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Academia de Letras da Bahia
Discurso de Posse — Cadeira no 8
17.12.2009
Paulo Costa Lima
Abre-te discurso!
De nada nos sonegue.
Ouço-te antecipadamente, fornalha de sentidos, bigorna de sonoridades,
em busca de método, música, retórica e utopia.
Se não queres cavalos alados e musas, manda buscar em Cachoeira o fogo
simbólico que nos ilumina a cada 2 de Julho — mais do que passado e
alegoria, a esperança de uma sociedade que esteja à altura dos ideais desde
lá projetados.
E peço-te não estranhares que falo a ti, discurso, enquanto falas a todos.
Faço-o em nome da clareza complexa do compor — pois penso em ti como
material, mesmo que vivo, como paleta de possibilidades sobre as quais está
posto o desafio de encontrar o ambiente de palavras necessário à tecelagem
desta noite.
Feliz de quem com cânticos se esconde
e julga tê-los em seus próprios bicos,
e ao bico alheio em cânticos responde. (Jorge de Lima)
Discurso, ó discurso!
Devo tratar-te como música que és? Seguir tua dança? Tu és neguinha?
“Um discurso acadêmico. Como perpetrá-lo?”1
Quantas partes, quais os materiais, quais os processos?
Lembras-te dos primeiros ensinamentos da invenção contemporânea —
“Linguagem usada é linguagem morta”2?
Ou, como disse despetaladamente Claude Debussy, abrindo o século:
“esforcei-me bastante para desaprender tudo que me foi ensinado”.
Uma música que seja como os mais belos harmônicos da natureza.
Uma música que seja como o som do vento na cordoalha dos navios...
Uma música que comece sem começo e termine sem fim...
O som do vento numa enorme harpa... (Vinícius de Morais)
Eis aí modelo em miniatura de método e de música.
1 Cf. Discurso de Posse de Machado Neto, Revista v. 23, p. 1022 Cf. Futility 1964 para voz e fita magnética, de Herbert Brün
1
Desconstruir-te de unidade ou inteireza.
Aceitar alegremente o que me ofereces como possibilidade cantante
Celebrar que és intertexto e polifônico —
Ramalhete acrisolado e, ao mesmo, tempo conversa sem rodeios3.
A pluralidade das vozes como estratégia de tempo
e o tempo como estratégia de gozo,
como na mandala sonora da música dos pigmeus
ou na música do barroco — de Vivaldi e Bach,
como totalidade das expectativas, dos sentidos e das relações,
espelho dos falantes desejantes.
O tempo moldura, receptáculo, interstício,
e principalmente o tecido da própria vivência
afetando método, retórica e utopia.
Discurso, ó discurso,
“o corpo humano não vive fora de sua humanidade de palavra...
cada sujeito constituído pelas sonoridades de um Outro que o antecede”4,
sendo o tempo projeção desse Outro,
uma categoria de suposto saber,
sabe quem sou antes de mim,
parceiro inalienável da criação, da fantasia e do sonho,
de cujo material somos feitos,
parceiros do ‘manda gozar’!
Carpe Diem: de que importa esse discurso se não aproveitar a vida?
Então, que ele saia assim carpejado – ‘eu sou do mundo / eu sou o samba...’.
Raio de luz que ilumina os passos de minha vida.
Não tem ontem, nem amanhã, porque não declina, não se apaga.
Adriano Pondé em seu discurso de posse, citando John Donne.
A polifonia das perspectivas que aqui confluem.
A perspectiva das vidas que aqui confluem:
. as vozes de todos os acadêmicos da cadeira n. 8, Luis Anselmo da Fonseca
(seu fundador), Francisco Peixoto de Magalhães Neto, Adriano Pondé e Ary
Guimarães;
3 Cf. Discurso de Posse de Fernando Peres, Revista vol. 36, p.278.4 Gerard Pommier, Qué es lo ‘Real’: Ensayo psicoanalítico, Buenos Aires, Nueva Vision, 2004.
2
. a voz de seu ilustre patrono Cipriano Barata, projetada como se fosse, e
é, o próprio fogo simbólico chegando ao discurso; das Cortes de Lisboa em
1823, até esta noite:
Os mulatos, Sr. Presidente, cabras, crioulos, os índios, os mamelucos e mestiços
são gentes nossas, são portugueses e cidadãos muito honrados e valorosos... Além
disso, temos também os negros da Costa da Mina, Angola, etc. A falta de cuidado
nestes artigos pode fazer grande mal, porque toda gente de cor no Brasil clamaria
que lhes queiram tirar os direitos de cidadãos e de voto.5
Como entender essa evocação de cabras, crioulos, índios, mamelucos,
mestiços, negros da Costa e de Angola, gentes nossas, cidadãos muito
honrados e valorosos? É ou não é o espírito e a encarnação prévia do cortejo
de 2 de Julho na Bahia — nossa alegoria brotando viva a partir do que foi
enunciado naquele momento? É um, é dois, é três
É cem, é mil a batucar
(Vinicius de Moraes)
O respeito e a ousadia — dois parceiros improváveis — tramando outra
ordem política e social, pensando nação e cidadania a partir dessa
perspectiva inclusiva, que a Europa não estava preparada para ouvir (Já
está?/Já estamos?), e muito menos Portugal. Canta Cipriano!
Há trezentos invernos que os tiranos
Da ocidental Europa celerados,
Nas três partes do globo empoleirados,
De oprimir não cansavam desumanos...
E como requinte de ironia, neste Soneto I, Cipriano brinca com a forma dos
Lusíadas, pois nunca lhe faltou tempero. E vai adiante:
...Para mais insultar a Natureza
Traficam de comprar e vender gente!!!
