua: todo pensamento pode exprimir-se emqualquer lngua.

    10. As regras da arte no so de menosprezar, masem arte no h mtodo e nela o aprendizado tem s umapequena parte. Este primado reconhecido inspiraoatesta a mutao ocorrida na condio do artista,embora o sculo XVII ainda o denomine arteso.

    11. Parece que o ensino das Matemticas eraministrado tendo sobretudo em mira as suas aplicaestcnicas (cartografia, fortificaes, agrimensura). Gilson

    observa que este carter aplicado das matemticas deviatornar ainda mais estranha a fsica aristotlica que eraensinada ao mesmo tempo. Ele cita, em apoio, um textoantiaristotlico de Clavius, autor de um compndio deMatemtica versado por Descartes.

    12. Aluso aos esticos.

    7

    [11] Eu reverenciava a nossa Teologia e

    pretendia, como qualquer outro, ganhar o cu;

  • mas, tendo aprendido, como coisa muito

    segura, que o seu caminho no est menos

    aberto aos mais ignorantes do que aos mais

    doutos e que as verdades reveladas que para l

    conduzem esto acima de nossa inteligncia,

    no me ousaria submet-las fraqueza demeus raciocnios, e pensava que, paraempreender seu exame e lograr xito, era

    necessrio ter alguma extraordinria assistncia

    do cu e ser mais do que homem.

    [12] Da filosofia nada direi, seno que,

    vendo que foi cultivada pelos mais excelsos

    espritos que viveram desde muitos sculos e

    que, no entanto, nela no se encontra ainda uma

    s coisa sobre a qual no se dispute, e por

    conseguinte que no seja duvidosa, eu no

    alimentava qualquer presuno de acertar

    melhor do que outros; e que, considerando

    quantas opinies diversas, sustentadas por

    homens doutos, pode haver sobre uma e mesma

    matria, sem que jamais possa existir mais de

  • uma que seja verdadeira, reputava quase como

    falso tudo quanto era somente verossmil 13.

    [13] Depois, quanto s outras cincias, na

    medida em que tomam seus princpios da

    Filosofia, julgava que nada de slido se

    podia construir sobre fundamentos to pouco

    firmes. E nem a honra, nem o ganho que elas

    prometem, eram suficientes para me incitar a

    aprend-las; pois no me sentia, de modo

    algum, graas a Deus, numa condio que me

    obrigasse a converter a cincia num mister, para

    o alvio de |33 minha fortuna; e conquanto no

    fizesse profisso de desprezar a glria como um

    cnico, fazia, entretanto, muito pouca questo

    daquela que eu s podia esperar adquirir com

    falsos ttulos. E enfim, quanto s ms doutrinas,

    pensava j conhecer bastante o que valiam,

    para no mais estar exposto a ser enganado,

    nem pelas pro- |47 messas de um alquimista,

    nem pelas predies de um astrlogo, nem

    pelas imposturas de um mgico, nem pelos

  • artifcios ou jactncias de qualquer dos que

    fazem profisso de saber mais do que sabem.[14] Eis por que, to logo a idade me

    permitiu sair da sujeio de meus preceptores,

    deixei inteiramente o estudo das letras. E,

    resolvendo-me a no mais procurar outra cincia

    alm daquela que poderia achar em mim

    prprio, ou ento no grande livro do mundo,

    empreguei o resto de minha mocidade em

    viajar, em ver cortes e exrcitos, em freqentar

    gente de diversos humores e condies, em

    recolher diversas experincias, em provar a

    mim mesmo nos reencontros que a fortuna

    me propunha e, por toda parte, em fazer tal

    reflexo sobre as coisas que se me

    apresentavam, que eu pudesse delas tirar

    algum

    13. Descartes visa aqui disputa escolstica quese convertera em exerccio escolar e ao hbito dos

    professores de citar e refutar as opinies de diferentes8tifiques de Descartes).

  • proveito. Pois afigurava-se-me poder encontrar

    muito mais verdade nos raciocnios que cada

    qual efetua no que respeitante aos negcios

    que lhe importam, e cujo desfecho, se julgou

    mal, deve puni-lo logo em seguida, do que

    naqueles que um homem de letras faz em seu

    gabinete, sobre especulaes que no

    produzem efeito algum e que no lhe trazem

    outra conseqncia seno talvez a de lhe

    proporcionarem tanto mais vaidade quanto mais

    distanciadas do senso comum, por causa do

    outro tanto de esprito e artifcio que precisou

    empregar no esforo de torn-las

    verossmeis14.

    E eu sempre tive um imenso

    desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do

    falso, para ver claro nas minhas aes e

    caminhar com segurana nesta vida.

    [15] certo que, enquanto me limitava aconsiderar os costumes dos outros homens,

    pouco encontrava que me satisfizesse, pois

    advertia neles quase tanta diversidade como a

  • que notara anteriormente entre as opinies dos

    filsofos. De modo que o maior proveito que

    da tirei foi que, vendo uma poro de

    coisas que, embora nos paream muito

    extravagantes e ridculas, no deixam de ser

    comumente acolhidas e aprovadas por outros

    grandes povos, aprendi a no crer

    demasiado firmemente em nada do que me

    fora inculcado s pelo exemplo e pelo costume;

    e, assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos

    erros que podem ofuscar a nossa luz natural e

    nos tornar menos capazes de ouvir a razo. |48

    Mas, depois que empreguei alguns anos emestudar assim no livro do mundo, e em

    procurar adquirir alguma experincia, tomei umdia a resoluo de estudar tambm a mim

    prprio e de empregar todas as foras de meu

    esprito na escolha dos caminhos que devia

    seguir15.

    O que me deu muito mais resultado,

    parece-me, do que se jamais tivesse me

    afastado de meu pas e de meus livros.

  • |34

    SEGUNDA PARTE

    [1] Achava-me, ento, na Alemanha,para onde fora atrado pela ocorrncia dasguerras, que ainda no findaram, e, quando

    retornava da coroao do imperador16 para o

    nossos manuais de Filosofia) pensa que a verdade uma s (no havendo seno uma verdade de cadacoisa...) e que ela compele todos os espritos aoassentimento.

    14. Notar bem que toda essa passagem constitui amais brutal e desdenhosa condenao da Filosofia comodisciplina e como profisso, tal como a concebemos aindaatualmente

    15. Aps a experincia do mundo e a observaodos costumes, a fundao da cincia. Na realidade, oscortes no foram inopinados. Os anos de que nos falaDescartes no foram anos de preguia intelectual (cf. G.Milhaud, Descartes Savant, Les premiers essais

    scientifiques de Descartes).

    16. As festas da coroao celebraram-se de julho asetembro de 1619. O episdio da pole , em geral,situado nos primeiros dias de novembro de 1619.

  • 9

    exrcito, o incio do inverno me deteve num

    quartel, onde, no encontrando nenhuma

    freqentao que me distrasse, e no

    tendo, alm disso, por felicidade, quaisquer

    solicitudes ou paixes que me perturbassem,

    permanecia o dia inteiro fechado sozinho num

    quarto bem aquecido onde dispunha de todo

    o vagar para me entreter com os meus

    pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi

    que me lembrei de considerar que, amide, no

    h tanta perfeio nas obras compostas de

    vrias peas, e feitas pela mo de diversos

    mestres, como naquelas em que um s

    trabalhou. Assim, v-se que os edifcios

    empreendidos e concludos por um s

    arquiteto costumam ser mais belos e melhor

    ordenados do que aqueles que muitos

    procuraram reformar, fazendo uso de velhas

    paredes construdas para outros fins. Assim,

  • essas antigas cidades que, tendo sido no

    comeo pequenos burgos, tornaram-se no

    decorrer do tempo grandes centros, so

    ordinariamente to mal compassadas, em

    comparao com essas praas regulares,traadas por um engenheiro sua fantasianuma plancie, que, embora considerando seus

    edifcios cada qual parte, se encontre nelesmuitas vezes tanta ou mais arte que nos das

    outras, todavia, a ver como se acham arranjados,

    aqui |49 um grande, ali um pequeno, e como

    tornam as ruas curvas e desiguais, dir-se-ia que

    foi mais o acaso do que a vontade de alguns

    homens usando da razo que assim os disps. E

    se se considerar que, apesar de tudo, sempre

    houve funcionrios com o encargo de fiscalizar

    as construes dos particulares para torn-las

    teis ao ornamento do pblico,

    reconhecer-se- realmente que penoso,

    trabalhando apenas nas obras de outrem, fazer

    coisas muito acabadas. Assim, imaginei que os

  • povos, que, tendo sido outrora semi-selvagens

    e s pouco a pouco se tendo civilizado, no

    elaboraram suas leis seno medida que aincomodidade dos crimes e das querelas a tanto

    os compeliu, no poderiam ser to bem

    policiados17 como aqueles que, a comear do

    momento em que se reuniram observaram as

    constituies de algum prudente legislador. Tal

    como bem certo que o estado da verdadeira

    religio, cujas ordenanas s Deus fez, deve ser

    incomparavelmente melhor regulamentado do

    que todos os outros. E, para falar das coisas

    humanas, creio que, se Esparta foi outrora

    muito florescente, no o deveu bondade decada uma de suas leis em particular, visto que

    muitas eram bastante alheias e mesmo contrrias

    aos bons costumes, mas ao fato de que,

    havendo sido inventadas apenas por um s,

    tendiam todas ao mesmo fim. E assim pensei

    que as cincias dos livros, ao menos aquelas

    cujas razes so apenas provveis e que

  • no apresentam quaisquer demonstraes, pois

    se compuseram e avolumaram pouco a pouco

    com opi- |35

    nies de

    17.* Policiados: de policiar (policer), no sentido de10

    mui diversas pessoas, no se acham, de modo

    algum, to prximas da verdade quanto os

    simples raciocnios que um homem de bom

    senso pode fazer naturalmente com respeito s

    coisas que se lhe apresentam. E assim ainda,

    pensei que, como todos ns fomos crianasantes de sermos homens, e como nos foi

    preciso por muito tempo sermos governados

    por nossos apetites e nossos preceptores, que

    eram amide contrrios uns aos outros, e que,

    nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos

    aconselhassem o melhor, quase impossvel que

    nossos juzos sejam to puros ou to slidoscomo seriam, se tivssemos o uso inteiro de

