discriminação racial nas escolas hédio silva jr. 2002. 94p

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  • 1. Discriminao Racialnas Escolas: entre a lei e as prticas sociaisHdio Silva Jr. Braslia 20021

2. UNESCO 2002. Edio publicada pelo Escritrio da UNESCO no Brasil. O autor responsvel pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so, necessariamente, as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio, por parte da UNESCO, a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitao de suas fronteiras ou limites. 2 3. Discriminao Racialnas Escolas: entre a lei e as prticas sociaisHdio Silva Jr. 3 4. Edies UNESCO BRASILConselho Editorial da UNESCO no Brasil Jorge Werthein Cecilia Braslavsky Juan Carlos Tedesco Adama Ouane Clio da Cunha Comit para a rea de Cincias Sociais e Desenvolvimento Social Julio Jacobo Waiselfisz Carlos Alberto Vieira Marlova Jovchelovitch NoletoReviso e Diagramao: Eduardo Percio (DPE Studio) Assistente Editorial: Larissa Vieira Leite Projeto Grfico: Edson Fogaa Capa: Paulo Silveira UNESCO, 2002 Silva Jr., HdioDiscriminao racial nas escolas: entre a lei e as prticas sociais / Hdio Silva Jr. Braslia: UNESCO, 2002.96 p.ISBN: 85-87853-80-51. Educao 2. Discriminao Racial 3. Direitos Humanos 4. Problemas Sociais 5. Excluso Social I. UNESCO II. Ttulo CDD 370Division of Women, Youth and Special Strategies Youth Coodination Unit/UNESCO-Paris Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura Representao no Brasil SAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar 70070-914 Braslia DF Brasil Tel.: (55 61) 321-3525 Fax: (55 61) 322-4261 E-mail: [email protected] 4 5. SUMRIOAbstract.........................................................................................0 7Apresentao................................................................................ 09Introduo.....................................................................................11Objetivo......................................................................................... 1 3Parte I........................................................................................... 1 5 1. Os estudos estatsticos.......................................................... 1 51.1. Algumas estatsticas da discriminao racial................. 2 0 2. Possveis outros fatores macrossociais.................................. 27 3. A discriminao no interior da escola................................... 3 13.1. A questo dos PCNs e a excluso.................................. 32 4. A discriminao racial no livro didtico................................ 344.1. Possibilidades e dificuldades daincluso de contedos................................................. 3 9 5. Os estudos empricos............................................................ 4 1 6. Estudos de observao direta............................................... 4 26.1. O silncio como discurso.............................................. 4 9Parte II.......................................................................................... 59 1. Educao e racismo no sistema jurdico brasileiro................ 5 9 2. Pensando uma educao para a igualdade racial................... 7 4 3. reas de conhecimentos a serem exploradas......................... 84Bibliografia....................................................................................85Nota sobre o Autor.......................................................................95 5 6. ABSTRACTEssentially, this book is a comprehensive proposal to overcome racial discrimination in the school system. The book analyses the most common ways that racism is expressed nowadays in society. Discussions include existing stereotypes as well as the importance of using the law to fight discrimination. This involves a discussion of judicial legislation. The author points out that both civil and penal laws must be effective. They must also be obeyed where schools are concerned. The growing importance of education in terms of helping to achieve better living standards is explored. Finally, the author stresses the importance of tackling discrimination by establishing affirmative actions. These include raising the quality of the teaching staff and raising the quality of the classes, as both of these actions are considered to be very useful in assuring that Afro-descendents become part of the higher education system.7 7. APRESENTAO O Plano de Ao aprovado na III Conferncia Mundial Contra o Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata, realizada na frica do Sul, em setembro de 2001, registra uma proposio destinada especialmente UNESCO: Exorta que a UNESCO apie os Estados na preparao de materiais didticos e de outros instrumentos de promoo do ensino, com o intuito de fomentar o ensino, capacitao e atividades educacionais relacionadas aos direitos humanos e luta contra o racismo, discriminao racial, xenofobia e intolerncia correlata1. Em ateno a esta determinao da III Conferncia e coerente com os crescentes esforos feitos pela Representao da UNESCO no Brasil, no sentido de contribuir para o equacionamento da problemtica da discriminao racial no sistema de