discurso do metodo (k2pdf)
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Edição do Discurso do Método de René Descartes otimizada para leitura em eReaders.TRANSCRIPT
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1
REN DESCARTES
DISCURSO DO
MTODO
PARA BEM CONDUZIR A PRPRIA
RAZO
E PROCURAR A VERDADE NAS
CINCIAS
Traduo de Jacob Guinsburg e BentoPrado Jr.
Notas de Grard Lebrun
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in Obras escolhidas. Introduo de
Gilles-Gaston Granger; prefcio e notas deGrardLebrun; traduo de Jacob Guinsburg e Bento Prado Jr. So Paulo: Difel DifusoEuropia do Livro, 1962 (col. Clssicos Garnier);
21973, pp. 39-103. A paginao aquiindicada (|
39) a da 2 ed. de 1973.
Reproduzida na col. Os Pensadores. So
Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. #; 21979, pp.25-71. A paginao aqui indicada (|
25) a da 2
ed. de 1979.
H algumas diferenas entre as duas ediesquanto pontuao, em especial vrgulas; estosublinhados os erros tipogrficos da reproduoda col. Os Pensadores, assim como asretificaes aqui inseridas; as notasassinaladas com asterisco (*) no estavamnumeradas na ed. Difel, da a diferena comrelao numerao das notas da ed. da col.Os Pensadores.
[Original francs: Discours de la mthode,
pour bien conduire la raison, & chercher lavrit dans les sciences ... Leiden: Jan Maire,1637; in uvres de Descartes. Publies par Ch.
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Adam et P. Tannery. Paris: ditions du Cerf,
1897-1913; reimpresso revista sob a dir. de B.Rochot e P. Costabel. Paris: J. Vrin/CNRS,1964-74, 11 vols.; reimpresso: Paris, J. Vrin,
1996, 11vols. O Discours encontra-se no vol.VI, pp. 1-78].
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DO MTODO
PARA BEM CONDUZIR A
PRPRIA RAZO
E PROCURAR A VERDADE NAS
CINCIAS1
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[em branco]
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Advertncia
Se este discurso parecer demasiado
longo para ser lido de uma s vez, poder-se-
dividi-lo em seis partes. E, na primeira,
encontrar-se-o diversas consideraes
atinentes s cincias. Na segunda, as principais
regras do mtodo que o Autor buscou. Na
terceira, algumas das regras da Moral que
tirou desse mtodo. Na quarta, as razes pelas
quais prova a existncia de Deus e da alma
humana, que so os fundamentos de sua
metafsica. Na quinta, a ordem das questes de
Fsica que investigou, e, particularmente, a
explicao do movimento do corao e
algumas outras dificuldades que concernem Medicina, e depois tambm a diferena que hentre nossa alma e a dos animais. E, na
ltima, que coisas cr necessrias para ir mais
adiante do que foi na pesquisa da natureza e
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que razes o levaram a escrever.
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[em branco]
1. O primeiro ttulo em que pensou o autor era:Projeto de uma Cincia universal que possa elevar anossa natureza ao seu mais alto grau de perfeio. Mais osMeteoros, a Diptrica e a Geometria, onde as mais curiosasmatrias que o autor pde escolher para dar prova dacincia universal que ele prope so tratadas de tal modoque mesmo aqueles que no estudaram podementend-las. No se deve esquecer que a obra constituiuma apenas uma Introduo, que perde muito de seusentido quando separada dos trs ensaios que ela antecede.
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PRIMEIRA PARTE
[1] O bom senso a coisa do mundo
melhor partilhada, pois cada qual pensa estar
to bem provido dele, que mesmo os que so
mais difceis de contentar em qualquer outra
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coisa no costumam desejar t-lo mais do queo tm. E no verossmil que todos se
enganem a tal respeito; mas isso antes
testemunha que o poder de bem julgar e
distinguir o verdadeiro do falso, que
propriamente o que se denomina o bom senso
ou a razo, naturalmente igual em todos os
homens; e, destarte, que a diversidade de
nossas opinies no provm do fato de serem
uns mais racionais do que outros, mas
somente de conduzirmos nossos pensamentos
por vias diversas e no considerarmos asmesmas coisas. Pois no suficiente ter o
esprito bom, o principal aplic-lo bem. As
maiores almas so capazes dos maiores vcios,
tanto quanto das maiores virtudes, e os que s
andam muito lentamente podem avanar muito
mais, se seguirem sempre o caminho reto, doque aqueles que correm e dele se distanciam.
[2] Quanto a mim, jamais presumi que
meu esprito fosse em nada mais perfeito do que
-
os do comum; amide desejei mesmo ter o
pensamento to rpido, ou a imaginao to
ntida e distinta, ou a memria to ampla ou to
presente, quanto alguns outros. E no sei de
quaisquer outras qualidades, exceto as que
servem perfeio do esprito; pois, quanto razo ou ao senso, posto que a nica coisa
que nos torna homens e nos distingue dos
animais, quero crer que existe inteiramente em
cada um, e seguir nisso a opinio comum dos
filsofos, que dizem no haver mais nemmenos seno entre os acidentes, e no entre
as formas ou naturezas dos indivduos de uma
mesma espcie 2.
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[3] Mas no temerei dizer que
penso ter tido muita felicidade de me haver
encontrado, desde a juventude, em certos
caminhos, que me conduziram a consideraes
e mximas, de que formei um mtodo, pelo qual
me parece que eu tenha meio de aumentar
gradualmente meu conhecimento, e de al-lo,
-
pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a
mediocridade de meu esprito e a curta durao
de minha vida lhe permitam atingir3.
Pois j
colhi dele tais frutos que, embora no juzo que
fao de mim prprio eu procure pender mais
para o lado da desconfiana do que para o da
presuno, e que, mirando com um olhar de
filsofo as diversas aes e empreendimentos de
todos os homens, no haja quase
2. acidente o que pertence a um ser sem pertencer sua essncia. Os filsofos designam, como sempreem Descartes, os escolsticos.
3. Cf. a definio de sabedoria (assimilada cincia) no Prefcio dos Princpios: O perfeitoconhecimento de todas as coisas que o homem podesaber, tanto para a conduta da vida quanto para aconservao da sade e a inveno de todas as artes.
4
nenhum que no me parea vo e intil, no
deixo de obter extrema |30
satisfao do
progresso que penso j ter feito na busca da
-
verdade e de conceber tais esperanas para o
futuro que, se entre as ocupaes dos homens
puramente homens4,
h alguma que seja
solidamente boa e importante, ouso crer que
aquela que escolhi.
[4] Todavia, pode acontecer que me
engane, e talvez no passe de um pouco de cobre
e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei
como estamos sujeitos a nos equivocar no que
nos tange, e como tambm nos devem ser
suspeitos os juzos de nossos amigos, quandoso a nosso favor. Mas estimaria muito mostrar,
neste discurso, quais os caminhos que segui, e
representar nele a minha vida como num
quadro, para que cada qual possa julg-la e
que, informado pelo comentrio geral das
opinies emitidas a respeito dela, seja este um
novo meio de me instruir, que juntarei queles
de que costumo me utilizar.
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[5] Assim, o meu desgnio no ensinar aqui o mtodo que cada qual deve
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seguir para bem conduzir sua razo, mas apenas
mostrar de que maneira me esforcei por
conduzir a minha. Os que se metem a dar
preceitos devem considerar-se mais hbeis do
que aqueles a quem as do; e, se falham na
menor coisa, so por isso censurveis. Mas, no
propondo este escrito seno como uma histria,
ou, se o preferirdes, como uma fbula, na qual,
entre alguns exemplos que se podem imitar, se
encontraro talvez tambm muitos outros que se
ter razo de no seguir, espero que ele ser til
a alguns, sem ser nocivo a ningum, e que todos
me sero gratos por minha franqueza.
[6] Fui nutrido nas letras 5 desde a
infncia, e por me haver persuadido de que,
por meio delas, se podia adquirir um
conhecimento claro e seguro de tudo o que
til vida, sentia extraordinrio desejo deaprend-las. Mas, logo que terminei esse curso
de estudos, ao cabo do qual se costuma serrecebido na classe dos doutos, mudei
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inteiramente de opinio. Pois me achava
enleado em tantas dvidas e erros, que me
parecia no haver obtido outro proveito,
procurando instruir-me, seno o de ter
descoberto cada vez mais a minha ignorncia. E,
no entanto, estivera numa das mais clebres
escolas da Europa6,
onde pensava que deviam
existir homens sapientes, se que existiam em
algum lugar da Terra.
4. Os homens puramente homens so homens
considerados ao nvel da exclusiva luz natural,abstraindo-se qualquer assistncia que Deus possaproporcionar-lhes. doutrina constante em Descartes queo filsofo deva deixar ao telogo toda investigao dosobrenatural: Para o filsofo, basta considerar o homemna medida em que, nas coisas naturais, s depende de si;e eu, de meu lado, escrevi minha filosofia de modo quepossa ser recebida em toda parte, mesmo entre osturcos, e que eu no cause escndalo a ningum (Col.com Burman, A.T. VI, 550). No devemos submeter ateologia a raciocnios.
5. Isto : a Gramtica, a Histria, a Poesia, a Retrica.
-
6. O colgio dos jesutas de La Flche, fundado em1604, onde Descartes entrou em 1606. Descartes nuncadepreciou La Flche, como pretende a lenda,permanecendo sempre em bons termos com seus mestres.Assim, a excelncia do ensino em La Flche s acusamelhor ainda a insuficincia da tradio cultural.
5
Aprendera a tudo o que os outros aprendiam,e mesmo, no me tendo contentado com
cincias que nos ensinavam, percorrera todos
os livros que tratam daquelas que soconsideradas as mais curiosas e as mais raras,
que vieram a cair em minhas mos. Alm disso,
eu conhecia os juzos que os outros faziam de
mim; e no via de modo algum que me
julgassem inferior a meus condiscpulos,
embora entre eles houvesse alguns j
destinados a preencher os lugares de nossos
mestres. E, enfim, o nosso sculo parecia-me
to florescente e to fr- |31 til em bons espritos
como qualquer dos precedentes. O que me levava
-
a tomar a liberdade de julgar por mim todos os
outros e de pensar que no existia doutrina no
mundo que fosse tal como dantes me haviam
feito esperar.
