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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DISCURSO DE ÓDIO ANTIFEMINISTA EM PÁGINAS DO
FACEBOOK E AS CONTRANARRATIVAS FEMINISTAS
Júlia C. Versiani dos Anjos1
Resumo: A World Wide Web surgiu acompanhada de uma euforia pela crença de que seria
um campo para circulação de ideias fora da mídia tradicional. Nas redes sociais da internet,
impera a criatividade dos usuários com seus memes e florescem novas maneiras de engajar-se
politicamente, entretanto ali também se propaga um discurso hegemônico e perpetuador do
status quo – e não por parte da grande mídia, mas sim dos próprios usuários. Estes não se
encontram mais em situação passiva, tornando-se, também, produtores de conteúdo e até
mesmo juízes das ações alheias.
Examinando-se tal cenário sob o prisma dos afetos e da questão de gênero, percebeu-se que
existe uma rivalidade nas redes sociais: de um lado, estão falas conservadoras, que disfarçam
seu cunho de ressentimento pelos movimentos sociais a partir do uso estratégico do humor;
em outro sentido, existem alocuções que buscam contribuir para o empoderamento feminino
na perspectiva do feminismo. Assim, o presente trabalho propõe uma reflexão acerca da
disputa entre os discursos de ódio antifeministas e as contranarrativas feministas. A análise de
conteúdo se concentrará nas publicações e interações das páginas antifeministas "Moça, não
sou obrigado a ser feminista" e "Loira opressora" e das feministas "Empodere duas mulheres"
e "Feminismo sem demagogia", devido a seu alto número de curtidas e grande volume de
publicações, bem como pela possibilidade de fornecer visões diferentes sobre cada um de seus
movimentos.
Palavras-chave: Redes sociais, Feminismo, Discurso de ódio, Ressentimento, Memes.
I. Introdução
A primeira mulher que existiu: Pandora, detentora de todos os dons. A lenda da
mitologia grega conta que Pandora foi criada à semelhança de Afrodite, a deusa da beleza, e
ganhou de cada olimpiano uma dádiva.2 Em seguida, foi enviada à Terra para casar-se com
um homem e recebeu, ainda, um curioso presente de núpcias dos deuses: uma bela caixa
dourada, a qual nunca deveria abrir. Pandora tentou resistir, mas, pouco tempo depois, tomada
por imensa curiosidade, acabou descumprindo o prometido. De dentro da caixa saíram todas
as calamidades que até hoje assombram a humanidade.
O mito de Pandora se junta à já conhecida história bíblica de Eva como mais uma
maneira que os povos antigos utilizaram para descrever a Queda do Homem. Nos dois casos,
um ponto em comum: as mulheres – e a fraqueza, leviandade e curiosidade excessiva
atribuídas a elas – são as responsáveis por todos os males humanos. Esta foi uma das bases
para a sustentação, durante séculos, de um sistema de opressão às mulheres. Como defende
1 Mestranda em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro, Brasil. E-
mail: [email protected]. 2 Para mais informações, v., por todos, EVSLIN, 2004.
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Jack Holland, as sociedades que criaram Pandora e Eva foram o berço da misoginia, “o
preconceito mais antigo de todos” (HOLLAND, 2006, p. 14, tradução livre). Entretanto, o
ponto nevrálgico para a percepção de sua gravidade não é exatamente sua antiguidade, e sim
sua notável resiliência diante das mais diversas mudanças na sociedade, isto é, sua capacidade
de sobreviver, de uma forma ou de outra, durante séculos.
Hoje, não se queimam mais mulheres acusadas de bruxaria, mas isso não quer dizer
que a misoginia esteja menos virulenta ou pujante. Discursos que colocam a mulher em uma
posição subordinada e legitimam a violência contra elas continuam existindo hodiernamente.
Afinal, para que consiga se manter durante tanto tempo, é natural que os mecanismos pelos
quais a misoginia se manifesta se atualizem e ganhem novas roupagens.