ensino, temos a satisfao e o orgulho de publicar o presente texto. Trata-se de um primoroso trabalho de compilao dos principais estudos quantitativos e qualitativos sobre discriminao racial e escola, um verdadeiro inventrio da produo de conhecimento e, o que igualmente interessante, da produo legislativa referente ao tema. O autor, advogado, jurista renomado e experimentado quadro poltico do Movimento Negro brasileiro, coordenador do CEERT Centro de Estudos das Relaes de Trabalho e Desigualdades, soube combinar com maestria uma descrio do problema com a indicao das solues legais que tm sido adotadas e, especialmente, com frmulas e sugestes teis para diminuir a distncia que ainda separa o direito formalmente declarado da triste realidade da discriminao racial que atinge negativamente jovens e crianas negras.1 Pargrafo 156. 9 8. Se verdade que polticas de promoo da igualdade racial podem diminuir as taxas de desigualdades entre negros e brancos, atacando a discriminao, no podemos esquecer que preciso atacar com a mesma intensidade a raiz do problema, isto , o racismo e o preconceito. Neste campo,no ser demais lembrar que apenas a educao pode mudar valores, contribuindo para a valorizao da diversidade e a construo de um senso de respeito recproco entre os grupos que conformam esta rica geografia de identidades culturais denominada Brasil.Com a publicao do presente texto, esperamos impulsionar o debate sobre propostas de superao do problema, seja no campo conceitual, seja, sobretudo, no campo das polticas pblicas, envolvendo rgos pblicos, pesquisadores, intelectuais e organizaes da sociedade civil todos juntos na promoo da igualdade racial na escola. Jorge Werthein Diretor da UNESCO no Brasil 10 9. INTRODUOO Brasil assiste a um fenmeno sem precedentes na experinciajurdica nacional: a crescente judicializao de certas temticas, isto , ocrescimento de demandas populares encaminhadas para o PoderJudicirio,notadamente com o objetivo de fazer valer direitos anunciadosformalmente, mas ineficazes no cotidiano. O direito educao situa-se perfeitamente no rol daquelasdemandas, de modo que j se tornou um fato quase corriqueiroa propositura de aes judiciais que visam a obrigar o Poder Executivoa aplicar percentuais oramentrios na rea de educao, ou adisponibilizar vagas nas escolas, ou mesmo a pagar mensalidades eminstituies privadas para alunos aos quais no se assegurou vagas emestabelecimentos pblicos. Num passado recente, integrantes do MinistrioPblico chegaram mesmoa propor denncias e inquritos policiais para punir pais negligentes noencaminhamento de seus filhos escola. Este fenmeno ilustra, de um lado, a ampliao da conscinciasocial de direitos e, de outro, a expanso do controle exercido pelasociedade civil sobre a ao do Estado, especialmente no tocante sobrigaes previstas em lei e, no raro, ignoradas pelos dirigentespblicos. Sendo a educao um direito pblico, nada mais natural que osindivduos, sobretudo em aes coletivas, demandem o Estado,responsabilizando-o pelas carncias, pela excluso e outras violaes de direitos que decorram de aes ou omisses das polticas educacionais. No caso especfico do problema da desigualdade e da discriminaoracial no sistema escolar, flagrante o hiato que separa os enunciadoslegais, os direitos anunciados nos tratados internacionais da alarmante 10. 11 11. realidade, visvel a olho nu, diagnosticada nos estudos e pesquisas sobre o tema e denunciada, h dcadas, pelas entidades do Movimento Negro. Aqui emergem os dois pilares nos quais ambicionamos ancorar o presente texto. De um lado, um esforo de compilao dos estudos e pesquisas quantitativos e qualitativos voltados para a descrio dos principais aspectos das relaes raciais no sistema de ensino. De outro lado, um inventrio da legislao federal pertinente, acompanhado de um panorama de propostas de polticas educacionais direcionadas para a igualdade de oportunidades e tratamento no sistema de ensino. Durante longo perodo se acreditou que a experincia de discriminao racial em sala de aula teria como sujeitos, via de regra, professor versus aluno, e, uma vez ocorrida a discriminao, a soluo passaria pela incriminao a sano penal do professor acusado de discriminao. Contudo, a experincia concreta evidenciou os limites de uma tal equao. De fato, no se trata de um conflito entre indivduos, mas entre o Estado e uma parcela significativa da populao brasileira ao menos metade dos brasileiros(as), segundo o IBGE. Ademais, to ou mais importante do que punir comportamentos individuais, necessitamos de polticas pblicas, polticas educacionais que assegurem eficcia ao princpio da igualdade racial. Mais do que punir, podemos e devemos prevenir. Mais do que combater a discriminao, devemos promover a igualdade. Um caminho possvel para cumprirmos este desiderato dever passar, necessariamente, pela diminuio e mesmo pela eliminao da distncia que separa a igualdade prevista na norma legal das desigualdades que decorrem da omisso e da ineficincia das polticas educacionais. Qui o presente texto colabore no apenas para a medio da referida distncia, mas, sobretudo, para a indicao de pistas de aproximao dos aludidos pilares, de modo que a noo de igualdade racial no sistema de ensino deixe de ser letra morta da lei e passe a designar um dado da realidade. 