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[7] No deixava, todavia, de estimar
os exerccios com os quais se ocupam nas
escolas. Sabia que as lnguas que nelas se
aprendem so necessrias ao entendimento dos
livros antigos; que a gentileza das fbulas
desperta o esprito; que as realizaes
memorveis das histrias o alevantam, e que,
sendo lidas com discrio, ajudam a formar o
juzo; que a leitura de todos os bons livros
igual a uma conversao com as pessoas mais
qualificadas dos sculos passados, queforam seus autores, e at uma conversao
premeditada, na qual eles nos revelam
to-somente os melhores de seus pensamentos;
que a eloqncia tem foras e belezas
incomparveis; que a poesia tem delicadezas e
ternuras muito encantadoras; que as Matemticas
-
tm invenes bastante sutis, e que podem
servir muito, tanto para contentar os curiosos,
quanto para facilitar todas as artes e diminuir
o trabalho dos homens; que os escritos
que tratam dos costumes contm muitos
ensinamentos e muitas exortaes virtude queso muito teis; que a Teologia ensina a ganhar
o cu; que a Filosofia d meio de falar comverossimilhana de todas as coisas e de se fazer
admirar pelos menos eruditos; que a
Jurisprudncia, a Medicina e as outras
cincias trazem honras e riquezas queles que
as cultivam; e, enfim, que bom t-lasexaminado a todas, at mesmo as mais
supersticiosas e as mais falsas, a fim de
conhecer-lhes o justo valor e evitar ser por elas
enganado.
[8] Mas eu acreditava j ter dedicado
bastante tempo s lnguas, e mesmo tambm leitura dos livros antigos, s suas histrias e
s suas fbulas. Pois quase o mesmo que
-
conversar com os de outros sculos, o viajar. bom saber algo dos costumes de diversospovos, a fim de que julguemos os nossos mais
smente e no pensemos que tudo quanto
contra os nossos modos ridculo e contrrio razo, como soem proceder os que nadaviram. Mas, quando empregamos demasiado
tempo em viajar, acabamos tornando-nos
estrangeiros em nossa prpria terra; e quando
somos demasiado curiosos das coisas que se
praticavam nos sculos passados, ficamos
6
praticam no presente. Alm do mais, as
fbulas fazem imaginar como possveis muitos
eventos que no o so, e mesmo as histriasmais fiis, se no mudam nem alteram o valor
das coisas para torn-las mais dignas de serem
lidas, ao menos omitem quase sempre ascircunstncias mais baixas e menos ilustres, de
onde resulta que o resto no parece tal qual , e
-
que aqueles que regulam os seus costumes
pelos exemplos que deles tiram esto sujeitos
a cair nas extravagncias |45 dos paladinos de
nossos romances e a conceber desgnios que
ultrapassam suas foras 7.
[9] Eu apreciava muito a eloqncia e
estava enamorado da poesia; mas pensava que
uma e outra fossem dons do esprito, mais do
que frutos do estudo. Aqueles cujo raciocnio
mais vigoroso e que melhor digerem 8 seus
pensamentos, a fim de torn-los claros e
inteligveis, podem sempre persuadir melhor os
outros daquilo que pro- |32 pem, ainda que
falem apenas baixo breto 9 e nunca tenham
aprendido retrica. E aqueles cujas invenes
so mais agradveis e que as sabem exprimircom o mximo de ornamento e doura no
deixariam de ser os melhores poetas, ainda que
a arte potica lhes fosse desconhecida 10.
[10] Comprazia-me sobretudo com asMatemticas, por causa da certeza e da
-
evidncia de suas razes; mas no notava ainda
seu verdadeiro emprego, e, pensando que
serviam apenas s artes mecnicas,
espantava-me de que, sendo seus fundamentosto firmes e to slidos, no se tivesse edificado
sobre eles nada de mais elevado11.
Tal como, ao
contrrio, eu comparava os escritos dos
antigos pagos que tratam de costumes a
palcios muito soberbos e magnficos,
erigidos apenas sobre a areia e a lama.
Erguem muito alto as virtudes e apresentam-nascomo as mais estimveis entre todas as coisas
que existem no |46 mundo; mas no ensinam
bastante a conhec-las, e amide o quechamam com um nome to belo no seno uma
insensibilidade, ou um orgulho, ou um
desespero, ou um parricdio 12.
7. Descartes dir que as lnguas, a Geografia, aHistria, so adquiridas sem nenhum discurso da razo:
elas recorrem apenas memria, jamais razo. Essa
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distino entre as cincias racionais e histricas fundamental nos Clssicos; ser mantida por Kant.
8.* Digerem: ordenam, segundo o sentido primitivo dolatim digerere, cf. Littr [(N. do T.)].
9. Sinal da pouca importncia que Descartesconcede lngua: todo pensamento pode exprimir-se emqualquer lngua.
10. As regras da arte no so de menosprezar, masem arte no h mtodo e nela o aprendizado tem s umapequena parte. Este primado reconhecido inspiraoatesta a mutao ocorrida na condio do artista,embora o sculo XVII ainda o denomine arteso.
11. Parece que o ensino das Matemticas eraministrado tendo sobretudo em mira as suas aplicaestcnicas (cartografia, fortificaes, agrimensura). Gilson
observa que este carter aplicado das matemticas deviatornar ainda mais estranha a fsica aristotlica que eraensinada ao mesmo tempo. Ele cita, em apoio, um textoantiaristotlico de Clavius, autor de um compndio deMatemtica versado por Descartes.
12. Aluso aos esticos.
7
[11] Eu reverenciava a nossa Teologia e
pretendia, como qualquer outro, ganhar o cu;
-
mas, tendo aprendido, como coisa muito
segura, que o seu caminho no est menos
aberto aos mais ignorantes do que aos mais
doutos e que as verdades reveladas que para l
conduzem esto acima de nossa inteligncia,
no me ousaria submet-las fraqueza demeus raciocnios, e pensava que, paraempreender seu exame e lograr xito, era
necessrio ter alguma extraordinria assistncia
do cu e ser mais do que homem.
[12] Da filosofia nada direi, seno que,
vendo que foi cultivada pelos mais excelsos
espritos que viveram desde muitos sculos e
que, no entanto, nela no se encontra ainda uma
s coisa sobre a qual no se dispute, e por
conseguinte que no seja duvidosa, eu no
alimentava qualquer presuno de acertar
melhor do que outros; e que, considerando
quantas opinies diversas, sustentadas por
homens doutos, pode haver sobre uma e mesma
matria, sem que jamais possa existir mais de
-
uma que seja verdadeira, reputava quase como
falso tudo quanto era somente verossmil 13.
[13] Depois, quanto s outras cincias, na
medida em que tomam seus princpios da
Filosofia, julgava que nada de slido se
podia construir sobre fundamentos to pouco
firmes. E nem a honra, nem o ganho que elas
prometem, eram suficientes para me incitar a
aprend-las; pois no me sentia, de modo
algum, graas a Deus, numa condio que me
obrigasse a converter a cincia num mister, para
o alvio de |33 minha fortuna; e conquanto no
fizesse profisso de desprezar a glria como um
cnico, fazia, entretanto, muito pouca questo
daquela que eu s podia esperar adquirir com
falsos ttulos. E enfim, quanto s ms doutrinas,
pensava j conhecer bastante o que valiam,
para no mais estar exposto a ser enganado,
nem pelas pro- |47 messas de um alquimista,
nem pelas predies de um astrlogo, nem
pelas imposturas de um mgico, nem pelos
-
artifcios ou jactncias de qualquer dos que
fazem profisso de saber mais do que sabem.[14] Eis por que, to logo a idade me
permitiu sair da sujeio de meus preceptores,
deixei inteiramente o estudo das letras. E,
resolvendo-me a no mais procurar outra cincia
alm daquela que poderia achar em mim
prprio, ou ento no grande livro do mundo,
empreguei o resto de minha mocidade em
viajar, em ver cortes e exrcitos, em freqentar
gente de diversos humores e condies, em
recolher diversas experincias, em provar a
mim mesmo nos reencontros que a fortuna
me propunha e, por toda parte, em fazer tal
reflexo sobre as coisas que se me
apresentavam, que eu pudesse delas tirar
algum
13. Descartes visa aqui disputa escolstica quese convertera em exerccio escolar e ao hbito dos
professores de citar e refutar as opinies de diferentes8tifiques de Descartes).
-
proveito. Pois afigurava-se-me poder encontrar
muito mais verdade nos raciocnios que cada
qual efetua no que respeitante aos negcios
que lhe importam, e cujo desfecho, se julgou
mal, deve puni-lo logo em seguida, do que
naqueles que um homem de letras faz em seu
gabinete, sobre especulaes que no
produzem efeito algum e que no lhe trazem
outra conseqncia seno talvez a de lhe
proporcionarem tanto mais vaidade quanto mais
distanciadas do senso comum, por causa do
outro tanto de esprito e artifcio que precisou
empregar no esforo de torn-las
verossmeis14.
E eu sempre tive um imenso
desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do
falso, para ver claro nas minhas aes e
caminhar com segurana nesta vida.
[15] certo que, enquanto me limitava aconsiderar os costumes dos outros homens,
pouco encontrava que me satisfizesse, pois
advertia neles quase tanta diversidade como a
-
que notara anteriormente entre as opinies dos
filsofos. De modo que o maior proveito que
da tirei foi que, vendo uma poro de
coisas que, embora nos paream muito
extravagantes e ridculas, no deixam de ser
comumente acolhidas e aprovadas por outros
grandes povos, aprendi a no crer
demasiado firmemente em nada do que me
fora inculcado s pelo exemplo e pelo costume;
e, assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos
erros que podem ofuscar a nossa luz natural e
nos tornar menos capazes de ouvir a razo. |48
Mas, depois que empreguei alguns anos emestudar assim no livro do mundo, e em
procurar adquirir alguma experincia, tomei umdia a resoluo de estudar tambm a mim
prprio e de empregar todas as foras de meu
esprito na escolha dos caminhos que devia
seguir15.
O que me deu muito mais resultado,
parece-me, do que se jamais tivesse me
afastado de meu pas e de meus livros.
-
|34
SEGUNDA PARTE
[1] Achava-me, ento, na Alemanha,para onde fora atrado pela ocorrncia dasguerras, que ainda no findaram, e, quando
retornava da coroao do imperador16 para o
nossos manuais de Filosofia) pensa que a verdade uma s (no havendo seno uma verdade de cadacoisa...) e que ela compele todos os espritos aoassentimento.
14. Notar bem que toda essa passagem constitui amais brutal e desdenhosa condenao da Filosofia comodisciplina e como profisso, tal como a concebemos aindaatualmente
15. Aps a experincia do mundo e a observaodos costumes, a fundao da cincia. Na realidade, oscortes no foram inopinados. Os anos de que nos falaDescartes no foram anos de preguia intelectual (cf. G.Milhaud, Descartes Savant, Les premiers essais
scientifiques de Descartes).
16. As festas da coroao celebraram-se de julho asetembro de 1619. O episdio da pole , em geral,situado nos primeiros dias de novembro de 1619.
