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Academia de Letras da Bahia Discurso de Posse — Cadeira n o 8 17.12.2009 Paulo Costa Lima Abre-te discurso! De nada nos sonegue. Ouço-te antecipadamente, fornalha de sentidos, bigorna de sonoridades, em busca de método, música, retórica e utopia. Se não queres cavalos alados e musas, manda buscar em Cachoeira o fogo simbólico que nos ilumina a cada 2 de Julho — mais do que passado e alegoria, a esperança de uma sociedade que esteja à altura dos ideais desde lá projetados. E peço-te não estranhares que falo a ti, discurso, enquanto falas a todos. Faço-o em nome da clareza complexa do compor — pois penso em ti como material, mesmo que vivo, como paleta de possibilidades sobre as quais está posto o desafio de encontrar o ambiente de palavras necessário à tecelagem desta noite. Feliz de quem com cânticos se esconde e julga tê-los em seus próprios bicos, e ao bico alheio em cânticos responde. (Jorge de Lima) Discurso, ó discurso! Devo tratar-te como música que és? Seguir tua dança? Tu és neguinha? “Um discurso acadêmico. Como perpetrá-lo?” 1 Quantas partes, quais os materiais, quais os processos? Lembras-te dos primeiros ensinamentos da invenção contemporânea — “Linguagem usada é linguagem morta” 2 ? Ou, como disse despetaladamente Claude Debussy, abrindo o século: “esforcei-me bastante para desaprender tudo que me foi ensinado”. Uma música que seja como os mais belos harmônicos da natureza. Uma música que seja como o som do vento na cordoalha dos navios... Uma música que comece sem começo e termine sem fim... O som do vento numa enorme harpa... (Vinícius de Morais) Eis aí modelo em miniatura de método e de música. 1 Cf. Discurso de Posse de Machado Neto, Revista v. 23, p. 102 2 Cf. Futility 1964 para voz e fita magnética, de Herbert Brün 1

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Academia de Letras da Bahia

Discurso de Posse — Cadeira no 8

17.12.2009

Paulo Costa Lima

Abre-te discurso!

De nada nos sonegue.

Ouço-te antecipadamente, fornalha de sentidos, bigorna de sonoridades,

em busca de método, música, retórica e utopia.

Se não queres cavalos alados e musas, manda buscar em Cachoeira o fogo

simbólico que nos ilumina a cada 2 de Julho — mais do que passado e

alegoria, a esperança de uma sociedade que esteja à altura dos ideais desde

lá projetados.

E peço-te não estranhares que falo a ti, discurso, enquanto falas a todos.

Faço-o em nome da clareza complexa do compor — pois penso em ti como

material, mesmo que vivo, como paleta de possibilidades sobre as quais está

posto o desafio de encontrar o ambiente de palavras necessário à tecelagem

desta noite.

Feliz de quem com cânticos se esconde

e julga tê-los em seus próprios bicos,

e ao bico alheio em cânticos responde. (Jorge de Lima)

Discurso, ó discurso!

Devo tratar-te como música que és? Seguir tua dança? Tu és neguinha?

“Um discurso acadêmico. Como perpetrá-lo?”1

Quantas partes, quais os materiais, quais os processos?

Lembras-te dos primeiros ensinamentos da invenção contemporânea —

“Linguagem usada é linguagem morta”2?

Ou, como disse despetaladamente Claude Debussy, abrindo o século:

“esforcei-me bastante para desaprender tudo que me foi ensinado”.

Uma música que seja como os mais belos harmônicos da natureza.

Uma música que seja como o som do vento na cordoalha dos navios...

Uma música que comece sem começo e termine sem fim...

O som do vento numa enorme harpa... (Vinícius de Morais)

Eis aí modelo em miniatura de método e de música.

1 Cf. Discurso de Posse de Machado Neto, Revista v. 23, p. 1022 Cf. Futility 1964 para voz e fita magnética, de Herbert Brün

1

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Desconstruir-te de unidade ou inteireza.

Aceitar alegremente o que me ofereces como possibilidade cantante

Celebrar que és intertexto e polifônico —

Ramalhete acrisolado e, ao mesmo, tempo conversa sem rodeios3.

A pluralidade das vozes como estratégia de tempo

e o tempo como estratégia de gozo,

como na mandala sonora da música dos pigmeus

ou na música do barroco — de Vivaldi e Bach,

como totalidade das expectativas, dos sentidos e das relações,

espelho dos falantes desejantes.

O tempo moldura, receptáculo, interstício,

e principalmente o tecido da própria vivência

afetando método, retórica e utopia.

Discurso, ó discurso,

“o corpo humano não vive fora de sua humanidade de palavra...

cada sujeito constituído pelas sonoridades de um Outro que o antecede”4,

sendo o tempo projeção desse Outro,

uma categoria de suposto saber,

sabe quem sou antes de mim,

parceiro inalienável da criação, da fantasia e do sonho,

de cujo material somos feitos,

parceiros do ‘manda gozar’!

Carpe Diem: de que importa esse discurso se não aproveitar a vida?

Então, que ele saia assim carpejado – ‘eu sou do mundo / eu sou o samba...’.

Raio de luz que ilumina os passos de minha vida.

Não tem ontem, nem amanhã, porque não declina, não se apaga.

Adriano Pondé em seu discurso de posse, citando John Donne.

A polifonia das perspectivas que aqui confluem.

A perspectiva das vidas que aqui confluem:

. as vozes de todos os acadêmicos da cadeira n. 8, Luis Anselmo da Fonseca

(seu fundador), Francisco Peixoto de Magalhães Neto, Adriano Pondé e Ary

Guimarães;

3 Cf. Discurso de Posse de Fernando Peres, Revista vol. 36, p.278.4 Gerard Pommier, Qué es lo ‘Real’: Ensayo psicoanalítico, Buenos Aires, Nueva Vision, 2004.