É neste contexto em que podemos situar o discurso de ódio antifeminista nas redes
sociais: uma atualização online de um preconceito contra mulheres que se manifesta desde
tempos remotos. A grande particularidade dos tempos atuais é a tentativa de fazer tudo
parecer uma brincadeira ou mera troca de opiniões inofensivas, o que seria natural no
ambiente online. Contudo, é importante reconhecer que não se trata de um problema
específico da internet, e sim de uma questão social mais ampla. Emma Jane (2014) apresenta
o conceito de gendered e-bile, que pode ser traduzido como proliferação de discursos hostis e
misóginos na Internet, e defende que, apesar de o meio online ser novo, o fenômeno do e-bile
possui raízes numa tradição discursiva muito mais antiga: tais discursos são novas
articulações da misoginia, da crença da inferioridade das mulheres. O alastramento nas redes
sociais de piadas, publicações, comentários, ameaças e outros tipos de conteúdo que denigrem
mulheres são sintomáticos para revelar a maneira incansável como a retórica da misoginia e
violência de gênero continua crescente na sociedade atual. São essas as engrenagens
observadas aqui.
O objeto empírico de investigação são as páginas do Facebook “Moça, não sou
obrigada a ser feminista” e “Loira Opressora”. Através de um levantamento quantitativo de
publicações, seguido de análise qualitativa, foi possível identificar diversas formas pelas quais
as páginas fazem uso de discurso misógino com o objetivo de desacreditar o movimento
feminista. Este artigo mantém o foco em duas delas, que estão diretamente relacionadas a
questões emocionais e afetivas: primeiro, a crença de que feministas são nojentas e abjetas;
segundo, a noção de que feministas são descontroladas emocionalmente. A seguir, serão
apresentados alguns exemplos de publicações das páginas em questão que ilustram a forma
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como tais ideias são difundidas, detalhando-se, ainda, o modo como cada uma dessas noções
está enraizada em preconceitos historicamente associados a mulheres e, hoje, se manifesta de
maneira prejudicial à imagem das mulheres feministas, especificamente. Na parte final do
artigo, serão abordadas, ainda, as páginas feministas "Empodere duas mulheres" e
"Feminismo sem demagogia", com o objetivo de identificar se e como elas reagem aos
ataques e acusações antifeministas.
A página “Moça, não sou obrigada a ser feminista” foi escolhida para análise por ser a
principal página antifeminista no Facebook. Suas publicações são feitas por diversos
colaboradores, e alternam notícias, textos e memes contra o feminismo3. Já a “Loira
opressora” é uma página pessoal de uma militante “de direita”4. Os temas abordados incluem
defesa a políticos conservadores como Jair Bolsonaro, críticas ao movimento comunista e
uma grande parte das publicações é composta por piadas e memes para ridicularizar o
feminismo, o que destaca a página perante a primeira analisada. A página “Feminismo sem
Demagogia” se identifica com a corrente do feminismo marxista, defendendo-a perante outras
vertentes do movimento; ademais, suas colaboradoras não veem com maus olhos a
participação de homens5. Por outro lado, a página “Empodere Duas Mulheres” surgiu com a
proposta de explicar o feminismo para mulheres especificamente e, apesar de abordar de
maneira eventual pautas à esquerda do espectro político, não encontra-se diretamente
relacionada ao feminismo marxista nem a outra linha específica do feminismo6. As três
primeiras páginas mencionadas já foram retiradas do ar pelo Facebook após reclamações de
usuários, porém sempre retornam à atividade, produzindo conteúdo em grande quantidade.