-
9
exrcito, o incio do inverno me deteve num
quartel, onde, no encontrando nenhuma
freqentao que me distrasse, e no
tendo, alm disso, por felicidade, quaisquer
solicitudes ou paixes que me perturbassem,
permanecia o dia inteiro fechado sozinho num
quarto bem aquecido onde dispunha de todo
o vagar para me entreter com os meus
pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi
que me lembrei de considerar que, amide, no
h tanta perfeio nas obras compostas de
vrias peas, e feitas pela mo de diversos
mestres, como naquelas em que um s
trabalhou. Assim, v-se que os edifcios
empreendidos e concludos por um s
arquiteto costumam ser mais belos e melhor
ordenados do que aqueles que muitos
procuraram reformar, fazendo uso de velhas
paredes construdas para outros fins. Assim,
-
essas antigas cidades que, tendo sido no
comeo pequenos burgos, tornaram-se no
decorrer do tempo grandes centros, so
ordinariamente to mal compassadas, em
comparao com essas praas regulares,traadas por um engenheiro sua fantasianuma plancie, que, embora considerando seus
edifcios cada qual parte, se encontre nelesmuitas vezes tanta ou mais arte que nos das
outras, todavia, a ver como se acham arranjados,
aqui |49 um grande, ali um pequeno, e como
tornam as ruas curvas e desiguais, dir-se-ia que
foi mais o acaso do que a vontade de alguns
homens usando da razo que assim os disps. E
se se considerar que, apesar de tudo, sempre
houve funcionrios com o encargo de fiscalizar
as construes dos particulares para torn-las
teis ao ornamento do pblico,
reconhecer-se- realmente que penoso,
trabalhando apenas nas obras de outrem, fazer
coisas muito acabadas. Assim, imaginei que os
-
povos, que, tendo sido outrora semi-selvagens
e s pouco a pouco se tendo civilizado, no
elaboraram suas leis seno medida que aincomodidade dos crimes e das querelas a tanto
os compeliu, no poderiam ser to bem
policiados17 como aqueles que, a comear do
momento em que se reuniram observaram as
constituies de algum prudente legislador. Tal
como bem certo que o estado da verdadeira
religio, cujas ordenanas s Deus fez, deve ser
incomparavelmente melhor regulamentado do
que todos os outros. E, para falar das coisas
humanas, creio que, se Esparta foi outrora
muito florescente, no o deveu bondade decada uma de suas leis em particular, visto que
muitas eram bastante alheias e mesmo contrrias
aos bons costumes, mas ao fato de que,
havendo sido inventadas apenas por um s,
tendiam todas ao mesmo fim. E assim pensei
que as cincias dos livros, ao menos aquelas
cujas razes so apenas provveis e que
-
no apresentam quaisquer demonstraes, pois
se compuseram e avolumaram pouco a pouco
com opi- |35
nies de
17.* Policiados: de policiar (policer), no sentido de10
mui diversas pessoas, no se acham, de modo
algum, to prximas da verdade quanto os
simples raciocnios que um homem de bom
senso pode fazer naturalmente com respeito s
coisas que se lhe apresentam. E assim ainda,
pensei que, como todos ns fomos crianasantes de sermos homens, e como nos foi
preciso por muito tempo sermos governados
por nossos apetites e nossos preceptores, que
eram amide contrrios uns aos outros, e que,
nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos
aconselhassem o melhor, quase impossvel que
nossos juzos sejam to puros ou to slidoscomo seriam, se tivssemos o uso inteiro de
-
nossa razo desde o nascimento e se no
tivssemos sido guiados seno por ela 18.
|50
[2] certo que no vemos em partealguma lanarem-se por terra todas as casas deuma cidade, com o exclusivo propsito de
refaz-las de outra maneira, e de tornar assim
suas ruas mais belas; mas v-se na realidade
que muitos derrubam as suas para reconstru- las,sendo mesmo algumas vezes obrigados a
faz-lo, quando elas correm o perigo de cair por
si prprias, por seus alicerces no se estarem
muito firmes. A exemplo disso, persuadi-me de
que verdadeiramente no seria razovel que
um particular intentasse reformar um Estado,mudando-o em tudo desde os fundamentos e
derrubando-o para reergu-lo; nem tampouco
reformar o corpo das cincias ou a ordem
estabelecida nas escolas para ensin- las; mas
que, no tocante a todas as opinies que atento acolhera em meu crdito, o melhor a
fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a
-
retirar-lhes essa confiana, a fim de substitu-las
em seguida ou por outras melhores, ou ento
pelas mesmas, aps t-las ajustado ao nvel da
razo. E acreditei firmemente que, por este
meio, lograria conduzir minha vida muito
melhor do que se a edificasse apenas sobre
velhos fundamentos, e me apoiasse to-somente
sobre princpios de que me deixara persuadir
em minha juventude, sem ter jamais examinadose eram verdadeiros. Pois, embora notasse nesta
tarefa diversas dificuldades, no eram todavia
irremediveis, nem comparveis s que se
encontram na reforma das menores coisas
atinentes ao pblico. Esses grandes corpos
so demasiado difceis de reerguer quando
abatidos, ou mesmo de suster quando abalados,
e suas quedas no podem deixar de ser muito
rudes. Pois, quanto s suas imperfeies, se as
tm, como a mera diversidade existente entre
eles basta para assegurar que as tm numerosas,
o uso sem dvida as suavizou, e mesmo evitou e
-
corrigiu insensivelmente um grande nmero s
quais no se poderia to bem remediar por
prudncia. E, enfim, so quase sempre mais
suportveis do que o seria a sua mudana; da
mesma forma que os grandes caminhos, que
18. Desprezo pela erudio livresca, oposio da
razo histria, da evidncia conquistada por nsmesmos ao preconceito herdado da tradio; estesleitmotiv cartesianos em parte alguma se acham melhor concentrados.
11
volteiam entre montanhas, se tornam pouco apouco to batidos e to cmodos, fora deserem freqentados, que bem melhor
segui-los do que tentar ir mais reto, escalando
por cima dos rochedos e descendo at o fundo
dos precipcios.
[3] Eis por que no poderia de
forma alguma aprovar esses temperamentos
-
perturbadores e inquietos que, no sendo cha-
|51
mados, nem pelo nascimento, nem pela
fortuna, ao manejo dos negcios pblicos, no
deixam de neles praticar sempre, em idia,
alguma nova reforma. E se eu pensasse haver
neste escrito a menor coisa que |36 pudesse
tornar-me suspeito de tal loucura, ficaria muito
pesaroso de ter aceito public-lo. Nunca o meu
intento foi alm de procurar reformar meus
prprios pensamentos, e construir num terreno
que todo meu. De maneira que, se, tendo
minha obra me agradado bastante, eu vos
mostro aqui o seu modelo, nem por isso quero
aconselhar algum a imit-lo. Aqueles a quem
Deus melhor partilhou suas graas alimentaro
talvez desgnios mais elevados; mas temo
bastante que j este seja ousado demais para
muitos. A simples resoluo de se desfazer de
todas as opinies a que se deu antes crdito
no um exemplo que cada qual deva seguir; e
o mundo compe-se quase to-somente de
-
duas espcies de espritos, aos quais ele no
convm de modo algum. A saber, daqueles
que, crendo-se mais hbeis do que so, no
podem impedir-se de precipitar seus juzos,
nem ter suficiente pacincia para conduzir por
ordem todos os seus pensamentos: da resulta
que, se houvessem tomado uma vez a liberdade
de duvidar dos princpios que aceitaram e dese apartar do caminho comum, nunca
poderiam ater-se senda que precisotomar para ir mais direito, e permaneceriam
extraviados durante toda a vida; depois,
daqueles que, tendo bastante razo, ou
modstia, para julgar que so menos capazes de
distinguir o verdadeiro do falso do que alguns
outros, pelos quais podem ser instrudos,
devem antes contentar-se em seguir as opinies
desses outros, do que procurar por si prprios
outras melhores.
[4] E, quanto a mim, estaria sem dvida
no nmero destes ltimos, se eu tivesse tido um
-
nico mestre, ou se nada soubesse das
diferenas havidas em todos os tempos entre as
opinies dos mais doutos. Mas, tendo
aprendido, desde o Colgio, que nada se
poderia imaginar to estranho e to pouco crvel
que algum dos filsofos j no houvesse dito;
e depois, ao viajar, tendo reconhecido que
todos os que possuem sentimentos muito
contrrios aos nossos nem por isso so brbaros
ou selvagens, mas que muitos usam, tanto ou
mais do que ns, a razo; e, tendo considerado
o quanto um mesmo homem, com o seu mesmo
esprito, sendo criado desde a infncia entre
franceses ou alemes, torna-se diferente do que
seria se vivesse sempre entre chineses ou
canibais; e como, at nas modas de nossos trajes,
a mesma coisa que nos agradou h |52 dez anos,
12
ainda antes de decorridos outros dez, nos parece
agora extravagante e ridcula, de sorte que so
-
bem mais o costume e o exemplo que nos
persuadem do que qualquer conhecimento certo
e que, no obstante, a pluralidade das vozes
no prova que valha algo para as verdades
um pouco difceis de descobrir, por ser bem
mais verossmil que um s homem as tenha
encontrado do que todo um povo: eu no podia
escolher ningum cujas opinies me parecessem
dever ser preferidas s de outrem, e achava-me
como compelido a tentar eu prprioconduzir-me.
[5] Mas, como um homem que caminhas e nas trevas, resolvi ir to lentamente, e usar
de tanta circunspeco em todas as coisas,
que, mesmo se avanasse muito pouco, evitaria
pelo menos cair. No quis de modo algum
comear rejeitando inteiramente qualquer das
opinies que porventura se insinuaram outrora
em minha confiana, sem que a fossem
introduzidas pela razo, antes de despender
bastante tempo em elaborar o projeto da obra
-
que ia empreender, e em procurar o
verdadeiro mtodo para chegar ao |37
conhecimento de todas as coisas de que meu
esprito fosse capaz 19.