  • nossa razo desde o nascimento e se no

    tivssemos sido guiados seno por ela 18.

    |50

    [2] certo que no vemos em partealguma lanarem-se por terra todas as casas deuma cidade, com o exclusivo propsito de

    refaz-las de outra maneira, e de tornar assim

    suas ruas mais belas; mas v-se na realidade

    que muitos derrubam as suas para reconstru- las,sendo mesmo algumas vezes obrigados a

    faz-lo, quando elas correm o perigo de cair por

    si prprias, por seus alicerces no se estarem

    muito firmes. A exemplo disso, persuadi-me de

    que verdadeiramente no seria razovel que

    um particular intentasse reformar um Estado,mudando-o em tudo desde os fundamentos e

    derrubando-o para reergu-lo; nem tampouco

    reformar o corpo das cincias ou a ordem

    estabelecida nas escolas para ensin- las; mas

    que, no tocante a todas as opinies que atento acolhera em meu crdito, o melhor a

    fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a

  • retirar-lhes essa confiana, a fim de substitu-las

    em seguida ou por outras melhores, ou ento

    pelas mesmas, aps t-las ajustado ao nvel da

    razo. E acreditei firmemente que, por este

    meio, lograria conduzir minha vida muito

    melhor do que se a edificasse apenas sobre

    velhos fundamentos, e me apoiasse to-somente

    sobre princpios de que me deixara persuadir

    em minha juventude, sem ter jamais examinadose eram verdadeiros. Pois, embora notasse nesta

    tarefa diversas dificuldades, no eram todavia

    irremediveis, nem comparveis s que se

    encontram na reforma das menores coisas

    atinentes ao pblico. Esses grandes corpos

    so demasiado difceis de reerguer quando

    abatidos, ou mesmo de suster quando abalados,

    e suas quedas no podem deixar de ser muito

    rudes. Pois, quanto s suas imperfeies, se as

    tm, como a mera diversidade existente entre

    eles basta para assegurar que as tm numerosas,

    o uso sem dvida as suavizou, e mesmo evitou e

  • corrigiu insensivelmente um grande nmero s

    quais no se poderia to bem remediar por

    prudncia. E, enfim, so quase sempre mais

    suportveis do que o seria a sua mudana; da

    mesma forma que os grandes caminhos, que

    18. Desprezo pela erudio livresca, oposio da

    razo histria, da evidncia conquistada por nsmesmos ao preconceito herdado da tradio; estesleitmotiv cartesianos em parte alguma se acham melhor concentrados.

    11

    volteiam entre montanhas, se tornam pouco apouco to batidos e to cmodos, fora deserem freqentados, que bem melhor

    segui-los do que tentar ir mais reto, escalando

    por cima dos rochedos e descendo at o fundo

    dos precipcios.

    [3] Eis por que no poderia de

    forma alguma aprovar esses temperamentos

  • perturbadores e inquietos que, no sendo cha-

    |51

    mados, nem pelo nascimento, nem pela

    fortuna, ao manejo dos negcios pblicos, no

    deixam de neles praticar sempre, em idia,

    alguma nova reforma. E se eu pensasse haver

    neste escrito a menor coisa que |36 pudesse

    tornar-me suspeito de tal loucura, ficaria muito

    pesaroso de ter aceito public-lo. Nunca o meu

    intento foi alm de procurar reformar meus

    prprios pensamentos, e construir num terreno

    que todo meu. De maneira que, se, tendo

    minha obra me agradado bastante, eu vos

    mostro aqui o seu modelo, nem por isso quero

    aconselhar algum a imit-lo. Aqueles a quem

    Deus melhor partilhou suas graas alimentaro

    talvez desgnios mais elevados; mas temo

    bastante que j este seja ousado demais para

    muitos. A simples resoluo de se desfazer de

    todas as opinies a que se deu antes crdito

    no um exemplo que cada qual deva seguir; e

    o mundo compe-se quase to-somente de

  • duas espcies de espritos, aos quais ele no

    convm de modo algum. A saber, daqueles

    que, crendo-se mais hbeis do que so, no

    podem impedir-se de precipitar seus juzos,

    nem ter suficiente pacincia para conduzir por

    ordem todos os seus pensamentos: da resulta

    que, se houvessem tomado uma vez a liberdade

    de duvidar dos princpios que aceitaram e dese apartar do caminho comum, nunca

    poderiam ater-se senda que precisotomar para ir mais direito, e permaneceriam

    extraviados durante toda a vida; depois,

    daqueles que, tendo bastante razo, ou

    modstia, para julgar que so menos capazes de

    distinguir o verdadeiro do falso do que alguns

    outros, pelos quais podem ser instrudos,

    devem antes contentar-se em seguir as opinies

    desses outros, do que procurar por si prprios

    outras melhores.

    [4] E, quanto a mim, estaria sem dvida

    no nmero destes ltimos, se eu tivesse tido um

  • nico mestre, ou se nada soubesse das

    diferenas havidas em todos os tempos entre as

    opinies dos mais doutos. Mas, tendo

    aprendido, desde o Colgio, que nada se

    poderia imaginar to estranho e to pouco crvel

    que algum dos filsofos j no houvesse dito;

    e depois, ao viajar, tendo reconhecido que

    todos os que possuem sentimentos muito

    contrrios aos nossos nem por isso so brbaros

    ou selvagens, mas que muitos usam, tanto ou

    mais do que ns, a razo; e, tendo considerado

    o quanto um mesmo homem, com o seu mesmo

    esprito, sendo criado desde a infncia entre

    franceses ou alemes, torna-se diferente do que

    seria se vivesse sempre entre chineses ou

    canibais; e como, at nas modas de nossos trajes,

    a mesma coisa que nos agradou h |52 dez anos,

    12

    ainda antes de decorridos outros dez, nos parece

    agora extravagante e ridcula, de sorte que so

  • bem mais o costume e o exemplo que nos

    persuadem do que qualquer conhecimento certo

    e que, no obstante, a pluralidade das vozes

    no prova que valha algo para as verdades

    um pouco difceis de descobrir, por ser bem

    mais verossmil que um s homem as tenha

    encontrado do que todo um povo: eu no podia

    escolher ningum cujas opinies me parecessem

    dever ser preferidas s de outrem, e achava-me

    como compelido a tentar eu prprioconduzir-me.

    [5] Mas, como um homem que caminhas e nas trevas, resolvi ir to lentamente, e usar

    de tanta circunspeco em todas as coisas,

    que, mesmo se avanasse muito pouco, evitaria

    pelo menos cair. No quis de modo algum

    comear rejeitando inteiramente qualquer das

    opinies que porventura se insinuaram outrora

    em minha confiana, sem que a fossem

    introduzidas pela razo, antes de despender

    bastante tempo em elaborar o projeto da obra

  • que ia empreender, e em procurar o

    verdadeiro mtodo para chegar ao |37

    conhecimento de todas as coisas de que meu

    esprito fosse capaz 19.

    [6] Eu estudara um pouco, sendo mais

    jovem, entre as partes da Filosofia, a Lgica, e,entre as Matemticas, a Anlise dos

    gemetras20 e a lgebra, trs artes ou cincias

    que pareciam dever contribuir com algo para o

    meu desgnio. Mas, examinando-as, notei que,

    quanto Lgica, os seus silogismos e a maiorparte de seus outros preceitos servem mais para

    explicar a outrem as coisas j se sabem, ou

    mesmo, como a arte de Llio, para falar, sem

    julgamento, daquelas que se ignoram, do

    que para aprend-las. E embora ela contenha,

    com efeito, uma poro de preceitos muitoverdadeiros e muito bons, h todavia tantos

    outros misturados de permeio que so ou

    nocivos, |53 ou suprfluos, que quase to difcil

    separ-los quanto tirar uma Diana ou uma

  • Minerva de um bloco de mrmore que nem

    sequer est esboado. Depois, com respeito Anlise dos Antigos e lgebra dos modernos,alm de se estenderem apenas a matrias muito

    abstratas, e de no parecerem de nenhum uso, a

    primeira permanece sempre to adstrita considerao das figuras que no pode exercitar

    o entendimento sem fatigar muito a

    imaginao; e esteve-se de tal forma sujeito, na

    segunda, a certas regras e certas cifras, que

    se fez dela uma arte confusa e obscura que

    embaraa o esprito, em lugar de uma cincia

    que o cultiva. Por esta causa,

    19. Houve, portanto, um intervalo entre as reflexes

    de novembro de 1619 e a elaborao do mtodo. Alis,

    este no resulta daquelas, porm bem mais dos trabalhos

    matemticos em curso (construo, por meio de uma

    parbola, de todos os problemas dos slidos do terceiro e

    quarto graus).