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. a voz de seu ilustre patrono Cipriano Barata, projetada como se fosse, e

é, o próprio fogo simbólico chegando ao discurso; das Cortes de Lisboa em

1823, até esta noite:

Os mulatos, Sr. Presidente, cabras, crioulos, os índios, os mamelucos e mestiços

são gentes nossas, são portugueses e cidadãos muito honrados e valorosos... Além

disso, temos também os negros da Costa da Mina, Angola, etc. A falta de cuidado

nestes artigos pode fazer grande mal, porque toda gente de cor no Brasil clamaria

que lhes queiram tirar os direitos de cidadãos e de voto.5

Como entender essa evocação de cabras, crioulos, índios, mamelucos,

mestiços, negros da Costa e de Angola, gentes nossas, cidadãos muito

honrados e valorosos? É ou não é o espírito e a encarnação prévia do cortejo

de 2 de Julho na Bahia — nossa alegoria brotando viva a partir do que foi

enunciado naquele momento? É um, é dois, é três

É cem, é mil a batucar

(Vinicius de Moraes)

O respeito e a ousadia — dois parceiros improváveis — tramando outra

ordem política e social, pensando nação e cidadania a partir dessa

perspectiva inclusiva, que a Europa não estava preparada para ouvir (Já

está?/Já estamos?), e muito menos Portugal. Canta Cipriano!

Há trezentos invernos que os tiranos

Da ocidental Europa celerados,

Nas três partes do globo empoleirados,

De oprimir não cansavam desumanos...

E como requinte de ironia, neste Soneto I, Cipriano brinca com a forma dos

Lusíadas, pois nunca lhe faltou tempero. E vai adiante:

...Para mais insultar a Natureza

Traficam de comprar e vender gente!!!

Mas o grande Brasil, cuja altiveza

De tais monstros é ser independente

Para sempre vingou tanta fereza

Vejam que modulação sutil: ao lembrar que “toda gente de cor no Brasil

clamaria que lhes queiram tirar os direitos de cidadãos e de voto”, Cipriano

5 Cf. Marco Morel, Cipriano Barata na sentinela da liberdade, p. 126

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Barata está atribuindo poder criativo a essa população subalternizada6. Uma

estratégia de pensar que potencializa o Outro, ao invés de debilitá-lo. E faz

isso a partir de uma noção de povo que ainda guarda o frescor da esperança

iluminista mais candente.

Em 1823 expõe sua concepção de Revolução7:

Em uma revolução o povo reassume a sua autoridade e os seus Direitos

imprescritíveis e destrói o seu Governo, aniquila os Reis, as Leis e tudo velho

para criar tudo novo, segundo a sua Soberana Vontade.

Então, é da praça cheia

que o canavial é a imagem...

voragens que se desatam,

redemoinhos iguais,

estrelas iguais àquelas

que o povo na praça faz (João Cabral de Melo Neto)

Obviamente ainda não havia Affonso Romano de Sant’anna lembrando que “o

povo é um ovo”, que pode ser coisa viva ou ave torta, dependendo de quem o

põe ou quem o gala:

Se chamais povo, a marcha regular das armas, os uivos e silvos no esporte

popular... então mais amo uma manada de búfalos em Marajó.

Também não havia búfalos em Marajó. Mas, ao atribuir aos subalternizados

uma postura afirmativa, capaz de autorreconhecer-se como valor diferencial,

o discurso de Cipriano Barata emerge como algo que interfere sobre uma

secular passividade com relação ao espetáculo civilizado europeu — e

antecipa as cordas da lira de um Milton Santos, imaginando a globalização de

baixo para cima.

Registra o mestre Luis Henrique Dias Tavares em seu precioso ensaio

dedicado ao nosso Patrono:

No dia 4 de abril de 1831 na cidade do Salvador, três dias antes do Imperador

Pedro I ser deposto no Rio de Janeiro, Cipriano Barata apareceu aos manifestantes

‘vestido de casaca preta de algodão da terra, sapatos de couro de veado, sem tinta,

6 Uma descrição dos móveis do lavrador, médico e filósofo feita por ocasião de uma Devassa

em torno de 1798 registra o seguinte: Uma banca, meia dúzia de cadeiras, uma tina, um leito

velho, dois baús, dois caixões velhos de madeiras, três camas de pretos e uma estante de

por livros, tudo com bastante uso. Para Marco Morel, essas “três camas de pretos” indicam

que o lavrador morava sob o mesmo teto dos escravos.

7 Cf. Marco Morel.

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e chapéu de palha, com um ramo de café nas mãos, símbolo da paz’, como ele

próprio se descreveu...

Que aparição fantástica deve ter sido essa. Uma verdadeira personificação,

que como “proposição corretiva de uma brasilidade a ser conquistada”, se

instala na encruzilhada da construção cultural brasileira, projeta fundamentos

que serão imprescindíveis, permanece por quase duzentos anos como traço

estruturante. Isso sem falar dessa consciência tão baiana, da importância

fundamental da performance como ferramenta política — Cipriano

tropicalista?

Transpondo a esperança iluminista de nação e de cidadania para o Brasil

expõe o desafio da diversidade — mesmo que, em sua forma de pensar,

predomine a intenção de superar essa condição pluralista.

Ora, diversidade não é coisa estática ou simplesmente pacificadora,

não é apenas material sonoro para bordões politicamente corretos;

como se a invocação de seu nome fosse uma terapêutica social completa...

moqueca, pititinga, caruru

mingau de puba, e vinho de caju (Gregório de Mattos)

O verdadeiro desafio da diversidade é o desafio de potencialização das vozes

que a constituem, vozes da alteridade, divisão de poder,

e isso cada vez mais se impõe como necessidade vital no cenário

contemporâneo,

por exemplo, como posição de luta diante de um capitalismo pós-industrial

que ameaça toda a diversidade cultural do planeta, em nome de um modelo

hegemônico de estética e lucratividade...

quase me escapa a expressão ‘estética da lucratividade’ —

talvez a quimera fundamental de uma fusão anunciada entre arte e

publicidade...

Não pode haver diversidade e hegemonia de um modelo, de um conceito.

Buscar a construção de políticas públicas em cultura no Brasil não significa

impor uma determinada visão de cultura ao conjunto dos cidadãos.