[6] Eu estudara um pouco, sendo mais
jovem, entre as partes da Filosofia, a Lgica, e,entre as Matemticas, a Anlise dos
gemetras20 e a lgebra, trs artes ou cincias
que pareciam dever contribuir com algo para o
meu desgnio. Mas, examinando-as, notei que,
quanto Lgica, os seus silogismos e a maiorparte de seus outros preceitos servem mais para
explicar a outrem as coisas j se sabem, ou
mesmo, como a arte de Llio, para falar, sem
julgamento, daquelas que se ignoram, do
que para aprend-las. E embora ela contenha,
com efeito, uma poro de preceitos muitoverdadeiros e muito bons, h todavia tantos
outros misturados de permeio que so ou
nocivos, |53 ou suprfluos, que quase to difcil
separ-los quanto tirar uma Diana ou uma
-
Minerva de um bloco de mrmore que nem
sequer est esboado. Depois, com respeito Anlise dos Antigos e lgebra dos modernos,alm de se estenderem apenas a matrias muito
abstratas, e de no parecerem de nenhum uso, a
primeira permanece sempre to adstrita considerao das figuras que no pode exercitar
o entendimento sem fatigar muito a
imaginao; e esteve-se de tal forma sujeito, na
segunda, a certas regras e certas cifras, que
se fez dela uma arte confusa e obscura que
embaraa o esprito, em lugar de uma cincia
que o cultiva. Por esta causa,
19. Houve, portanto, um intervalo entre as reflexes
de novembro de 1619 e a elaborao do mtodo. Alis,
este no resulta daquelas, porm bem mais dos trabalhos
matemticos em curso (construo, por meio de uma
parbola, de todos os problemas dos slidos do terceiro e
quarto graus).
-
20. A Anlise designa aqui o mtodo que consiste
em supor conhecida a linha desconhecida, em
estabelecer as relaes que a ligam a grandezas
conhecidas, at que se possa constru-la a partir destas
relaes. Entre os Antigos, esse mtodo (vlido para
outros domnios, alm da Geometria) se apresenta sob a
forma geomtrica.
13
pensei ser mister procurar algum outro mtodo
que, compreendendo as vantagens desses
trs, fosse isento de seus defeitos. E, como a
multido de leis fornece amide escusas aos
vcios, de modo que um Estado bem
melhor dirigido quando, tendo embora muito
poucas, so estritamente cumpridas; assim, em
vez desse grande nmero de preceitos de que
se compe a Lgica, julguei que me
bastariam os quatro seguintes 21, desde que
-
tomasse a firme e constante resoluo de no
deixar uma s vez de observ-los.
[7] O primeiro era o de jamais acolher alguma
coisa como verdadeira que eu no
conhecesse evidentemente como tal; isto , de
evitar cuidadosamente a precipitao e a
preveno22, e de nada incluir em meus
juzos que no se apresentasse to clara e to
distintamente23 a meu esprito, que eu no
tivesse nenhuma ocasio de p-lo em dvida.
|54
[8] O segundo, o de dividir cada uma
|38
das dificuldades que eu examinasse em tantas
parcelas quantas possveis e quantas necessrias
fossem para melhor resolv-las 24.
[9] O terceiro, o de conduzir por ordem meus
pensamentos, comeando pelos objetos
mais simples e mais fceis de conhecer, para
subir, pouco a pouco, como por degraus, at o
-
conhecimento dos mais compostos, e supondo
mesmo uma ordem entre os que no se
precedem naturalmente uns aos outros 25.
21. Leibniz foi o primeiro a zombar da banalidadedeste mtodo. E verdade que o Mtodo est contido maisnas Regulae do que nessa apresentao esotrica. Noobstante, a leitura da Geometria o nico dos trsensaios que, segundo o Autor, prova a validade domtodo mostra o quanto esta banalidade aparente.Separadas desta referncia, compreendidas comopreceitos gerais, as regras seriam, na verdade, poucoproveitosas: o que se esquece com demasiadafreqncia.
22. A precipitao consiste em julgar antes de terchegado evidncia, e a preveno, na persistncia dosprejuzos de infncia.
23. Cf. Princpios, I, 45: Denomino claro o que presente e manifesto a um esprito atento ... e distinto oque de tal modo que compreende em si apenas o que
parece manifestamente a quem o considere como sedeve.
24. As palavras dificuldade (que significa:
problema matemtico) e resolver devem remeter-nos
-
Geometria, nomeadamente primeira parte do LivroIII, onde se trata da resoluo de equaes mediante doismtodos: quer realizando o produto de binmioscompostos da incgnita menos cada uma das razes; quer,quando no se encontra nenhum binmio que possaassim dividir a soma toda da equao proposta,considerando a equao como o produto de doispolinmios (mtodo das indeterminadas). Supor-se-,
por exemplo, que a equao do quarto grau fruto damultiplicao de duas equaes arbitrrias do segundograu. No , pois, questo somente de dividir, mastambm de decompor at os elementos mais simples cujacombinao engendrar soluo.
25. Constituio de uma srie em que cada termoficar colocado antes dos que dele dependem e depoisdaqueles de que ele depende. A geometria, na suaclassificao das curvas, ilustra a importncia da ordemassim concebida: as linhas mais compostas sero nela
recebidas tanto como as mais simples, contanto quepossamos imagin-las descritas por um movimentocontnuo ou por vrios que se seguem e dos quais osltimos sejam inteiramente regrados pelos que osprecedem; pois, mediante isso, podemos sempre ter umconhecimento exato de sua medida (A.T. VI, 389). Aordem o garante da homogeneidade de um domnio e dapossibilidade de determinar com certeza os seres queele inclui ou exclui. Isto ser vlido tanto emMetafsica como em Geometria.
-
14
|55
[10] E o ltimo, o de fazer em toda
parte enumeraes to completas e revises to
gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir 26.
[11] Essas longas cadeias de razes27,
todas simples e fceis 28, de que os gemetras
costumam servir-se para chegar s suas maisdifceis demonstraes, haviam-me dado
ocasio de imaginar que todas as coisas
possveis de cair sob o conhecimento doshomens
seguem-se umas s outras da mesma
maneira e que, contanto que nos
abstenhamos
somente de aceitar por verdadeira qualquer
que no o seja, e que guardemos sempre a
ordem necessria |39 para deduzi-las umas
-
das outras, no pode haver quaisquer to
afastadas a que no se chegue por fim, nem to
ocultas que no se descubram. E no me foi
muito penoso procurar por quais devia comear,
pois j sabia que haveria de ser pelas mais
simples e pelas mais fceis de conhecer; e,
considerando que, entre todos os que
precedentemente buscaram a verdade nas
cincias, s os matemticos puderam encontrar
algumas demonstraes, isto , algumas razes
certas e evidentes, no duvidei de modo algum
que no fosse pelas mesmas que eles
examinaram29;
embora no esperasse |56 disso
nenhuma outra utilidade, exceto a de que
acostumariam o meu esprito a se alimentar de
verdades e a no se contentar com falsas
razes. Mas no foi meu intuito, para tanto,
procurar aprender todas essas cincias
-
particulares que se chamam comumente
matemticas30; e, vendo que, embora seus
objetos sejam diferentes, no deixam de
26. Pode parecer que esta regra repita a segunda, vistoque a diviso em parcelas a mesma coisa que aenumerao das variveis. Vuillemin, que evocaesta dificuldade em seu livro Mathmatiques etMtaphysique chez Descartes (pg. 137), pensa que talregra antes ilustrada pela enumerao de todos os casospossveis para a soluo de uma equao, o quepossibilita a escolha de uma soluo mais geral.Preceito reflexivo e regulador que versa sobre os mtodose no sobre os problemas.
27. Por razes, deve-se entender propores.
Como mostra Vuillemin, no captulo IV de sua obra, acincia cartesiana uma teoria das propores:multiplicao, diviso e extrao de raiz so trs meiosde construo de uma quarta proporcional o grau deuma equao definido pelo nmero de proporesrequeridas entre as quantidades, seu gnero pelonmero mnimo dessas propores em geral, umaproporo contnua o modelo da ordem. Uma srie como
3/6 = 6/12 = 12/24mostra-nos de que maneira esto envolvidas todas
-
as questes referentes s propores ou razes das coisase em que ordem devem ser procuradas: o que por sis constitui o essencial de toda cincia da matemticapura (Reg., VI, A.T. X, pg. 385).
28. Vuillemin observa que simples e fcil no so
sinnimos. fcil o que simples segundo ns e, porassim dizer, do ponto de vista psicolgico. simples oque primeiro pela ordem das coisas (Op. cit., pg. 118).O raciocnio mais fcil (pedaggica e sinteticamente)nem sempre o mais simples (segundo a ordem eanaliticamente).
29. Acrescente-se para a claridade do texto: queera preciso comear. Cf. Col. com Burman: AMatemtica acostuma o esprito a reconhecer averdade, porque sempre encontramos nela raciocniosrigorosos que no encontraramos alhures. Emconseqncia, uma vez afeito o esprito aosraciocnios matemticos, t-lo-emos tornado tambm
prprio pesquisa de outras verdades, posto que em todaparte h somente uma e mesma forma de raciocinar (A.T.VI, 550-51).
30. Aluso diviso escolstica das Matemticas:Matemticas Puras (Geometria, Aritmtica) e Mistas(Astronomia, Msica, ptica). O que interessa a Descartes o denominador comum dessas cincias (a ordem e amedida), ao passo que os Escolsticos desejavam
15geometria grega. Para resolver o que ns formulamos
-
concordar todas, pelo fato de no conferirem
nesses objetos seno as diversas relaes ou
propores que neles se encontram, pensei
que valia mais examinar somente estas
propores em geral 31, e supondo-as apenas
nos suportes que servissem para me tornar o
seu conhecimento mais fcil; mesmo assim,
sem restringi-las de forma nenhuma a tais
suportes, a fim de poder aplic-las to melhor,
em seguida, a todos os outros objetos a que
conviessem. Depois, tendo notado que, para
conhec-las, teria algumas vezes necessidade
de consider-las cada qual em particular, eoutras vezes somente de reter, ou de
compreender, vrias em conjunto, pensei que,
para melhor consider-las em particular,
deveria sup-las em linhas 32, porquanto no
-
encontraria nada mais simples, nem |57 que
pudesse representar mais distintamente minha imaginao e aos meus sentidos 33; mas
que, para |40 reter, ou compreender, vrias em
conjunto, cumpria que eu as designasse por
alguns signos, os mais breves possveis 34, e
que, por esse meio, tomaria de emprstimo o
melhor da Anlise geomtrica e da lgebra, e
corrigiria todos os defeitos de uma pela
outra.
[12] E como, efetivamente, ouso dizer que
a exata observao desses poucos
preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade
de deslindar todas as questes s quais se
estendem essas duas cincias que, nos dois ou
trs meses que empreguei em examin-las,
tendo comeado pelas mais simples e mais
gerais, e constituindo cada verdade que eu
-
achava uma regra que me servia em seguida
para achar outras, no s consegui resolver
muitas que julgava antes muito difceis 35,
como me pareceu tambm, perto do fim, que
que impedia de distinguir, como faz Descartes, estaMatemtica comum, que requer apenas memria, e acincia matemtica, que no bebida nos livros.