Mas o grande Brasil, cuja altiveza
De tais monstros é ser independente
Para sempre vingou tanta fereza
Vejam que modulação sutil: ao lembrar que “toda gente de cor no Brasil
clamaria que lhes queiram tirar os direitos de cidadãos e de voto”, Cipriano
5 Cf. Marco Morel, Cipriano Barata na sentinela da liberdade, p. 126
3
Barata está atribuindo poder criativo a essa população subalternizada6. Uma
estratégia de pensar que potencializa o Outro, ao invés de debilitá-lo. E faz
isso a partir de uma noção de povo que ainda guarda o frescor da esperança
iluminista mais candente.
Em 1823 expõe sua concepção de Revolução7:
Em uma revolução o povo reassume a sua autoridade e os seus Direitos
imprescritíveis e destrói o seu Governo, aniquila os Reis, as Leis e tudo velho
para criar tudo novo, segundo a sua Soberana Vontade.
Então, é da praça cheia
que o canavial é a imagem...
voragens que se desatam,
redemoinhos iguais,
estrelas iguais àquelas
que o povo na praça faz (João Cabral de Melo Neto)
Obviamente ainda não havia Affonso Romano de Sant’anna lembrando que “o
povo é um ovo”, que pode ser coisa viva ou ave torta, dependendo de quem o
põe ou quem o gala:
Se chamais povo, a marcha regular das armas, os uivos e silvos no esporte
popular... então mais amo uma manada de búfalos em Marajó.
Também não havia búfalos em Marajó. Mas, ao atribuir aos subalternizados
uma postura afirmativa, capaz de autorreconhecer-se como valor diferencial,
o discurso de Cipriano Barata emerge como algo que interfere sobre uma
secular passividade com relação ao espetáculo civilizado europeu — e
antecipa as cordas da lira de um Milton Santos, imaginando a globalização de
baixo para cima.
Registra o mestre Luis Henrique Dias Tavares em seu precioso ensaio
dedicado ao nosso Patrono:
No dia 4 de abril de 1831 na cidade do Salvador, três dias antes do Imperador
Pedro I ser deposto no Rio de Janeiro, Cipriano Barata apareceu aos manifestantes
‘vestido de casaca preta de algodão da terra, sapatos de couro de veado, sem tinta,
6 Uma descrição dos móveis do lavrador, médico e filósofo feita por ocasião de uma Devassa
em torno de 1798 registra o seguinte: Uma banca, meia dúzia de cadeiras, uma tina, um leito
velho, dois baús, dois caixões velhos de madeiras, três camas de pretos e uma estante de
por livros, tudo com bastante uso. Para Marco Morel, essas “três camas de pretos” indicam
que o lavrador morava sob o mesmo teto dos escravos.
7 Cf. Marco Morel.
4
e chapéu de palha, com um ramo de café nas mãos, símbolo da paz’, como ele
próprio se descreveu...
Que aparição fantástica deve ter sido essa. Uma verdadeira personificação,
que como “proposição corretiva de uma brasilidade a ser conquistada”, se
instala na encruzilhada da construção cultural brasileira, projeta fundamentos
que serão imprescindíveis, permanece por quase duzentos anos como traço
estruturante. Isso sem falar dessa consciência tão baiana, da importância
fundamental da performance como ferramenta política — Cipriano
tropicalista?
Transpondo a esperança iluminista de nação e de cidadania para o Brasil
expõe o desafio da diversidade — mesmo que, em sua forma de pensar,
predomine a intenção de superar essa condição pluralista.
Ora, diversidade não é coisa estática ou simplesmente pacificadora,
não é apenas material sonoro para bordões politicamente corretos;
como se a invocação de seu nome fosse uma terapêutica social completa...
moqueca, pititinga, caruru
mingau de puba, e vinho de caju (Gregório de Mattos)
O verdadeiro desafio da diversidade é o desafio de potencialização das vozes
que a constituem, vozes da alteridade, divisão de poder,
e isso cada vez mais se impõe como necessidade vital no cenário
contemporâneo,
por exemplo, como posição de luta diante de um capitalismo pós-industrial
que ameaça toda a diversidade cultural do planeta, em nome de um modelo
hegemônico de estética e lucratividade...
quase me escapa a expressão ‘estética da lucratividade’ —
talvez a quimera fundamental de uma fusão anunciada entre arte e
publicidade...
Não pode haver diversidade e hegemonia de um modelo, de um conceito.
Buscar a construção de políticas públicas em cultura no Brasil não significa
impor uma determinada visão de cultura ao conjunto dos cidadãos.
Trata-se justamente do contrário: abrir espaço para que a própria noção de
cultura se transforme em objeto de re-elaboração permanente,
5
o povo sabe o que quer,
mas o povo também quer o que não sabe – disse Gil.
Exige flexibilidade com relação aos cânones e atenção diferenciada com
relação aos movimentos sociais e identitários.
Tudo isso está latente no discurso de Cipriano Barata — basta pensar na tal
aparição —, alguém que lutou bravamente por uma Constituição liberal, pela
unidade do Império do Brasil, pela abolição gradual do trabalho escravo e por
uma industrialização voltada para as reais necessidades, contra o luxo.
Seus ideais deságuam na cadeira n. 8, delineando uma perspectiva. Cipriano
Barata traz para a Academia de Letras da Bahia a largueza de sua utopia de
nação, e todas as consequências dessa visão para o pensamento cultural —
algo muito pouco comentado.
Por exemplo: ao lidar com o desafio de afirmação da nossa identidade
política, esbarra necessariamente no delicado equilíbrio entre apropriações
externas e legitimações nossas.
Traz, em si, a semente daquilo que vai ser classificado mais de um século
depois como ‘reversão antropofágica’, no âmbito do mapeamento conceitual
do jogo entre dependência e autonomia cultural — a transmutação de
passividade em atividade transformadora.
Tupi or not tupi that is the question…
Queremos a revolução Caraíba. Maior que a revolução francesa...