Trata-se justamente do contrário: abrir espaço para que a própria noção de

cultura se transforme em objeto de re-elaboração permanente,

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o povo sabe o que quer,

mas o povo também quer o que não sabe – disse Gil.

Exige flexibilidade com relação aos cânones e atenção diferenciada com

relação aos movimentos sociais e identitários.

Tudo isso está latente no discurso de Cipriano Barata — basta pensar na tal

aparição —, alguém que lutou bravamente por uma Constituição liberal, pela

unidade do Império do Brasil, pela abolição gradual do trabalho escravo e por

uma industrialização voltada para as reais necessidades, contra o luxo.

Seus ideais deságuam na cadeira n. 8, delineando uma perspectiva. Cipriano

Barata traz para a Academia de Letras da Bahia a largueza de sua utopia de

nação, e todas as consequências dessa visão para o pensamento cultural —

algo muito pouco comentado.

Por exemplo: ao lidar com o desafio de afirmação da nossa identidade

política, esbarra necessariamente no delicado equilíbrio entre apropriações

externas e legitimações nossas.

Traz, em si, a semente daquilo que vai ser classificado mais de um século

depois como ‘reversão antropofágica’, no âmbito do mapeamento conceitual

do jogo entre dependência e autonomia cultural — a transmutação de

passividade em atividade transformadora.

Tupi or not tupi that is the question…

Queremos a revolução Caraíba. Maior que a revolução francesa...

Contra todos os importadores de consciência enlatada.

A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls,

diz Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago.

Mas, para quem tem olhos de ver, essa atividade transformadora atuou

durante séculos por todos os grotões do País, a partir do agenciamento dos

‘de baixo’, costurando imagens, práticas, símbolos. Uma epopéia de

resistência cultural.

Querem uma ilustração inequívoca desse processo? O carro do Caboclo, a

nossa alegoria —, um carro de guerra português transformado em símbolo de

nossas identidades, e que reúne

lança de madeira apontada para um dragão, cocar, muitas penas,

armadura de ferro em estilo medieval, baionetas,

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anjinhos barrocos, placas com nomes de heróis,

colares diversos, alforjes, bandeiras,

folhas e mais folhas, bilhetes com pedidos pessoais

entre muitas outras coisas.

Do ponto de vista da formação de intelectuais no Brasil, vale lembrar, com

Eneida Leal Cunha (2006), o costumeiro dilema: saber-se não-europeu,

saber-se não índio, compor a própria ascendência.

Tal qual Cipriano, vestido de algodão da terra com chapéu de palha e ramo

de café na mão, fomos levados a compor nossa identidade. Esse gesto e essa

necessidade varrem uma quantidade enorme de feitos, movimentos, linhas de

força e estilos “brasileiros”; por exemplo:

. “coletando situações do imaginário que desenham uma genealogia da nacionalidade

instituída” — Cunha (2006) —, como é o caso de Viva o Povo Brasileiro, de João

Ubaldo Ribeiro;

. instituindo critérios para a construção de uma música erudita “autenticamente”

brasileira, carregada de células rítmicas de origem africana;

. calibrando todas as forças envolvidas — das harmonias à linguagem — fundindo

tradições europeias e africanas, do chorinho ao lundu, para a plasmação daquilo que

passou a ser identificado como música popular brasileira;

. ou mesmo criando Academias como esta, a partir do espírito de Arlindo Fragoso e

de sua valorização da diferença de opiniões, tomando como referência o modelo

francês, mas representando uma afirmação de autonomia para a construção social

do mérito;

E o mérito é político, projeta a plenos pulmões Boaventura de Souza Santos em sua

última visita à Bahia.

Curiosamente, essas constatações nos levam diretamente ao discurso de

Ary Guimarães, ilustre antecessor nesta cadeira, pontuando sobre o dever de

...pronunciar-se diante das instituições e do momento brasileiro. Do destino

brasileiro, que é também o destino de cada um de nós, que é também o destino de

nossa cultura. De nossa identidade como povo, de nosso papel no grande palco

mundial...

Estão aí praticamente todas as conexões que haviam sido feitas

anteriormente. A visão do horizonte mais amplo — “o nosso destino” —, e,

sobretudo, a vocação de análise crítica que aponta para uma avaliação das

estruturas. Aliás, o próprio Ary Guimarães estabelece o paralelo entre ele e

Cipriano:

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Os laços que nos aproximam de Cipriano Barata, entretanto, são mais nítidos: o

jornalismo ... e a dedicação à política, ele como ativista, nós como objeto de estudo.

A política e o jornalismo como liames entre as duas vidas. A paixão pela

construção de cartas constitucionais como caminho de redesenho da

sociedade —, algo que aparece claramente em Cipriano...

Sim, eu vos adoro Instituições santas, mesmo para o bem alheio — governo popular

ou representativo, limitação dos poderes do Executivo, liberdade de imprensa,

tributação razoável...— enquanto vós não apareceis na nossa Constituição

Brasileira...

e também em Ary — sua dedicação de vida, sua cátedra — com grande

ênfase em seu discurso de posse, pronunciado em 10 de novembro de 1988,

logo após a Constituinte, ao mesmo tempo, denúncia e alerta:

O resultado foi uma constituição que querem de toda forma, bloquear. Já a disseram

fonte de ingovernabilidade. Querem impedir que vigore para que se mantenha o

‘status quo ante’.

O texto é reflexivo, sem dúvida, mas também apaixonado. Não posso deixar

de observar que mobiliza o leitor, e, nesse sentido, tem lá os seus traços de

ativismo. A constituição como construção inviolável de uma sociedade, e

como caminho de enfrentamento das questões estruturais:

Esse é o quadro a que chegamos: sem dúvida, a pior crise já vivida em toda a vida

do Brasil, fruto de elementos sociais e políticos acumulados, que jamais foram

enfrentados.

Saímos de vinte anos de uma autocracia que se instalou para tentar a saída

permanentemente vencida: a de solucionar a crise estrutural da sociedade e da

economia brasileira sem tocar sua estrutura. Ao inquietante exército de famintos

mandou-se esperar enquanto o bolo crescia.... mas a miséria é que cresceu.

