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58 REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 18, n. 1, Passo Fundo, p. 58-73, jan./jun. 2011 58 Aprendizagem na perspectiva da teoria do interacionismo sociodiscursivo de Bronckart Neires Maria Soldatelli Paviani * Quando uma pessoa limita-se à instrução oficial, en- tão, no fim, torna-se um funcionário do saber. Bakhtin, 2008, p. 39 O que o ser humano é só pode ser ensinado e aprendido na relação com o Outro. Paviani, 2011 Este artigo examina o conceito de aprendizagem na perspectiva da teoria do interacionismo sociodiscur- sivo (ISD), de Jean-Paul Bronckart (2006). Explicita alguns conceitos afins na educação, como linguagem, ação, atividade social, produção tex- tual, competência, gêneros textuais, tipos discursivos, entre outros, que fazem parte dos processos de ensino/ aprendizagem. Palavras-chave: Aprendizagem. Lin- guagem. Educação. Interacionismo sociodiscursivo. Introdução Para entender a concepção de aprendizagem na obra de Bronckart Atividade de linguagem, discurso e de- senvolvimento humano (2006), é pre- ciso, primeiramente, estabelecer as grandes coordenadas de sua teoria, os pressupostos epistemológicos, os quais nos permitem esclarecer seu conceito de aprendizagem. E é desse cenário que Resumo Recebido: 22/05/2011 – Aprovado: 06/06/2011 * Professora na área de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Educação, na Univer- sidade de Caxias do Sul - Mestrado. E-mail: [email protected]

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    REP - Revista Espao Pedaggico, v. 18, n. 1, Passo Fundo, p. 58-73, jan./jun. 2011

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    Aprendizagem na perspectiva da teoria do interacionismo sociodiscursivo

    de Bronckart

    Neires Maria Soldatelli Paviani*

    Quando uma pessoa limita-se instruo oficial, en-to, no fim, torna-se um funcionrio do saber.

    Bakhtin, 2008, p. 39

    O que o ser humano s pode ser ensinado e aprendido na relao com o Outro.

    Paviani, 2011

    Este artigo examina o conceito de aprendizagem na perspectiva da teoria do interacionismo sociodiscur-sivo (ISD), de Jean-Paul Bronckart (2006). Explicita alguns conceitos afins na educao, como linguagem, ao, atividade social, produo tex-tual, competncia, gneros textuais, tipos discursivos, entre outros, que fazem parte dos processos de ensino/aprendizagem.

    Palavras-chave: Aprendizagem. Lin-guagem. Educao. Interacionismo sociodiscursivo.

    IntroduoPara entender a concepo de

    aprendizagem na obra de Bronckart Atividade de linguagem, discurso e de-senvolvimento humano (2006), pre-ciso, primeiramente, estabelecer as grandes coordenadas de sua teoria, os pressupostos epistemolgicos, os quais nos permitem esclarecer seu conceito de aprendizagem. E desse cenrio que

    Resumo

    Recebido: 22/05/2011 Aprovado: 06/06/2011

    * Professora na rea de Letras e no Programa de Ps-Graduao em Educao, na Univer-sidade de Caxias do Sul - Mestrado. E-mail: [email protected]

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    este texto parte para verificar como a teoria do interacionismo sociodiscur-sivo desse autor concebe esse conceito. Essa teoria, como as demais, tem con-tribuies de vrios estudiosos da lin-guagem, dentre as quais se destacam as de Bakhtin. A nfase das pesquisas, no caso desses autores, recai no estudo das relaes entre linguagem e atividade na perspectiva das interaes professor/aluno em processos de ensino/aprendi-zagem.

    Bakhtin, ao criticar o ensino quan-do da fase de sua formao, em uma das conversas com Duvakin, chama a ateno para a experincia de aprender que teve: Eu me formei estudando por conta prpria. Tudo e sempre (2008, p. 39). Essa declarao autobiogrfica pode parecer um enunciado comum. No entanto, muitas pessoas devem ter tido semelhantes experincias de aprendiza-gem, ou ainda, em razo dessas, devem ter proferido enunciados dessa nature-za: Aprende-se, apesar dos professores, da escola..., A vida ensina mais que a escola.

    Nesse sentido, parecem ser impor-tantes os processos que constituem o ato de aprender em relao ou no com o ato de ensinar. Essas consideraes so demasiadamente complexas, mas, para o desenvolvimento deste trabalho, a questo enfatizar a aprendizagem que se efetiva em perodo de escolarizao, verificando em que sentido assumida por quem responsvel por ela no ato de ensinar.

    O conceito de aprendizagem est vinculado ao conceito de ensinar, que na expresso ensino-aprendizagem ten-

    ta conjugar as partes envolvidas nesse processo. Muitas vezes esses conceitos so entendidos como desvinculados um do outro, ou seja, como se o ato de en-sinar, uma vez executado, por si s j assegurasse aprendizagem.

    O professor que tem essa concepo de ensinar entende que, se exerce sua funo, d o seu recado, a questo do aprender fica por conta do aluno, ou depende deste: se aprendeu, porque estudou; se no aprendeu, porque foi relapso, no se empenhou o suficiente. Assim, o conceito de aprender um pres-suposto que est implcito nas malhas de um processo que se confunde com a prpria vida, com a cultura e modo de ser de cada indivduo e grupo.

    Entretanto, a escola possui (a) a ta-refa de ensinar as novas geraes, (b) o objetivo de lev-las a aprender a vida e o mundo, a sociedade, (c) a possibilidade (via formao) de criar condies aos jo-vens e adultos de exercerem ocupaes e profisses. Por isso, o aprender no apenas um a posteriori do conceito de ensinar, mas um conjunto de aes das prticas pedaggicas que se do conco-mitantemente e num continuum.