II.O discurso de ódio baseado no nojo
A imagem abaixo apresenta uma seleção de publicações que demonstram a tentativa
das páginas antifeministas de apontar feministas como seres abjetos. Na primeira publicação,
pode-se observar um personagem se preparando para uma luta, e seu oponente é um ser de
aspecto monstruoso, corpulento, que apresenta pelos desgrenhados, presas afiadas e pele
3 A página nome “Moça, não sou obrigada a ser feminista" pode ser acessada em: <
https://www.facebook.com/forafeminismo6/>. 4 A página “Loira Opressora” atualmente pode ser acessada no endereço: <
https://www.facebook.com/loiraopressora2/>. 5 O conteúdo da página “Feminismo sem Demagogia pode ser acessado em:
<https://www.facebook.com/FeminismoSemDemagogiaMarxistaOriginal/>. 6 A página “Empodere duas mulheres” pode ser acessada em:
<https://www.facebook.com/empodereduasmulheres/>.
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esverdeada. O personagem, então, exclama “uma feminista!”. No segundo post, há uma foto
com o título “calça empoderada”, em que se vê uma mulher vestindo uma calça branca com
uma mancha de sangue na região da virilha. Na terceira publicação, é apresentada uma fala de
uma suposta mulher feminista em que ela afirma ter utilizado sangue menstrual para pintar
uma parede de sua casa e assim “empoderá-la”.
Figura 1: Exemplos de publicações retiradas da página “Moça, não sou obrigada a ser feminista” envolvendo
nojo em relação às feministas.
Deste modo, percebe-se que as feministas são representadas como seres de aparência
literalmente monstruosa e desleixadas com a higiene pessoal. Ademais, o fato de certos
grupos feministas procurarem problematizar o tabu em torno do sangue menstrual é retratado
como veneração exagerada e doentia à menstruação. Por que é interessante para o movimento
antifeminista propagar estas ideias? Por que, diante de outras críticas que poderiam ser feitas
ao movimento das mulheres, destaca-se a necessidade de retratar feministas como sujas e
demonstrar nojo em relação a elas?
Para iniciar uma tentativa de resposta a estas perguntas, vale lembrar o papel da
dualidade entre “pureza” e “poluição” na cultura para organizar a realidade social e impor
ordem e significado a um mundo de outra forma caótico (DOUGLAS, 1966). A metáfora da
impureza adquire um significado relevante uma vez que objetos designados como sujos
também costumam ser vistos como perigosos. Por exemplo, quando um alimento cai no chão,
não é aconselhável ingeri-lo, por acreditar-se que ele foi contaminado pela impureza presente
no solo e irá fazer mal ao organismo de quem consumi-lo. Sendo assim, quando se qualifica
alguém como sujo, não se diz apenas que esta pessoa apresenta desleixo diante da higiene, e
sim muito mais que isso: está implicado que este alguém pode contaminar e causar mal aos
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demais. A poluição torna-se critério para exclusão de uma pessoa ou grupo de uma
determinada comunidade – forma-se uma espécie de barreira simbólica, em que os que
pertencem à comunidade merecem certos direitos e privilégios, e os contaminados devem
ficar afastados (FISHER, 2011).
Desta maneira, percebe-se que a ideia de poluição e sujeira está profundamente
associada a valores morais (ou falta deles), enquanto as pessoas limpas e puras teriam,
também, superioridade moral. Nesse sentido, Wheatley e Haidt (2005) realizaram um
experimento para averiguar o quanto o nojo é usado como base para julgamentos morais e
concluíram que, quanto maior o sentimento de asco, mais severos se tornam estes
julgamentos. É possível constatar, assim, que a moralidade nem sempre está completamente
conectada à racionalidade pura – ela pode estar também muito ligada a emoções e reações
corporais. Em outras palavras, o nojo, comumente visto como um mecanismo biológico de
rejeição a itens potencialmente perigosos (alimentos estragados ou envenenados, por
exemplo), se destaca como um modo de reação a comportamentos que violam as normas
socialmente aceitas. Compreendida a relação entre nojo e moralidade, resta explorar a forma
como o nojo se associa ao ódio e que consequências isto pode trazer.