O texto é pungente: solucionar a crise estrutural da sociedade sem tocar sua

estrutura. A sua análise permanece viva, pulsante, corajosa e desafiadora,

denunciando “o imobilismo de nossa estrutura social”. Denunciando que,

“toda e qualquer ditadura amesquinha o País”, que “todo autocrata é, no

fundo, um incompetente”, “todo golpe uma traição”

Amesquinha-nos a constante presença do autoritarismo, a sombra sempre

ameaçadora do apelo à força.

Então, é desse homem e dessa franqueza que estamos falando. Em seu

discurso de recepção o Mestre Luis Henrique Dias Tavares pontua com

precisão exemplar:

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Faça-se contudo, um aviso. Contido e discreto, V. Exa., não é de polêmicas, mas é

firme, seguro, bravo e corajoso...Ninguém se engane, portanto, com o aparente ar

de distanciamento de V. Exa... Do quanto tem opiniões firmes, do quanto pode ser

corajoso, deu V. Exa. seguidas demonstrações recentemente na admirável série de

estudos dedicados á Assembléia Nacional Constituinte — os melhores que a

imprensa brasileira publicou... Por vezes V. Exa bordejou a temeridade. Temos

assim que há o Ary Guimarães composto, contido, permanentemente discreto, e há o

Ary Guimarães que luta e defende princípios... Este, briga.

Que belo retrato. E para realçá-lo ainda mais, por contraste de estilo e

atmosfera, reverbero aqui a primeira frase deste discurso de Posse:

Há sonhos que não se confessam a si mesmos. São talvez, os mais profundos, os

que revelam melhor quem os sonha... E por isso mesmo, são guardados de tudo.

Principalmente para quem elegeu como norma de vida a suspeita no julgamento

próprio.

Mudamos de cena: agora estamos tratando da constituição interna — e dessa

ponte caprichosa entre olhar interno e externo, entre a coerência e a

fantasia. E eis que o nosso personagem reconhece a profundidade da ‘outra

cena’ — sonhos que não se confessam a si mesmos —, e adota como norma

de vida a suspeita no julgamento próprio, ou seja, a suspensão do ego.

Poucos disseram com tanta elegância da honra de pertencer a esta Casa. A

ele me associo alegremente; humildemente.

Cipriano Barata e Ary Guimarães são muito diferentes e muito parecidos —

talvez devêssemos dizer: diferentes em suas similaridades.

Peço agora ao discernimento sutil de Ary Guimarães que apresente o

fundador dessa cadeira — Luis Anselmo da Fonseca.

“Há uma linha de coerência entre Cipriano e Luis Anselmo”, observa Ary,

ambos “polígrafos, polemistas e defensores de políticas avançadas”.

Pois bem: agora estamos em 1888, e a escravidão foi abolida no Brasil. Os libertos

da Bahia comemoram..... Vejam quem aparece nesse cortejo carregando um

estandarte da Faculdade de Medicina – Luis Anselmo da Fonseca... Mais uma vez o

2 de julho não se conforma em ser meramente alegoria, invade o real do discurso, e

demonstra como é sutil a diferença entre realidade e imaginário.

Luis Anselmo da Fonseca: pardo (hoje afro-descendente), filho natural,

batizado em 1848 (em Jacobina), formado pela Faculdade de Medicina em

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1875, abolicionista, autor do livro “A Escravidão, o Clero e o Abolicionismo”

publicado em 1887; e professor da Faculdade de Medicina a partir de 1883.

O personagem se apresenta com a epígrafe deste seu famoso livro:Se não tendes o espírito emancipado, se vos não habituastes a amar a verdade e a

justiça, se alimentaes qualquer preconceito — seja de partido, seita, escola, classe,

hierarquia ou de outra espécie, — vos aconselhamos que não leias este livro...

Das opiniões e dos atos de várias pessoas — relativamente aos escravos e à sua

grande causa — nos ocupamos, é certo.

A historiadora Wlamyra de Albuquerque (1999) descreve em detalhe as

comemorações pela abolição em 1888, na cidade de Salvador8. Os libertos

solicitaram os carros dos caboclos para a festa — sendo liberado o carro da

Cabocla, talvez por ser menos impositivo, ressaltando a conciliação:

Os populares saíram da Lapinha, seguiram pelo Terreiro de Jesus, passaram pela

Praça Castro Alves e rumaram até o Forte de S. Pedro Uma semana depois,

organizou-se o retorno do carro à lapinha. Desta vez, os ânimos arrefecidos, o

préstito foi organizado com mais controle das autoridades: à frente estava o

esquadrão da Cavalaria do Exército, o Esquadrão Patriótico Joaquim Nabuco, e só

depois surgia o carro da Cabocla, puxado por libertos. Por fim, desfilou a Legião da

Imprensa seguida pelo carro da Sociedade Abolicionista Libertadora Baiana com o

seu estandarte e o retrato de Joaquim Nabuco.

Além da presença neste cortejo de retorno, Luis Anselmo também integra a

comissão organizadora de todo o evento.

Francisco Peixoto de Magalhães Neto, ilustre sucessor de Luis Anselmo da

Fonseca nesta cadeira, seu aluno na Faculdade de Medicina, deixou sobre ele

um importante ensaio, colocando em destaque suas principais facetas:

médico, professor, filósofo, abolicionista e polemista. Traça um perfil

analítico cuidadoso de seu antecessor, avaliando suas relevantes

contribuições. Alguns títulos de artigos polêmicos:

Resposta a um tiro por detrás do pau

Nulificação de uma afronta

Pouquidade do maior feito do Diretor da Faculdade de Medicina

Bafejo de Vampiro

Todavia, mergulhado na leitura do polpudo livro de Luis Anselmo sobre o

Abolicionismo, devo confessar, que aquilo que mais me impressionou foi o

traço de crítica cultural, tão ferino e decidido que merece registro um pouco

8 Cf. Algazarra nas ruas: comemorações da independência na Bahia (1889-1923), Editora da UNICAMP

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mais detido. Falando daquilo que considerava atraso deplorável entre nós,

diz Luis Anselmo:

A Bahia construiu o edifício de sua civilisação sobre as bases da instituição servil,

que é a negação da liberdade e da iniciativa, e do ultramontanismo (português) que é

a negação da sciencia e do movimento. (sic)

O autor dedica todo um capítulo à descrição minuciosa da luta pela

implantação do trabalho livre na Bahia, e descreve a resistência do status

quo pressionando para a manutenção do trabalho escravo — focaliza de

forma especial os serviços de catraieiros, carregadores de fardos e

remadores de saveiros, descrevendo a incrível luta para tornar possível o

funcionamento de trabalho livre nesses setores. Uma batalha que foi

disputada palmo a palmo.