    Ensinar e aprender, no universo da escola, so conceitos integrados e estrei-tamente relacionados pelas aes das partes implicadas a ponto de se pressu-porem; so atos que se constituem num mesmo evento. Se os propsitos de um dos lados no interagirem com os prop-sitos do outro, o evento ensino-aprendi-zagem no se efetiva. necessrio que se aproximem ou que se constituam pon-tos de interseo, por meio da interao, ligando-os, como duas faces de uma moe-

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    da constituindo uma unidade. Trata-se de partes que se pressupem colaborati-vas nas aes tico-educativas, movidas por interesses comuns ou que estejam igualmente interessadas (do latim inter + essere = estar/ser dentro), caracteri-zando-se como um processo de ensino-aprendizagem, envolvendo professor e aluno como sujeitos cooptados.

    O que se quer aqui, enfim, e obvia-mente sem pretender esgotar a questo, : (a) expor de modo sucinto os pressu-postos e as implicaes epistemolgicas nas teorias de aprendizagem; (b) mos-trar como esses pressupostos so me-diados pelas diferentes concepes de linguagem.

    O ato de ensinar dependendo de concepes

    de linguagemAntes de examinar as contribuies

    de Bronckart (1999, 2006), oportuno recordar que para Bakhtin (1997), em se tratando de ensino de uma lngua natural, a concepo que se tem dela importante para entender os processos de aprendizagem. Ele entende que a competncia lingustica tem a ver com a utilizao da lngua que permeia todas as atividades humanas, efetivando-se em forma de enunciados orais e escritos, no necessariamente sabendo sobre as normas que a rege, embora essa tenha sido a nfase dada pelas teorias de ensi-no de um modo geral.

    Na perspectiva de Bakhtin (1997), preciso ficar longe do ensino de pa-lavras ou frases desconectadas de sua

    situao enunciativa, porque entende que no ensino em que se estabelecem essas conexes fica claro para o aluno que cada enunciado reflete as condi-es especficas e os propsitos de cada uma das esferas da atividade humana, elaborando seus tipos relativamente estveis de enunciados gneros do discurso heterogneos, caracterizados pelo contedo temtico, estilo verbal e construo composicional.

    O autor classifica esses gneros discursivos em gneros primrios que fazem parte da comunicao verbal es-pontnea, os quais, ao passarem por um processo de absoro ou de transmuta-o, ou seja, por uma elaborao, podem ser identificados como gneros secun-drios, a exemplo do conto, romance, ensaio, entre outros.

    Portanto, na perspectiva de Bakhtin (1997), o enunciado tem um carter ideolgico, porque, ao materia-lizar o texto, so feitas as relaes entre lngua, ideologias e vises de mundo. Nesse sentido, mais pertinente um ensino que d nfase natureza e va-riedade dos gneros ao invs de focar a abstrao excessiva da lngua, pois, nesse caso, considera-se a linguagem como algo inerente ao enunciado e, des-se modo, procura-se reativar o vnculo entre lngua e vida. Exemplo disso a afirmao que diz:

    A lngua penetra na vida atravs dos enunciados concretos que a realizam, e tambm atravs dos enunciados concretos que a vida penetra na lngua (1997, p. 282).

    Dito de outro modo, o enunciado a unidade da comunicao verbal (no a

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    orao, pois que esta da lngua formal, abstrata); a alternncia dos falantes, por meio da interao, que delimita a sua escolha, e o propsito discursivo, ou seja, o querer-dizer, o que faz o enunciado. Esse querer define, portan-to, a escolha de gnero, levando em con-ta as circunstncias comunicativas, os ambientes discursivos e a posio social dos sujeitos que interagem. Esses as-pectos criam condies de produo de enunciados, a escolha de um determina-do gnero.

    Em sntese, Bakhtin entende a linguagem e lngua, numa perspectiva social, como atividades de comunicao nas relaes humanas. Acrescenta-se que seus estudos tm contribudo para uma reviso das teorias de aprendiza-gem e para construir, por meio de suas concepes tericas, novas sistemati-zaes e abordagens de ensino. Entre essas revises e aprofundamentos das teorias que destacam a relevncia da linguagem para as interaes sociais na aprendizagem, merece ateno especial a de Bronckart, que por sucessivos estu-dos vem sendo aprofundada. Essa teoria conhecida sob a denominao intera-cionismo sociodiscursivo (ISD).

    Bronckart faz uma breve retomada das quatro ltimas concepes de ensi-no, cujos princpios tericos orientaram, e orientam, epistemologicamente, as aes de ensinar e aprender. Destaca como principais o behaviorismo, o cons-trutivismo, o cognitivismo e o interacio-nismo social. Retoma a tradio esco-lstica, cuja crena se baseava em um universo estvel e imvel, constitudo de conhecimentos completos e definitivos.

    Os saberes eram tratados numa pro-gresso, partiam do mais simples para o mais complexo. O aprendiz visto como um receptculo vazio (tabula rasa) e a aprendizagem concebida como uma sucesso de ensaios e erros, sancionados por recompensas e/ou punies (2006, p. 177).

    Segundo o autor, o behaviorismo retoma o essencial desses princpios, po-rm apresenta a existncia de um saber universal validado (2006, p. 177), ou seja, no acabado e definitivo. Mantm, porm, a concepo de aprendiz. E concepo de aprendizagem acrescenta os objetivos de aprendizagem, seguindo a mesma lgica, do mais simples para o mais complexo. O behaviorismo foi mui-to criticado pela formao unidirecional que imprimiu a si, predominantemen-te descendente e, por conseguinte, autoritria ou diretiva (2006, p. 178). Apesar dessas crticas, nada impede, diz Bronckart, que hoje essa concepo de aprendizagem no esteja ainda sub-jacente, como pressuposto, atuao do professor, seguindo a lgica diretiva e mecanicista.