  • 20. A Anlise designa aqui o mtodo que consiste

    em supor conhecida a linha desconhecida, em

    estabelecer as relaes que a ligam a grandezas

    conhecidas, at que se possa constru-la a partir destas

    relaes. Entre os Antigos, esse mtodo (vlido para

    outros domnios, alm da Geometria) se apresenta sob a

    forma geomtrica.

    13

    pensei ser mister procurar algum outro mtodo

    que, compreendendo as vantagens desses

    trs, fosse isento de seus defeitos. E, como a

    multido de leis fornece amide escusas aos

    vcios, de modo que um Estado bem

    melhor dirigido quando, tendo embora muito

    poucas, so estritamente cumpridas; assim, em

    vez desse grande nmero de preceitos de que

    se compe a Lgica, julguei que me

    bastariam os quatro seguintes 21, desde que

  • tomasse a firme e constante resoluo de no

    deixar uma s vez de observ-los.

    [7] O primeiro era o de jamais acolher alguma

    coisa como verdadeira que eu no

    conhecesse evidentemente como tal; isto , de

    evitar cuidadosamente a precipitao e a

    preveno22, e de nada incluir em meus

    juzos que no se apresentasse to clara e to

    distintamente23 a meu esprito, que eu no

    tivesse nenhuma ocasio de p-lo em dvida.

    |54

    [8] O segundo, o de dividir cada uma

    |38

    das dificuldades que eu examinasse em tantas

    parcelas quantas possveis e quantas necessrias

    fossem para melhor resolv-las 24.

    [9] O terceiro, o de conduzir por ordem meus

    pensamentos, comeando pelos objetos

    mais simples e mais fceis de conhecer, para

    subir, pouco a pouco, como por degraus, at o

  • conhecimento dos mais compostos, e supondo

    mesmo uma ordem entre os que no se

    precedem naturalmente uns aos outros 25.

    21. Leibniz foi o primeiro a zombar da banalidadedeste mtodo. E verdade que o Mtodo est contido maisnas Regulae do que nessa apresentao esotrica. Noobstante, a leitura da Geometria o nico dos trsensaios que, segundo o Autor, prova a validade domtodo mostra o quanto esta banalidade aparente.Separadas desta referncia, compreendidas comopreceitos gerais, as regras seriam, na verdade, poucoproveitosas: o que se esquece com demasiadafreqncia.

    22. A precipitao consiste em julgar antes de terchegado evidncia, e a preveno, na persistncia dosprejuzos de infncia.

    23. Cf. Princpios, I, 45: Denomino claro o que presente e manifesto a um esprito atento ... e distinto oque de tal modo que compreende em si apenas o que

    parece manifestamente a quem o considere como sedeve.

    24. As palavras dificuldade (que significa:

    problema matemtico) e resolver devem remeter-nos

  • Geometria, nomeadamente primeira parte do LivroIII, onde se trata da resoluo de equaes mediante doismtodos: quer realizando o produto de binmioscompostos da incgnita menos cada uma das razes; quer,quando no se encontra nenhum binmio que possaassim dividir a soma toda da equao proposta,considerando a equao como o produto de doispolinmios (mtodo das indeterminadas). Supor-se-,

    por exemplo, que a equao do quarto grau fruto damultiplicao de duas equaes arbitrrias do segundograu. No , pois, questo somente de dividir, mastambm de decompor at os elementos mais simples cujacombinao engendrar soluo.

    25. Constituio de uma srie em que cada termoficar colocado antes dos que dele dependem e depoisdaqueles de que ele depende. A geometria, na suaclassificao das curvas, ilustra a importncia da ordemassim concebida: as linhas mais compostas sero nela

    recebidas tanto como as mais simples, contanto quepossamos imagin-las descritas por um movimentocontnuo ou por vrios que se seguem e dos quais osltimos sejam inteiramente regrados pelos que osprecedem; pois, mediante isso, podemos sempre ter umconhecimento exato de sua medida (A.T. VI, 389). Aordem o garante da homogeneidade de um domnio e dapossibilidade de determinar com certeza os seres queele inclui ou exclui. Isto ser vlido tanto emMetafsica como em Geometria.

  • 14

    |55

    [10] E o ltimo, o de fazer em toda

    parte enumeraes to completas e revises to

    gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir 26.

    [11] Essas longas cadeias de razes27,

    todas simples e fceis 28, de que os gemetras

    costumam servir-se para chegar s suas maisdifceis demonstraes, haviam-me dado

    ocasio de imaginar que todas as coisas

    possveis de cair sob o conhecimento doshomens

    seguem-se umas s outras da mesma

    maneira e que, contanto que nos

    abstenhamos

    somente de aceitar por verdadeira qualquer

    que no o seja, e que guardemos sempre a

    ordem necessria |39 para deduzi-las umas

  • das outras, no pode haver quaisquer to

    afastadas a que no se chegue por fim, nem to

    ocultas que no se descubram. E no me foi

    muito penoso procurar por quais devia comear,

    pois j sabia que haveria de ser pelas mais

    simples e pelas mais fceis de conhecer; e,

    considerando que, entre todos os que

    precedentemente buscaram a verdade nas

    cincias, s os matemticos puderam encontrar

    algumas demonstraes, isto , algumas razes

    certas e evidentes, no duvidei de modo algum

    que no fosse pelas mesmas que eles

    examinaram29;

    embora no esperasse |56 disso

    nenhuma outra utilidade, exceto a de que

    acostumariam o meu esprito a se alimentar de

    verdades e a no se contentar com falsas

    razes. Mas no foi meu intuito, para tanto,

    procurar aprender todas essas cincias

  • particulares que se chamam comumente

    matemticas30; e, vendo que, embora seus

    objetos sejam diferentes, no deixam de

    26. Pode parecer que esta regra repita a segunda, vistoque a diviso em parcelas a mesma coisa que aenumerao das variveis. Vuillemin, que evocaesta dificuldade em seu livro Mathmatiques etMtaphysique chez Descartes (pg. 137), pensa que talregra antes ilustrada pela enumerao de todos os casospossveis para a soluo de uma equao, o quepossibilita a escolha de uma soluo mais geral.Preceito reflexivo e regulador que versa sobre os mtodose no sobre os problemas.

    27. Por razes, deve-se entender propores.

    Como mostra Vuillemin, no captulo IV de sua obra, acincia cartesiana uma teoria das propores:multiplicao, diviso e extrao de raiz so trs meiosde construo de uma quarta proporcional o grau deuma equao definido pelo nmero de proporesrequeridas entre as quantidades, seu gnero pelonmero mnimo dessas propores em geral, umaproporo contnua o modelo da ordem. Uma srie como

    3/6 = 6/12 = 12/24mostra-nos de que maneira esto envolvidas todas

  • as questes referentes s propores ou razes das coisase em que ordem devem ser procuradas: o que por sis constitui o essencial de toda cincia da matemticapura (Reg., VI, A.T. X, pg. 385).

    28. Vuillemin observa que simples e fcil no so

    sinnimos. fcil o que simples segundo ns e, porassim dizer, do ponto de vista psicolgico. simples oque primeiro pela ordem das coisas (Op. cit., pg. 118).O raciocnio mais fcil (pedaggica e sinteticamente)nem sempre o mais simples (segundo a ordem eanaliticamente).

    29. Acrescente-se para a claridade do texto: queera preciso comear. Cf. Col. com Burman: AMatemtica acostuma o esprito a reconhecer averdade, porque sempre encontramos nela raciocniosrigorosos que no encontraramos alhures. Emconseqncia, uma vez afeito o esprito aosraciocnios matemticos, t-lo-emos tornado tambm

    prprio pesquisa de outras verdades, posto que em todaparte h somente uma e mesma forma de raciocinar (A.T.VI, 550-51).

    30. Aluso diviso escolstica das Matemticas:Matemticas Puras (Geometria, Aritmtica) e Mistas(Astronomia, Msica, ptica). O que interessa a Descartes o denominador comum dessas cincias (a ordem e amedida), ao passo que os Escolsticos desejavam

    15geometria grega. Para resolver o que ns formulamos

  • concordar todas, pelo fato de no conferirem

    nesses objetos seno as diversas relaes ou

    propores que neles se encontram, pensei

    que valia mais examinar somente estas

    propores em geral 31, e supondo-as apenas

    nos suportes que servissem para me tornar o

    seu conhecimento mais fcil; mesmo assim,

    sem restringi-las de forma nenhuma a tais

    suportes, a fim de poder aplic-las to melhor,

    em seguida, a todos os outros objetos a que

    conviessem. Depois, tendo notado que, para

    conhec-las, teria algumas vezes necessidade

    de consider-las cada qual em particular, eoutras vezes somente de reter, ou de

    compreender, vrias em conjunto, pensei que,

    para melhor consider-las em particular,

    deveria sup-las em linhas 32, porquanto no

  • encontraria nada mais simples, nem |57 que

    pudesse representar mais distintamente minha imaginao e aos meus sentidos 33; mas

    que, para |40 reter, ou compreender, vrias em

    conjunto, cumpria que eu as designasse por

    alguns signos, os mais breves possveis 34, e

    que, por esse meio, tomaria de emprstimo o

    melhor da Anlise geomtrica e da lgebra, e

    corrigiria todos os defeitos de uma pela

    outra.