12. 12 13. OBJETIVOO escopo deste paper subdivide-se em duas linhas distintas e complementares de anlise, s quais, ao final, anexamos um esboo de propostas de superao do problema demarcado. Assim, temos, de um lado, uma reviso das pesquisas e estudos que privilegiaram a reflexo, tanto quanto a demonstrao das principais formas de manifestao e do impacto do racismo, dos esteretipos raciais (especificamente aqueles de natureza antinegro) e da discriminao racial no interior da sala de aula; de outro, um exerccio de confrontao entre os dados da realidade e os instrumentos disponibilizados pelo sistema jurdico brasileiro para o enfrentamento do problema com nfase nos tratados internacionais dos quais o Brasil signatrio; e, por fim, tomando a ttulo de exemplo algumas polticas de estado e de governo assumidas pelo Ministrio da Educao, buscamos agregar proposies favorveis implementao de uma poltica educacional para a igualdade racial.Seja do ponto de vista da produo acadmica, da escala de prioridades do Movimento Negro brasileiro ou da produo legislativa, a temtica da discriminao racial no sistema educacional desponta como um dos aspectos da problemtica racial brasileira, ao qual tem sido dedicada prioridade absoluta.A produo acadmica, por exemplo, contabiliza uma variada gama de estudos, que ora enfocam certos aspectos puramente tericos das manifestaes e fontes da discriminao, ora registram e analisam iniciativas e demandas apresentadas pelo Movimento Negro.Em face deste quadro, e tendo em conta os objetivos deste trabalho, optamos por selecionar os estudos mais representativos de uma corrente de pesquisadores que privilegiam o campo emprico enquanto locus de13 14. acurada observao e registro. Partindo deste procedimento, procuram confirmar ou contrariar teorias, mtodos ou modelos analticos mais adequados realidade brasileira. Embora uma tal produo seja ainda escassa, aquelas que se orientam por esta vertente fornecem, por um lado, um cabedal de conhecimento sobre a variedade de manifestaes com que a discriminao e o racismo projetam-se no cotidiano escolar; por outro, aportam novas abordagens, preocupadas com propostas de intervenes adequadas ao contexto brasileiro e orientadas para a superao da natureza efmera, voluntarista e descontnua que marca as atividades postas em prtica, ainda hoje, na escola brasileira. Por meio da releitura de pesquisas e estudos, procuramos fundar as bases para o argumento final, no qual se reala no apenas a necessidade de se assegurar efetividade aos instrumentos legais de sano civil ou penal da discriminao, mas, sobretudo, a premncia da adoo de medidas que promovam a igualdade de oportunidade e de tratamento no sistema educacional. As manifestaes da discriminao racial na escola conformam um quadro de agresses materiais ou simblicas, de carter no apenas fsico e/ou moral, mas tambm psquico, em termos de sofrimento mental, com conseqncias ainda no satisfatoriamente diagnosticadas, visto que incidem cotidianamente sobre o alunado negro1, alcanando-o j em tenra idade. Par timos, por tanto, da constatao de que a escola , concretamente, um preditor de destinos profissionais, ocupacionais e de trajetrias de vida, segundo a raa-cor do alunado, repercutindo sobre sua vida social e intrapsquica, podendo ser um desencadeador ou um entrave ao seu pleno desenvolvimento2. 1 Neste texto usamos o termo negro. A expresso afro-decendente s ser utilizada nas citaes onde esta classificao prevalea. 2 Segundo Uri Bronfrenbrenner, em seu estudo sobre a Ecologia do Desenvolvimento Humano, o ambiente de cada sistema (micro, meso, exo e macro) e as interaes entre sujeitos, nestes sistemas, podem ser benficas ou malficas ao desenvolvimento humano, enquanto adaptao contnua s mudanas internas do sujeitos em interao e quelas emanadas das relaes entre os sistemas. (Cf. Bronfrenbrenner, 1985). 15. 14 16. PARTE I 1. OS ESTUDOS ESTATSTICOSPreliminarmente, vejamos alguns dados genricos referentes educao no Brasil.As diretrizes curriculares nacionais para a educao infantil, definidas pelo Conselho Nacional de Educao, consoante determina o art. 9, IV da LDB, complementadas pelas normas dos sistemas de ensino dos estados e municpios, estabelecem os marcos para a elaborao das propostas pedaggicas para as crianas de 0 a 6 anos.Por determinao da LDB, as creches atendero crianas de 0 a 3 anos, ficando a faixa de 4 a 6 para a pr-escola, e devero adotar objetivos educacionais, transformando-se em instituies de educao, segundo as diretrizes curriculares nacionais emanadas do Conselho Nacional de Educao.Para a faixa de 4 a 6 anos, dispe-se de dados consistentes, coletados pelo sistema nacional de estatsticas educacionais. Segundo o ultimo censo do IBGE, cerca de 10,1 milhes de crianas esto nessa faixa etria; destas, cerca de 5 milhes 4.973.329 matricularam-se na pr-escola em 2002, o que equivale a 49%. O atendimento maior se d nas idades mais prximas da escolarizao obrigatria, de sorte que a maioria das crianas de 6 anos j est na pr-escola.Existiam, em 2001, 90.682 pr-escolas, das quais o Nordeste detm quase metade (45,8%) e o Sudeste, 1/4 delas (26%). Em relao a 1987, observa-se o mesmo fenmeno que ocorreu com as matrculas: os estados se retraram, mais acentuadamente a partir de 1994, visto que em 1993 detinham 31% dos estabelecimentos e, atualmente, somente 8,8%. Os municpios passaram de 47,4% para 65,7%, e a iniciativa privada, de 22,7% para 25,4%. Em relao ao nmero de alunos por estabelecimento, 17. 