Contra todos os importadores de consciência enlatada.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls,
diz Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago.
Mas, para quem tem olhos de ver, essa atividade transformadora atuou
durante séculos por todos os grotões do País, a partir do agenciamento dos
‘de baixo’, costurando imagens, práticas, símbolos. Uma epopéia de
resistência cultural.
Querem uma ilustração inequívoca desse processo? O carro do Caboclo, a
nossa alegoria —, um carro de guerra português transformado em símbolo de
nossas identidades, e que reúne
lança de madeira apontada para um dragão, cocar, muitas penas,
armadura de ferro em estilo medieval, baionetas,
6
anjinhos barrocos, placas com nomes de heróis,
colares diversos, alforjes, bandeiras,
folhas e mais folhas, bilhetes com pedidos pessoais
entre muitas outras coisas.
Do ponto de vista da formação de intelectuais no Brasil, vale lembrar, com
Eneida Leal Cunha (2006), o costumeiro dilema: saber-se não-europeu,
saber-se não índio, compor a própria ascendência.
Tal qual Cipriano, vestido de algodão da terra com chapéu de palha e ramo
de café na mão, fomos levados a compor nossa identidade. Esse gesto e essa
necessidade varrem uma quantidade enorme de feitos, movimentos, linhas de
força e estilos “brasileiros”; por exemplo:
. “coletando situações do imaginário que desenham uma genealogia da nacionalidade
instituída” — Cunha (2006) —, como é o caso de Viva o Povo Brasileiro, de João
Ubaldo Ribeiro;
. instituindo critérios para a construção de uma música erudita “autenticamente”
brasileira, carregada de células rítmicas de origem africana;
. calibrando todas as forças envolvidas — das harmonias à linguagem — fundindo
tradições europeias e africanas, do chorinho ao lundu, para a plasmação daquilo que
passou a ser identificado como música popular brasileira;
. ou mesmo criando Academias como esta, a partir do espírito de Arlindo Fragoso e
de sua valorização da diferença de opiniões, tomando como referência o modelo
francês, mas representando uma afirmação de autonomia para a construção social
do mérito;
E o mérito é político, projeta a plenos pulmões Boaventura de Souza Santos em sua
última visita à Bahia.
Curiosamente, essas constatações nos levam diretamente ao discurso de
Ary Guimarães, ilustre antecessor nesta cadeira, pontuando sobre o dever de
...pronunciar-se diante das instituições e do momento brasileiro. Do destino
brasileiro, que é também o destino de cada um de nós, que é também o destino de
nossa cultura. De nossa identidade como povo, de nosso papel no grande palco
mundial...
Estão aí praticamente todas as conexões que haviam sido feitas
anteriormente. A visão do horizonte mais amplo — “o nosso destino” —, e,
sobretudo, a vocação de análise crítica que aponta para uma avaliação das
estruturas. Aliás, o próprio Ary Guimarães estabelece o paralelo entre ele e
Cipriano:
7
Os laços que nos aproximam de Cipriano Barata, entretanto, são mais nítidos: o
jornalismo ... e a dedicação à política, ele como ativista, nós como objeto de estudo.
A política e o jornalismo como liames entre as duas vidas. A paixão pela
construção de cartas constitucionais como caminho de redesenho da
sociedade —, algo que aparece claramente em Cipriano...
Sim, eu vos adoro Instituições santas, mesmo para o bem alheio — governo popular
ou representativo, limitação dos poderes do Executivo, liberdade de imprensa,
tributação razoável...— enquanto vós não apareceis na nossa Constituição
Brasileira...
e também em Ary — sua dedicação de vida, sua cátedra — com grande
ênfase em seu discurso de posse, pronunciado em 10 de novembro de 1988,
logo após a Constituinte, ao mesmo tempo, denúncia e alerta:
O resultado foi uma constituição que querem de toda forma, bloquear. Já a disseram
fonte de ingovernabilidade. Querem impedir que vigore para que se mantenha o
‘status quo ante’.
O texto é reflexivo, sem dúvida, mas também apaixonado. Não posso deixar
de observar que mobiliza o leitor, e, nesse sentido, tem lá os seus traços de
ativismo. A constituição como construção inviolável de uma sociedade, e
como caminho de enfrentamento das questões estruturais:
Esse é o quadro a que chegamos: sem dúvida, a pior crise já vivida em toda a vida
do Brasil, fruto de elementos sociais e políticos acumulados, que jamais foram
enfrentados.
Saímos de vinte anos de uma autocracia que se instalou para tentar a saída
permanentemente vencida: a de solucionar a crise estrutural da sociedade e da
economia brasileira sem tocar sua estrutura. Ao inquietante exército de famintos
mandou-se esperar enquanto o bolo crescia.... mas a miséria é que cresceu.
O texto é pungente: solucionar a crise estrutural da sociedade sem tocar sua
estrutura. A sua análise permanece viva, pulsante, corajosa e desafiadora,
denunciando “o imobilismo de nossa estrutura social”. Denunciando que,
“toda e qualquer ditadura amesquinha o País”, que “todo autocrata é, no
fundo, um incompetente”, “todo golpe uma traição”
Amesquinha-nos a constante presença do autoritarismo, a sombra sempre
ameaçadora do apelo à força.
Então, é desse homem e dessa franqueza que estamos falando. Em seu
discurso de recepção o Mestre Luis Henrique Dias Tavares pontua com
precisão exemplar:
8
Faça-se contudo, um aviso. Contido e discreto, V. Exa., não é de polêmicas, mas é
firme, seguro, bravo e corajoso...Ninguém se engane, portanto, com o aparente ar
de distanciamento de V. Exa... Do quanto tem opiniões firmes, do quanto pode ser
corajoso, deu V. Exa. seguidas demonstrações recentemente na admirável série de
estudos dedicados á Assembléia Nacional Constituinte — os melhores que a
imprensa brasileira publicou... Por vezes V. Exa bordejou a temeridade. Temos
assim que há o Ary Guimarães composto, contido, permanentemente discreto, e há o
Ary Guimarães que luta e defende princípios... Este, briga.