    [12] E como, efetivamente, ouso dizer que

    a exata observao desses poucos

    preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade

    de deslindar todas as questes s quais se

    estendem essas duas cincias que, nos dois ou

    trs meses que empreguei em examin-las,

    tendo comeado pelas mais simples e mais

    gerais, e constituindo cada verdade que eu

  • achava uma regra que me servia em seguida

    para achar outras, no s consegui resolver

    muitas que julgava antes muito difceis 35,

    como me pareceu tambm, perto do fim, que

    que impedia de distinguir, como faz Descartes, estaMatemtica comum, que requer apenas memria, e acincia matemtica, que no bebida nos livros.

    3 1. Trata-se, portanto, da mathesis universalis,cincia inteiramente nova pela qual podero serresolvidos todos os problemas relativos a qual gnero dequantidade, contnua ou discreta (A.T. X, 156) eprimeiro fruto do mtodo. Na verdade, o mtodo foiconcebido com vistas a ela. Sobre esta interpenetrao damathesis e do mtodo, cf. Regulae, quarta regra. Nose trata aqui, de modo algum, da geometria analtica,como s vezes se pretende falsamente.

    32. Lineis rectis, diz o texto latino. A linha reta escolhida como figurao universal da grandeza porqueela o suporte mais flexvel para a teoria daspropores (pode representar um produto, um

    quociente, uma raiz, bem como a soma ou uma

    diferena), mas tambm porque permite evitar oincomensurvel. O fato de as letras algbricasrepresentarem linhas e no nmeros (e, em geral, adesconfiana de Descartes para com a aritmtica) atesta

  • o que Belaval denomina, em Leibniz critique deDescartes, a limitao da lgebra pela Geometria.Descartes libertou-se do realismo intuitivo dos gregos(por exemplo, colocando que o resultado de todo clculosobre quantidades figuradas por grandezas retilneascorresponde, por sua vez, a uma grandeza retilnea), masfoi s pela metade.

    33. Indispensvel ao entendimento em Matemtica,a imaginao (a considerao das figuras) no ,entretanto, seno uma auxiliar. Cf. Regulae, regra catorze.

    34. A simplificao da lgebra consiste emdesignar todas as grandezas por letras do alfabeto, emrepresentar as potncias pelas cifras escritas em expoentes(salvo para x2 que Descartes ainda escreve xx) e oequacionamento pela igualdade a zero.

    35. Segundo G. Milhaud (Descartes Savant), aluso soluo dos problemas dos slidos do terceiro e quartograus por meio da interseo de um crculo e de umaparbola. Milhaud mostra, a este propsito, o quantoDescartes, em 1620, ainda o continuado da geometria

    16

    podia determinar, at mesmo naquelas que

    ignorava, por quais meios e at onde seria

    possvel resolv-las36.

    No que no vos

    parecerei talvez muito vaidoso, se |58

  • considerardes que, havendo somente uma

    verdade de cada coisa, todo aquele que a

    encontrar sabe a seu respeito tanto quanto se

    pode saber; e que, por exemplo, uma

    criana instruda na aritmtica, que haja

    realizado uma adio segundo as regras, pode

    estar certa de ter achado, quanto soma queexaminava, tudo o que o esprito humano

    poderia achar. Pois, enfim, o mtodo que

    ensina a seguir a verdadeira ordem e aenumerar exatamente todas as circunstncias

    daquilo que se procura contm tudo quanto

    d certeza s regras da aritmtica.

    [13] Mas, o que me contentava mais

    nesse mtodo era o fato de que, por ele, estava

    seguro de usar em tudo minha razo, se no

    perfeitamente, ao menos o melhor que eu

    pudesse; alm disso, sentia, ao pratic-lo, que

    meu esprito se acostumava pouco a pouco aconceber mais ntida e distintamente seus

    objetos, e que, no o tendo submetido a

  • qualquer matria particular, prometia a mim

    mesmo aplic-lo to utilmente s dificuldadesdas outras cincias como o fizera com as da

    lgebra. No que, para tanto, ousasse

    empreender primeiramente o exame de todas as

    |41 que se me apresentassem, pois isso mesmo

    seria contrrio ordem que ele prescreve.Porm, tendo notado que os seus princpios

    deviam ser todos tomados Filosofia, na qualno encontrava ainda quaisquer que fossem

    certos, pensei que seria mister, antes de tudo,

    procurar ali estabelec-los; e que, sendo isso a

    coisa mais importante do mundo, e onde a

    precipitao e a preveno eram mais de recear,

    no devia empreender sua realizao antes de

    atingir uma idade bem mais madura do que a

    dos vinte e trs anos que eu ento contava e

    antes de ter despendido muito tempo em

    preparar-me para isso, tanto desenraizando de

    meu esprito todas as ms opinies que nele

    acolhera at essa poca como acumulando

  • muitas experincias, para servirem em

    seguida de

    pela equao: x3 = a2 b, Arquimedes introduzia umasegunda varivel, y, tal que: x2 ay, o que significaprocurar das mdias proporcionais entre a e b. Parasolucionar este problema, servia-se de duas parbolas

    definidas por duas razes das ordenadas com asabscissas. este mtodo que Descartes sistematiza paraas equaes do terceiro e do quarto graus, ponto departida do que ser denominado mais tarde GeometriaAnaltica. Descartes no toma, pois, aos gregos omtodo analtico como procedimento lgico, mas antes oprprio contedo desta anlise, e seu gnio consiste maisem explorar os recursos de um processo j utilizado do queem descobrir este processo. Tanto que Descartesnunca se vangloriou da Geometria Analtica.

    36. Exemplo dessa determinao dos limites: aclassificao dos problemas do livro II da Geometria,

    onde so delimitados os problemas resolveis com rguae compasso com curvas mais complicadas, mas que possvel construir de maneira exata e por ummovimento contnuo , enfim os problemas para osquais as curvas s podem ser construdas por pontosdiscretos (as transcendentes), como a espiral ouquadratriz, que no pertencem de modo algum aonmero das que penso que devem ser aqui recebidas ...

  • porque as imaginamos descritas por dois movimentosseparados e que no tm entre si nenhuma relao que sepossa medir exatamente (A.T. VI, 390).

    17

    matria aos meus raciocnios, e exercitando-me

    sempre no mtodo que me prescrevera, a fim de

    me firmar nele cada vez mais.

    |59

    TERCEIRA PARTE

    [1] E enfim, como no basta, antes de

    comear a reconstruir a casa onde se mora,

    derrub-la, ou prover-se de materiais e

    arquitetos, ou adestrar-se a si mesmo na

    arquitetura, nem, alm disso, ter traado

    cuidadosamente o seu projeto; mas cumpre

    tambm ter-se provido de outra qualquer onde a

    gente possa alojar-se comodamente durante o

    tempo em que nela se trabalha; assim, para no

    permanecer irresoluto 37 em minhas aes,

  • enquanto a razo me obrigasse a s-lo, em meus

    juzos, e de no deixar de viver desde ento de o

    mais felizmente possvel, formei para mimmesmo uma moral provisria, que consistia

    apenas em trs ou quatro mximas que eu quero

    vos participar 38.

    [2] A primeira era obedecer s leis

    e aos costumes de meu pas, retendo

    constantemente a religio em que Deus me

    concedeu a graa de ser instrudo desde a

    infncia, e governando-me, em tudo o mais,

    segundo as opinies mais moderadas e as mais

    distanciadas do excesso, que fossem

    comumente acolhidas em prtica pelos mais

    sensatos daqueles com os quais teria de viver.

    Pois, comeando desde ento a no contar para

    nada com as minhas prprias opinies, porque eu

    as queria submeter todas a exame, estava certo de

    que o melhor a fazer era seguir as dos mais

    sensatos. E, embora haja talvez, entre os persase chineses, homens to sensatos como entre

  • ns, parecia-me que o mais til seria pautar-me

    por aqueles entre os quais teria de viver; e

    que, para saber quais eram verdadeiramenteas suas opinies, devia tomar nota mais

    daquilo que praticavam do que daquilo que

    diziam; no s porque, na corrupo de nossos

    costumes, h poucas pessoas que queiram dizer

    tudo o que acreditam, mas tambm porque

    muitos o ignoram, por sua vez; pois, sendo a

    ao do pensamento, pela qual se cr uma

    coisa, diferente daquela pela qual se conhece

    que se |42 cr |60 nela, amide uma se

    apresenta sem a outra 39. E, entre

    37. Sobre a irresoluo como o pior dos males, cf.

    Paixes, art. 60, e Cartas, a Elisabeth, de 1 de

    setembro de 1645.