3 1. Trata-se, portanto, da mathesis universalis,cincia inteiramente nova pela qual podero serresolvidos todos os problemas relativos a qual gnero dequantidade, contnua ou discreta (A.T. X, 156) eprimeiro fruto do mtodo. Na verdade, o mtodo foiconcebido com vistas a ela. Sobre esta interpenetrao damathesis e do mtodo, cf. Regulae, quarta regra. Nose trata aqui, de modo algum, da geometria analtica,como s vezes se pretende falsamente.
32. Lineis rectis, diz o texto latino. A linha reta escolhida como figurao universal da grandeza porqueela o suporte mais flexvel para a teoria daspropores (pode representar um produto, um
quociente, uma raiz, bem como a soma ou uma
diferena), mas tambm porque permite evitar oincomensurvel. O fato de as letras algbricasrepresentarem linhas e no nmeros (e, em geral, adesconfiana de Descartes para com a aritmtica) atesta
-
o que Belaval denomina, em Leibniz critique deDescartes, a limitao da lgebra pela Geometria.Descartes libertou-se do realismo intuitivo dos gregos(por exemplo, colocando que o resultado de todo clculosobre quantidades figuradas por grandezas retilneascorresponde, por sua vez, a uma grandeza retilnea), masfoi s pela metade.
33. Indispensvel ao entendimento em Matemtica,a imaginao (a considerao das figuras) no ,entretanto, seno uma auxiliar. Cf. Regulae, regra catorze.
34. A simplificao da lgebra consiste emdesignar todas as grandezas por letras do alfabeto, emrepresentar as potncias pelas cifras escritas em expoentes(salvo para x2 que Descartes ainda escreve xx) e oequacionamento pela igualdade a zero.
35. Segundo G. Milhaud (Descartes Savant), aluso soluo dos problemas dos slidos do terceiro e quartograus por meio da interseo de um crculo e de umaparbola. Milhaud mostra, a este propsito, o quantoDescartes, em 1620, ainda o continuado da geometria
16
podia determinar, at mesmo naquelas que
ignorava, por quais meios e at onde seria
possvel resolv-las36.
No que no vos
parecerei talvez muito vaidoso, se |58
-
considerardes que, havendo somente uma
verdade de cada coisa, todo aquele que a
encontrar sabe a seu respeito tanto quanto se
pode saber; e que, por exemplo, uma
criana instruda na aritmtica, que haja
realizado uma adio segundo as regras, pode
estar certa de ter achado, quanto soma queexaminava, tudo o que o esprito humano
poderia achar. Pois, enfim, o mtodo que
ensina a seguir a verdadeira ordem e aenumerar exatamente todas as circunstncias
daquilo que se procura contm tudo quanto
d certeza s regras da aritmtica.
[13] Mas, o que me contentava mais
nesse mtodo era o fato de que, por ele, estava
seguro de usar em tudo minha razo, se no
perfeitamente, ao menos o melhor que eu
pudesse; alm disso, sentia, ao pratic-lo, que
meu esprito se acostumava pouco a pouco aconceber mais ntida e distintamente seus
objetos, e que, no o tendo submetido a
-
qualquer matria particular, prometia a mim
mesmo aplic-lo to utilmente s dificuldadesdas outras cincias como o fizera com as da
lgebra. No que, para tanto, ousasse
empreender primeiramente o exame de todas as
|41 que se me apresentassem, pois isso mesmo
seria contrrio ordem que ele prescreve.Porm, tendo notado que os seus princpios
deviam ser todos tomados Filosofia, na qualno encontrava ainda quaisquer que fossem
certos, pensei que seria mister, antes de tudo,
procurar ali estabelec-los; e que, sendo isso a
coisa mais importante do mundo, e onde a
precipitao e a preveno eram mais de recear,
no devia empreender sua realizao antes de
atingir uma idade bem mais madura do que a
dos vinte e trs anos que eu ento contava e
antes de ter despendido muito tempo em
preparar-me para isso, tanto desenraizando de
meu esprito todas as ms opinies que nele
acolhera at essa poca como acumulando
-
muitas experincias, para servirem em
seguida de
pela equao: x3 = a2 b, Arquimedes introduzia umasegunda varivel, y, tal que: x2 ay, o que significaprocurar das mdias proporcionais entre a e b. Parasolucionar este problema, servia-se de duas parbolas
definidas por duas razes das ordenadas com asabscissas. este mtodo que Descartes sistematiza paraas equaes do terceiro e do quarto graus, ponto departida do que ser denominado mais tarde GeometriaAnaltica. Descartes no toma, pois, aos gregos omtodo analtico como procedimento lgico, mas antes oprprio contedo desta anlise, e seu gnio consiste maisem explorar os recursos de um processo j utilizado do queem descobrir este processo. Tanto que Descartesnunca se vangloriou da Geometria Analtica.
36. Exemplo dessa determinao dos limites: aclassificao dos problemas do livro II da Geometria,
onde so delimitados os problemas resolveis com rguae compasso com curvas mais complicadas, mas que possvel construir de maneira exata e por ummovimento contnuo , enfim os problemas para osquais as curvas s podem ser construdas por pontosdiscretos (as transcendentes), como a espiral ouquadratriz, que no pertencem de modo algum aonmero das que penso que devem ser aqui recebidas ...
-
porque as imaginamos descritas por dois movimentosseparados e que no tm entre si nenhuma relao que sepossa medir exatamente (A.T. VI, 390).
17
matria aos meus raciocnios, e exercitando-me
sempre no mtodo que me prescrevera, a fim de
me firmar nele cada vez mais.
|59
TERCEIRA PARTE
[1] E enfim, como no basta, antes de
comear a reconstruir a casa onde se mora,
derrub-la, ou prover-se de materiais e
arquitetos, ou adestrar-se a si mesmo na
arquitetura, nem, alm disso, ter traado
cuidadosamente o seu projeto; mas cumpre
tambm ter-se provido de outra qualquer onde a
gente possa alojar-se comodamente durante o
tempo em que nela se trabalha; assim, para no
permanecer irresoluto 37 em minhas aes,
-
enquanto a razo me obrigasse a s-lo, em meus
juzos, e de no deixar de viver desde ento de o
mais felizmente possvel, formei para mimmesmo uma moral provisria, que consistia
apenas em trs ou quatro mximas que eu quero
vos participar 38.
[2] A primeira era obedecer s leis
e aos costumes de meu pas, retendo
constantemente a religio em que Deus me
concedeu a graa de ser instrudo desde a
infncia, e governando-me, em tudo o mais,
segundo as opinies mais moderadas e as mais
distanciadas do excesso, que fossem
comumente acolhidas em prtica pelos mais
sensatos daqueles com os quais teria de viver.
Pois, comeando desde ento a no contar para
nada com as minhas prprias opinies, porque eu
as queria submeter todas a exame, estava certo de
que o melhor a fazer era seguir as dos mais
sensatos. E, embora haja talvez, entre os persase chineses, homens to sensatos como entre
-
ns, parecia-me que o mais til seria pautar-me
por aqueles entre os quais teria de viver; e
que, para saber quais eram verdadeiramenteas suas opinies, devia tomar nota mais
daquilo que praticavam do que daquilo que
diziam; no s porque, na corrupo de nossos
costumes, h poucas pessoas que queiram dizer
tudo o que acreditam, mas tambm porque
muitos o ignoram, por sua vez; pois, sendo a
ao do pensamento, pela qual se cr uma
coisa, diferente daquela pela qual se conhece
que se |42 cr |60 nela, amide uma se
apresenta sem a outra 39. E, entre
37. Sobre a irresoluo como o pior dos males, cf.
Paixes, art. 60, e Cartas, a Elisabeth, de 1 de
setembro de 1645.
38. Col. com Burman, A.T. VI, 552: O autor no
gosta de escrever sobre a Moral, mas viu-se forado, por
causa dos pedantes e gente desta espcie, a adicionar estas
-
regras; de outro modo, diriam dele que se trata de um
homem sem religio, sem f, e que, com o seu mtodo,
quer derrubar tudo isso.
39. Existe uma diferena entre um juzo e o
conhecimento deste juzo. Assim, eu no duvido de
modo algum que cada um tenha em si a idia de Deus,
pelo menos implcita ... no me surpreendo, no entanto,de ver homens que no sentem ter em si esta idia, ou
melhor, que dela no se apercebem absolutamente.
(Cartas, a Hyperaspistes, agosto de 1641).
18
vrias opinies igualmente aceites, escolhia
apenas as mais moderadas: tanto porque so
sempre as mais cmodas para a prtica, e
verossimilmente40 as melhores, pois todo
excesso costuma ser mau, como tambm a fim
de me desviar menos do verdadeiro caminho,
caso eu falhasse, do que, tendo escolhido um
dos extremos, fosse o outro o que deveria ter
seguido. E, particularmente, colocava entre os
-
excessos todas as promessas pelas quais se
cerceia em algo a prpria liberdade 41. No que
desaprovasse as leis que, para remediar a
inconstncia dos espritos fracos, permitem,
quando se alimenta algum bom propsito, ou
mesmo, para a segurana do comrcio, algum
desgnio que seja apenas indiferente, que se
faam votos ou contratos que obriguem a
perseverar nele; mas porque no via no mundonada que permanecesse sempre no mesmo
estado, e porque, no meu caso particular, como
prometia a mim mesmo aperfeioar cada vez
mais os meus juzos, e de modo algum torn- los
piores, pensaria cometer grande falta contra o
bom senso, se, pelo fato de ter aprovado ento
alguma coisa, me sentisse na obrigao de
tom-la como boa ainda depois, quando
deixasse talvez de s-lo, ou quando eu cessassede consider-la tal.
[3] Minha segunda mxima consistia em
ser o mais firme e o mais resoluto possvel em
-
minhas aes, e em no seguir menos
constantemente do que se fossem muito seguras
as opinies mais duvidosas, sempre que eu me
tivesse decidido a tanto 42. |61 Imitando nisso os
viajantes que, vendo-se extraviados nalguma
floresta, no devem errar volteando, ora para
um lado, ora para outro, nem menos ainda
deter-se num stio, mas caminhar sempre o mais
reto possvel para um mesmo lado, e no
mud-lo por fracas razes, ainda que no
comeo s o acaso talvez haja determinado a
sua escolha: pois, por este meio, se no vo
exatamente aonde desejam, ao menos
chegaro no fim a alguma parte, onde
verossimilmente estaro melhor do que nomeio de uma floresta. E, assim como as aes
da vida no suportam s vezes qualquer
delonga, uma verdade muito certa que,
quando no est em nosso poder o discernir as
opinies mais verdadeiras, devemos seguir as
mais provveis; e mesmo, ainda que no
-
notemos em umas mais probabilidades do que
em outras, devemos, no obstante, decidir-nos
por algumas e consider-las depois no mais
como duvidosas, na medida em que se
relacionam com a prtica, mas como muito
40. A verossimilhana, excluda da ordem terica,
recobrar valor na ordem prtica.