Sternberg (2003) propõe uma estrutura tripartite para o ódio, que inclui paixão
(impulsionada por intensa emoção de raiva ou medo), negação de intimidade (cuja emoção
correspondente é nojo) e comprometimento (relacionado à diminuição do outro devido ao
desprezo). Estes três componentes podem combinar-se entre si de diferentes maneiras,
originando diversos tipos de ódio. Segundo esta visão, o tipo de ódio que envolve
majoritariamente o nojo seria um cool hate7, que, combinado ao chamado hot hate das
paixões de raiva ou medo, poderia originar resultados mais explicitamente violentos.
Entretanto, Kathleen Taylor (2007) argumenta que, ao se analisar relatos de perpetradores do
Holocausto, é comum se deparar com uma falta de paixão em suas descrições. Assim,
segundo a autora, o nojo ganha proeminência não como um ódio frio ou brando, mas sim
como um grande motivador para geração e manutenção de ódio e violência, que pode,
inclusive, respaldar o extermínio. Isso porque o ódio permeado pelo nojo parte de uma
hipótese da contaminação social: o grupo alvo é visto como portador de poluição, um perigo à
pureza, logo extirpá-lo seria “limpar”, “curar” e “purificar” a sociedade. Nas palavras da
7 Apesar de muitas vezes ser traduzido como “frio”, o significado do termo cool, segundo o dicionário Oxford
(1999), está mais próximo de “fresco”, isto é, uma temperatura amena, que não chega a ser desagradável como o
frio intenso. A palavra também pode ser usada para indicar indiferença e calma.
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autora: “Seres humanos classificados como nojentos são vistos menos como agentes sociais e
mais como perigos naturais, como infecções” (TAYLOR, 2007, p. 602, tradução livre).
Após as reflexões anteriores, percebe-se que a tentativa de apontar feministas como
seres abjetos é mais do que apenas um gracejo ou opinião exagerada. A ideia de sujeira e
poluição está profundamente relacionada à falta e corrupção de valores morais; ademais, o
nojo é um dos pilares para geração e manutenção do ódio. Tais pontos de vista levam a
sociedade a enxergar o grupo em questão como um antígeno que pode contaminar a todos,
portanto, deve ser expurgado. Não é coincidência que, na foto de capa utilizada para ilustrar a
página “Moça, não sou obrigada a ser feminista”, se lê: “feminismo é câncer”. Apesar de não
ser contagioso, o câncer é uma doença sem cura e, em muitos casos, avassaladora. Ao ser
emparelhado com esta condição, o feminismo é caracterizado como perigoso e traiçoeiro, um
mal que avança predatoriamente pelo tecido social. Aqueles que querem curar o câncer
dificilmente serão vistos de forma negativa – possivelmente, serão até mesmo louvados.
Consequentemente, comparadas a uma doença como o câncer, as feministas perdem sua
humanidade, visto que, levado ao extremo, este tipo de discurso torna sua eliminação uma
necessidade e um ato de heroísmo.
III. Inveja, ressentimento e descontrole
Figura 2: Publicações das páginas “Moça, não sou obrigada a ser feminista” e “Loira Opressora” em torno do
tema do ressentimento e descontrole de emoções.
A imagem acima apresenta uma seleção de publicações que demonstram a intenção
das páginas antifeministas de caracterizar as militantes pelos direitos das mulheres como
descontroladas emocionalmente, ressentidas e mal-amadas. Na primeira publicação, é
realizada uma espécie de paródia da abertura do desenho animado Meninas Superpoderosas,
em que se mostra a origem das personagens-título. Aqui, os ingredientes “açúcar, tempero,
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tudo o que há de bom e elemento X” são substituídos por “textão, maconha e aborto, falta de
macho e feiura excessiva” para “explicar” a origem das feministas.