    38. Col. com Burman, A.T. VI, 552: O autor no

    gosta de escrever sobre a Moral, mas viu-se forado, por

    causa dos pedantes e gente desta espcie, a adicionar estas

  • regras; de outro modo, diriam dele que se trata de um

    homem sem religio, sem f, e que, com o seu mtodo,

    quer derrubar tudo isso.

    39. Existe uma diferena entre um juzo e o

    conhecimento deste juzo. Assim, eu no duvido de

    modo algum que cada um tenha em si a idia de Deus,

    pelo menos implcita ... no me surpreendo, no entanto,de ver homens que no sentem ter em si esta idia, ou

    melhor, que dela no se apercebem absolutamente.

    (Cartas, a Hyperaspistes, agosto de 1641).

    18

    vrias opinies igualmente aceites, escolhia

    apenas as mais moderadas: tanto porque so

    sempre as mais cmodas para a prtica, e

    verossimilmente40 as melhores, pois todo

    excesso costuma ser mau, como tambm a fim

    de me desviar menos do verdadeiro caminho,

    caso eu falhasse, do que, tendo escolhido um

    dos extremos, fosse o outro o que deveria ter

    seguido. E, particularmente, colocava entre os

  • excessos todas as promessas pelas quais se

    cerceia em algo a prpria liberdade 41. No que

    desaprovasse as leis que, para remediar a

    inconstncia dos espritos fracos, permitem,

    quando se alimenta algum bom propsito, ou

    mesmo, para a segurana do comrcio, algum

    desgnio que seja apenas indiferente, que se

    faam votos ou contratos que obriguem a

    perseverar nele; mas porque no via no mundonada que permanecesse sempre no mesmo

    estado, e porque, no meu caso particular, como

    prometia a mim mesmo aperfeioar cada vez

    mais os meus juzos, e de modo algum torn- los

    piores, pensaria cometer grande falta contra o

    bom senso, se, pelo fato de ter aprovado ento

    alguma coisa, me sentisse na obrigao de

    tom-la como boa ainda depois, quando

    deixasse talvez de s-lo, ou quando eu cessassede consider-la tal.

    [3] Minha segunda mxima consistia em

    ser o mais firme e o mais resoluto possvel em

  • minhas aes, e em no seguir menos

    constantemente do que se fossem muito seguras

    as opinies mais duvidosas, sempre que eu me

    tivesse decidido a tanto 42. |61 Imitando nisso os

    viajantes que, vendo-se extraviados nalguma

    floresta, no devem errar volteando, ora para

    um lado, ora para outro, nem menos ainda

    deter-se num stio, mas caminhar sempre o mais

    reto possvel para um mesmo lado, e no

    mud-lo por fracas razes, ainda que no

    comeo s o acaso talvez haja determinado a

    sua escolha: pois, por este meio, se no vo

    exatamente aonde desejam, ao menos

    chegaro no fim a alguma parte, onde

    verossimilmente estaro melhor do que nomeio de uma floresta. E, assim como as aes

    da vida no suportam s vezes qualquer

    delonga, uma verdade muito certa que,

    quando no est em nosso poder o discernir as

    opinies mais verdadeiras, devemos seguir as

    mais provveis; e mesmo, ainda que no

  • notemos em umas mais probabilidades do que

    em outras, devemos, no obstante, decidir-nos

    por algumas e consider-las depois no mais

    como duvidosas, na medida em que se

    relacionam com a prtica, mas como muito

    40. A verossimilhana, excluda da ordem terica,

    recobrar valor na ordem prtica.

    4 1. No ser rebaixar os votos religiosos, comopergunta Gilson, encar-los como simples remdio para a

    inconstncia dos espritos fracos? Notar-se- aqui o

    desprezo de Descartes para com o engajamento sob

    todas as suas formas.

    42. A fim de evitar um mal-entendido, Descartes

    formular esta regra de maneira mais precisa: ... No

    agir menos constantemente segundo as opinies que

    julgamos duvidosas ... quando consideramos no haveroutras que soubssemos que aquelas so as melhores (A

    XXX, maro de 1638). No se trata, portanto, de um

    voluntarismo cego, alm do que relaciono

    principalmente esta regra s aes da vida que no

  • sofrem qualquer delonga e me sirvo dela apenas

    provisoriamente.

    19

    verdadeiras e muito certas, porquanto a razo

    que a isso nos decidiu |43 se apresenta como

    tal43.

    E isto me permitiu, desde ento,

    libertar-me de todos os arrependimentos e

    remorsos que costumam agitar as conscincias

    desses espritos fracos e vacilantes que se

    deixam levar inconstantemente a praticar, como

    boas, as coisas que depois julgam ms.[4] Minha terceira mxima era a de

    procurar sempre antes vencer a mim prprio do

    que fortuna, e de antes modificar os meusdesejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a

    de acostumar-me a crer que nada h que esteja

    inteiramente em nosso poder, exceto os nossos

    pensamentos, de sorte que, depois de termos

    feito o melhor possvel no tocante s coisas que

    nos so exteriores, tudo em que deixamos de

  • nos sair bem , em relao a ns, absolutamente

    impossvel. E s isso me parecia suficiente

    para impedir-me, no futuro, de desejar algo

    que eu no pudesse adquirir, e, assim, parame tornar contente. Pois, inclinando-se a

    nossa vontade naturalmente a desejar s

    aquelas coisas que nosso entendimento lhe

    representa de alguma forma como

    possveis, certo que, se considerarmos

    todos os bens que se acham fora de ns

    como igualmente afastados de nosso |62 poder,

    no lamentaremos mais a falta daqueles que

    parecem dever-se ao nosso nascimento, quando

    deles formos privados sem culpa nossa, doque lamentamos no possuir os reinos da

    China ou do Mxico; e que fazendo, como se

    diz, da necessidade virtude, no desejaremos

    mais estar sos, estando doentes, ou estar

    livres, estando na priso, do que desejamos ter

    agora corpos de uma matria to pouco

    corruptvel quanto os diamantes, ou asas para

  • voar como as aves. Mas confesso que preciso

    um longo exerccio e uma meditao amide

    reiterada para nos acostumarmos a olhar por

    este ngulo todas as coisas; e creio que

    principalmente nisso que consistia o segredo

    desses filsofos44, que puderam outrora

    subtrair-se ao imprio da fortuna e, malgrado

    as dores e a pobreza, disputar felicidade aos

    seus deuses. Pois, ocupando-se

    incessantemente em considerar os limites que

    lhes eram prescritos pela natureza,

    persuadiram-se to perfeitamente de que nada

    estava em seu poder alm dos seus

    pensamentos, que s isso bastava para

    impedi-los de sentir qualquer afeco por

    outras coisas; e dispunham deles to

    absolutamente, que tinham neste caso especial

    certa razo de se julgarem mais ricos, mais

    poderosos, mais livres e mais felizes que

    quaisquer outros homens, os quais, no tendo

    esta filosofia, por

  • 43. Tudo se passa como se essas opinies fossem

    muito verdadeiras e, para ns, elas o so efetivamente,visto que no pudemos encontrar outras melhores.

    44.* Filsofos: esticos (N. do T.).

    20

    mais favorecidos que sejam pela natureza e

    pela fortuna, jamais dispem assim de tudo

    quanto querem 45.

    [5] Enfim, para a concluso dessa

    moral, decidi passar em revista as diversas

    ocupaes que os homens exercem nesta vida,para procurar escolher a melhor; e, sem que

    pretenda dizer nada sobre as dos outros,

    pensei que o melhor a fazer seria continuarnaquela mesma em que me achava, isto ,

    empregar toda a minha vida em cultivar minha

    razo, e adiantar-me, o mais que pudesse, no

    conhecimento da verdade, segundo o mtodo que

    me prescrevera. Eu sentira to extremo

  • contentamento, desde quando comeara a

    servir-me deste mtodo, que no acreditava

    que, nesta vida, se pudessem receber outros

    mais doces, nem |44 mais inocentes; e,

    descobrindo todos os dias, por seu meio,

    algumas verdades que me pareciam assaz

    importantes e comumente ignoradas pelos

    outros homens, a satisfao que |63 isso me dava

    enchia de tal modo meu esprito, que tudo o

    mais no me tocava. Alm do que, as trs

    mximas precedentes no se baseavam seno

    no meu intuito de continuar a me instruir: pois,tendo Deus concedido a cada um de ns

    alguma luz para discernir o verdadeiro do falso,

    no julgaria dever contentar-me, um s

    momento, com as opinies de outrem, se no me

    propusesse empregar o meu prprio juzo em

    examin-las, quando fosse tempo46; e no

    saberia isentar-me de escrpulos, ao

    segui-las, se no esperasse no perder com

    isso ocasio alguma de encontrar outras

  • melhores, caso as houvesse. E, enfim, no

    saberia limitar os meus desejos, nem estarcontente, se no tivesse trilhado um caminho

    pelo qual, pensando estar seguro da

    aquisio de todos os conhecimentos de que

    fosse capaz, julgava estar seguro da

    aquisio de todos os verdadeiros bens que

    alguma vez viessem a estar em meu alcance;

    tanto mais que, no se inclinando a nossa

    vontade a seguir ou fugir a qualquer coisa,seno conforme o nosso entendimento lha

    represente como boa ou m, basta bem

    julgar, para bem proceder, e julgar o melhor

    possvel para proceder tambm da melhor

    maneira47,

    isto , para adquirir todas as virtudes

    e, conjuntamente, todos os outros bens que se

    possam adquirir; e, quando se est certo de que

    assim, no se pode deixar de ficar contente.