15 18. interessante observar que quase metade (45%) atende a at 25 alunos, o que caracteriza pequenas unidades pr-escolares de uma sala. Com mais de 51 alunos temos apenas 29,4% dos estabelecimentos. A mdia de alunos por turma, em 2001, na pr-escola era de 21,3. Estes dados so merecedores de ateno, considerando-se que nos primeiros anos de vida, dada a maleabilidade da criana s interferncias do meio social, especialmente da qualidade das experincias educativas, fundamental que os profissionais sejam altamente qualificados. Nvel de for mao acadmica, no entanto, no significa necessariamente habilidade para educar crianas pequenas. Da porque os cursos de formao de magistrio para a educao infantil devem ter uma ateno especial formao humana, questo de valores e s habilidades especficas para tratar com seres to abertos ao mundo e to vidos de explorar e conhecer, como so as crianas. Note-se que, a partir de 1993, as matrculas quase estacionaram no patamar de 4,2 milhes, certamente no por ter alcanado a satisfao da demanda, uma vez que o dficit de atendimento bastante grande. Considerando o aumento do nmero de famlias abaixo do nvel de pobreza no Brasil, que vem-se verificando nos ltimos anos, conclui- se que h uma demanda reprimida ou um no-atendimento das necessidades de seus filhos pequenos. Observando a distribuio das matrculas entre as esferas pblicas e a iniciativa privada, constata-se uma reduo acentuada no atendimento por parte dos estados, uma pequena reduo na rea particular e um grande aumento na esfera municipal. Em 2002, de um total de 4.973.329, o nmero de matrculas dos estados corresponde a 302.317, enquanto que as matriculas nos municpios foram de 3.400.968, o que equivale a 68%. J a iniciativa privada registrou cerca de 1.266.293, ou seja, 25%. Esse fenmeno decorre da expresso e presso da demanda sobre a esfera de governo (municipal) que est mais prxima s famlias e corresponde prioridade constitucional de atuao dos municpios nesse nvel, simultaneamente ao ensino fundamental. De acordo com a Constituio brasileira, o ensino fundamental obrigatrio e gratuito. O art. 208, modificado pela Emenda Constitucional n 14, preconiza a garantia de sua oferta, inclusive para todos os que a ele 19. no tiveram acesso na idade prpria. bsico na formao do cidado, 16 20. pois, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, em seu art. 32, o pleno domnio da leitura, da escrita e do clculo constituem meios para o desenvolvimento da capacidade de aprender e de se relacionar no meio social e poltico. prioridade oferec-lo a toda populao brasileira.O art. 208, 1, da Constituio Federal afirma: O acesso ao ensino obrigatrio e gratuito direito pblico subjetivo, e seu no- oferecimento pelo Poder Pblico ou sua oferta ir regular implica responsabilidade da autoridade competente.As matrculas do ensino fundamental brasileiro superam a casa dos 35 milhes, nmero superior ao de crianas de 7 a 14 anos (que de 26.963.288) representando 130,6% dessa faixa etria. Isto significa que h muitas crianas matriculadas no ensino fundamental com idade acima de 14 anos. Em 2002, havia mais de 8 milhes de pessoas nesta situao. A excluso escolar de crianas na idade prpria, seja por incria doPoder Pblico, seja por omisso da famlia e da sociedade, configura uma forma perversa de excluso social, pois nega o direito elementar de cidadania, reproduzindo o crculo da pobreza e da marginalidade e alienando milhes debrasileiros de qualquer perspectiva de futuro. A repetncia devastadora que grassa nas escolas pblicas do pas, indiscutivelmente, costuma funcionarcomo um nus para qualquer poltico. Infelizmente, no se apresenta comoum nus to pesado como devia, porque atinge especialmente uma faixa dapopulao, a pobre (....) que, equivocadamente, atribui os maus resultadosescolares dos seus prprios filhos sua incapacidade hereditria de aprender na escola (Grossi, 2000).3 uma prtica recorrente atribuir exclusivamente ao aluno a responsabilidade pelo fracasso escolar. Em pleno processo de industrializao, o analfabetismo foi, e ainda o , visto como causa e no como efeito da situao econmica. Em 1947, o adulto analfabeto foi assim definido: Dependente do contato face a face para enriquecimento de sua experincia social, ele tem que, por fora, sentir-se uma criana grande, irresponsvel e ridcula (....). E, se tem as responsabilidades dos adultos, manter uma famlia e uma profisso, ele o far em plano deficiente.3 Esther Pillar Grossi, Ptio, p. 40. 21. 