Volta à carga:

A Bahia adora o passado, ama o status quo e antipathisa todo movimento...

Aqui para alguém merecer a estima publica é preciso imitar a immobilidade do

fakir...

A Bahia não é mais que um dormitório. Sua população, reclinada sobre o dorso das

collinas, dorme... dorme sempre e... sonha com a escravidão...

Só acorda ou para o carnaval eleitoral, ou para as festas de egreja...

...Hoje nossa instrução está quase aniquilada... Os professores primários muitas

vezes deixam de receber seus ordenados por 12, 18 e 24 meses...

E tudo resume com essa fina análise de cultura política:

...Pior do que este lamentável estado de cousas é a presunção d’aqueles baianos que

consideram sua terra muito adiantada e feliz...

Os bahianos que conhecem estes males attribuem-nos ao governo e do governo

esperão os remedios. É obvio que elles têm no pensamento o governo absoluto e

paternal das tradicções coloniaes.

Convencido do atraso da Bahia com relação às outras Províncias, Luis

Anselmo sonha com uma modernização reparadora, provavelmente em torno

da noção de progresso e ciência. Porém, o vetor de análise da cultura política

permanece atual e vai encontrar ecos no trabalho recente de pesquisadores

de ciência política, tais como Paulo Fábio Dantas Neto e Israel Pinheiro.

E aqui, nesse ponto do percurso, podemos observar o importante

alinhamento entre essas três figuras — Cipriano Barata, Luis Anselmo e Ary

Guimarães. Devotam grande interesse e energia a transformações profundas

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da nossa sociedade. Percebem, cada um a seu modo, as fragilidades do nosso

edifício social, e sonham com mudanças.

Retorno ao texto de Ary Guimarães. Ele busca regularidades na linha

sucessória da cadeira n. 8. Observa que a vocação pela vida pública é um

traço presente em todos os ocupantes. Vocação exercida não apenas na

“trincheira das assembléias políticas, mas também no magistério responsável,

formando geração de pensadores”. Destaca a condição de mestres

humanistas, tanto em Magalhães Neto como em Adriano Pondé, levando o

humanismo, necessariamente, ao interesse e ao engajamento com a realidade

política do País.

Encontramos Magalhães Neto, em 1934, como representante do estado da

Bahia na Assembleia Nacional Constituinte. No discurso proferido em 26 de

março trata de questões da saúde pública no Brasil, e abre parêntesis para

homenagear seu antecessor na cadeira 8...

Eminente professor de higiene, cujo nome quero citar com saudade, o grande baiano

e eminente patriota doutor Luiz Anselmo da Fonseca escreveu, no limiar mesmo de

seu laboratório: “aprendei a evitar moléstias, curá-las quando não impossível é

sempre mais incerto, difícil e penoso”

Reflete ainda sobre a natureza complexa dos problemas sanitários — de

como se entrelaçam como peças de um mosaico, afetando todas as atividades

da vida comum — passando a exigir um investimento especial de

coordenação.

Como bem registra Adriano Pondé, Magalhães Neto

defendia o conceito de que a Medicina, pela sua própria finalidade, cabe em grande

parte nos domínios das ciências sociais...

Doença e pobreza são elos de uma só cadeia... Saúde e desenvolvimento são

expressões que cada vez mais se encontram associadas.

Essa linha de pensamento, incorporada à sua trajetória, deu origem ao sonho

de criação de uma Escola de Saúde Pública na Bahia, e o coloca como um dos

ideólogos do movimento que resultaria na estruturação da área de medicina

preventiva, e posteriormente, na criação do Instituto de Saúde Coletiva. Mais

uma linha de pensamento transformador que se associa ao histórico da

cadeira 8.

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Ary Guimarães ressalta,

(Magalhães Neto) era um intelectual e homem cuja sensatez, sabedoria e equilíbrio

nas decisões o transformaram em oráculo... Lembram-me as sessões do Conselho

Departamental onde todos aguardavam sua palavra de experiência...

E Adriano Pondé registra outro conjunto de qualidades:

.erudito e freqüentador dos clássicos latinos conhecendo o grego bastante para

apreciar, no original, textos de Homero e Xenofonte

.escritor que valoriza a forma literária – límpida e elegante

.orador de amplos recursos; epigramista;

.comprometido com a defesa das nossas instituições culturais, a Academia, e muito

especialmente, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, que presidiu durante

muitos anos...

Porém, de todas as qualidades comentadas, a que Adriano prefere ressaltar

como a mais fundamental é a generosidade; que inclusive se traduzia em um

esforço permanente para encontrar a justa medida na árdua tarefa do

julgamento.

Quanto a Adriano Pondé, lendo o que nos deixou escrito, e especialmente

os depoimentos de quantos o conheceram sobre sua natureza humana e

dedicada, sobre seu grande conhecimento médico, percebemos que —

independentemente de significativas contribuições institucionais, tais como a

criação da Escola de Nutrição, ou o desempenho como Reitor da UFBA após

a morte de Miguel Calmon, entre tantas outras —, sua melhor trincheira

estava na esfera do indivíduo.

Digo isso com a consciência de que a esfera do indivíduo é talvez uma das

que mais exijam desprendimento e doação — pois, para permitir o

afloramento da individualidade, é preciso construir qualidades de recepção,

espaços abertos e livres para a representação do outro.