    [6] Depois de me ter assim assegurado

    destas mximas, e de as ter posto parte, com asverdades da f, que sempre foram as primeiras

  • na minha crena, julguei que, quanto a todo o

    restante de minhas opinies, podia livremente

    tentar desfazer-me delas. E, como

    45. A respeito do acento estico da passagem e do

    destino desta regra na moral definitiva, cf. Cartas, a

    Elisabeth.

    46. Isto : elas s se justificam como condies

    provisrias da busca da verdade.

    21

    esperava chegar melhor ao cabo dessa

    tarefa conversando com os homens, do que

    continuando por mais tempo encerrado no

    quarto aquecido onde me haviam ocorrido esses

    pensamentos, recomecei a viajar quando oinverno ainda no acabara. E, em todos os nove

    anos seguintes, no fiz outra coisa seno rolar

    pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais

    espectador do que ator em todas |64 as

    comdias que nele se representam 48; e,

  • efetuando particular reflexo, em cada matria,

    sobre o que podia torn-la suspeita e dar

    ocasio de nos equivocarmos, desenraizava,

    entrementes, do meu esprito todos os erros queat ento nele se houvessem insinuado. No

    que imitasse, para tanto, os cticos, que

    duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre

    irresolutos: pois, ao contrrio, todo o meu intuitotendia to-somente a me certificar e remover

    a terra movedia e a areia, para encontrar a

    rocha ou a argila. O que consegui muito

    bem, parece-me, tanto mais que, procurandodescobrir a falsidade ou a incerteza das

    proposies que examinava, no por fracas

    conjeturas, mas por raciocnios claros e

    seguros, no deparava quaisquer to

    duvidosas que delas no tirasse sempre alguma

    concluso bastante certa, quando mais |45

    no

    fosse a de que no continha nada de certo.E, como ao demolir uma velha casa,

    reservam-se comumente os escombros para

  • servir construo de outra nova, assim, aodestruir todas as minhas opinies que julgavamal fundadas, fazia diversas observaes e

    adquiria muitas experincias, que me serviram

    depois para estabelecer outras mais certas. E,ademais, continuava a exercitar-me no mtodo

    que me prescrevera; pois no s tomava o

    cuidado de conduzir geralmente todos os

    meus pensamentos segundo as suas regras,

    como reservava, de tempos em tempos, algumas

    horas, que empregava particularmente em

    aplic-lo nas dificuldades de Matemtica, ou

    mesmo tambm em algumas outras que eu

    podia tornar quase semelhantes s das

    Matemticas, separando-as de todos os

    princpios das outras cincias, que eu no achava

    bastante firmes, como vereis que procedi com

    vrias que so explicadas neste volume49.

    E

    assim, sem viver, aparentemente, de forma

    diferente daqueles que, no tendo |65 outro

    emprego seno passar uma vida doce e

  • inocente, procuram separar os prazeres dos

    vcios, e que, para gozar de seus lazeres

    sem se

    47. As duas frmulas no so equivalentes. No

    primeiro caso, o entendimento esclarecido por idiasclaras e distintas compele a vontade; no segundo, noestando assegurada a verdade do juzo, eu deveriaenvidar esforo para seguir sempre o que o entendimentome representa como melhor.

    48. Acerca do tema do espectador, cf. Cartas, aElisabeth, de 18 de maio de 1645. Poder-se- compar-lo

    ao tema do ator nos Esticos (Cf. Goldschmidt, SystmeStocien, pgs. 150 e segs. e 178 e segs.).

    49. Deve referir-se aos problemas versados em OsMeteoros (explicao dos ventos, das nuvens, do arco-ris)e na Diptrica (G. Milhaud, estabelece que Descartesformulou a lei da refrao por volta de 1626). Sobre aconcepo cartesiana da Fsica Matemtica, cf. Cartas, aMersenne, de 17 de maio de 1638, 11de maro de 1640,bem como a de 27 de julho de 1638: Pois se lhe aprazconsiderar o que escrevi do solo, da neve, do arco-ris etc.... saber efetivamente que toda a minha Fsica no maisdo que Geometria.

    22

  • aborrecer, usam todos os divertimentos que sohonestos, no deixava de persistir em meu

    desgnio e de progredir no conhecimento da

    verdade, mais talvez do que se me limitasse a ler

    livros ou freqentar homens de letras.[7] Todavia, esses nove anos

    escoaram-se antes que eu tivesse tomado

    qualquer partido, com respeito s dificuldades

    que costumam ser disputadas entre os doutos,

    ou comeado a procurar os fundamentos de

    alguma Filosofia mais certa do que a vulgar 50. E

    o exemplo de muitos espritos excelsos que,

    tendo alimentado precedentemente esse intento,

    no haviam logrado, parecia-me, realiz-lo,

    levava-me a imaginar tantas dificuldades, que

    no teria talvez ousado empreend-lo to cedo,

    se no soubesse de que alguns j faziam correr

    o rumor de que eu j o levara a termo. No

    poderia dizer em que baseavam esta opinio; e,

    se para isso contribu com algo em meus

    discursos, deve ter sido por confessar neles mais

  • ingenuamente o que eu ignorava do que

    costumam fazer aqueles que estudaram um

    pouco, e talvez tambm por mostrar as razes

    que tinha de duvidar de muitas coisas que os

    outros consideram certas, do que por me jactar

    de qualquer doutrina. Mas, tendo o corao

    bastante altivo para no querer que me

    tomassem por algum que eu no era, pensei

    que cumpria esforar-me, por todos os meios,

    para tornar-me digno da reputao que me

    atribuam; e faz justamente oito anos que esse

    desejo me decidiu a afastar-me de todos os

    lugares em que pudesse ter conhecimentos, e

    a retirar-me para aqui 51, para um pas onde a

    longa durao da guerra levou a estabelecer tais

    ordens, que os exrcitos nele mantidos parecem

    servir apenas para que os frutos da paz sejam

    gozados com tanto mais segurana, e onde,

    dentre a multido um grande povo muito ativo

    e mais zeloso de seus pr- |46 prios negcios, do

    que curioso dos assunto dos de outrem, sem

  • carecer de nenhuma das comodidades que

    existem nas cidades mais freqentadas, pudeviver to solitrio e retirado como nos desertos

    mais remotos.

    |66

    QUARTA PARTE

    [1] No sei se deva falar-vos dasprimeiras meditaes que a realizei; pois soto metafsicas e to pouco comuns, que nosero, talvez, do gosto de todo mundo. E,

    todavia, a fim de que se possa julgar se osfundamentos que escolhi so bastante firmes,vejo-me, de alguma forma, compelido afalar-vos delas. De h muito observara que,quanto aos

    50. A Filosofia escolstica.

    51. Incio da estada na Holanda, no outono de 1628,

    que durar at a partida para a Sucia, em 1649.

    23

    costumes, necessrio s vezes seguir

  • opinies, que sabemos serem muito incertas,

    tal como se fossem indubitveis, como j foi

    dito acima; mas, por desejar ento ocupar-me

    somente com a pesquisa da verdade, pensei

    que era necessrio agir exatamente ao

    contrrio, e rejeitar como absolutamente falso

    tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor

    dvida52, a fim de ver se, aps isso, no

    restaria algo em meu crdito, que fosse

    inteiramente indubitvel. Assim, porque os

    nossos sentidos nos enganam s vezes, quis

    supor que no havia coisa alguma que fosse tal

    como eles nos fazem imaginar. E, porque h

    homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo

    no tocante s mais simples matrias de

    Geometria, e cometem a paralogismos, rejeitei

    como falsas, julgando que estava sujeito a falhar

    como qualquer outro, todas as razes que eu

    tomara at ento por demonstraes. E enfim,

    considerando que todos os mesmos

    pensamentos que temos quando despertos nos

  • podem tambm ocorrer quando dormimos,

    sem que haja nenhum, nesse caso, que seja

    verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as

    coisas que at ento haviam entrado no meu

    esprito no eram mais verdadeiras que as

    iluses de meus sonhos. Mas, logo em seguida,

    adverti que, enquanto eu queria assim pensar

    que tudo era falso, cumpria necessariamente que

    eu, que pensava 53, fosse alguma coisa. E,

    notando que esta verdade: eu penso, logo

    existo54, era to firme e to certa que |67 todas as

    mais extravagantes suposies dos cticos no

    seriam capazes de a abalar, julguei que

    podia aceit-la, sem escrpulo, como o

    primeiro princpio da Filosofia que procurava.