17 22. O analfabeto, onde se encontre, ser um problema de definio social, quanto aos valores: aquilo que vale para ele sem mais valia para os outros e se torna pueril para os que dominam o mundo das letras. (Paiva, 1983)De acordo com o censo escolar, em 2001 a distoro de idade/ srie era de 39,1%. No Nordeste essa situao mais dramtica, chegando a 57,1%.Esse problema d a exata dimenso do grau de ineficincia do sistema educacional do Pas: os alunos levam, em mdia, 10,4 anos para completar as oito sries do ensino fundamental. Segundo informaes do MEC, este nmero vem diminuindo a cada ano, sendo que, em 1995, era de 11 anos.Alm de indicar atraso no percurso escolar dos alunos, o que tem sido um dos principais fatores de evaso, a situao de distoro idade- srie provoca custos adicionais aos sistemas de ensino, mantendo as crianas por perodo excessivamente longo no ensino fundamental.Por outro lado, de acordo com a contagem da populao realizada pelo IBGE em julho de 1996, so cerca de 2,7 milhes de crianas de 7 a 14 anos fora da escola, parte das quais nela j esteve e a abandonou. O atraso no percurso escolar, resultante da repetncia e da evaso, sinaliza para a necessidade de polticas educacionais destinadas correo das distores idade-srie. A expressiva presena de jovens com mais de 14 anos no ensino fundamental, demanda a criao de condies prprias para a aprendizagem dessa faixa etria, adequadas sua maneira de usar o espao, o tempo, os recursos didticos e s formas peculiares com que a juventude tem de conviver.Muitas vezes, porm, os programas especiais voltados para jovens e adultos, no vo alm da oferta de um ensino de qualidade inferior ao oferecido no ensino regular, sem ampliar as oportunidades educativas deste grupo ou atender a suas necessidades bsicas de aprendizagem. O termo supletivo, cunhado na dcada de 30 perodo em que a refor ma educacional passa a dimensionar a relao faixa etria e srie j nasce carregado de um carter pejorativo, motivado pela idia de uma noo educativa parcial, concentrada, limitada e limitante. Os contedos oscilam entre noes bsicas de leitura, escrita e clculos, a orientaes para a 23. 18 24. insero no mercado de trabalho, sem discutir qualidade de vida, igualdade de condies e os mecanismos que os colocaram fora do ensino regular e precocemente no mercado de trabalho. Grande parte dos alunos que chegam escola de jovens e adultos quer apenas um diploma que lhe conceda alguma vantagem no mercado de trabalho. A dificuldade em estudar noite, aps uma longa jornada de trabalho, faz com que inicie e interrompa vrias vezes a mesma srie. Os cursos no presenciais, por sua vez exigem grande disciplina e inviabilizam os momentos de troca, fundamentais para a aprendizagem. A LDB, em seu art. 34, 2, preconiza a progressiva implantao do ensino em tempo integral, a critrio dos sistemas de ensino, para os alunos do ensino fundamental. medida que forem sendo implantadas as escolas de tempo integral, mudanas significativas devero ocorrer quanto expanso da rede fsica, atendimento diferenciado da alimentao escolar e disponibilidade de professores, considerando a especificidade de horrios. Por seu turno, o nmero reduzido de matrculas no ensino mdio apenas cerca de 8.783.737 da populao de 15 a 17 anos, que de 10.702.499 jovens, segundo o Censo 2000, alarmante. A excluso do ensino mdio deve-se s baixas taxas de concluso do ensino fundamental, que, por sua vez, esto associadas baixa qualidade daquele nvel de ensino, da qual resultam elevados ndices de repetncia e evaso. Entre 1996 e 2002, a expanso neste nvel de ensino foi de 53%, com o ingresso de 3 milhes de estudantes. De 2001 a 2002, houve um crescimento de 5%, o que representa um acrscimo de 386 mil matrculas. O ensino mdio convive, tambm, com alta seletividade interna. Se os alunos esto chegando em maior nmero a esse nvel de ensino, os ndices de concluso, nas ltimas dcadas, sinalizam que h muito a ser feito. No coorte 1970-73, 74% dos que iniciavam o ensino mdio conseguiam conclu- lo; no coorte 1977-80, este ndice caiu para 50,8%; no de 1991-94, para 43,8%; de 1994 a 2001, houve um crescimento de 102% no nmero de concluintes. As metas de expanso da oferta e de melhoria da qualidade do ensino mdio devem estar associadas, de forma clara, a diretrizes que levem correo do fluxo de alunos na escola bsica, hoje com ndices de distoro idade-srie inaceitveis. 25. 19 26. J quanto ao nvel superior, a matrcula nas instituies de educao superior vem apresentando um rpido crescimento nos ltimos anos. Apenas em 1998, o nmero total de matriculados saltou de 1,945 milho, em 1997, para 2,125 milhes, em 1998. Em 2000, o nmero de matrculas no ensino superior foi de 2.694.245, segundo dados do Inep. O MEC assinala que houve um crescimento de 62% entre 1994 a 2000, com uma taxa de expanso de 11% ao ano entre 1997 e 2000. Por fim, as funes docentes em educao bsica, em todas as modalidades de ensino, passam de 2 milhes. O nmero de professores menor, considerando que o mesmo docente pode estar atuando em mais de um nvel e/ou modalidade de ensino e em mais de um estabelecimento, sendo, nesse caso, contado mais de uma vez. As funes docentes esto assim distribudas, segundo os dados de (MEC/INEP 2001): Educao infantil: 248.632Classes de alfabetizao: 41.045Ensino fundamental: 1.553.181Ensino mdio: 448.569Educao especial: 42.641Educao de jovens e adultos: 152.302 