Que belo retrato. E para realçá-lo ainda mais, por contraste de estilo e
atmosfera, reverbero aqui a primeira frase deste discurso de Posse:
Há sonhos que não se confessam a si mesmos. São talvez, os mais profundos, os
que revelam melhor quem os sonha... E por isso mesmo, são guardados de tudo.
Principalmente para quem elegeu como norma de vida a suspeita no julgamento
próprio.
Mudamos de cena: agora estamos tratando da constituição interna — e dessa
ponte caprichosa entre olhar interno e externo, entre a coerência e a
fantasia. E eis que o nosso personagem reconhece a profundidade da ‘outra
cena’ — sonhos que não se confessam a si mesmos —, e adota como norma
de vida a suspeita no julgamento próprio, ou seja, a suspensão do ego.
Poucos disseram com tanta elegância da honra de pertencer a esta Casa. A
ele me associo alegremente; humildemente.
Cipriano Barata e Ary Guimarães são muito diferentes e muito parecidos —
talvez devêssemos dizer: diferentes em suas similaridades.
Peço agora ao discernimento sutil de Ary Guimarães que apresente o
fundador dessa cadeira — Luis Anselmo da Fonseca.
“Há uma linha de coerência entre Cipriano e Luis Anselmo”, observa Ary,
ambos “polígrafos, polemistas e defensores de políticas avançadas”.
Pois bem: agora estamos em 1888, e a escravidão foi abolida no Brasil. Os libertos
da Bahia comemoram..... Vejam quem aparece nesse cortejo carregando um
estandarte da Faculdade de Medicina – Luis Anselmo da Fonseca... Mais uma vez o
2 de julho não se conforma em ser meramente alegoria, invade o real do discurso, e
demonstra como é sutil a diferença entre realidade e imaginário.
Luis Anselmo da Fonseca: pardo (hoje afro-descendente), filho natural,
batizado em 1848 (em Jacobina), formado pela Faculdade de Medicina em
9
1875, abolicionista, autor do livro “A Escravidão, o Clero e o Abolicionismo”
publicado em 1887; e professor da Faculdade de Medicina a partir de 1883.
O personagem se apresenta com a epígrafe deste seu famoso livro:Se não tendes o espírito emancipado, se vos não habituastes a amar a verdade e a
justiça, se alimentaes qualquer preconceito — seja de partido, seita, escola, classe,
hierarquia ou de outra espécie, — vos aconselhamos que não leias este livro...
Das opiniões e dos atos de várias pessoas — relativamente aos escravos e à sua
grande causa — nos ocupamos, é certo.
A historiadora Wlamyra de Albuquerque (1999) descreve em detalhe as
comemorações pela abolição em 1888, na cidade de Salvador8. Os libertos
solicitaram os carros dos caboclos para a festa — sendo liberado o carro da
Cabocla, talvez por ser menos impositivo, ressaltando a conciliação:
Os populares saíram da Lapinha, seguiram pelo Terreiro de Jesus, passaram pela
Praça Castro Alves e rumaram até o Forte de S. Pedro Uma semana depois,
organizou-se o retorno do carro à lapinha. Desta vez, os ânimos arrefecidos, o
préstito foi organizado com mais controle das autoridades: à frente estava o
esquadrão da Cavalaria do Exército, o Esquadrão Patriótico Joaquim Nabuco, e só
depois surgia o carro da Cabocla, puxado por libertos. Por fim, desfilou a Legião da
Imprensa seguida pelo carro da Sociedade Abolicionista Libertadora Baiana com o
seu estandarte e o retrato de Joaquim Nabuco.
Além da presença neste cortejo de retorno, Luis Anselmo também integra a
comissão organizadora de todo o evento.
Francisco Peixoto de Magalhães Neto, ilustre sucessor de Luis Anselmo da
Fonseca nesta cadeira, seu aluno na Faculdade de Medicina, deixou sobre ele
um importante ensaio, colocando em destaque suas principais facetas:
médico, professor, filósofo, abolicionista e polemista. Traça um perfil
analítico cuidadoso de seu antecessor, avaliando suas relevantes
contribuições. Alguns títulos de artigos polêmicos:
Resposta a um tiro por detrás do pau
Nulificação de uma afronta
Pouquidade do maior feito do Diretor da Faculdade de Medicina
Bafejo de Vampiro
Todavia, mergulhado na leitura do polpudo livro de Luis Anselmo sobre o
Abolicionismo, devo confessar, que aquilo que mais me impressionou foi o
traço de crítica cultural, tão ferino e decidido que merece registro um pouco
8 Cf. Algazarra nas ruas: comemorações da independência na Bahia (1889-1923), Editora da UNICAMP
10
mais detido. Falando daquilo que considerava atraso deplorável entre nós,
diz Luis Anselmo:
A Bahia construiu o edifício de sua civilisação sobre as bases da instituição servil,
que é a negação da liberdade e da iniciativa, e do ultramontanismo (português) que é
a negação da sciencia e do movimento. (sic)
O autor dedica todo um capítulo à descrição minuciosa da luta pela
implantação do trabalho livre na Bahia, e descreve a resistência do status
quo pressionando para a manutenção do trabalho escravo — focaliza de
forma especial os serviços de catraieiros, carregadores de fardos e
remadores de saveiros, descrevendo a incrível luta para tornar possível o
funcionamento de trabalho livre nesses setores. Uma batalha que foi
disputada palmo a palmo.
Volta à carga:
A Bahia adora o passado, ama o status quo e antipathisa todo movimento...