    Bronckart comenta que na moder-nidade as propostas pedaggicas mais concretas surgiram de influncias de obras de Kant, Rousseau, Dewey, Mon-tessori, Claparde, entre outros, e, prin-cipalmente, da obra de Piaget, funda-dora de um novo paradigma, o constru-tivismo gentico (BRONCKART, 2006, p. 182 - grifos do autor). Essa concepo terica apresenta trs contribuies1 s questes de educao: a primeira trata dos estgios de desenvolvimento da criana; a segunda, dos processos di-

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    nmicos para explicar a evoluo cog-nitiva, no reconhecendo, porm, como tambm formadoras as intervenes sociais as emoes nem os mecanismos interativos, que, segundo o autor, se do apenas no plano biolgico; a ter-ceira contribuio a do esquema do desenvolvimento e do funcionamento psicolgico geral, incluindo dimenses afetivas/emocionais e sociais da lingua-gem, resultantes do conjunto da obra.

    Nessa abordagem atribudo um papel secundrio s aprendizagens: a aprendizagem o que permitido por um determinado estado de desenvol-vimento; ela uma conseqncia, no uma causa (p. 184 - grifos do autor). O desenvolvimento da criana evolucio-nista, portanto,sem histria, diz Bron-ckart.

    Por sua vez, o cognitivismo parte de uma radicalizao inatista da orien-tao piagetiana; os defensores desse paradigma [...] esto naturalmente afi-liados s neurocincias (2006, p. 186 - grifo do autor),2 ao passo que o intera-cionismo social relaciona modalidades de elaborao dos conhecimentos com tipos de conhecimentos/saberes, ou seja, os conhecimentos so elaborados pri-mariamente no mbito das atividades coletivas concretas, que organizam e mediatizam as interaes de cada indi-vduo singular com o mundo do conhe-cer (2006, p. 186), como conhecimento prtico ou implcito de ordem funcional.

    Os conhecimentos prticos so constitudos de estruturas verbais, rea-lizados no mbito dos textos, provindos de um gnero determinado e de uma lngua natural (p. 186), cujas entidades

    verbais so [...] portadoras de valores histricos e socioculturais (p. 186), de-correntes desse gnero e dessa lngua. Esse conhecimento se qualifica como conhecimento tradicional; classificado como explcito e generalizado quando passa por validao cientfica, assumin-do o estatuto de saber formal.

    Essa abordagem, segundo Bron-ckart, tem influncias de vrios auto-res. Ele cita, por exemplo, que Hymes (1973/1991) sustenta a ideia de que, se para Chomsky h uma competncia sinttica ideal; esta no suficiente para desenvolver um domnio funcional da linguagem; esse domnio implica a capacidade de adaptar as produes de linguagem aos objetivos comunicativos e s propriedades do contexto (2006, p. 189), constituindo-se, portanto, o ato de desenvolver competncias de comu-nicao objeto de uma aprendizagem social.

    Comenta Bronckart (2006) que, diante da retomada, feita pela psicologia cognitivista, do conceito de competncia essencialmente biolgico na perspectiva chomskiana, Hymes desloca esse con-ceito para outro nvel de compreenso, ou seja, visto como uma capacidade adaptativa e contextualizada, cujo de-senvolvimento requer um procedimento de aprendizagem formal ou informal, em que a competncia apreendida no nvel das propriedades de um indivduo (2006, p. 189).

    Bronckart comenta que o concei-to de competncia na formao, de um modo geral, tem perdido esse significa-do, passando as competncias, a partir da anlise do trabalho pelos ergono-

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    mistas e especialistas, a serem apre-endidas [...] no nvel das performances exigidas dos agentes, no mbito de uma determinada tarefa (p. 189). Fica, nes-sa nova concepo, entendido

    que as capacidades pretendidas per-tencem ao saber-fazer mais do que aos saberes, e os processos metacognitivos mais do que ao domnio de saberes es-tabilizados (2006, p. 189).

    Houve, portanto, uma reorienta-o: de um lado, das propriedades do sujeito adaptao ao meio, em que as competncias so vistas como proprie-dades do organismo humano, esten-didas s capacidades exigidas (2006, p. 190); pelas prticas sociais, devendo ser ajustadas, pela aprendizagem, aos modos de interao de um grupo; de outro lado, das exigncias do meio s capacidades exigidas dos sujeitos, em que se parte da anlise do trabalho, cujas atividades coletivas analisadas servem de parmetro para avaliar as performances dos indivduos e a partir das quais so deduzidas as competn-cias avaliadas, que definiro, em termos de ensino, que competncias os sujeitos devem ter como satisfatrias.

    Nesse entender, segundo Bron-ckart, fica esquecido o papel das compe-tncias para o desenvolvimento da auto-nomia das pessoas e da sua capacidade de contribuir na transformao dos pr-construdos de sua comunidade (2006, p. 192). Esses aspectos levantados por Bronckart fazem parte das concepes de aprendizagem de competncias.

    Nesse sentido, com base no cam-po da didtica das lnguas, Bronckart prope um trabalho em trs nveis. O

    primeiro, no plano dos pr-construdos, apresenta um modelo terico das con-dies de funcionamento e da estrutura interna dos gneros de textos disponveis no ambiente linguageiro (2006, p. 193), cujos resultados mostram que: (i) o texto se constitui no correspondente emprico ou lingustico de um agir linguageiro, que (ii), por sua vez, est articulado ao agir no verbal ou geral. O segundo n-vel, no plano do desenvolvimento, trata das condies de emprego dos diferen-tes gneros de textos pela criana, alm do domnio das regras de estruturao interna (p. 193).