1.1. Algumas Estatsticas da Discriminao Racial Durante um certo perodo, quando se abordava a questo da discriminao no trabalho, neste pas, tanto o Movimento Negro quanto estudiosos e pesquisadores acreditavam que a discriminao manifestava- se na ponta final das relaes raciais, isto , a parcela negra da populao defrontava-se com o racismo no momento do ingresso e/ou no curso da relao de trabalho. Posterior mente, com o auxlio de estudos principalmente estatsticos sobre o processo educacional brasileiro, notou-se que essa discriminao estava situada na ponta inicial do processo, uma vez que a trajetria de escolaridade era intensamente diferenciada por raa/cor, desde o acesso, passando pela permanncia e finalizao da trajetria escolar, a qual, por sua vez, era definidora de capacidade competitiva, num mercado de trabalho formal que 27. demandava cada vez mais competncias especficas e altamente desenvolvidas. 20 28. Perguntas comearam a surgir, direcionadas primeiramente para a permanncia no sistema pblico de ensino, considerado o mais acessvel para a populao negra, especialmente aquela situada nas grandes metrpoles, j que as taxas de permanncia dos vrios grupos raciais localizados nas regies mais pobres apresentam menor distncia entre si, compara tivamente s regies mais desenvolvidas. Assim, Flvia Rosemberg e Edith Piza destacavam: Residir no Nordeste ou Sudeste no afeta as oportunidades de ser alfabetizado se o rendimento for superior a dois salrios mnimos; ter 10 ou 39 anos tambm pouco afeta entre sulinos e nordestinos as oportunidades de aprender a ler e a escrever, se os nveis de rendimentos forem superiores. Porm, ser pobre nestas regies afeta, e muito, as oportunidades de letramento. Assim, para todas as faixas etrias, os ndices de analfabetismo so piores nas regies que concentram um maior nmero de pobres4. A concluso de que pobreza e raa-cor esto inextricavelmente ligados aos anos de escolaridade e trajetria escolar tem sido a tnica, que por sua vez no permitiria mais isolar raa-cor como variveis, mas como invariantes a serem pesquisadas em todas as coletas sobre populao. Assim, dados recentes do Ipea apontam as discrepncias entre populaes negras e brancas. O presidente do Ipea [....] abordou a relao entre desenvolvimento, pobreza e questes raciais. Segundo Paes de Barros, a pobreza tambm est concentrada no Nordeste. L esto 63% dos pobres do pas e apenas 15% dos ricos. Se acabssemos com as diferenas educacionais dessas pessoas, eliminaramos metade da diferena de renda5, ressaltou. O Ipea calcula que 65% dos brasileiros pobres so negros, contra 20% dos ricos (Folha de S.Paulo, 08/5/2001). Ricardo Henriques declara que Os efeitos idade raa se combinam de forma a que os oito piores grupos de nossa estratificao correspondem ao conjunto de homens e mulheres pretos ou pardos entre 0 e 14 anos de idade. Em todos esses grupos a pobreza superior a 60%. No outro extremo, temos um total de 12 grupos, onde a pobreza incide 29. 4 Flvia Rosemberg & Edith Piza. A educao nos Censos Brasileiros. p. 84. 5 Ricardo Paes de Barros; Ricardo Henriques & Rosane Mendona. A estabilidade inaceitvel: desigualdade e pobreza no Brasil. p. 26. Lauro Ramos & Maria Lucia Vieira. Desigualdade de rendimentos no Brasil nas dcadas de 80 e 90: evoluo e principais determinantes. p. 11. 21 30. entre 8,5% e 25%, sendo que os sete primeiros grupos os relativamente menos afetados entre os pobres so todos brancos adultos. A incidncia da pobreza extrema [....] respeita a mesma hierarquia entre grupos6.Grfico 1Distribuio da populao por dcimos da renda, segundo a cor Brasil: 1999Proporo (%)100 90 80 70 60 50 40 30 20 100 12 3 4 5678 9 10DCIMOS DA DISTRIBUIO DE RENDABrancaDcimos da distribuio de rendaNegra *? Branca ? Negra* Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD) de 1999. Nota: *A populao negra composta por pardos e pretos.No Grfico 1, Henriques demonstra que: A anlise da composio dos extremos de distribuio nos revela no s a inaceitvel desigualdade de renda brasileira, mas tambm sua perversa composio racial7. O mesmo autor comenta: o reconhecimento de que a maioria dos negros pertence aos segmentos de menor renda per capita e que os negros ricos so menos ricos que os brancos ricos nos permite derivar uma clivagem socioeconmica que pode traduzir-se em dois mundos: um Brasil branco,6 Ricardo Henriques. Desigualdade racial no Brasil: evoluo das condies de vida na dcada de 90, p. 15. 31. 7 Idem, Desigualdade racial no Brasil: evoluo das condies de vida na dcada de 90, p. 18.22 32. mais rico e mais desigual, e um Brasil negro, mais pobre e mais equnime [....] O Brasil branco cerca de 2,5 vezes mais rico que o Brasil negro8.Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, comparando os dados das PNADs de 1976, 1986 e 1998, observam que embora os anos de estudo tenham aumentado para as populaes de todas as regies, isto no se reverteu em benefcios diretos para as populaes. Grfico 2Anos de Estudo das Pessoas de 15 Anos ou Mais, segundo Cor, Sexo,,,,, Regio e Quintos de Renda Familiar per capita 1976, 1986 e 199819761986 1998998 976986 Brasil 3,84,5 5,9 Brancos4,55,4 6,8 No-Brancos* 2,73,9 4,7 -B/B % 58,9 63,169,0 1976 Homens 3,94,6 5,8 Mulheres 3,74,5 6,0 M/H % 94,9 98,0 103,6 Norte/Centro-Oeste** 4,5 4,8 6,0 Nordeste2,43,14,5 Sudeste 4,55,26,6 Sul 4,04,86,3 Coeficiente de Variao 0,203 0,150 0,111 1 1,42,03,3 2 2,12,84,1 3 2,93,84,9 4 4,25,06,4 5 6,87,99,4 +20/-20+20/-20 4,84,02,9 Fonte: Tabulaes especiais das PNADs de 1976, 1986 e 1998. * No-Brancos inclui pessoas de cor preta e parda. ** Somente populao urbana da regio Norte. 