Não seria justamente essa a verdadeira arte do clínico? Impressiona, no

discurso do próprio Adriano, a atenção dedicada ao tema ‘A medicina não se

desumanizará’: a técnica não é uma finalidade, é o instrumento para que se

alcance um resultado humano, e recorre ao mestre Amoroso Lima:

A libertação do homem não está nas coisas. Está em si próprio... o progresso da

humanidade não depende da perfeição de suas máquinas, mas da perfeição daqueles

que as souberem manejar,

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Em suma, depende da virtude do espírito...

Nada mais natural, portanto, que uma mente cultivada como a de Adriano

Pondé caminhasse na direção da obra de Proust, um virtuose na literatura,

justamente pela via da construção complexa da individualidade, da vivência

de ser sujeito...

Para marcar a passagem do seu centenário, em 2001, alguns de seus ex-

alunos se organizaram e produziram um belíssimo documento, com

depoimentos que projetam uma coleção impressionante de atitudes, de

instantâneos, dedicando ao mestre o mesmo cuidado que dele receberam.

Registro alguns desses instantâneos:

Fidalgo no trato com seus assistentes, seus discípulos e de modo muito especial,

com seus pacientes (Assis Fernandes)

... dou o meu testemunho desse desempenho, diante do seu comportamento na

enfermidade de minha mãe, quando presenciei as suas lágrimas de emoção no seu

falecimento precoce, naquela ocasião eu era um adolescente de quinze anos que

nunca tinha visto um médico chorar. A partir daí passei a amar minha profissão...

(Antonio Carlos Peçanha Martins)

Sabia falar com seus pacientes e familiares. Tinha paciência e muito jeito, sugerindo

e valorizando o ambiente harmônico como peça fundamental na cura...

(Anita Guiomar Franco Teixeira)

Mas a esfera do indivíduo é também a esfera da construção de medidas

objetivas. Para Gilson Soares Feitosa — falando como Presidente da

Sociedade Brasileira de Cardiologia —, Adriano Ponde foi um visionário que

anteviu a mudança do quadro nosológico com ênfase nas doenças infecciosas

para a verdadeira epidemia de doenças cardiovasculares degenerativas que

se seguiu — trabalhando por um enfrentamento organizado do problema e

merecendo lugar de destaque na Cardiologia nacional.

Mais uma vez — a responsabilidade com a dimensão coletiva.

E agora podemos tratar de uma das quadras mais sutis do discurso de Ary

Guimarães. Sutileza que nada sacrifica em termos de franqueza. Partindo da

atuação de cada ocupante da cadeira n. 8, ele passa a refletir sobre o papel

político da Academia, como um todo. E observa, com apuro:

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Há de entender-se que uma instituição que exerce e que pretende exercer presença

cultural é, inerentemente, uma casa política. Não só por praticar o poder que vem da

cultura

(apenas essa expressão mereceria um longo parêntesis, e a ela retornaremos)

mas também porque, fazendo-se de um punhado de homens distintos, que se

tenham destacado na sociedade, não pode descurar-se de que seu procedimento,

ainda que mais afastado pareça do jogo do poder e das ideologias, define-se nele.

E prossegue:Digo que devemos estar presentes em cada grande momento, em cada esquina de

nosso destino, pois em cada uma dessas circunstâncias a Pátria nos exige a

participação. Afinal, ela, a Pátria, não é feita senão do conjunto de todos os

cidadãos, conjunto que não prescinde daqueles que são julgados notáveis na

sociedade. Pelo contrário: deles, principalmente, se deve servir.

Quantas coisas importantes estão sendo ditas sob essa aparência de

simplicidade! Várias questões e possíveis encaminhamentos estão aflorando

do texto. Desde aquela formulação sintética — o poder que vem da cultura

—, sobre a qual todo um discurso poderia ser desenvolvido, até a colocação

do problema da nossa missão.

Friso bem: da nossa missão. Ary Guimarães não particulariza essa missão —

como se houvesse uma missão específica da Academia, distinta da de todos

os cidadãos. Ele raciocina a partir da totalidade

Devemos estar presentes em cada grande momento, em cada esquina de nosso

destino

Nem precisaria comentar sobre a sutileza da imaginação de ‘destinos com

esquinas’, é uma construção poética, mas absolutamente objetiva, precisa, as

esquinas são os grandes momentos. E prosseguindo:

A Pátria não é feita senão do conjunto de todos os cidadãos, conjunto que não

prescinde daqueles que são julgados notáveis na sociedade.

De início esse jogo precioso com as negações — “não é feita senão do

conjunto de todos os cidadãos”. Há aí um aviso claro aos navegantes:

ninguém ouse solapar essa totalidade, excluindo quem quer que seja.

E mais: a notabilidade dos notáveis só pode ser entendida como uma função

perante o todo da sociedade, e não como celebração de privilégios ou

idiossincrasias. Acho que o recado está dado, com todo estilo, franqueza e

simplicidade. Viva Ary Guimarães por tal capacidade crítica!

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Pois como disse Gregório:

O todo sem a parte não é todo / A parte sem o todo não é parte,

mas se a parte o faz todo, sendo parte, / Não se diga, que é parte, sendo todo.

(Gregório de Mattos, soneto)

Nasceu Ary Guimarães em 24 de agosto de 1933, aqui em Salvador. Seus pais:

Daniel Guimarães e Alzira Guimarães. Sua vida esteve repleta de feitos e funções de

grande dignidade. Bacharel em Direito pela UFBA, em 1956. Professor Titular da

UFBA, lecionou Ciência Política e Direito Constitucional na Faculdade de Filosofia e

na Faculdade de Direito. Professor da Pós-Graduação em Direito Administrativo.

Superintendente da Federação das Indústrias do Estado da Bahia entre 1967 e 1970.