    O terceiro, no plano dos proces-sos de transmisso, trata da proposta de confeco e experimentao, com professores de unidades de ensino, das chamadas de sequncias didti-cas (ver SCHNEUWLY; DOLZ, 1997). Nessa nova abordagem terica, esses autores enfatizam o estatuto ativo da linguagem, mostrando que a produo textual est articulada ao agir geral, precisando, por sua vez, definir em que consiste esse agir, suas dimenses, seus protagonistas. Os estudos mostram que as sequncias didticas, de um modo geral, ainda no foram assimiladas pe-los professores, revelando, dessa forma, que preciso examinar as condies e caractersticas efetivas do trabalho dos professores (2006, p. 194-195).

    Essa constatao a que Bronckart chega em relao ao trabalho dos pro-fessores, sujeitos de suas pesquisas, tambm se poderia fazer em termos do trabalho dos professores do Brasil. Em-bora haja os PCNs e toda uma bibliogra-fia com orientaes terico-pedaggicas

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    dentro dessa perspectiva, essas no che-garam a se efetivar nas escolas, o que, acredita-se, seja mais pelo fato de os pro-fessores no buscarem esses subsdios do que por no estarem disponveis a eles.

    Breve contextualizao do interacionismo

    sociodiscursivoEntre as tendncias tericas que

    fundamentaram os processos de ensino com suas respectivas repercusses na aprendizagem, a teoria do interacionis-mo sociodiscursivo, proposta por Bron-ckart, uma das mais relevantes. Mas o que se destaca, inicialmente, o apro-veitamento das contribuies das cin-cias humanas na soluo de problemas como o da aprendizagem, numa tentati-va de promover movimento inverso, isto , de romper os limites entre as frontei-ras do conhecimento, pois, segundo o autor, esses problemas envolvem, de um lado, relaes de interdependncia, por exemplo, de estudos fisiolgicos, cogni-tivos, sociais, culturais, lingusticos, e, de outro, os processos culturais, sociais e histricos que se agregam e se co-constroem.

    Os estudos de Bronckart, na obra Atividade de linguagem, textos e discur-sos (1999), investigam os pressupostos construdos com base, de um lado, na influncia da psicologia da linguagem, que toma as unidades lingusticas como condutas humanas, focando as condi-es de sua aquisio e funcionamen-to, e, de outro lado, no interacionismo social, com a orientao de que as con-

    dutas humanas devam ser entendidas como aes significativas, portanto si-tuadas e que tenham presente que as propriedades estruturais e funcionais so, antes de mais nada, um produto da socializao (1999, p. 13).

    Essas orientaes, alm de outras de carter filosfico e antropolgico, como as de Bakhtin com os gneros do discurso, em que a linguagem se efeti-va por meio de enunciados na interao social, esto na base do interacionismo sociodiscursivo. Trata-se de uma teo-ria adequada a um aluno ativo, a um aprendiz que dispe de informaes que ele mesmo tem condies de acessar.

    Inicialmente, essa teoria abando-na a noo de tipo de texto e adota a noo de gneros de texto e tipos de discurso como formas comunicativas. Esses discursos, tambm chamados de sequncias, so formas lingusticas que compem o texto e traduzem o efeito de sentido. Portanto, no o texto pelo texto que est em questo, nem seus as-pectos lingusticos apenas, mas, funda-mentalmente, o texto como portador de sentido, isto , como algo materializado do mundo vivido, pensado e scio-histo-ricamente construdo.

    A coerncia dessa teoria reside na proposta de estudar a interao verbal efetivada: pelo sujeito ao relacionar-se com o mundo, produzindo conhecimento sobre ele; pela capacidade de represen-tao lgica desse mundo, derivada das prticas linguageiras concomitante-mente de ao e de discurso, isto , a ao mais o sujeito agente; pelo intera-cionismo sociodiscursivo, voltado para o estudo das prticas de linguagem e das

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    aes de linguagem nelas envolvidas como o pensamento consciente, ou seja, agente dotado de intencionalidade.

    Tem-se, ento, a partir da teoria do interacionismo sociodiscursivo uma pro-posta de ensino que espera do professor que saiba fazer previses, antecipaes, isto , que enxergue o contexto do aluno e, dessa forma, permita-lhe criar a par-tir das situaes enunciativas, nas se-quncias didticas, novos cenrios para a aprendizagem, alm de possibilitar, por meio de produes de linguagem, enten-didas como atividades humanas, formas de agir por meio de aes de linguagem.

    Nessa perspectiva, Bronckart pro-pe uma nova abordagem de ensino-aprendizagem para o tratamento das questes de linguagem, cujos signos fundam a constituio do pensamento consciente humano. Entre as conse-quncias dessa posio, Bronckart, com razo, por exemplo, contesta a clas-sificao e a diviso entre as cincias humanas e as cincias sociais. Nessa perspectiva, para ele, o interacionismo sociodiscursivo mais do que uma cor-rente lingustica, psicolgica ou socio-lgica. Pretende reafirm-lo como uma corrente da cincia do humano (2006, p. 10 - grifos do autor). Sem dvida, essa manifestao sobre a teoria, no panora-ma do conhecimento atual, aponta para o carter interdisciplinar da linguagem e para a complexidade do fenmeno da aprendizagem, especialmente para quem a deseja entender em seus proces-sos bsicos.

    O interacionismo sociodiscursivo visa demonstrar que as prticas de lin-guagem ou os textos so formas bsicas do desenvolvimento humano em relao

    aos conhecimentos, aos saberes, ao de-senvolvimento de habilidades e compe-tncias, todos relacionados ao agir e ao fazer humanos. Comenta Bronckart que essa uma posio chamada por alguns de logocntrica, mas que, para ele, trata-se de um logocentrismo modera-do, pois nega-se neste o determinismo sociolinguageiro que sustenta as prti-cas de linguagem como fundamento de qualquer agir e fazer humanos.