8 Idem, Desigualdade racial no Brasil: evoluo das condies de vida na dcada de 90, pp. 19 e 20.23 33. Os autores comentam: A lenta, mas contnua, expanso educacional das ltimas duas dcadas elevou o nvel de instruo da populao e diminuiu a desigualdade educacional entre regies, grupos de cor, gnero e estratos de renda. O exerccio de decomposio dos fatores explicativos da melhoria educacional proposto neste trabalho sugere, como estimativa conservadora, que aproximadamente 60% dessa melhoria devido mudana nas condies de vida e distribuio geogrfica das famlias, decorrente da urbanizao e da transio demogrfica, devendo-se os 40% restantes s melhorias efetivas no desempenho do sistema educacional. Destaca-se, finalmente, que, nestas duas dcadas finais do sculo, a elevao do patamar educacional, junto com a diminuio das desigualdades educacionais, no foram acompanhadas por uma elevao do nvel de renda e uma melhoria na sua distribuio9. Com base nas coletas sobre educao da PNAD-1982 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio), Hasenbalg e Valle Silva concluram que, quando comparados aos brancos, os pretos e pardos tm probabilidade trs vezes maior de continuar sem instruo ou sem completar a primeira srie do primeiro grau. Destacam ainda que, entre os grupos de cor (pardos e pretos), o grau de maior desigualdade de oportunidades encontra-se no nvel do ensino superior: No Brasil, os brancos, com relao aos pretos, tm 8,5 vezes mais chances de acesso universidade e relativamente aos pardos a probabilidade de quase cinco vezes mais. Hasenbalg e Valle e Silva concluem ainda que o Brasil aproxima-se mais da frica do Sul do que dos Estados Unidos, no que diz respeito s oportunidades que negros tm de ingressar no ensino superior (Hasenbalg e Silva, 1991: 245). Flvia Rosemberg e colaboradoras10 realizaram um importante estudo sobre rendimento escolar dos segmentos raciais branco e negro no Estado de So Paulo. Ela conclui que as crianas negras tendem a repetir o ano com uma freqncia maior do que as brancas. As autoras destacam, tambm, que as crianas negras so excludas mais cedo do sistema escolar, particularmente na passagem da 3a para a 4a srie do 1o grau. As crianas 34. 9 Nelson do Valle Silva & Carlos A. Hasenbalg. A tendncia das desigualdades educacionais no Brasil, pp. 7 e 18. 10 Rosemberg, Flvia; Pinto, Regina & Negro, Esmeralda. A situao educacional de negros (pretos e pardos), p. 19.24 35. negras, segundo Rosemberg, apresentam uma trajetria escolar mais acidentada do que as crianas brancas, vivenciando um maior nmero de afastamentos e retornos para a escola, o que indica uma interao difcil entre o sistema escolar e o alunado negro. Rosemberg e colaboradoras ressaltam que, apesar das dificuldades, o alunado negro esfora-se por permanecer na escola. A autora levanta, ainda, uma importante hiptese sobre as dificuldades do alunado negro, que tende a ser encaminhado ou aceito com mais freqncia pelas escolas carentes: segundo Rosemberg, as famlias negras podem estar encaminhando seus filhos para equipamentos sociais freqentados por negros ou por populaes brancas mais pobres, como um mecanismo de defesa contra a discriminao racial. Rosemberg formula, tambm, a hiptese da segregao espacial dos segmentos raciais, que vem a ser confirmada pelos estudos de Edward Telles11. Telles aponta uma segregao residencial no espao urbano brasileiro, estando os negros confinados s reas mais pobres e carentes dos centros urbanos, ainda que legalmente a segregao espacial no exista no Brasil. Note-se que, nestas reas, os equipamentos educacionais pblicos so menos adequados, seja do ponto de vista da conservao dos prdios, seja da qualidade do ensino ministrado12. Estudos, anteriores, como os de Luiz C. Barcelos, Nelson do Valle Silva e em outros mais recentes, como o de Nelson do Valle Silva e Carlos A. Hasenbalg13, e o de Ricardo Henriques14, apontam que os ndices educacionais para negros e brancos continuam apresentando diferenciais mais do que significativos, especialmente nos nveis de 2 e 3graus, embora, as diferenas venham-se reduzindo gradativamente para a escola de 1 grau. Em 1992, a escolarizao das crianas negras de 7 a 14 anos 11 Edward E. Telles. Contato racial no Brasil urbano: anlise da segregao residencial nos quarenta maiores centros urbanos do Brasil, em 1980, p. 362. 12 Pierre Bourdieu, em Contrafogos: ttica para enfrentar a invaso neoliberal, comenta a poltica habitacional europia ps-liberal. Diz ele: Penso particularmente na poltica da habitao. (....) Esta poltica, em certo sentido, foi bem-sucedida demais. Seu resultado ilustra o que eu dizia h pouco sobre os custos sociais de certas economias. Pois ela certamente a causa maior da segregao espacial, com isso, dos problemas ditos de subrbio, p. 15. 