Já o segundo post faz referência ao momento em que Marcela Temer apareceu em
público pela primeira vez na função de primeira-dama, e sua beleza foi ressaltada por diversos
veículos da imprensa tradicional. O texto da imagem (“E assim surge o feminismo”) chama
atenção para uma mulher que se encontra ao fundo da foto e dirige um olhar de insatisfação
na direção da primeira-dama. É interessante notar que, nos comentários desta publicação, os
próprios leitores manifestaram desconforto ao ver a página se utilizando da imagem de uma
mulher desconhecida, que nada tinha a ver com o tema, para fazer seu humor. A
administradora respondeu à crítica taxando-a como “mimimi”.
A terceira publicação apresentada mostra um vídeo em que uma mulher confronta um
homem na rua, acusando-o de assédio, enquanto ele nega tudo. Na legenda, os
administradores da página ressaltam que um simples “boa noite” teria sido o fato que levou à
“explosão” da mulher, e claramente se colocam em defesa do homem, inclusive chamando a
moça em questão de “feminazi”.
A quarta imagem também é uma referência a um fato que ganhou repercussão na
mídia: um grupo de formandos em medicina decidiu posar para suas fotos de formatura com
as calças abaixadas e fazendo gesto alusivo à genitália feminina. Um dos alunos publicou a
foto em suas redes sociais com a legenda “#PintosNervosos”, o que gerou revolta entre
internautas de todo o país e fez com que o caso fosse denunciado pelo Sindicato os Médicos
do Espírito Santo (Simes) ao Conselho Regional de Medicina (CRM-ES). No ponto de vista
da página analisada, contudo, a foto trata-se apenas de uma “brincadeira” que foi deturpada
pelas feministas, caracterizadas aqui como “satã”, “satanás”, “paranoicas” e “psicopatas”.
Estes posts foram selecionados pois possuem uma linha em comum: a defesa da noção
de que feministas são ressentidas e descontroladas. Em outras palavras: mulheres não se
tornariam feministas por quaisquer outros motivos que não sejam ressentimento, inveja de
outras mulheres ou descontrole de emoções. De acordo com este viés, aquelas que reclamam
de atitudes sexistas não o fazem porque elas podem, de fato, estar equivocadas, e sim porque
são paranoicas e não gostam de homens. Pode-se ressaltar, entretanto, que tais ideias sobre
feministas não estão distantes do que se pensa historicamente sobre mulheres em geral.
Ao deparar-se com termos do universo semântico da psiquiatria (paranoicas,
psicopatas, etc), torna-se interessante uma referência aos estudos de Freud sobre histeria. Em
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seus escritos, o pai da psicanálise atribui às mulheres um complexo de castração, isto é, elas
sentem falta do pênis que não possuem e, assim, acreditam estar em desvantagem. Segundo
ele, isto invariavelmente deixará marcas profundas no caráter feminino: um prejuízo na
formação do superego e a predominância da inveja e do ciúme na vida mental das mulheres
(FREUD, 1996). Ou seja, devido ao complexo de castração, as mulheres seriam naturalmente
tendenciosas a sentir inveja, e seu fraco superego faz com que não consigam controlar suas
emoções propriamente, como logram os homens. Em seu característico tom bem-humorado de
escrita, Freud chega a comentar: “as feministas não gostam quando lhes assinalamos os
efeitos desse fator sobre o caráter feminino em geral” (FREUD, 1996, p. 129). É interessante
notar que Freud não caracteriza as feministas como especialmente invejosas ou
descontroladas, apenas diz que elas não aceitam as limitações das mulheres. Já nas páginas
antifeministas, este discurso sobre mulheres, produzido no século XIX, é transmutado e
aclimatado – não mais referindo-se a todas as mulheres, e sim especificamente às feministas.
Outro termo-chave para compreender esta imagem que as páginas antifeministas
pretendem criar é o ressentimento. Ele pode ser definido não exatamente como um
sentimento, mas sim como um conjunto deles, em que, tão predominante quanto o ódio e o
desejo de vingança, são o rancor e uma constante sensação de impotência (ANSART, 2011).