Aqui para alguém merecer a estima publica é preciso imitar a immobilidade do
fakir...
A Bahia não é mais que um dormitório. Sua população, reclinada sobre o dorso das
collinas, dorme... dorme sempre e... sonha com a escravidão...
Só acorda ou para o carnaval eleitoral, ou para as festas de egreja...
...Hoje nossa instrução está quase aniquilada... Os professores primários muitas
vezes deixam de receber seus ordenados por 12, 18 e 24 meses...
E tudo resume com essa fina análise de cultura política:
...Pior do que este lamentável estado de cousas é a presunção d’aqueles baianos que
consideram sua terra muito adiantada e feliz...
Os bahianos que conhecem estes males attribuem-nos ao governo e do governo
esperão os remedios. É obvio que elles têm no pensamento o governo absoluto e
paternal das tradicções coloniaes.
Convencido do atraso da Bahia com relação às outras Províncias, Luis
Anselmo sonha com uma modernização reparadora, provavelmente em torno
da noção de progresso e ciência. Porém, o vetor de análise da cultura política
permanece atual e vai encontrar ecos no trabalho recente de pesquisadores
de ciência política, tais como Paulo Fábio Dantas Neto e Israel Pinheiro.
E aqui, nesse ponto do percurso, podemos observar o importante
alinhamento entre essas três figuras — Cipriano Barata, Luis Anselmo e Ary
Guimarães. Devotam grande interesse e energia a transformações profundas
11
da nossa sociedade. Percebem, cada um a seu modo, as fragilidades do nosso
edifício social, e sonham com mudanças.
Retorno ao texto de Ary Guimarães. Ele busca regularidades na linha
sucessória da cadeira n. 8. Observa que a vocação pela vida pública é um
traço presente em todos os ocupantes. Vocação exercida não apenas na
“trincheira das assembléias políticas, mas também no magistério responsável,
formando geração de pensadores”. Destaca a condição de mestres
humanistas, tanto em Magalhães Neto como em Adriano Pondé, levando o
humanismo, necessariamente, ao interesse e ao engajamento com a realidade
política do País.
Encontramos Magalhães Neto, em 1934, como representante do estado da
Bahia na Assembleia Nacional Constituinte. No discurso proferido em 26 de
março trata de questões da saúde pública no Brasil, e abre parêntesis para
homenagear seu antecessor na cadeira 8...
Eminente professor de higiene, cujo nome quero citar com saudade, o grande baiano
e eminente patriota doutor Luiz Anselmo da Fonseca escreveu, no limiar mesmo de
seu laboratório: “aprendei a evitar moléstias, curá-las quando não impossível é
sempre mais incerto, difícil e penoso”
Reflete ainda sobre a natureza complexa dos problemas sanitários — de
como se entrelaçam como peças de um mosaico, afetando todas as atividades
da vida comum — passando a exigir um investimento especial de
coordenação.
Como bem registra Adriano Pondé, Magalhães Neto
defendia o conceito de que a Medicina, pela sua própria finalidade, cabe em grande
parte nos domínios das ciências sociais...
Doença e pobreza são elos de uma só cadeia... Saúde e desenvolvimento são
expressões que cada vez mais se encontram associadas.
Essa linha de pensamento, incorporada à sua trajetória, deu origem ao sonho
de criação de uma Escola de Saúde Pública na Bahia, e o coloca como um dos
ideólogos do movimento que resultaria na estruturação da área de medicina
preventiva, e posteriormente, na criação do Instituto de Saúde Coletiva. Mais
uma linha de pensamento transformador que se associa ao histórico da
cadeira 8.
12
Ary Guimarães ressalta,
(Magalhães Neto) era um intelectual e homem cuja sensatez, sabedoria e equilíbrio
nas decisões o transformaram em oráculo... Lembram-me as sessões do Conselho
Departamental onde todos aguardavam sua palavra de experiência...
E Adriano Pondé registra outro conjunto de qualidades:
.erudito e freqüentador dos clássicos latinos conhecendo o grego bastante para
apreciar, no original, textos de Homero e Xenofonte
.escritor que valoriza a forma literária – límpida e elegante
.orador de amplos recursos; epigramista;
.comprometido com a defesa das nossas instituições culturais, a Academia, e muito
especialmente, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, que presidiu durante
muitos anos...
Porém, de todas as qualidades comentadas, a que Adriano prefere ressaltar
como a mais fundamental é a generosidade; que inclusive se traduzia em um
esforço permanente para encontrar a justa medida na árdua tarefa do
julgamento.
Quanto a Adriano Pondé, lendo o que nos deixou escrito, e especialmente
os depoimentos de quantos o conheceram sobre sua natureza humana e
dedicada, sobre seu grande conhecimento médico, percebemos que —
independentemente de significativas contribuições institucionais, tais como a
criação da Escola de Nutrição, ou o desempenho como Reitor da UFBA após
a morte de Miguel Calmon, entre tantas outras —, sua melhor trincheira
estava na esfera do indivíduo.
Digo isso com a consciência de que a esfera do indivíduo é talvez uma das
que mais exijam desprendimento e doação — pois, para permitir o
afloramento da individualidade, é preciso construir qualidades de recepção,
espaços abertos e livres para a representação do outro.
Não seria justamente essa a verdadeira arte do clínico? Impressiona, no
discurso do próprio Adriano, a atenção dedicada ao tema ‘A medicina não se
desumanizará’: a técnica não é uma finalidade, é o instrumento para que se
alcance um resultado humano, e recorre ao mestre Amoroso Lima:
A libertação do homem não está nas coisas. Está em si próprio... o progresso da
humanidade não depende da perfeição de suas máquinas, mas da perfeição daqueles
que as souberem manejar,
13
Em suma, depende da virtude do espírito...