Diretor do SPHAN entre 1980 e 1986. Jornalista profissional, chegando a editor do

jornal A Tarde. Autor dos Livros “Um sistema para o desenvolvimento”, publicado

pela UFBA em 1966 e “As eleições baianas de 1970”, que foi tese do concurso para

Titular, em 1972.

O mais importante: as características do seu discurso foram as mesmas da

sua vida — inteligência sutil, postura discreta e, ao mesmo tempo

radicalmente corajosa, quando necessário. Mais uma vez recorro ao Mestre

Luis Henrique, que cunha uma expressão inesquecível: “O Ari é correto”. E

vai adiante, lembrando que o estudo da saúde política, o esforço por uma

educação política — paciente, correta, diária — constitui o trabalho mais

urgente e necessário no Brasil dos nossos dias. Portanto, além de correto, e

justamente por isso, Ary Guimarães permanece necessário.

Retomo a noção que ele apresentou em discurso sobre a vinculação entre

as partes e o todo, entre os cidadãos e os destinos da sociedade brasileira.

Digo que esta talvez seja a melhor utopia do nosso tempo — uma que

ressalto confiante — embora todos os sinais apontem em direção contrária,

Estamos vivendo a época onde o indivíduo-celebridade é que faz estrutura —

não digo que faz sozinho, há toda uma indústria trabalhando nessa direção,

mas sem ele fica inoperante.

Quem faz a música? Cada vez menos pensamos em coletivos e mais no

indivíduo celebridade. Muitas vezes o coletivo é convocado para legitimar a

celebridade, e a partir daí permanece mais ou menos inativo. Quem faz a

instituição? A ciência? O partido? A moda? O consumo? Será que faz a

ética...?

Mas, não podemos simplesmente sair por aí gritando ‘abaixo o indivíduo!’,

muito menos num discurso de posse, até porque, afinal de contas, houve

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muita luta, muita revolução francesa para permitir a continuidade do

processo de maturação da subjetividade, das subjetividades...

Muita reviravolta para permitir a complexidade com a qual tratamos a

questão do sujeito... Seus tempos, suas cenas...

Encaminhei o discurso na direção de método, música, retórica e utopia. Os

dois primeiros — método e música — foram diretamente derivados da

decisão de trabalhar com a polifonia das vozes e dos discursos. A retórica,

entendida “como possibilidade da eficácia da argumentação” — tal como nos

diz João Carlos Salles —, foi a etapa mais trabalhosa, exigindo a montagem

desse mosaico de falas, com encaixes cuidadosamente calibrados.

Faltava a utopia. Qual não foi a felicidade de encontrá-la no próprio discurso

de Ary Guimarães. Sabendo, desde sempre, que as utopias se alinham com a

teoria crítica, e se distinguem da ciência positiva justamente pela decisão de

não reduzirem a realidade ao que existe, Ou seja, pela decisão de tratar a

realidade como campo aberto de possibilidades...

Precisamos aprender novas formas de responder a esse desafio do equilíbrio

entre a exuberância do indivíduo e das subjetividades e a construção de

autonomia do coletivo, a construção de uma dinâmica do coletivo, que muitas

vezes recebe o apelido de democratização.

Mas o termo acaba sendo escorregadio, ao sugerir que há uma forma padrão

de fazer isso; como se a dinâmica dos coletivos não exigisse soluções

específicas a cada caso, e em cada conjuntura. Estamos diante de um

paradoxo: nem todas as ‘democratizações’ envolvem uma dinâmica do

coletivo. Nem todas interessam.

Agora uma tarefa complexa. O desafio de uma breve auto-apresentação.

Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo... (CDA)

Agarro-me ao princípio vislumbrado por Ary Guimarães e vou registrando

abaixo o conjunto de situações de pertencimento que me constituíram como

gente. O fato de ter pertencido a essas totalidades é que deu no que sou.

Pode até parecer estranho, mais penso numa analogia estreita com o

batuque... Sei que pertenço aos batuques.

Onde os houver no mundo, lá estarei,

mesmo que sejam batuques renascentistas

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polifonias renascentistas.

Eles, os batuques, representam de forma exuberante essa confluência mágica

entre um e todos; são peles vibrantes, são formas distintas de dividir e de

compartilhar o tempo e o contratempo...; De instituir ordem e subversão.

Não seria difícil imaginar meu núcleo familiar de origem como uma pequena

batucada: Antonio Batista Lima e Dinorá Costa Lima, Dona Amélia Duarte (uma

segunda mãe), João Augusto e, este que vos fala — tenho certeza que há uma

estrela onde habitam esses personagens que fui e que fomos...

E na outra ponta, a família construída, minha mulher Ana Margarida, minha

companheira de 36 anos, minha alma gêmea — parceira de todas as iniciativas

—, e nossos filhos Cláudio e Maurício, a quem amamos com todas as forças,

e que amam a música com igual intensidade;

cubro-os todos com um manto de carinho e agradecimento,

e estendo esses votos ao círculo mais amplo da família Costa, família Lima,

Cerqueira Lima, Isensee, Horschutz, Nogueira, Walter e a todos os preciosos

amigos que foram sendo aconchegados ao longo da vida, em sua trama...

Também agradeço a todos os ambientes que me acolheram no processo de

formação. A todos os professores, artistas e lideranças que me inspiraram na

direção do trabalho e do aperfeiçoamento:

desde a Escola Getúlio Vargas, passando pelo

ICEIA - Instituto Central Isaías Alves,

o Colégio de Aplicação da UFBA,

os Seminários de Música (a partir de 1969),

a Faculdade de Medicina da UFBA, durante um longo ano,

a Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA,

a Universidade de Illinois em Champaign-Urbana,

até a Faculdade de Educação da UFBA

e a Universidade de São Paulo, onde desenvolvi teses de doutoramento.

Mas também devo assinalar alguns outros ambientes ou ciclos de

aprendizagem:

. a psicanálise como descoberta radical; a psicanálise que pratico como leitor

assíduo e analisando;

. a visão amorosa da religião, tal como vi em Dom Timóteo; e tal como vi

recentemente em Alfredo Dórea;

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. o horizonte idealizado da transformação social e da construção de um Brasil

sem a tragédia da exclusão e da desigualdade;

. a rede viva de todos os amigos, que mencionei antes, e que aqui sublinho

como uma mola do querer viver, do querer seguir em frente...