4 1. No ser rebaixar os votos religiosos, comopergunta Gilson, encar-los como simples remdio para a
inconstncia dos espritos fracos? Notar-se- aqui o
desprezo de Descartes para com o engajamento sob
todas as suas formas.
42. A fim de evitar um mal-entendido, Descartes
formular esta regra de maneira mais precisa: ... No
agir menos constantemente segundo as opinies que
julgamos duvidosas ... quando consideramos no haveroutras que soubssemos que aquelas so as melhores (A
XXX, maro de 1638). No se trata, portanto, de um
voluntarismo cego, alm do que relaciono
principalmente esta regra s aes da vida que no
-
sofrem qualquer delonga e me sirvo dela apenas
provisoriamente.
19
verdadeiras e muito certas, porquanto a razo
que a isso nos decidiu |43 se apresenta como
tal43.
E isto me permitiu, desde ento,
libertar-me de todos os arrependimentos e
remorsos que costumam agitar as conscincias
desses espritos fracos e vacilantes que se
deixam levar inconstantemente a praticar, como
boas, as coisas que depois julgam ms.[4] Minha terceira mxima era a de
procurar sempre antes vencer a mim prprio do
que fortuna, e de antes modificar os meusdesejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a
de acostumar-me a crer que nada h que esteja
inteiramente em nosso poder, exceto os nossos
pensamentos, de sorte que, depois de termos
feito o melhor possvel no tocante s coisas que
nos so exteriores, tudo em que deixamos de
-
nos sair bem , em relao a ns, absolutamente
impossvel. E s isso me parecia suficiente
para impedir-me, no futuro, de desejar algo
que eu no pudesse adquirir, e, assim, parame tornar contente. Pois, inclinando-se a
nossa vontade naturalmente a desejar s
aquelas coisas que nosso entendimento lhe
representa de alguma forma como
possveis, certo que, se considerarmos
todos os bens que se acham fora de ns
como igualmente afastados de nosso |62 poder,
no lamentaremos mais a falta daqueles que
parecem dever-se ao nosso nascimento, quando
deles formos privados sem culpa nossa, doque lamentamos no possuir os reinos da
China ou do Mxico; e que fazendo, como se
diz, da necessidade virtude, no desejaremos
mais estar sos, estando doentes, ou estar
livres, estando na priso, do que desejamos ter
agora corpos de uma matria to pouco
corruptvel quanto os diamantes, ou asas para
-
voar como as aves. Mas confesso que preciso
um longo exerccio e uma meditao amide
reiterada para nos acostumarmos a olhar por
este ngulo todas as coisas; e creio que
principalmente nisso que consistia o segredo
desses filsofos44, que puderam outrora
subtrair-se ao imprio da fortuna e, malgrado
as dores e a pobreza, disputar felicidade aos
seus deuses. Pois, ocupando-se
incessantemente em considerar os limites que
lhes eram prescritos pela natureza,
persuadiram-se to perfeitamente de que nada
estava em seu poder alm dos seus
pensamentos, que s isso bastava para
impedi-los de sentir qualquer afeco por
outras coisas; e dispunham deles to
absolutamente, que tinham neste caso especial
certa razo de se julgarem mais ricos, mais
poderosos, mais livres e mais felizes que
quaisquer outros homens, os quais, no tendo
esta filosofia, por
-
43. Tudo se passa como se essas opinies fossem
muito verdadeiras e, para ns, elas o so efetivamente,visto que no pudemos encontrar outras melhores.
44.* Filsofos: esticos (N. do T.).
20
mais favorecidos que sejam pela natureza e
pela fortuna, jamais dispem assim de tudo
quanto querem 45.
[5] Enfim, para a concluso dessa
moral, decidi passar em revista as diversas
ocupaes que os homens exercem nesta vida,para procurar escolher a melhor; e, sem que
pretenda dizer nada sobre as dos outros,
pensei que o melhor a fazer seria continuarnaquela mesma em que me achava, isto ,
empregar toda a minha vida em cultivar minha
razo, e adiantar-me, o mais que pudesse, no
conhecimento da verdade, segundo o mtodo que
me prescrevera. Eu sentira to extremo
-
contentamento, desde quando comeara a
servir-me deste mtodo, que no acreditava
que, nesta vida, se pudessem receber outros
mais doces, nem |44 mais inocentes; e,
descobrindo todos os dias, por seu meio,
algumas verdades que me pareciam assaz
importantes e comumente ignoradas pelos
outros homens, a satisfao que |63 isso me dava
enchia de tal modo meu esprito, que tudo o
mais no me tocava. Alm do que, as trs
mximas precedentes no se baseavam seno
no meu intuito de continuar a me instruir: pois,tendo Deus concedido a cada um de ns
alguma luz para discernir o verdadeiro do falso,
no julgaria dever contentar-me, um s
momento, com as opinies de outrem, se no me
propusesse empregar o meu prprio juzo em
examin-las, quando fosse tempo46; e no
saberia isentar-me de escrpulos, ao
segui-las, se no esperasse no perder com
isso ocasio alguma de encontrar outras
-
melhores, caso as houvesse. E, enfim, no
saberia limitar os meus desejos, nem estarcontente, se no tivesse trilhado um caminho
pelo qual, pensando estar seguro da
aquisio de todos os conhecimentos de que
fosse capaz, julgava estar seguro da
aquisio de todos os verdadeiros bens que
alguma vez viessem a estar em meu alcance;
tanto mais que, no se inclinando a nossa
vontade a seguir ou fugir a qualquer coisa,seno conforme o nosso entendimento lha
represente como boa ou m, basta bem
julgar, para bem proceder, e julgar o melhor
possvel para proceder tambm da melhor
maneira47,
isto , para adquirir todas as virtudes
e, conjuntamente, todos os outros bens que se
possam adquirir; e, quando se est certo de que
assim, no se pode deixar de ficar contente.
[6] Depois de me ter assim assegurado
destas mximas, e de as ter posto parte, com asverdades da f, que sempre foram as primeiras
-
na minha crena, julguei que, quanto a todo o
restante de minhas opinies, podia livremente
tentar desfazer-me delas. E, como
45. A respeito do acento estico da passagem e do
destino desta regra na moral definitiva, cf. Cartas, a
Elisabeth.
46. Isto : elas s se justificam como condies
provisrias da busca da verdade.
21
esperava chegar melhor ao cabo dessa
tarefa conversando com os homens, do que
continuando por mais tempo encerrado no
quarto aquecido onde me haviam ocorrido esses
pensamentos, recomecei a viajar quando oinverno ainda no acabara. E, em todos os nove
anos seguintes, no fiz outra coisa seno rolar
pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais
espectador do que ator em todas |64 as
comdias que nele se representam 48; e,
-
efetuando particular reflexo, em cada matria,
sobre o que podia torn-la suspeita e dar
ocasio de nos equivocarmos, desenraizava,
entrementes, do meu esprito todos os erros queat ento nele se houvessem insinuado. No
que imitasse, para tanto, os cticos, que
duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre
irresolutos: pois, ao contrrio, todo o meu intuitotendia to-somente a me certificar e remover
a terra movedia e a areia, para encontrar a
rocha ou a argila. O que consegui muito
bem, parece-me, tanto mais que, procurandodescobrir a falsidade ou a incerteza das
proposies que examinava, no por fracas
conjeturas, mas por raciocnios claros e
seguros, no deparava quaisquer to
duvidosas que delas no tirasse sempre alguma
concluso bastante certa, quando mais |45
no
fosse a de que no continha nada de certo.E, como ao demolir uma velha casa,
reservam-se comumente os escombros para
-
servir construo de outra nova, assim, aodestruir todas as minhas opinies que julgavamal fundadas, fazia diversas observaes e
adquiria muitas experincias, que me serviram
depois para estabelecer outras mais certas. E,ademais, continuava a exercitar-me no mtodo
que me prescrevera; pois no s tomava o
cuidado de conduzir geralmente todos os
meus pensamentos segundo as suas regras,
como reservava, de tempos em tempos, algumas
horas, que empregava particularmente em
aplic-lo nas dificuldades de Matemtica, ou
mesmo tambm em algumas outras que eu
podia tornar quase semelhantes s das
Matemticas, separando-as de todos os
princpios das outras cincias, que eu no achava
bastante firmes, como vereis que procedi com
vrias que so explicadas neste volume49.
E
assim, sem viver, aparentemente, de forma
diferente daqueles que, no tendo |65 outro
emprego seno passar uma vida doce e
-
inocente, procuram separar os prazeres dos
vcios, e que, para gozar de seus lazeres
sem se
47. As duas frmulas no so equivalentes. No
primeiro caso, o entendimento esclarecido por idiasclaras e distintas compele a vontade; no segundo, noestando assegurada a verdade do juzo, eu deveriaenvidar esforo para seguir sempre o que o entendimentome representa como melhor.
48. Acerca do tema do espectador, cf. Cartas, aElisabeth, de 18 de maio de 1645. Poder-se- compar-lo
ao tema do ator nos Esticos (Cf. Goldschmidt, SystmeStocien, pgs. 150 e segs. e 178 e segs.).
49. Deve referir-se aos problemas versados em OsMeteoros (explicao dos ventos, das nuvens, do arco-ris)e na Diptrica (G. Milhaud, estabelece que Descartesformulou a lei da refrao por volta de 1626). Sobre aconcepo cartesiana da Fsica Matemtica, cf. Cartas, aMersenne, de 17 de maio de 1638, 11de maro de 1640,bem como a de 27 de julho de 1638: Pois se lhe aprazconsiderar o que escrevi do solo, da neve, do arco-ris etc.... saber efetivamente que toda a minha Fsica no maisdo que Geometria.