Nada mais natural, portanto, que uma mente cultivada como a de Adriano
Pondé caminhasse na direção da obra de Proust, um virtuose na literatura,
justamente pela via da construção complexa da individualidade, da vivência
de ser sujeito...
Para marcar a passagem do seu centenário, em 2001, alguns de seus ex-
alunos se organizaram e produziram um belíssimo documento, com
depoimentos que projetam uma coleção impressionante de atitudes, de
instantâneos, dedicando ao mestre o mesmo cuidado que dele receberam.
Registro alguns desses instantâneos:
Fidalgo no trato com seus assistentes, seus discípulos e de modo muito especial,
com seus pacientes (Assis Fernandes)
... dou o meu testemunho desse desempenho, diante do seu comportamento na
enfermidade de minha mãe, quando presenciei as suas lágrimas de emoção no seu
falecimento precoce, naquela ocasião eu era um adolescente de quinze anos que
nunca tinha visto um médico chorar. A partir daí passei a amar minha profissão...
(Antonio Carlos Peçanha Martins)
Sabia falar com seus pacientes e familiares. Tinha paciência e muito jeito, sugerindo
e valorizando o ambiente harmônico como peça fundamental na cura...
(Anita Guiomar Franco Teixeira)
Mas a esfera do indivíduo é também a esfera da construção de medidas
objetivas. Para Gilson Soares Feitosa — falando como Presidente da
Sociedade Brasileira de Cardiologia —, Adriano Ponde foi um visionário que
anteviu a mudança do quadro nosológico com ênfase nas doenças infecciosas
para a verdadeira epidemia de doenças cardiovasculares degenerativas que
se seguiu — trabalhando por um enfrentamento organizado do problema e
merecendo lugar de destaque na Cardiologia nacional.
Mais uma vez — a responsabilidade com a dimensão coletiva.
E agora podemos tratar de uma das quadras mais sutis do discurso de Ary
Guimarães. Sutileza que nada sacrifica em termos de franqueza. Partindo da
atuação de cada ocupante da cadeira n. 8, ele passa a refletir sobre o papel
político da Academia, como um todo. E observa, com apuro:
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Há de entender-se que uma instituição que exerce e que pretende exercer presença
cultural é, inerentemente, uma casa política. Não só por praticar o poder que vem da
cultura
(apenas essa expressão mereceria um longo parêntesis, e a ela retornaremos)
mas também porque, fazendo-se de um punhado de homens distintos, que se
tenham destacado na sociedade, não pode descurar-se de que seu procedimento,
ainda que mais afastado pareça do jogo do poder e das ideologias, define-se nele.
E prossegue:Digo que devemos estar presentes em cada grande momento, em cada esquina de
nosso destino, pois em cada uma dessas circunstâncias a Pátria nos exige a
participação. Afinal, ela, a Pátria, não é feita senão do conjunto de todos os
cidadãos, conjunto que não prescinde daqueles que são julgados notáveis na
sociedade. Pelo contrário: deles, principalmente, se deve servir.
Quantas coisas importantes estão sendo ditas sob essa aparência de
simplicidade! Várias questões e possíveis encaminhamentos estão aflorando
do texto. Desde aquela formulação sintética — o poder que vem da cultura
—, sobre a qual todo um discurso poderia ser desenvolvido, até a colocação
do problema da nossa missão.
Friso bem: da nossa missão. Ary Guimarães não particulariza essa missão —
como se houvesse uma missão específica da Academia, distinta da de todos
os cidadãos. Ele raciocina a partir da totalidade
Devemos estar presentes em cada grande momento, em cada esquina de nosso
destino
Nem precisaria comentar sobre a sutileza da imaginação de ‘destinos com
esquinas’, é uma construção poética, mas absolutamente objetiva, precisa, as
esquinas são os grandes momentos. E prosseguindo:
A Pátria não é feita senão do conjunto de todos os cidadãos, conjunto que não
prescinde daqueles que são julgados notáveis na sociedade.
De início esse jogo precioso com as negações — “não é feita senão do
conjunto de todos os cidadãos”. Há aí um aviso claro aos navegantes:
ninguém ouse solapar essa totalidade, excluindo quem quer que seja.
E mais: a notabilidade dos notáveis só pode ser entendida como uma função
perante o todo da sociedade, e não como celebração de privilégios ou
idiossincrasias. Acho que o recado está dado, com todo estilo, franqueza e
simplicidade. Viva Ary Guimarães por tal capacidade crítica!
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Pois como disse Gregório:
O todo sem a parte não é todo / A parte sem o todo não é parte,
mas se a parte o faz todo, sendo parte, / Não se diga, que é parte, sendo todo.
(Gregório de Mattos, soneto)
Nasceu Ary Guimarães em 24 de agosto de 1933, aqui em Salvador. Seus pais:
Daniel Guimarães e Alzira Guimarães. Sua vida esteve repleta de feitos e funções de
grande dignidade. Bacharel em Direito pela UFBA, em 1956. Professor Titular da
UFBA, lecionou Ciência Política e Direito Constitucional na Faculdade de Filosofia e
na Faculdade de Direito. Professor da Pós-Graduação em Direito Administrativo.
Superintendente da Federação das Indústrias do Estado da Bahia entre 1967 e 1970.
Diretor do SPHAN entre 1980 e 1986. Jornalista profissional, chegando a editor do
jornal A Tarde. Autor dos Livros “Um sistema para o desenvolvimento”, publicado
pela UFBA em 1966 e “As eleições baianas de 1970”, que foi tese do concurso para
Titular, em 1972.
O mais importante: as características do seu discurso foram as mesmas da
sua vida — inteligência sutil, postura discreta e, ao mesmo tempo
radicalmente corajosa, quando necessário. Mais uma vez recorro ao Mestre
Luis Henrique, que cunha uma expressão inesquecível: “O Ari é correto”. E
vai adiante, lembrando que o estudo da saúde política, o esforço por uma
educação política — paciente, correta, diária — constitui o trabalho mais
urgente e necessário no Brasil dos nossos dias. Portanto, além de correto, e
justamente por isso, Ary Guimarães permanece necessário.