    [2] Depois, examinado com ateno o

    que eu era, e vendo que podia supor que no

    tinha corpo algum e que no havia qualquer

    mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse,

    mas que nem por isso podia supor que no

    existia; e que, ao contrrio, pelo fato mesmo de

  • eu pensar em duvidar da verdade das

    outras coisas, seguia-se mui evidente e mui

    certamente que eu existia; ao passo que, se

    apenas houvesse cessado de pensar, emboratudo o mais que alguma vez imaginara fosse

    verdadeiro, j no teria razo alguma de crer que

    |47 eu tivesse existido; compreendi por a que

    eu era uma substncia cuja essncia ou natureza

    consiste apenas no pensar, e que, para ser, no

    necessita de nenhum lugar, nem depende de

    qualquer coisa material. De sorte que esse eu,

    isto , a alma 55, pela qual sou o

    52. Est, portanto, sujeito dvida no s aquilo deque eu duvido de fato, mas tambm aquilo de que

    poderia duvidar de direito.

    53. Cumpre notar que Descartes no diz: duvido,

    logo sou. A dvida no importa como ato, mas como

    conhecimento do fato de que eu duvido.

    54. O Cogito no um raciocnio: uma

    constatao de fato. Por que ento se emprega aqui o

  • termo logo? Descartes d ao Cogito o aspecto de um

    raciocnio toda vez que deseja pr em relevo o carter

    necessrio da ligao que o mesmo contm (Gueroult, op.

    cit., II, 309).

    55. Descartes, nas Segundas Respostas, declara que

    preferiu mens a anima no texto latino. Mens designa

    apenas o entendimento. Neste pargrafo, Descartes

    24

    que sou, inteiramente distinta do corpo e,

    mesmo, que mais fcil de conhecer do que

    ele, e, ainda que este nada fosse, ela no deixaria

    de ser tudo o que .

    [3] Depois disso, considerei em geral o

    que necessrio a uma proposio para ser

    verdadeira e certa; pois, como acabava de

    encontrar uma que eu sabia ser exatamente

    assim, pensei que devia saber tambm em que

    consiste essa certeza 56. E, tendo notado que nada

    h no eu penso, logo existo, que me assegure de

    que digo a verdade, exceto que vejo muito57,

  • claramente que, para pensar, preciso existir

    julguei poder tomar por regra geral |68 que as

    coisas que concebemos mui clara e muidistintamente so todas verdadeiras, havendo

    apenas alguma dificuldade em notar bem

    quais so as que concebemos distintamente.

    [4] Em seguida, tendo refletido sobre

    aquilo que eu duvidava, e que, por

    conseqncia, meu ser no era totalmente

    perfeito, pois via claramente que o conhecer

    perfeio maior do que o duvidar, deliberei

    procurar de onde aprendera a pensar em algo

    mais perfeito do que eu era; e conheci, com

    evidncia, que devia ser de alguma natureza que

    fosse de fato mais perfeita. No concernente

    aos pensamentos que tinha de muitas outrascoisas fora de mim, como do cu, da terra, da

    luz, do calor e de mil outras, no me era to

    difcil saber de onde vinham, porque, no

    advertindo neles nada que me parecesse

    torn-los superiores a mim, podia crer que, se

  • fossem verdadeiros, seriam dependncias de

    minha natureza, na medida em que esta possua

    alguma perfeio; e se no o eram, que eu os

    tinha do nada, isto , que estavam em mim pelo

    que eu possua de falho. Mas no podiaacontecer o mesmo com a idia de um ser mais

    perfeito do que o meu; pois tir-la do nada era

    manifestamente impossvel; e, visto que no

    h menos repugnncia em que o mais perfeito

    seja uma conseqncia e uma dependncia do

    menos perfeito do que em admitir que do nada

    procede alguma coisa, eu no podia tir-la

    tampouco de mim prprio. De forma que

    restava apenas que tivesse sido posta em

    mim por uma natureza que fosse

    verdadeiramente mais perfeita do que a

    minha, e que mesmo tivesse em si todas as

    perfeies de que eu poderia ter alguma idia,

    isto , para explicar-me numa palavra, que

    pensamento, hetergena substncia do corpo, masestabelece tambm a natureza puramente intelectual da

  • alma.

    56. Reflexo sobre as condies da certeza do Cogitoque conduzir determinao do critrio da certeza emgeral: o conhecimento claro e distinto. Sendo cadaverdade que eu encontrava uma regra que me servia paraencontrar outras..., diz mais abaixo Descartes.

    57. Gueroult (op. cit., II, 307-10) mostra que oprincpio Para pensar, preciso ser no a premissamaior de um raciocnio, como seria Tudo o que pensa. Trata-se de um adgio sem o qual eu no teriaconscincia da ligao necessria entre Cogito e Sum;mas, em contrapartida, sem o Cogito eu tampouco teriaconscincia deste adgio. Por que supor, perguntaDescartes, que o conhecimento das proposiesparticulares deve sempre ser deduzido de universais?

    25

    fosse Deus58.

    A |48

    isso acrescentei que, dado

    que conhecia algumas perfeies que no

    possua, eu no era o nico ser que existia

    (usarei aqui livremente, se vos aprouver, alguns

    termos da Escola); mas que devia

    necessariamente haver algum outro mais

    perfeito, do qual eu dependesse e de quem eu59.

  • tivesse recebido |69

    tudo o que possua Pois, se

    eu fosse s e independente de qualquer outro, de

    modo que tivesse recebido, de mim prprio,

    todo esse pouco pelo qual participava do Ser

    perfeito, poderia receber de mim, pela mesma

    razo, todo o restante que sabia faltar-me, e ser

    assim eu prprio infinito, eterno, imutvel,

    onisciente, todo-poderoso, e enfim ter todas as

    perfeies que podia notar existirem em Deus.

    Pois segundo os raciocnios que acabo de fazer,

    para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto

    a minha o era capaz, bastava considerar,

    acerca de todas as coisas de que achava emmim qualquer idia, se era ou no perfeio

    possu-las, e estava seguro de que nenhuma das

    que eram marcadas por alguma imperfeio

    existia nele, mas que todas as outras existiam.

    Assim, eu via que a dvida, a inconstncia, a

    tristeza e coisas semelhantes no podiam existir

    nele, dado que eu prprio estimaria muitoestar isento delas. Alm disso, eu tinha idias

  • de muitas coisas sensveis e corporais; pois,

    embora supusesse que estava sonhando e que

    tudo quanto via e imaginava era falso, no

    podia negar, contudo, que as idias a respeitono existissem verdadeiramente em meu

    pensamento; mas, por j ter reconhecido em

    mim mui claramente que a natureza inteligente

    distinta da corporal, considerando que toda a

    composio testemunha dependncia, e que a

    dependncia manifestamente um defeito 60,

    julguei por a que no podia ser uma perfeio

    em Deus o ser composto dessas duas naturezas,

    e que, por conseguinte, ele no o era 61, mas

    que, se haviam alguns corpos no mundo, ou

    ento algumas inteligncias, ou outras

    naturezas, que no fossem inteiramente perfeitos,

    seu ser deveria depender do poder de Deus, de

    tal sorte que no pudessem subsistir sem ele um

    s momento 62.

    58. Interrogao sobre a origem da idia do perfeito

  • que h em meu esprito. Fica estabelecido que: 1. estaidia no pode provir do nada que h em mim (em virtudedo princpio: ex nihilo nihil gignit), 2. que ela no podevir de mim, ser imperfeito (no pode haver mais realidadeno efeito do que na causa), ao passo que esta soluo seriapossvel para as idias que eu tenho das coisas externas.Donde: 1. existncia de outra natureza fora de mim; 2. ...que contm todas as perfeies.

    59. Deus agora considerado como o meu Criadorque me mantm no ser e no mais como o autor da idiade Deus em mim existente.

    60. Composio implica dependncia das partes,

    umas em relao s outras, e do todo em relao spartes.

    61. Para conceber a infinita perfeio de Deus,cumpre atribuir-lhes todas as perfeies das quaispossumos apenas fragmentos e excluir dele asimperfeies que h em ns.

    62. Evocao da doutrina da criao contnua: a) otempo radicalmente descontnuo (o tempo presente no

    depende do precedente); b) em cada um dessesmomentos descontnuos, o estado do mundo e meupensamento so conservados no ser por Deus. Tese ligada negao das formas substanciais. Enquanto, para SantoToms, Deus instituiu uma ordem das coisas, tal que

    26

  • |70

    [5] Quis procurar, depois disso, outras

    verdades, e tendo-me proposto o objeto dos

    gemetras, que eu concebia como um corpo

    contnuo63, ou um espao infinitamente

    extenso em comprimento, largura e altura ou

    profundidade, divisvel em diversas partes que

    podiam ter diferentes figuras e grandezas, e

    ser movidas ou transpostas de todas as

    maneiras, pois os gemetras supem tudo isto

    em seu objeto, percorria algumas de suas mais

    simples |49

    demonstraes. E, tendo notado

    que essa grande certeza, que todo o mundo

    lhes atribui, se funda apena s no fato de serem

    concebidas com evidncia, segundo a regra que

    h pouco expressei, notei tambm que nada

    havia nelas que me assegurasse a existncia de

    seu objeto. Pois, por exemplo, eu via muito

    bem que, supondo um tringulo, cumpria que

    seus trs ngulos fossem iguais a dois retos;

    mas, apesar disso, nada via que garantisse haver

  • no mundo qualquer tringulo. Ao passo que,

    voltando a examinar a idia que tinha de um Ser

    perfeito, verificava que a existncia estava ainclusa, da mesma forme como na de um

    tringulo est incluso serem seus trs ngulos

    iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem

    todas as suas partes igualmente distantes do seucentro, ou mesmo, ainda mais evidentemente; e

    que, por conseguinte, pelo menos to certo 64

    que Deus, que esse Ser perfeito, ou existe,

    quanto s-lo-ia qualquer demonstrao de

    Geometria.