    O autor salienta ainda que essa vi-so no deveria nos levar a negar as ca-pacidades cognitivas que procuram se li-bertar das restries sociais, culturais ou de linguagem, como Piaget as descreveu. Para Bronckart, a construo de capaci-dades cognitivas (universais) resultado de um processo segundo que se aplica s capacidades de pensamento, marcadas pelo sociocultural e pela linguagem.

    Como nasce uma abordagem pedaggica

    A postura pedaggica de um profes-sor construda lentamente por conta de seus estudos, de sua formao, das suas crenas e das experincias de en-sino que caracterizam sua performance e que se constituem como pressupostos, nem sempre conscientes, de sua ao docente.

    Em Bronckart (2006), o interesse pedaggico desenvolveu-se sob o impac-to de influncias tericas de diversos autores, destacando-se, inicialmente, os estudos de Skinner, Piaget, Vygotsky; da lingustica de Saussure, Bloomfield, Chomsky; depois, os de Bakhtin, Adam,

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    Hymes, dentre outros. Essas influncias se apresentam pontualmente marcadas e superadas pelas anlises crticas em pesquisas que o autor (e seus colabora-dores) vem realizando sobre atividades de linguagem, chegando ao estgio atual da teoria do interacionismo sociodiscur-sivo, que, por sua vez, tambm passou por testagens, revises e reformulaes. Sobre os acrscimos ou complementa-es s propostas tericas anteriores, Bronckart diz sobre as caractersticas diferenciadoras da sua proposta:

    Nossa prpria abordagem, que clas-sificamos de interacionismo sociodis-cursivo (conferir Bronckart, 1997), inscreve-se no esquema vygotskyano evocado anteriormente, integrando, porm, ao esquema, ao mesmo tempo, de maneira mais determinada e tcni-ca, o papel e as propriedades da ativi-dade da linguagem (2006, p. 104).

    Bronckart realizou vrias pesqui-sas sobre linguagem. Uma foi sobre a compreenso e as estratgias adotadas por crianas para interpretar valores funcionais das ordens das palavras (SINCLAIR; BRONCKART, 1972); ou-tra, sobre os valores dos tempos verbais empregados por crianas. Para a anli-se dos dados dessas pesquisas o autor tentou conciliar a abordagem estrutural de Chomsky com a do desenvolvimento de Piaget. No entanto, diz Bronckart, essas referncias tericas se mostraram inapropriadas para a anlise dos resul-tados sobre os tempos verbais. Procurou respostas na lingustica da enunciao sob orientao de Culioli seu modelo para o quadro interpretativo (1976).

    O fato de perceber que os valores dos tempos verbais s poderiam ser ana-

    lisados num quadro textual (1982) levou Bronckart aos estudos de Bakhtin e a uma formao em anlise dos discursos por meio de debates com Jean Michel Adam. Nesse percurso, passou pelas experincias de dar curso de lingustica para formadores e professores prim-rios e de ser professor de psicopedago-gia das lnguas. Formou-se em Cincias da Educao. Nesse perodo, Bronckart depara-se com um problema, que o da falta de [...] condies de adaptao dos modelos tericos e dos resultados das pesquisas empricas realidade das sa-las de aula e do trabalho do professor (2006, p. 13) problema depois denomi-nado de transposio didtica.

    Diante disso, juntamente com colabora-dores (BAIN; SCHNEUWLY), Bronckart or-ganiza um estudo de formao/pesquisa com vistas a fornecer critrios racionais e didticos para o domnio da expresso escrita (2006, p. 13). Dessa preocupao didtica nasceu o projeto do interacionismo sociodiscursivo, cujos estudos:

    (a) na primeira fase, voltaram-se para a criao e a testagem das seqncias didticas (Pedago-gie du texte, 1985), procurando elaborar um modelo terico que sustentasse e esclarecesse essa abordagem prtica de ensino. Esse modelo passou por v-rios esboos, alm de anlises e testes (2006, p. 13);

    (b) na segunda, visaram aperfei-oar o modelo terico inicial e ressituar as questes das con-dies e caractersticas da ati-vidade de linguagem no quadro do desenvolvimento humano (2006, p. 14);

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    Essa preocupao levou Bronckart a fazer uma nova proposta, ou seja:

    (i) reconvocar a abordagem vygotskya-na e a questionar sua base filosfica; (ii) reexaminar, com fundamento na obra de Saussure, o papel da apropria-o dos signos na emergncia da cons-cincia humana e, por fim; (iii) estudar os efeitos produzidos pelo domnio dos gneros de texto e dos tipos de discur-so no desenvolvimento tanto em suas dimenses epistmicas quanto praxeo-lgicas (2006, p. 14).

    Gneros do discurso e gneros de discursoA distino de sentidos que o em-

    prego das preposies do e de neste subttulo sugere tem muito a ver com as interpretaes que comumente se fazem dos conceitos. Antes, porm, Bronckart chama a ateno para a distino de significados atribudos ao conceito dis-curso:

    O termo discurso tal como aparece em Benveniste e na face oculta de Saus-sure (conferir Bouquet, 1999) designa a operacionalizao da linguagem por indivduos em situaes concretas. Trata-se, portanto, de designar com esse termo as prticas e/ou processos de linguagem, em oposio ao sistema da LNGUA (2006, p. 140 - grifos do autor).

    Nessa perspectiva, o autor, enten-dendo que o sistema resultado de uma abstrao terica e que a linguagem constituda por prticas situadas, consi-dera mais procedente usar a expresso atividade de linguagem em lugar de

    atividade discursiva, porque o termo discurso pode sugerir que a linguagem se manifesta de outra maneira que no seja na prtica, e acrescenta que o em-prego corrente do termo discurso equi-valente ao termo atividade de lingua-gem, que utilizamos (2006, p. 140-141). Nessa acepo, os discursos so diver-sos; por isso, Bakhtin introduziu a expresso gneros do discurso (2006, p. 141), mas as classificaes decorren-tes desses, ou seja, do discurso religioso, literrio etc., que, segundo Bronckart, referem-se geralmente s produes verbais autonomizadas em relao ao agir geral (p. 141), esquecem as produ-es que so dependentes desse agir.