Retomo a noção que ele apresentou em discurso sobre a vinculação entre
as partes e o todo, entre os cidadãos e os destinos da sociedade brasileira.
Digo que esta talvez seja a melhor utopia do nosso tempo — uma que
ressalto confiante — embora todos os sinais apontem em direção contrária,
Estamos vivendo a época onde o indivíduo-celebridade é que faz estrutura —
não digo que faz sozinho, há toda uma indústria trabalhando nessa direção,
mas sem ele fica inoperante.
Quem faz a música? Cada vez menos pensamos em coletivos e mais no
indivíduo celebridade. Muitas vezes o coletivo é convocado para legitimar a
celebridade, e a partir daí permanece mais ou menos inativo. Quem faz a
instituição? A ciência? O partido? A moda? O consumo? Será que faz a
ética...?
Mas, não podemos simplesmente sair por aí gritando ‘abaixo o indivíduo!’,
muito menos num discurso de posse, até porque, afinal de contas, houve
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muita luta, muita revolução francesa para permitir a continuidade do
processo de maturação da subjetividade, das subjetividades...
Muita reviravolta para permitir a complexidade com a qual tratamos a
questão do sujeito... Seus tempos, suas cenas...
Encaminhei o discurso na direção de método, música, retórica e utopia. Os
dois primeiros — método e música — foram diretamente derivados da
decisão de trabalhar com a polifonia das vozes e dos discursos. A retórica,
entendida “como possibilidade da eficácia da argumentação” — tal como nos
diz João Carlos Salles —, foi a etapa mais trabalhosa, exigindo a montagem
desse mosaico de falas, com encaixes cuidadosamente calibrados.
Faltava a utopia. Qual não foi a felicidade de encontrá-la no próprio discurso
de Ary Guimarães. Sabendo, desde sempre, que as utopias se alinham com a
teoria crítica, e se distinguem da ciência positiva justamente pela decisão de
não reduzirem a realidade ao que existe, Ou seja, pela decisão de tratar a
realidade como campo aberto de possibilidades...
Precisamos aprender novas formas de responder a esse desafio do equilíbrio
entre a exuberância do indivíduo e das subjetividades e a construção de
autonomia do coletivo, a construção de uma dinâmica do coletivo, que muitas
vezes recebe o apelido de democratização.
Mas o termo acaba sendo escorregadio, ao sugerir que há uma forma padrão
de fazer isso; como se a dinâmica dos coletivos não exigisse soluções
específicas a cada caso, e em cada conjuntura. Estamos diante de um
paradoxo: nem todas as ‘democratizações’ envolvem uma dinâmica do
coletivo. Nem todas interessam.
Agora uma tarefa complexa. O desafio de uma breve auto-apresentação.
Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo... (CDA)
Agarro-me ao princípio vislumbrado por Ary Guimarães e vou registrando
abaixo o conjunto de situações de pertencimento que me constituíram como
gente. O fato de ter pertencido a essas totalidades é que deu no que sou.
Pode até parecer estranho, mais penso numa analogia estreita com o
batuque... Sei que pertenço aos batuques.
Onde os houver no mundo, lá estarei,
mesmo que sejam batuques renascentistas
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polifonias renascentistas.
Eles, os batuques, representam de forma exuberante essa confluência mágica
entre um e todos; são peles vibrantes, são formas distintas de dividir e de
compartilhar o tempo e o contratempo...; De instituir ordem e subversão.
Não seria difícil imaginar meu núcleo familiar de origem como uma pequena
batucada: Antonio Batista Lima e Dinorá Costa Lima, Dona Amélia Duarte (uma
segunda mãe), João Augusto e, este que vos fala — tenho certeza que há uma
estrela onde habitam esses personagens que fui e que fomos...
E na outra ponta, a família construída, minha mulher Ana Margarida, minha
companheira de 36 anos, minha alma gêmea — parceira de todas as iniciativas
—, e nossos filhos Cláudio e Maurício, a quem amamos com todas as forças,
e que amam a música com igual intensidade;
cubro-os todos com um manto de carinho e agradecimento,
e estendo esses votos ao círculo mais amplo da família Costa, família Lima,
Cerqueira Lima, Isensee, Horschutz, Nogueira, Walter e a todos os preciosos
amigos que foram sendo aconchegados ao longo da vida, em sua trama...
Também agradeço a todos os ambientes que me acolheram no processo de
formação. A todos os professores, artistas e lideranças que me inspiraram na
direção do trabalho e do aperfeiçoamento:
desde a Escola Getúlio Vargas, passando pelo
ICEIA - Instituto Central Isaías Alves,
o Colégio de Aplicação da UFBA,
os Seminários de Música (a partir de 1969),
a Faculdade de Medicina da UFBA, durante um longo ano,
a Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA,
a Universidade de Illinois em Champaign-Urbana,
até a Faculdade de Educação da UFBA
e a Universidade de São Paulo, onde desenvolvi teses de doutoramento.
Mas também devo assinalar alguns outros ambientes ou ciclos de
aprendizagem:
. a psicanálise como descoberta radical; a psicanálise que pratico como leitor
assíduo e analisando;
. a visão amorosa da religião, tal como vi em Dom Timóteo; e tal como vi
recentemente em Alfredo Dórea;
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. o horizonte idealizado da transformação social e da construção de um Brasil
sem a tragédia da exclusão e da desigualdade;
. a rede viva de todos os amigos, que mencionei antes, e que aqui sublinho
como uma mola do querer viver, do querer seguir em frente...
. todas as músicas que escutei, e especialmente as que me deslumbraram...