Ou seja, a peculiaridade do ressentimento é uma reação reprimida, bloqueada por forças como
o medo ou a incapacidade – portanto, intimamente relacionada ao sentimento de
frustração. É o que salienta Dolores Martín Moruno, na obra “On
resentment” (2013), aspecto confirmado por Pierre Ansart (2011) ao
averiguar que as definições de ressentimento fornecidas por outros teóricos
como Nietzsche, Merton e Scheler também pintam-no como ruminação, inibido e
impotente. Já os sentimentos mais explosivos de raiva e ódio são
historicamente considerados inacessíveis às mulheres, uma vez que elas eram
vistas como seres frágeis, sem a força e o discernimento necessários para moderar
seus afetos. Assim, uma mulher enraivecida representaria um grande contrassenso
(FREVERT, 2011).
Percebe-se que este tipo de ideia dialoga com a representação feita
pelas páginas antifeministas: as feministas supostamente exercem sua
militância por meio de “textões” e lançam olhares invejosos a mulheres
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bonitas e bem-sucedidas, já que seria a única reação possível a elas.
Eventualmente, contudo, estas mulheres não conseguem moderar suas emoções e
esconder seus rancores que, então, “explodem”. Esta explosão se daria de maneira
desordenada, doentia – não seria uma raiva racional e justificada, como a dos homens.
Deste modo, a insistência no estereótipo da mulher invejosa, ressentida e
descontrolada emocionalmente possui profundas raízes em concepções aparentemente
anacrônicas sobre a vida emocional e psíquica das mulheres, tais como a inveja do pênis, o
frágil superego feminino, a tendência a ruminações e rancores e a impossibilidade de lidar
com sentimentos explosivos. Como aponta José Artur Molina, ao analisar o papel da mulher
na obra de Freud: “O lugar que a mulher e o feminino ocupam na teoria é um lugar
claramente determinado por um mundo masculino, conservador” (MOLINA, 2016, p. 175).
Apesar de não nos encontrarmos mais na era vitoriana, percebe-se que tais ideias não se
extinguiram completamente, e sim se atualizam no ambiente das redes sociais.
IV. As contranarrativas feministas
Faz parte do senso comum a crença de que a melhor forma de lidar com agressões
online é ignorá-las. Porém, como destaca Mantilla (2015), as agressões direcionadas a
mulheres feministas na web não possuem a mesma natureza do simples trolling. O
Gendertrolling, como conceituado pela autora, emerge não apenas de uma vontade de
diversão ou Schadenfreude (termo alemão para identificar a alegria pela desgraça alheia), mas
sim de uma real crença na inferioridade das mulheres atacadas. Ademais, o que está em jogo é
a participação efetiva das feministas nas redes sociais: os ataques colaboram para impedir ou,
ao menos, dificultar sua atuação neste espaço, portanto, dificilmente podem ser tratados como
simples brincadeiras.
Contudo, mais do que um papel reativo, as páginas feministas possuem uma finalidade
propositiva de conscientização feminina. Ainda que muitas mulheres acreditem na igualdade
de gêneros e concordem com o discurso de empoderamento feminino, aquelas que se
autointitulam feministas são as mais propensas a acreditar que ainda existe um caminho a
percorrer para se atingir a desejada igualdade (LISS & ERCHULL, 2010).
Acompanhando as publicações das páginas “Empodere Duas Mulheres” e “Feminismo
sem Demagogia”, é possível dividir os posts nas seguintes linhas temáticas: 1. Denúncia /
Casos Policiais: Divulgação de notícias de violência masculina contra mulheres ou crianças,
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acompanhadas de textos mostrando indignação; 2. Conteúdo motivacional ou humorístico /
Elogios a mulheres que se destacam; 3. Conteúdo de conscientização: Textos, imagens,
quadrinhos, infográficos, etc. que visam informar e conscientizar mulheres sobre temas caros
ao feminismo.