. todas as músicas que escutei, e especialmente as que me deslumbraram...

Devo também mencionar os ambientes onde desenvolvi atividade

profissional:

a própria Escola de Música da UFBA, meu ninho de referência,

e dentro dela, o Grupo de Compositores da Bahia, ou melhor, o movimento da

composição — do Falamassa ao OCA e ORCA – Oficinas de composição

Agora.

agradeço especialmente aos meus estudantes, com os quais, mais aprendi

que ensinei; a todos os parceiros de idéias e ideais...

a Reitoria da UFBA, onde exerci a função de Pró-Reitor de Extensão entre

1996 e 2002; e aprendi que a trama do conhecimento é bem mais ampla que

a universidade...

a Fundação Gregório de Mattos, e por consequência, todos os cantos

culturais da cidade de Salvador... Desde as instituições mais tradicionais

como o Instituto Geográfico e Histórica da Bahia, liderado pelo espírito de

luta de Consuelo Pondé de Senna, até as agremiações culturais de bairro, as

academias de capoeira, o mundo do candomblé, nosso tesouro de ética e de

estética, a quem saúdo através de um amigo, o venerável Esmeraldo

Emetério do Tumba Junsara;

o diálogo produtivo, criativo, a grande parceria com o Ministério da Cultura

do Governo Lula — de Juca e de Gil —, e toda a sua plataforma de

estimulação das dinâmicas do coletivo através políticas públicas de cultura.

Todos esses âmbitos dariam origem a uma impressionante ciranda de nomes,

que me constituíram e me constituem — algo impossível de lidar na presente

situação:

E, então, desemboco numa pergunta fundamental: O que ficou de tudo isso?

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O aprendizado de que a questão ética é o campo prioritário;

Que as pessoas são pessoas; e que nos cabe observá-las e admirá-las em

sua performance de gente... Ser testemunhas, como disse Drummond...

Creio ter adquirido, ao longo dos anos, uma consciência cada vez maior

desse princípio sagrado, e até mesmo certa experiência.

Valorizar o Outro: trata-se da ferramenta mais importante para a gestão, e

especialmente a gestão da cultura... Trata-se também, da mais importante

ferramenta pedagógica...

Por exemplo: não adianta querer ensinar composição às pessoas; ensinar a

criar – que ultraje... Só aprendem a compor quando se sentem compositores,

ou seja, quando há uma estrutura relacional que garante essa ousadia; esse é

o papel inalienável do professor.

2.

A ética como justiça, como igualdade de oportunidades, como reparação

A ética de protestar e de ser contra, de imaginar novos mundos, com novos

atores e autores, novas artes, novas vidas...

a ética da equidade — a equidade da ética

3.

O valor profundamente transformador das idéias, dos desejos, e dos sonhos;

as idéias são entidades perigosas, elas ameaçam a ordem vigente,

elas podem durar segundos ou séculos; elas se infiltram, elas vicejam, elas

retornam em mil disfarces...

e nessa conexão, o valor do trabalho, do rigor, da disciplina, da limitação de

liberdades para construir mais liberdade...

4.

O papel da cultura como refundadora da nossa ética de sociedade, de

coletividade. A cultura como repositório gentil de uma miríade de

pertencimentos possíveis,

a cultura como esquina essencial do destino da nação brasileira

como “proposição corretiva de uma brasilidade a ser conquistada”

O civismo é uma questão de futuro e não de passado.

A cultura como convocação a todos,

como oportunidade de valorizar e ser valorizado,

como esperança de transposição de antigas fronteiras entre letrados e não

letrados, entre eruditos e populares, modernos, românticos ou pós-

modernos, bregas e chiques, globais e locais

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E a Academia como “lugar de serviço à sociedade”, tal como nos lembra o

Mestre Edivaldo Boaventura, enfrentando o desafio de ampliar a consciência

desse processo, fertilizando-o, e fertilizando-se nele.

5.

A importância da territorialização, do arraigamento, das raízes,

e, ao mesmo tempo, do impulso contrário, a desterritorialização, a abstração

radical, a construção de cenas desgarradas de tudo, ou potencialmente

universais.

E, sobretudo, o diálogo travesso entre esses dois processos — cada um

puxando arbitrariamente para seu lado, e nós no meio.

6.

Com isso, chego talvez ao cerne do meu estilo — alguns dizem que é

exuberante, eu digo que é derivado da estética do batuque. Mas não custa

lembrar que o estilo é uma ambição jovem. Na maturidade, sua principal

função é o rodopio, desconstruir tudo e enganar suavemente o ouvinte. Mas

eis que, rodopio sendo, acaba chegando bem perto de onde partiu — quem

instituiu o gozo, também instituiu a repetição.

Tudo que fiz em ensino e em gestão, fiz pelo prazer do compor — e achei

que tudo era farinha do mesmo saco. Para me entender direito, teria que

cruzar esses campos de dados: o ensino, a gestão, a composição. Muitas

vezes, o fio condutor surge do lugar menos provável... Volto a Debussy e a

Ernst Widmer: aprender pela desconstrução, usar os trilhos como caminho de

sublevação heterodoxa...

Abri as portas do mundo e esbravejei...(Ildásio Tavares)

Creio ter cumprido o meu dever de recipiendário — ao evocar os discursos

daqueles que me antecederam, buscando sublinhar as linhas de força mais

adequadas para a tecelagem desta noite, os ideais que impressionam e

comovem, os valores.

Também planto aqui, nesse momento conclusivo, um ramo de agradecimento

sincero e profundo pela generosidade do gesto de minha acolhida, e a tantos

amigos e companheiros que em mim confiaram, declaro mais uma vez minha

fidelidade ao espírito de luta que a Academia ilumina.

Fecha-te Discurso!

Que tudo recolhas e guardes na memória!

Passaste como batucada de sentidos e sonoridades,

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e agora, simplesmente,

cala-te.

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