Devo também mencionar os ambientes onde desenvolvi atividade
profissional:
a própria Escola de Música da UFBA, meu ninho de referência,
e dentro dela, o Grupo de Compositores da Bahia, ou melhor, o movimento da
composição — do Falamassa ao OCA e ORCA – Oficinas de composição
Agora.
agradeço especialmente aos meus estudantes, com os quais, mais aprendi
que ensinei; a todos os parceiros de idéias e ideais...
a Reitoria da UFBA, onde exerci a função de Pró-Reitor de Extensão entre
1996 e 2002; e aprendi que a trama do conhecimento é bem mais ampla que
a universidade...
a Fundação Gregório de Mattos, e por consequência, todos os cantos
culturais da cidade de Salvador... Desde as instituições mais tradicionais
como o Instituto Geográfico e Histórica da Bahia, liderado pelo espírito de
luta de Consuelo Pondé de Senna, até as agremiações culturais de bairro, as
academias de capoeira, o mundo do candomblé, nosso tesouro de ética e de
estética, a quem saúdo através de um amigo, o venerável Esmeraldo
Emetério do Tumba Junsara;
o diálogo produtivo, criativo, a grande parceria com o Ministério da Cultura
do Governo Lula — de Juca e de Gil —, e toda a sua plataforma de
estimulação das dinâmicas do coletivo através políticas públicas de cultura.
Todos esses âmbitos dariam origem a uma impressionante ciranda de nomes,
que me constituíram e me constituem — algo impossível de lidar na presente
situação:
E, então, desemboco numa pergunta fundamental: O que ficou de tudo isso?
1.
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O aprendizado de que a questão ética é o campo prioritário;
Que as pessoas são pessoas; e que nos cabe observá-las e admirá-las em
sua performance de gente... Ser testemunhas, como disse Drummond...
Creio ter adquirido, ao longo dos anos, uma consciência cada vez maior
desse princípio sagrado, e até mesmo certa experiência.
Valorizar o Outro: trata-se da ferramenta mais importante para a gestão, e
especialmente a gestão da cultura... Trata-se também, da mais importante
ferramenta pedagógica...
Por exemplo: não adianta querer ensinar composição às pessoas; ensinar a
criar – que ultraje... Só aprendem a compor quando se sentem compositores,
ou seja, quando há uma estrutura relacional que garante essa ousadia; esse é
o papel inalienável do professor.
2.
A ética como justiça, como igualdade de oportunidades, como reparação
A ética de protestar e de ser contra, de imaginar novos mundos, com novos
atores e autores, novas artes, novas vidas...
a ética da equidade — a equidade da ética
3.
O valor profundamente transformador das idéias, dos desejos, e dos sonhos;
as idéias são entidades perigosas, elas ameaçam a ordem vigente,
elas podem durar segundos ou séculos; elas se infiltram, elas vicejam, elas
retornam em mil disfarces...
e nessa conexão, o valor do trabalho, do rigor, da disciplina, da limitação de
liberdades para construir mais liberdade...
4.
O papel da cultura como refundadora da nossa ética de sociedade, de
coletividade. A cultura como repositório gentil de uma miríade de
pertencimentos possíveis,
a cultura como esquina essencial do destino da nação brasileira
como “proposição corretiva de uma brasilidade a ser conquistada”
O civismo é uma questão de futuro e não de passado.
A cultura como convocação a todos,
como oportunidade de valorizar e ser valorizado,
como esperança de transposição de antigas fronteiras entre letrados e não
letrados, entre eruditos e populares, modernos, românticos ou pós-
modernos, bregas e chiques, globais e locais
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E a Academia como “lugar de serviço à sociedade”, tal como nos lembra o
Mestre Edivaldo Boaventura, enfrentando o desafio de ampliar a consciência
desse processo, fertilizando-o, e fertilizando-se nele.
5.
A importância da territorialização, do arraigamento, das raízes,
e, ao mesmo tempo, do impulso contrário, a desterritorialização, a abstração
radical, a construção de cenas desgarradas de tudo, ou potencialmente
universais.
E, sobretudo, o diálogo travesso entre esses dois processos — cada um
puxando arbitrariamente para seu lado, e nós no meio.
6.
Com isso, chego talvez ao cerne do meu estilo — alguns dizem que é
exuberante, eu digo que é derivado da estética do batuque. Mas não custa
lembrar que o estilo é uma ambição jovem. Na maturidade, sua principal
função é o rodopio, desconstruir tudo e enganar suavemente o ouvinte. Mas
eis que, rodopio sendo, acaba chegando bem perto de onde partiu — quem
instituiu o gozo, também instituiu a repetição.
Tudo que fiz em ensino e em gestão, fiz pelo prazer do compor — e achei
que tudo era farinha do mesmo saco. Para me entender direito, teria que
cruzar esses campos de dados: o ensino, a gestão, a composição. Muitas
vezes, o fio condutor surge do lugar menos provável... Volto a Debussy e a
Ernst Widmer: aprender pela desconstrução, usar os trilhos como caminho de
sublevação heterodoxa...
Abri as portas do mundo e esbravejei...(Ildásio Tavares)
Creio ter cumprido o meu dever de recipiendário — ao evocar os discursos
daqueles que me antecederam, buscando sublinhar as linhas de força mais
adequadas para a tecelagem desta noite, os ideais que impressionam e
comovem, os valores.
Também planto aqui, nesse momento conclusivo, um ramo de agradecimento
sincero e profundo pela generosidade do gesto de minha acolhida, e a tantos
amigos e companheiros que em mim confiaram, declaro mais uma vez minha
fidelidade ao espírito de luta que a Academia ilumina.
Fecha-te Discurso!
Que tudo recolhas e guardes na memória!
Passaste como batucada de sentidos e sonoridades,
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e agora, simplesmente,
cala-te.
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