    [6] Mas o que leva muitas pessoas a se

    persuadirem de que h dificuldade conhec- lo, e

    mesmo tambm em conhecer o que sua alma,

    o fato de nunca elevarem o esprito alm dascoisas sensveis e de estarem de tal forma

    acostumados a nada considerar seno

    imaginando, que uma forma de pensar

    particular s |71 coisas materiais, que tudo

    quanto no imaginvel lhes parece no ser

  • inteligvel. E isto assaz manifesto pelo fato

    de os prprios filsofos terem por mxima, nas

    escolas, que nada h no entendimento que no

    haja estado primeiramente nos sentidos 65, onde,

    todavia, certo que as idias de Deus e da alma

    jamais estiveram. E me parece que todos os

    que querem usar a imaginao paracompreend-las procedem do mesmo modo que

    se, para ouvir os sons ou sentir os odores,

    quisessem servir-se dos olhos; exceto com esta

    diferena ainda: que o sentido da vista no

    secundariamente conservadas no ser , Descartes afirmano haver nenhuma virtude por meio da qual eu possafazer com que eu, que sou agora, seja ainda, um instanteaps.

    63. Um corpo absolutamente pleno: no sendo ocorpo seno extenso, a extenso que separasse duaspartes de matria seria, ela prpria, um corpo.

    64. Exposio da prova a priori: ... ainda maisevidente, porque a incluso da existncia necessria naessncia de Deus uma relao ainda mais simples doque as relaes geomtricas citadas (ela antescomparvel s verdades matemticas indemonstrveis).

  • Pelo menos to certo significa mais certo: possvel estar seguro da existncia de Deus, sem o estarda verdade dos teoremas matemticos, no sendo oinverso verdadeiro.

    65. Adgio escolstico. Toda essa passagemconstitui um ataque ao excessivo papel concedido peloaristotelismo e pelo tomismo imaginao. EmMetafsica e na Matemtica, a imaginao no poderia sede qualquer serventia.

    27

    nos garante menos a verdade de seus objetos do

    que os do olfato ou da audio; ao passo que a

    nossa imaginao ou os nossos sentidos nunca

    poderiam assegurar-nos de qualquer coisa, se onosso entendimento no interviesse.

    [7] Enfim, se h ainda homens que no

    estejam bem persuadidos da existncia de Deus

    e da alma, com as razes que apresentei, quero

    que saibam que todas as outras coisas, das quais

    se julgam talvez certificados, como a de terem

    um corpo, haver astros e uma terra, e coisassemelhantes, so ainda menos certas. Pois,

  • embora se possua dessas coisas uma certeza

    moral, que de tal ordem que, exceto

    sendo-se extravagante, parece impossvel p-la

    em dvida; todavia, quando se trata da certeza

    metafsica66,

    no se pode negar, a no ser que

    sejamos desarrazoados, que motivo suficiente,

    para |50 no estarmos inteiramente seguros a

    respeito, o fato de se advertir que podemosdo mesmo modo imaginar, quando

    adormecidos, que temos outro corpo, que

    vemos outros astros e outra terra, sem que na

    realidade assim o seja. Pois, de onde sabemos

    que os pensamentos que ocorrem em sonhos

    so mais falsos do que os outros, se muitosno so amide menos vivos e ntidos? E,

    ainda que os melhores espritos estudem o

    caso tanto quanto lhes aprouver, no creio que

    possam dar qualquer razo que seja suficiente

    para desfazer essa dvida, se no

    pressupuserem a existncia |72 de Deus. Pois,

    em primeiro lugar, aquilo mesmo que h pouco

  • tomei como regra, a saber, que as coisas queconcebemos mui clara e mui distintamente so

    todas verdadeiras, no certo seno ser porque

    Deus ou existe, e um ser perfeito, e porque

    tudo o que existe em ns nos vem dele. Donde

    se segue que as nossas idias ou noes, sendo

    coisas reais, e provenientes de Deus em tudo

    em que so claras e distintas, s podem por isso

    ser verdadeiras. De sorte que, se temos muitas

    vezes outras que contm falsidade, s podem

    ser as que possuem algo de confuso e

    obscuro, porque nisso participam do nada, isto ,

    so assim confusas em ns, porque ns no

    somos de todo perfeitos. E evidente que no

    repugna menos admitir que a falsidade ou a

    imperfeio procedam de Deus, como tal, do

    que admitir que a verdade ou a perfeio

    procedam do nada. Ma, se no soubssemos de

    modo algum que tudo quanto existe em ns de

    real e verdadeiro provm de um ser perfeito e

    infinito, por claras e distintas que fossem nossas

  • idias, no teramos qualquer razo que nos

    assegurasse que elas possuem a perfeio de

    serem verdadeiras 67.

    66. Distino entre certeza moral (suficiente para avida prtica) e metafsica (quando pensamos que no de modo algum possvel que a coisa seja diferente do quejulgamos). No primeiro plano, seria loucura duvidar da

    existncia das coisas sensveis; no segundo, leviandadeestar seguro delas.

    67. Somente aps a prova da existncia de um Deusperfeito (logo, imutvel e no enganador portantogarante das idias claras e distintas), que a regra da

    28

    [8] Ora, depois que o conhecimento deDeus e da alma nos tenha, assim, dado

    certeza dessa regra, muito fcil

    compreender que os sonhos que imaginamos

    quando dormimos no devem, de modo algum,

    levar-nos a duvidar da verdade dos

    pensamentos que temos quando acordados.

    Pois, se acontecesse que, mesmo dormindo,

  • tivssemos alguma idia muito distinta, como,

    por exemplo, que um gemetra inventasse

    qualquer nova demonstrao, o sono deste no a

    impediria de ser verdadeira. E, quanto ao erro

    mais comum de nossos sonhos, que consiste

    em nos representarem diversos objetos talcomo fazem nossos sentidos exteriores, no

    importa que ele nos d ocasio de desconfiar

    da verdade de tais idias, porque estas tambm

    podem nos enganar repetidas vezes, sem que

    estejamos dormindo, como sucede quando os

    que tm ictercia vem tudo da cor amarela, ou

    quando os astros ou outros corpos fortemente

    afastados de ns se nos afiguram muito menores

    do que so. Pois, enfim, quer |73 estejamos em

    viglia, quer dormindo, nunca nos devemos

    deixar persuadir seno pela evidncia de nossa

    razo68.

    E deve-se observar que digo de nossa

    razo e de modo algum de nossa imaginao, ou

    de nossos sentidos. Porque, embora |51 vejamos o

    sol mui claramente, no devemos julgar por isso

  • que ele seja, apenas, da grandeza que o vemos;

    e bem podemos imaginar distintamente uma

    cabea de leo enxertada no corpo de uma

    cabra, sem que devamos concluir, por isso, que

    no mundo h uma quimera; pois a razo no nos

    dita que tudo quanto vemos ou imaginamos,

    assim, seja verdadeiro, mas nos dita realmente

    que todas as nossas idias ou noes devem ter

    algum fundamento de verdade; pois no seria

    possvel que Deus, que todo perfeito e

    verdico, as houvesse posto em ns sem isso.

    E, pelo fato de nossos raciocnios jamais

    serem to evidentes nem to completos durante

    o sono como durante a viglia, ainda de que s

    vezes nossas imaginaes sejam tanto ou mais

    vivas e expressas, ela nos dita tambm que,

    no podendo nossos pensamentos serem

    inteiramente verdadeiros, porque no somos de

    todo perfeitos, tudo o que eles encerram de

    verdade deve encontrar-se infalivelmente

    naquele que temos quando acordados, mais do

  • que em nossos sonhos.

    QUINTA PARTE

    ser colocadas como verdadeiras. Antes disso, gozamapenas de uma certeza subjetiva, verdadeiras s quandopenso nelas efetivamente.

    68. Todos os argumentos possveis do ceticismo sodoravante varridos: no poderamos ser sensveis aoargumento do sonho, por exemplo, a no ser que aindaconcedssemos nosso crdito s imagens sensveis. Agoras as idias claras e distintas tm fora constrangedora.

    29

    [1] Gostaria muito de prosseguir e de

    mostrar aqui toda a cadeia de outras verdades

    que deduzi dessas primeiras. Mas, dado que,

    para tal efeito, seria agora necessrio que

    falasse de muitas questes controvertidas

    entre os doutos, com os quais no desejo

    indispor-me, creio que ser melhor que eu me

    abstenha e somente diga, em geral, quais elas

    so, a fim de deixar que os mais sbios julguem

  • se seria til que o pblico fosse a esse respeito

    mais particularmente informado. Permanecia

    sempre firme na resoluo que tomara de no

    supor qualquer outro princpio, exceto aquele

    de que acabo de me servir para demonstrar aexistncia