    Bronckart observa que alguns au-tores, dentre os quais Adam, em par-ticular (1999, p. 81 e ss.), transformam deliberadamente, a noo bakhtiniana de gneros do discurso em gneros de discurso para, desse modo, poderem de-signar as diferentes espcies de textos atestveis, o que leva a estabelecer, de facto, uma relao de correspondncia biunvoca entre espcies de discurso/atividades e espcies de texto, o que negado pelos fatos (2006, p. 141). Com o propsito de desfazer esses equvocos, Bronckart diz:

    [...] preferimos reservar a noo de g-nero somente aos textos (gneros de textos), propondo utilizar, para outros nveis, as frmulas espcies de ativi-dade geral e espcies de atividades de linguagem (ou espcies de discur-so) (2006, p. 141).

    Em seguida, o autor nos fala da complexidade dos textos, que se expli-ca pelo nmero e pela heterogeneidade

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    de suas modalidades de estruturao (2006, p. 142) e observa que as diversas propostas (de autores) de identificar as diferentes estruturas constitutivas da textualizao salientam a dependncia dessas formas e da prpria entidade texto. Para o autor,

    os textos so produtos da operacionali-zao de mecanismos estruturantes di-versos, heterogneos e por vezes facul-tativos [...] qualquer produo de texto implica [...] escolhas relativas seleo e combinao dos mecanismos estru-turantes, das operaes cognitivas e de suas modalidades de realizao lin-gstica. Nessa perspectiva, os gneros de textos so produtos de configura-es de escolhas entre esses possveis, que se encontram momentaneamente cristalizados ou estabilizados pelo uso (BRONCKART, 2006, p. 143 - gri-fos do autor).

    Essas escolhas a que o autor se re-fere vo depender do trabalho que as formaes sociais de linguagem desen-volvem, para que os textos sejam adap-tados s atividades que eles comentam, adaptados a um dado meio comunicati-vo, eficazes diante de um desafio social, etc. (2006, p. 143-144). Segundo ele, os gneros no so formas fixas; esto, de acordo com o tempo e a histria das formaes sociais, sujeitos s mudan-as, alm de que poderem estar sujeitos a avaliaes e a outras finalidades que no aquelas que lhes deram origem. Nesse sentido, v como no possvel es-tabelecer relao direta entre espcies de agir de linguagem e gneros de tex-tos em virtude da adeso no crtica s indexaes sociais, explicando, por sua vez, a impossibilidade de classificao

    estvel e definitiva dos gneros (2006, p. 144 - grifos do autor). Bronckart diz, com base em Bakhtin (1984, p. 285), que os gneros

    como configuraes possveis dos me-canismos estruturantes da textualida-de, portadores de indexaes sociais, constituem os quadros obrigatrios de qualquer produo verbal (2006, p. 145).

    Em sntese, Bronckart tenta tornar mais precisa a diferena entre textos pertencentes a um gnero e tipo de dis-curso: aqueles tm a ver com unidades comunicativas globais, isto , com um agir de linguagem (artigo, ensaio etc.); estes tm a ver com unidades lingusti-cas infraordenadas, isto , com segmen-tos (narrar, descrever etc.) que no so textos em modalidades variveis como o so aqueles.

    O conceito de aprendizagem

    A aprendizagem, na perspectiva de Bronckart, tem relao direta com a concepo de linguagem e de ensino de lngua.

    Dentre as possveis concepes di-dticas e sem coloc-las de forma extre-mada, pode-se dizer que h, no mnimo, duas posturas possveis de ensino com repercusses distintas nas formas de aprender. Pode-se ter, de um lado, um professor que, tendo uma concepo de ensino de lngua na perspectiva de que pode ser aprendida por meio de produ-es verbais, considerando-se os aspec-tos diversos, articuladas a situaes de

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    comunicao, entender que essas for-mas de realizaes empricas so os tex-tos (1999, p. 69); de outro lado, um pro-fessor que, tendo um entendimento de que ensinar lngua consiste em repassar aos alunos as normas do sistema dessa lngua (regras fonolgicas, morfolgicas, sintticas etc.), estar, ento, promo-vendo uma aprendizagem fragmentada da lngua, desconectada de seu uso nas situaes comunicativas.

    Portanto, dependendo da concepo que se tem de ensinar, pode-se aprender a usar uma lngua, como se pode apren-der sobre a lngua. So aprendizagens que, na sua gnese, de acordo com as concepes (pressupostos epistemolgi-cos), so orientadas por objetivos e dife-rentes modos de ensinar, fazendo a dife-rena nos objetivos e modos de aprender.

    Aprender sobre a lnguaA diviso das cincias em discipli-

    nas e subdisciplinas, segundo Bronckart (2006), tem contribudo para a fragmen-tao do conhecimento, que uma de-corrncia da adeso epistemologia po-sitivista de Comte. Essa postura terica fundamentou o ensino-aprendizagem por longas dcadas e tem repercusses at hoje. No caso do ensino da lngua portuguesa, no se trata de desconhecer as normas desse sistema, mas da forma como essas so ensinadas, geralmente como sendo o foco central, tomadas como um fim em si e no em razo do uso efe-tivo da lngua nas diferentes situaes comunicativas. Por mais que se queira estudar uma lngua nessa perspectiva, isso quase que impossvel, porque como sistema ela abstrata.