22
-
aborrecer, usam todos os divertimentos que sohonestos, no deixava de persistir em meu
desgnio e de progredir no conhecimento da
verdade, mais talvez do que se me limitasse a ler
livros ou freqentar homens de letras.[7] Todavia, esses nove anos
escoaram-se antes que eu tivesse tomado
qualquer partido, com respeito s dificuldades
que costumam ser disputadas entre os doutos,
ou comeado a procurar os fundamentos de
alguma Filosofia mais certa do que a vulgar 50. E
o exemplo de muitos espritos excelsos que,
tendo alimentado precedentemente esse intento,
no haviam logrado, parecia-me, realiz-lo,
levava-me a imaginar tantas dificuldades, que
no teria talvez ousado empreend-lo to cedo,
se no soubesse de que alguns j faziam correr
o rumor de que eu j o levara a termo. No
poderia dizer em que baseavam esta opinio; e,
se para isso contribu com algo em meus
discursos, deve ter sido por confessar neles mais
-
ingenuamente o que eu ignorava do que
costumam fazer aqueles que estudaram um
pouco, e talvez tambm por mostrar as razes
que tinha de duvidar de muitas coisas que os
outros consideram certas, do que por me jactar
de qualquer doutrina. Mas, tendo o corao
bastante altivo para no querer que me
tomassem por algum que eu no era, pensei
que cumpria esforar-me, por todos os meios,
para tornar-me digno da reputao que me
atribuam; e faz justamente oito anos que esse
desejo me decidiu a afastar-me de todos os
lugares em que pudesse ter conhecimentos, e
a retirar-me para aqui 51, para um pas onde a
longa durao da guerra levou a estabelecer tais
ordens, que os exrcitos nele mantidos parecem
servir apenas para que os frutos da paz sejam
gozados com tanto mais segurana, e onde,
dentre a multido um grande povo muito ativo
e mais zeloso de seus pr- |46 prios negcios, do
que curioso dos assunto dos de outrem, sem
-
carecer de nenhuma das comodidades que
existem nas cidades mais freqentadas, pudeviver to solitrio e retirado como nos desertos
mais remotos.
|66
QUARTA PARTE
[1] No sei se deva falar-vos dasprimeiras meditaes que a realizei; pois soto metafsicas e to pouco comuns, que nosero, talvez, do gosto de todo mundo. E,
todavia, a fim de que se possa julgar se osfundamentos que escolhi so bastante firmes,vejo-me, de alguma forma, compelido afalar-vos delas. De h muito observara que,quanto aos
50. A Filosofia escolstica.
51. Incio da estada na Holanda, no outono de 1628,
que durar at a partida para a Sucia, em 1649.
23
costumes, necessrio s vezes seguir
-
opinies, que sabemos serem muito incertas,
tal como se fossem indubitveis, como j foi
dito acima; mas, por desejar ento ocupar-me
somente com a pesquisa da verdade, pensei
que era necessrio agir exatamente ao
contrrio, e rejeitar como absolutamente falso
tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor
dvida52, a fim de ver se, aps isso, no
restaria algo em meu crdito, que fosse
inteiramente indubitvel. Assim, porque os
nossos sentidos nos enganam s vezes, quis
supor que no havia coisa alguma que fosse tal
como eles nos fazem imaginar. E, porque h
homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo
no tocante s mais simples matrias de
Geometria, e cometem a paralogismos, rejeitei
como falsas, julgando que estava sujeito a falhar
como qualquer outro, todas as razes que eu
tomara at ento por demonstraes. E enfim,
considerando que todos os mesmos
pensamentos que temos quando despertos nos
-
podem tambm ocorrer quando dormimos,
sem que haja nenhum, nesse caso, que seja
verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as
coisas que at ento haviam entrado no meu
esprito no eram mais verdadeiras que as
iluses de meus sonhos. Mas, logo em seguida,
adverti que, enquanto eu queria assim pensar
que tudo era falso, cumpria necessariamente que
eu, que pensava 53, fosse alguma coisa. E,
notando que esta verdade: eu penso, logo
existo54, era to firme e to certa que |67 todas as
mais extravagantes suposies dos cticos no
seriam capazes de a abalar, julguei que
podia aceit-la, sem escrpulo, como o
primeiro princpio da Filosofia que procurava.
[2] Depois, examinado com ateno o
que eu era, e vendo que podia supor que no
tinha corpo algum e que no havia qualquer
mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse,
mas que nem por isso podia supor que no
existia; e que, ao contrrio, pelo fato mesmo de
-
eu pensar em duvidar da verdade das
outras coisas, seguia-se mui evidente e mui
certamente que eu existia; ao passo que, se
apenas houvesse cessado de pensar, emboratudo o mais que alguma vez imaginara fosse
verdadeiro, j no teria razo alguma de crer que
|47 eu tivesse existido; compreendi por a que
eu era uma substncia cuja essncia ou natureza
consiste apenas no pensar, e que, para ser, no
necessita de nenhum lugar, nem depende de
qualquer coisa material. De sorte que esse eu,
isto , a alma 55, pela qual sou o
52. Est, portanto, sujeito dvida no s aquilo deque eu duvido de fato, mas tambm aquilo de que
poderia duvidar de direito.
53. Cumpre notar que Descartes no diz: duvido,
logo sou. A dvida no importa como ato, mas como
conhecimento do fato de que eu duvido.
54. O Cogito no um raciocnio: uma
constatao de fato. Por que ento se emprega aqui o
-
termo logo? Descartes d ao Cogito o aspecto de um
raciocnio toda vez que deseja pr em relevo o carter
necessrio da ligao que o mesmo contm (Gueroult, op.
cit., II, 309).
55. Descartes, nas Segundas Respostas, declara que
preferiu mens a anima no texto latino. Mens designa
apenas o entendimento. Neste pargrafo, Descartes
24
que sou, inteiramente distinta do corpo e,
mesmo, que mais fcil de conhecer do que
ele, e, ainda que este nada fosse, ela no deixaria
de ser tudo o que .
[3] Depois disso, considerei em geral o
que necessrio a uma proposio para ser
verdadeira e certa; pois, como acabava de
encontrar uma que eu sabia ser exatamente
assim, pensei que devia saber tambm em que
consiste essa certeza 56. E, tendo notado que nada
h no eu penso, logo existo, que me assegure de
que digo a verdade, exceto que vejo muito57,
-
claramente que, para pensar, preciso existir
julguei poder tomar por regra geral |68 que as
coisas que concebemos mui clara e muidistintamente so todas verdadeiras, havendo
apenas alguma dificuldade em notar bem
quais so as que concebemos distintamente.
[4] Em seguida, tendo refletido sobre
aquilo que eu duvidava, e que, por
conseqncia, meu ser no era totalmente
perfeito, pois via claramente que o conhecer
perfeio maior do que o duvidar, deliberei
procurar de onde aprendera a pensar em algo
mais perfeito do que eu era; e conheci, com
evidncia, que devia ser de alguma natureza que
fosse de fato mais perfeita. No concernente
aos pensamentos que tinha de muitas outrascoisas fora de mim, como do cu, da terra, da
luz, do calor e de mil outras, no me era to
difcil saber de onde vinham, porque, no
advertindo neles nada que me parecesse
torn-los superiores a mim, podia crer que, se
-
fossem verdadeiros, seriam dependncias de
minha natureza, na medida em que esta possua
alguma perfeio; e se no o eram, que eu os
tinha do nada, isto , que estavam em mim pelo
que eu possua de falho. Mas no podiaacontecer o mesmo com a idia de um ser mais
perfeito do que o meu; pois tir-la do nada era
manifestamente impossvel; e, visto que no
h menos repugnncia em que o mais perfeito
seja uma conseqncia e uma dependncia do
menos perfeito do que em admitir que do nada
procede alguma coisa, eu no podia tir-la
tampouco de mim prprio. De forma que
restava apenas que tivesse sido posta em
mim por uma natureza que fosse
verdadeiramente mais perfeita do que a
minha, e que mesmo tivesse em si todas as
perfeies de que eu poderia ter alguma idia,
isto , para explicar-me numa palavra, que
pensamento, hetergena substncia do corpo, masestabelece tambm a natureza puramente intelectual da
-
alma.
56. Reflexo sobre as condies da certeza do Cogitoque conduzir determinao do critrio da certeza emgeral: o conhecimento claro e distinto. Sendo cadaverdade que eu encontrava uma regra que me servia paraencontrar outras..., diz mais abaixo Descartes.
57. Gueroult (op. cit., II, 307-10) mostra que oprincpio Para pensar, preciso ser no a premissamaior de um raciocnio, como seria Tudo o que pensa. Trata-se de um adgio sem o qual eu no teriaconscincia da ligao necessria entre Cogito e Sum;mas, em contrapartida, sem o Cogito eu tampouco teriaconscincia deste adgio. Por que supor, perguntaDescartes, que o conhecimento das proposiesparticulares deve sempre ser deduzido de universais?
25
fosse Deus58.
A |48
isso acrescentei que, dado
que conhecia algumas perfeies que no
possua, eu no era o nico ser que existia
(usarei aqui livremente, se vos aprouver, alguns
termos da Escola); mas que devia
necessariamente haver algum outro mais
perfeito, do qual eu dependesse e de quem eu59.
-
tivesse recebido |69
tudo o que possua Pois, se
eu fosse s e independente de qualquer outro, de
modo que tivesse recebido, de mim prprio,
todo esse pouco pelo qual participava do Ser
perfeito, poderia receber de mim, pela mesma
razo, todo o restante que sabia faltar-me, e ser
assim eu prprio infinito, eterno, imutvel,
onisciente, todo-poderoso, e enfim ter todas as
perfeies que podia notar existirem em Deus.
Pois segundo os raciocnios que acabo de fazer,
para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto
a minha o era capaz, bastava considerar,
acerca de todas as coisas de que achava emmim qualquer idia, se era ou no perfeio
possu-las, e estava seguro de que nenhuma das
que eram marcadas por alguma imperfeio
existia nele, mas que todas as outras existiam.
Assim, eu via que a dvida, a inconstncia, a
tristeza e coisas semelhantes no podiam existir
nele, dado que eu prprio estimaria muitoestar isento delas. Alm disso, eu tinha idias
-
de muitas coisas sensveis e corporais; pois,
embora supusesse que estava sonhando e que
tudo quanto via e imaginava era falso, no
podia negar, contudo, que as idias a respeitono existissem verdadeiramente em meu
pensamento; mas, por j ter reconhecido em
mim mui claramente que a natureza inteligente
distinta da corporal, considerando que toda a
composio testemunha dependncia, e que a
dependncia manifestamente um defeito 60,
julguei por a que no podia ser uma perfeio
em Deus o ser composto dessas duas naturezas,
e que, por conseguinte, ele no o era 61, mas
que, se haviam alguns corpos no mundo, ou
ento algumas inteligncias, ou outras
naturezas, que no fossem inteiramente perfeitos,
seu ser deveria depender do poder de Deus, de
tal sorte que no pudessem subsistir sem ele um
s momento 62.
58. Interrogao sobre a origem da idia do perfeito
-
que h em meu esprito. Fica estabelecido que: 1. estaidia no pode provir do nada que h em mim (em virtudedo princpio: ex nihilo nihil gignit), 2. que ela no podevir de mim, ser imperfeito (no pode haver mais realidadeno efeito do que na causa), ao passo que esta soluo seriapossvel para as idias que eu tenho das coisas externas.Donde: 1. existncia de outra natureza fora de mim; 2. ...que contm todas as perfeies.