Eventualmente, há posicionamento da página contra atitudes e falas de figuras
públicas, como políticos, contudo não se utilizam vocábulos do grupo semântico de doenças e
psicoses, como é feito com as feministas pelos seus opositores. Também não foi percebida a
utilização de memes ridicularizando os personagens questionados. Quanto ao possível embate
em relação às páginas antifeministas, não foi identificada uma tentativa de resposta a elas.
Entretanto, alguns dos posts podem contribuir para esfacelar a imagem negativa criada, sem a
necessidade de entrar em um enfrentamento direto. Por exemplo, publicações sobre
maternidade podem colaborar para desmontar a ideia de que feministas são contrárias à
família.
Como aponta João Freire: “o discurso sobre as emoções atua, significativamente, nos
processos de categorização dos indivíduos e de absolvição ou descrédito de suas ações na
esfera pública” (FREIRE FILLHO, 2014, p. 31). Desta maneira, ao se categorizar feministas
como descontroladas emocionalmente, as páginas antifeministas interferem na credibilidade
do movimento das mulheres no ambiente online. Caso prevaleça no senso comum uma
caracterização tão negativa e estereotipada, o feminismo pode ser usado como uma acusação,
de modo a silenciar mulheres assertivas como irracionais e fazer com que as demais sintam a
necessidade de fugir deste rótulo (ANDERSON, 2015). Portanto, um campo de atuação
possível para as páginas feministas seria, também, a desconstrução dos estereótipos a elas
atribuídos.
V. Considerações finais
Ao longo das análises realizadas, percebeu-se que a imagem da feminista apresentada
pelas páginas antifeministas confere uma roupagem moderna a ideias deturpadas sobre a
mulher que povoam o imaginário social há muitos séculos. Antes utilizados para se referir a
quaisquer mulheres, os rótulos de histérica e ressentida são aplicados de forma muito
semelhante para caracterizar as feministas, especificamente. Ao mesmo tempo em que acusam
estas militantes de irracionalidade, as páginas antifeministas se utilizam não apenas de
argumentos objetivos, mas, sobretudo, da promoção de um sentimento de nojo como forma de
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tornar os julgamentos morais mais severos em relação a seu alvo, apontando-o também como
uma ameaça à sociedade.
Além de seu cunho de violência simbólica, estas enunciações têm atributos em comum
com outros comportamentos misóginos ao longo da história, que pretendiam levar mulheres
ao descrédito e barrá-las de seu lugar de direito na participação política e social. Deste modo,
estudar o discurso de ódio antifeminista nas redes sociais significa perceber a maneira como a
misoginia ainda persiste na sociedade e como se atualiza através de novos artifícios. O
ativismo feminista nas redes, por sua vez, ganha mais uma possibilidade de atuação:
contribuir para a desconstrução de estereótipos negativos sobre as feministas que possam
afastar outras mulheres do movimento.
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Anti-feminist hate speech on Facebook pages and feminist counter-narratives
Astract: The World Wide Web emerged accompanied by the belief that it would be a field for
the circulation of ideas outside the traditional media. In social media, the users' creativity
prevails with their memes and new ways to engage politically flourish; however, a
conservative and hegemonic speech also spreads - not by the mainstream media, but by the
users themselves. They are no longer in a passive situation, but now become also producers of
content and even judges of the actions of others.
Examining such a scenario from the perspective of affections and gender, it was perceived
that there is a rivalry taking place in social media: on one hand, there are speeches that seek to
maintain the status quo and disguise their resentment by social movements with a strategic
use of humor; on the other hand, there are discourses that seek to contribute to women
empowerment in the perspective of feminism.
Thus, the present work proposes a reflection on the dispute between anti-feminist hate speech
and feminist counter-narratives. The content analysis will focus on the publications and
interactions of the anti-feminist pages "Girl, I am not obliged to be a feminist" and "Blond
oppressor" and feminists "Empower two women" and "Feminism without demagogy" due to
their high number of followers and publications, as well as the possibility of providing
different views on each of their movements.
Keywords: Social media, Feminism, Hate speech, Resentment, Memes