    Sempre que nos referirmos ao sis-tema da lngua, estaremos lidando com princpios de normatizao, que pres-crevem o padro ideal de uso, distan-te, portanto, do real uso, sob influncias de fatores scio-histrico-culturais, com uma grande variedade de padres de uso de linguagem, desde o nvel coloquial ao mais elaborado. Essa postura pedag-gica preconiza uma aprendizagem que dificilmente leva a desenvolver compe-tncias lingustico-textual-discursivas. uma aprendizagem que no vai alm das anotaes e exerccios de identificar e classificar aspectos da lngua regis-trados no caderno pelo aluno. A apren-dizagem decorrente dessa abordagem se circunscreve aquisio de noes lingusticas desconectadas das produ-es de linguagem do prprio aluno e das prticas sociais, ou seja, no levam em conta que estas se circunscrevem a um meio, cujos processos de mediao e interao se constituem de e so vei-culados pela linguagem em situaes enunciativas bem concretas.

    Aprender a usar uma lnguaUsar uma lngua aprende-se desde

    que se nasce. Aqui, porm, entende-se o aprender em processos de ensino formal, efetivados em perodo de escolarizao, e, na proposta do interacionismo socio-discursivo, leva em conta as prticas de linguagem, como uma das prticas de interao social (situao enunciati-va e ambiente discursivo), implicando, alm de dimenses sociais, as cogniti-vas e lingusticas do funcionamento da linguagem numa determinada situao comunicativa. Tratando-se de ensino e

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    aprendizagem, as prticas de linguagem precisam ser realizadas do lugar social, no caso, do interior da sala de aula, con-siderando-se as suas caractersticas. Co-laboradores e seguidores de Bronckart, os autores Dolz e Schneuwly dizem que, na escola, so os gneros textuais que articulam a atividade do aprendiz s prticas de linguagem. Acrescentam que as capacidades de linguagem

    so aptides requeridas do aprendiz para a produo de um gnero numa si-tuao de interao determinada: adap-tar-se s caractersticas do contexto e do referente (capacidades de ao), mobili-zar modelos discursivos (capacidades discursivas) e dominar as operaes psi-colingstcas e as unidades lingsticas (capacidades lingstico-discursivas) (SCHNEUWLY; DOLZ, 1997, p. 29).

    Os autores destacam como impor-tante os professores prestarem ateno s capacidades de linguagem dos alu-nos, que podem ser percebidas por meio do comportamento em relao ao que eles j sabem (os produtos de apren-dizagens sociais anteriores) e ao que aprendem (fundam novas aprendiza-gens sociais). As sequncias didticas, do modo como so propostas, so uni-dades de ensino na abordagem do ISD que permitem ao professor observar as capacidades de linguagem antes e durante o processo de ensino/aprendi-zagem, fornecendo-lhes indicaes de possibilidades de execuo.

    Assim como est concebida e estru-turada, visando a produes orais e es-critas de gneros textuais, a sequncia didtica uma proposta tica de ensi-no, pois so dadas ao aluno condies de aprender a desenvolver suas competn-

    cias lingustico-textual-discursivas por meio de vrias estratgias de produo de linguagem que lhe garantem uma produo final, prxima ao desejado, ao esperado pelos objetivos e respeitando as condies de aprendizagem do aluno, sendo, nesse sentido, tica na avaliao tambm.

    Bronckart prope uma reconceitua-o da noo de competncia, enfati-zando sua dimenso dinmica (2006, p. 20). Para o autor, o desenvolvimento de habilidades e competncias de lin-guagem para atender s aptides exi-gidas do aprendiz na recepo (acesso informao) e na produo (como meio de construo de conhecimento) de de-terminados gneros discursivos em uma situao de interao especfica um requisito bsico.

    No Brasil, no obstante estudiosos e pesquisadores j tenham produes na rea, s mais recentemente essa concep-o de aprendizagem da lngua como de-senvolvimento de habilidades de lingua-gem foi assumida por entidades oficiais. Temos os PCNs com princpios norteado-res para orientar o trabalho do professor em relao s questes de linguagem com vistas leitura e produo tex-tuais, permitindo situar o aluno em re-lao s atividades de aprendizagem de que participa ou de que vir a participar, dando-lhes sentido porque tm uma sig-nificao para ele. Em outros termos, o aprendizado, efetivamente, ocorrer no momento em que o aluno passar a dar sentido ao que est estudando, porque o que estuda lhe significativo. Mas cabe ao professor promover essas condies, estabelecendo, em relao ao que ensi-

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    na, mediaes significativas de aprendi-zagem por meio de interaes sociodis-cursivas professor/aluno nas situaes enunciativas de ensino-aprendizagem.

    Nesse sentido, aprender a usar uma lngua significa: (a) aprender ati-vidades de linguagem, trabalhando com a textua lizao (oral e escrita), tendo presentes as situaes discursivas; (b) estudar a coeso e coerncia entre as unidades lingusticas; (c) estabelecer as conexes estruturais, os contedos vei-culados, os propsitos comunicativos; (d) definir os interlocutores da situao enunciativa (quem diz / o que / com que propsito / para quem), identificando os papis sociais desses, alm de ou-tros aspectos. Nessa perspectiva que Bronckart v como decisivo o papel da atividade de linguagem na construo das prprias aes e dos conhecimentos declarativos (2006, p. 17).

    O papel do professorEnfocando o trabalho do profes-

    sor, Bronckart apresenta as razes por que o trabalho educacional surge com tanta fora atualmente (2006, p. 203). Os frequentes movimentos de reforma dos sistemas de ensino, historicamente mostrados, explicam a

    necessidade que a escola tem de se adaptar permanentemente, conside-rando, de um lado, as novas expecta-tivas decorrentes das evolues sociais e econmicas e, de outro, os novos conhecimentos sobre o contedo das disciplinas escolares, elaborados prin-cipalmente no campo cientfico (2006, p. 204 - grifos do autor).