59. Deus agora considerado como o meu Criadorque me mantm no ser e no mais como o autor da idiade Deus em mim existente.
60. Composio implica dependncia das partes,
umas em relao s outras, e do todo em relao spartes.
61. Para conceber a infinita perfeio de Deus,cumpre atribuir-lhes todas as perfeies das quaispossumos apenas fragmentos e excluir dele asimperfeies que h em ns.
62. Evocao da doutrina da criao contnua: a) otempo radicalmente descontnuo (o tempo presente no
depende do precedente); b) em cada um dessesmomentos descontnuos, o estado do mundo e meupensamento so conservados no ser por Deus. Tese ligada negao das formas substanciais. Enquanto, para SantoToms, Deus instituiu uma ordem das coisas, tal que
26
-
|70
[5] Quis procurar, depois disso, outras
verdades, e tendo-me proposto o objeto dos
gemetras, que eu concebia como um corpo
contnuo63, ou um espao infinitamente
extenso em comprimento, largura e altura ou
profundidade, divisvel em diversas partes que
podiam ter diferentes figuras e grandezas, e
ser movidas ou transpostas de todas as
maneiras, pois os gemetras supem tudo isto
em seu objeto, percorria algumas de suas mais
simples |49
demonstraes. E, tendo notado
que essa grande certeza, que todo o mundo
lhes atribui, se funda apena s no fato de serem
concebidas com evidncia, segundo a regra que
h pouco expressei, notei tambm que nada
havia nelas que me assegurasse a existncia de
seu objeto. Pois, por exemplo, eu via muito
bem que, supondo um tringulo, cumpria que
seus trs ngulos fossem iguais a dois retos;
mas, apesar disso, nada via que garantisse haver
-
no mundo qualquer tringulo. Ao passo que,
voltando a examinar a idia que tinha de um Ser
perfeito, verificava que a existncia estava ainclusa, da mesma forme como na de um
tringulo est incluso serem seus trs ngulos
iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem
todas as suas partes igualmente distantes do seucentro, ou mesmo, ainda mais evidentemente; e
que, por conseguinte, pelo menos to certo 64
que Deus, que esse Ser perfeito, ou existe,
quanto s-lo-ia qualquer demonstrao de
Geometria.
[6] Mas o que leva muitas pessoas a se
persuadirem de que h dificuldade conhec- lo, e
mesmo tambm em conhecer o que sua alma,
o fato de nunca elevarem o esprito alm dascoisas sensveis e de estarem de tal forma
acostumados a nada considerar seno
imaginando, que uma forma de pensar
particular s |71 coisas materiais, que tudo
quanto no imaginvel lhes parece no ser
-
inteligvel. E isto assaz manifesto pelo fato
de os prprios filsofos terem por mxima, nas
escolas, que nada h no entendimento que no
haja estado primeiramente nos sentidos 65, onde,
todavia, certo que as idias de Deus e da alma
jamais estiveram. E me parece que todos os
que querem usar a imaginao paracompreend-las procedem do mesmo modo que
se, para ouvir os sons ou sentir os odores,
quisessem servir-se dos olhos; exceto com esta
diferena ainda: que o sentido da vista no
secundariamente conservadas no ser , Descartes afirmano haver nenhuma virtude por meio da qual eu possafazer com que eu, que sou agora, seja ainda, um instanteaps.
63. Um corpo absolutamente pleno: no sendo ocorpo seno extenso, a extenso que separasse duaspartes de matria seria, ela prpria, um corpo.
64. Exposio da prova a priori: ... ainda maisevidente, porque a incluso da existncia necessria naessncia de Deus uma relao ainda mais simples doque as relaes geomtricas citadas (ela antescomparvel s verdades matemticas indemonstrveis).
-
Pelo menos to certo significa mais certo: possvel estar seguro da existncia de Deus, sem o estarda verdade dos teoremas matemticos, no sendo oinverso verdadeiro.
65. Adgio escolstico. Toda essa passagemconstitui um ataque ao excessivo papel concedido peloaristotelismo e pelo tomismo imaginao. EmMetafsica e na Matemtica, a imaginao no poderia sede qualquer serventia.
27
nos garante menos a verdade de seus objetos do
que os do olfato ou da audio; ao passo que a
nossa imaginao ou os nossos sentidos nunca
poderiam assegurar-nos de qualquer coisa, se onosso entendimento no interviesse.
[7] Enfim, se h ainda homens que no
estejam bem persuadidos da existncia de Deus
e da alma, com as razes que apresentei, quero
que saibam que todas as outras coisas, das quais
se julgam talvez certificados, como a de terem
um corpo, haver astros e uma terra, e coisassemelhantes, so ainda menos certas. Pois,
-
embora se possua dessas coisas uma certeza
moral, que de tal ordem que, exceto
sendo-se extravagante, parece impossvel p-la
em dvida; todavia, quando se trata da certeza
metafsica66,
no se pode negar, a no ser que
sejamos desarrazoados, que motivo suficiente,
para |50 no estarmos inteiramente seguros a
respeito, o fato de se advertir que podemosdo mesmo modo imaginar, quando
adormecidos, que temos outro corpo, que
vemos outros astros e outra terra, sem que na
realidade assim o seja. Pois, de onde sabemos
que os pensamentos que ocorrem em sonhos
so mais falsos do que os outros, se muitosno so amide menos vivos e ntidos? E,
ainda que os melhores espritos estudem o
caso tanto quanto lhes aprouver, no creio que
possam dar qualquer razo que seja suficiente
para desfazer essa dvida, se no
pressupuserem a existncia |72 de Deus. Pois,
em primeiro lugar, aquilo mesmo que h pouco
-
tomei como regra, a saber, que as coisas queconcebemos mui clara e mui distintamente so
todas verdadeiras, no certo seno ser porque
Deus ou existe, e um ser perfeito, e porque
tudo o que existe em ns nos vem dele. Donde
se segue que as nossas idias ou noes, sendo
coisas reais, e provenientes de Deus em tudo
em que so claras e distintas, s podem por isso
ser verdadeiras. De sorte que, se temos muitas
vezes outras que contm falsidade, s podem
ser as que possuem algo de confuso e
obscuro, porque nisso participam do nada, isto ,
so assim confusas em ns, porque ns no
somos de todo perfeitos. E evidente que no
repugna menos admitir que a falsidade ou a
imperfeio procedam de Deus, como tal, do
que admitir que a verdade ou a perfeio
procedam do nada. Ma, se no soubssemos de
modo algum que tudo quanto existe em ns de
real e verdadeiro provm de um ser perfeito e
infinito, por claras e distintas que fossem nossas
-
idias, no teramos qualquer razo que nos
assegurasse que elas possuem a perfeio de
serem verdadeiras 67.
66. Distino entre certeza moral (suficiente para avida prtica) e metafsica (quando pensamos que no de modo algum possvel que a coisa seja diferente do quejulgamos). No primeiro plano, seria loucura duvidar da
existncia das coisas sensveis; no segundo, leviandadeestar seguro delas.
67. Somente aps a prova da existncia de um Deusperfeito (logo, imutvel e no enganador portantogarante das idias claras e distintas), que a regra da
28
[8] Ora, depois que o conhecimento deDeus e da alma nos tenha, assim, dado
certeza dessa regra, muito fcil
compreender que os sonhos que imaginamos
quando dormimos no devem, de modo algum,
levar-nos a duvidar da verdade dos
pensamentos que temos quando acordados.
Pois, se acontecesse que, mesmo dormindo,
-
tivssemos alguma idia muito distinta, como,
por exemplo, que um gemetra inventasse
qualquer nova demonstrao, o sono deste no a
impediria de ser verdadeira. E, quanto ao erro
mais comum de nossos sonhos, que consiste
em nos representarem diversos objetos talcomo fazem nossos sentidos exteriores, no
importa que ele nos d ocasio de desconfiar
da verdade de tais idias, porque estas tambm
podem nos enganar repetidas vezes, sem que
estejamos dormindo, como sucede quando os
que tm ictercia vem tudo da cor amarela, ou
quando os astros ou outros corpos fortemente
afastados de ns se nos afiguram muito menores
do que so. Pois, enfim, quer |73 estejamos em
viglia, quer dormindo, nunca nos devemos
deixar persuadir seno pela evidncia de nossa
razo68.
E deve-se observar que digo de nossa
razo e de modo algum de nossa imaginao, ou
de nossos sentidos. Porque, embora |51 vejamos o
sol mui claramente, no devemos julgar por isso
-
que ele seja, apenas, da grandeza que o vemos;
e bem podemos imaginar distintamente uma
cabea de leo enxertada no corpo de uma
cabra, sem que devamos concluir, por isso, que
no mundo h uma quimera; pois a razo no nos
dita que tudo quanto vemos ou imaginamos,
assim, seja verdadeiro, mas nos dita realmente
que todas as nossas idias ou noes devem ter
algum fundamento de verdade; pois no seria
possvel que Deus, que todo perfeito e
verdico, as houvesse posto em ns sem isso.
E, pelo fato de nossos raciocnios jamais
serem to evidentes nem to completos durante
o sono como durante a viglia, ainda de que s
vezes nossas imaginaes sejam tanto ou mais
vivas e expressas, ela nos dita tambm que,
no podendo nossos pensamentos serem
inteiramente verdadeiros, porque no somos de
todo perfeitos, tudo o que eles encerram de
verdade deve encontrar-se infalivelmente
naquele que temos quando acordados, mais do
-
que em nossos sonhos.
QUINTA PARTE
ser colocadas como verdadeiras. Antes disso, gozamapenas de uma certeza subjetiva, verdadeiras s quandopenso nelas efetivamente.
68. Todos os argumentos possveis do ceticismo sodoravante varridos: no poderamos ser sensveis aoargumento do sonho, por exemplo, a no ser que aindaconcedssemos nosso crdito s imagens sensveis. Agoras as idias claras e distintas tm fora constrangedora.
29
[1] Gostaria muito de prosseguir e de
mostrar aqui toda a cadeia de outras verdades
que deduzi dessas primeiras. Mas, dado que,
para tal efeito, seria agora necessrio que
falasse de muitas questes controvertidas
entre os doutos, com os quais no desejo
indispor-me, creio que ser melhor que eu me
abstenha e somente diga, em geral, quais elas
so, a fim de deixar que os mais sbios julguem
-
se seria til que o pblico fosse a esse respeito
mais particularmente informado. Permanecia
sempre firme na resoluo que tomara de no
supor qualquer outro princpio, exceto aquele
de que acabo de me servir para demonstrar aexistncia