    Por muito tempo a escola limitou-se a fazer uma aplicao direta dos sa-beres cientficos ao campo educacional (2006, p. 204). No entanto, tais aplica-es no trouxeram o resultado espera-do por duas razes, segundo Bronckart (2006): a primeira diz respeito falta de observao do estado em que se encon-tra a escola, isto , os sistemas de ensino, os objetivos, os programas, os mtodos de ensino, as caractersticas dos alunos, a formao dos professores; a segunda razo que os novos conhecimentos do campo cientfico no chegam s escolas, porque os procedimentos de aplicao no so eficazes, ou seja, porque no se efetivou uma adequada transposio di-dtica de conhecimentos cientficos para conhecimentos a serem ensinados. Nes-se sentido, Bronckart diz:

    No podemos nunca aplicar direta-mente na Escola os novos conhecimen-tos cientficos, qualquer que seja seu grau de pertinncia e de seu interesse: primeiro, porque, necessariamente, os conhecimentos cientficos tm de ser selecionados, transformados e simpli-ficados para poderem ser compreendi-dos pelos alunos... e pelos professores; segundo, porque esses conhecimentos, por princpio, so incompletos e hipot-ticos, o que faz, inevitavelmente, com que a Escola tenha de suprir essas la-cunas e que, pelo menos em parte, te-nha de construir um saber cujo estatu-to de natureza propriamente escolar (2006, p. 205 - grifo do autor).

    Os estudos realizados por Bron-ckart, com base me pesquisa realizada com professores e tomando por base estudos de ergonomia, mostram que h uma distncia entre o que chama de

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    o trabalho real, o trabalho prescrito e o trabalho de representao (2006, p. 226) na didtica do professor. Resu-midamente, h (a) o trabalho real, que designa as caractersticas efetivas das diversas tarefas que so realizadas pelos trabalhadores em uma situao concreta. Assim, a atividade dos profes-sores em sala de aula pertence a esse nvel (2006, p. 208) e requer que os professores sejam capazes de pilotar um projeto de ensino predeterminado, negociando permanentemente com as reaes, os interesses e as motivaes dos alunos (2006, p. 226-227); (b) o tra-balho prescritivo, que segue instrues, modelos, programas predeterminados pelas instituies, e os professores tm de segui-los e aplic-los; (c) o trabalho representado, que mais difcil de ser apreendido. Com relao a este, a anli-se dos dados da pesquisa do autor mos-tra, tomando por base as declaraes dos professores, a adeso destes aos princpios, metodologia e aos modelos de agir propostos pelos livros didticos, ou seja, os professores tendem a seguir mais uma ideologia presente nos textos prescritivos do que por uma tomada de conscincia sobre o que realmente acon-tece em sua aula (2006, p. 227).

    Embora os estudos mostrem que o trabalho real se caracteriza pelos seus diferentes estilos adotados para reali-zar uma mesma tarefa, as astcias ou os atalhos que inventam, apesar das pres-cries, os recursos cognitivos que mo-bilizam, as dimenses afetivas, relacio-nais e identitrias de seu trabalho, etc. (2006, p. 208), o trabalho representa-do parece ser, ainda, a tendncia atual do trabalho educacional. Com relao

    constatao de Bronckart sobre essa tendncia ao trabalho representado, implicando o grau de conscincia que os professores tm das suas atividades de ensinar, pode-se levantar a hiptese de que isso tambm se aplicaria nossa realidade brasileira de ensino.

    O interacionismo sociodiscursivo de Bronckart posiciona-se em relao aos documentos prescritivos modernos, en-tendendo que h um equvoco em estes considerarem tanto o aluno no centro do dispositivo pedaggico quanto o profes-sor no centro do dispositivo. Trata-se, segundo o autor, de dizer que so as in-teraes professor/aluno que constituem o centro da atividade educacional (2006, p. 228). Essa proposta do interacionismo sociodiscursivo enfatiza

    que a compreenso do trabalho real do professor implica (ou correlativa) a compreenso das caractersticas do funcionamento [...] de alunos concretos em uma efetiva situao de aula (2006, p. 228).

    Consideraes finaisMesmo que tenham sido pouco

    estudados, at o momento, os efeitos da mediao produzidos pela aprendi-zagem e pelo domnio progressivo dos mecanismos de textualizao e da res-ponsabilizao enunciativa, eles nos parecem ser evidentes e importantes (2006, p. 156), diz Bronckart. Nessa perspectiva, em situaes de ensino, quer na recepo, quer na produo de texto, a aprendizagem da distribuio das vozes , por exemplo, uma oportu-nidade de se tomar conhecimento das

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    diversas formas de posicionamento e de engajamento enunciativos construdos em um grupo, de se situar em relao a essas formas, reformulando-as (2006, p. 156), contribuindo, assim, para o desenvolvimento da identidade das pes-soas, nas diferentes situaes de vida.

    Das propostas tericas de aborda-gens de ensino-aprendizagem, o inte-racionismo sociodiscursivo parece ser a que vem ao encontro das necessidades atuais, uma vez que d espaos e con-dies para que a interao professor e aluno seja o centro dos processos de ensinar e aprender de forma mais tica, significativa e eficaz.

    Learning from the perspective of Bronckarts theory of socio-discursive

    interactionism

    AbstractThis article examines the learning

    concept from the perspective of the theory of interactions socio discursive (ISD), Jean-Paul Bronckart (2006). It presents some related concepts in education such as language, action, social activity, textual production, competence, genre, discourse types, among others, that are part of the te-aching/learning.

    Key words: Learning. Language. Edu-cation. Interactions socio discursive.

    Notas1 Aqui so colocados apenas os tpicos. Para

    maiores detalhamentos ver Bronckart, 2006, p. 182 e ss.

    2 Sobre essa tendncia, Bronckart, nessa passa-gem, no traz maiores detalhes.

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