13 Luiz Cludio Barcelos. Educao: um quadro de desigualdades raciais, pp. 7-23; Nelson do Valle Silva. Distncia social e casamento inter-racial no Brasil, pp.17-53; Nelson do Valle Silva e Carlos A. Hasenbalg. Tendncias da desigualdade Educacional no Brasil, s/p. 14 Idem, Desigualdade racial no Brasil: evoluo das condies de vida na dcada de 90, p. 30. 36. 25 37. era 12% inferior das crianas brancas. Em 1999, esta distncia foi reduzida para 4%, segundo dados do MEC. Luiz Carlos Barcelos15, em particular, levantou um quadro de desigualdades, em 1988, que parece persistir, como afirma Ricardo Henriques, entre geraes. Entretanto, mesmo nos nveis de 1 grau, a defasagem entre a mdia de anos de estudo para pessoas de 25 anos ou mais ainda bastante expressiva entre negros e brancos. Uma pessoa branca chegava a atingir, em 1999, 6,6 anos de estudo, enquanto uma pessoa negra, no mesmo ano, estaria estacionada em 4,416. Essa diferena pode parecer inexpressiva, num universo onde a taxa de analfabetismo para pessoas negras de 15 anos e mais de 21,0%, enquanto para as pessoas brancas de 8,3% (PNDA, 1999). Entretanto, os jovens de 25 anos e mais apresentam diferenciais bem mais substantivos. De fato, a escolaridade mdia de um jovem negro com 25 anos de idade gira em torno de 6,1 anos de estudo; um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos de estudo. O diferencial de 2,3 anos. Apesar de a escolaridade de brancos e negros crescer de forma contnua ao longo do sculo, a diferena de 2,3 anos de estudo entre jovens brancos e negros de 25 anos de idade a mesma observada entre os pais desses jovens. E, de forma assustadoramente natural, 2,3 anos de estudo a diferena entre os avs desses jovens. Alm de elevado, o padro de discriminao racial, expresso pelo diferencial na escolaridade entre brancos e negros, mantm- se perversamente estvel entre as geraes17. Aqui, deve-se considerar o significado simblico e concreto dessa defasagem. Ter terminado o primeiro grau oferece sempre alguma chance a mais no universo do trabalho e da possibilidade de continuidade dos estudos. Entretanto, a ausncia expressiva de negros a partir da 7a srie do 1 grau pode ser preditora de determinados lugares sociais e funcionais de baixssimo rendimento, impossibilitando mobilidade social. Se os estudos dos dados estatsticos acompanham pari passu mudanas ou permanncias no processo de excluso escolar da populao 15 Luiz Carlos Barcelos. op. cit., Tabelas 3.1 e 3.2, em anexo, p. seguinte. 16 Ver idem. Desigualdade racial no Brasil: evoluo das condies de vida na dcada de 90, p. 30. 17 Ricardo Henriques, 20/11/2001, mimeo. 38. 26 39. negra, por outro lado, estabelecem um outro fator que no pode ser desconsiderado. O que se obser vava nos primeiros estudos era a dimenso econmica desigual, quando as faixas de rendimento da populao estivessem abaixo de dois salrios mnimos. E era bvio que a parcela da populao com rendas abaixo desta faixa era composta por boa parte do contingente negro da populao. Entretanto, se os aspectos econmicos alteravam trajetrias, uma outra pergunta se colocava: para os que se encontravam na mesma faixa de possibilidade de permanncia, qual o fator de diferenciao de trajetrias? Ademais, a incipiente alterao nos dados sobre anos de escolaridade por idade e raa-cor, capturada nas estatsticas mais recentes, conferiu a esta pergunta um maior grau de complexidade: para as crianas negras que conseguiriam acesso e um maior tempo de permanncia na escola, que fatores agiriam no sentido de exclu-las da igualdade de oportunidade? 2. POSSVEIS OUTROS FATORES MACROSSOCIAISA educao de primeiro grau, no Brasil, passou por reformas drsticas no perodo dos ltimos 30 anos. De uma escola elitista e direcionada para a formao da classe mdia branca, foi rapidamente expandida, a partir da Lei n 5.692, de 11 de agosto de 1971; porm esta democratizao do acesso ao ensino de primeiro e segundo graus no foi acompanhada de uma preparao do magistrio para lidar com classes numericamente grandes e racialmente heterogneas. Os paradigmas do ensino prosseguiam apoiando-se em valores de classemdiabranca, independentemente da classe social de professores(as) que ministrariam aulas nesta classe. A insuficincia de equipamentos escolares levou diminuio da carga horria e das atividades escolares em at trs turnos, o que diminua, em muito, a disponibilidade de professores(as) no atendimento a problemas especficos de aprendizagem. Assim, a democratizao foi feita nos moldes da quantidade de alunos atendidos e no na qualidade do ensino ministrado. A formao de professores foi ainda prejudicada pela regionalidade do ensino, previsto em lei, ou seja, cada regio desenvolveria suas prprias 27 40. modalidades de ensino (especificamente o da Lngua Portuguesa), j que diferentes regies poderiam incluir um vocabulrio regional de conhecimento imediato do aluno. A questo no estava em se um aluno do Nordeste nunca tinha visto uma ma (e, portanto, ma deveria ser substituda por jaca), mas se o grau de preparo de professores(as) bastante diferenciado por regio para lidar com as ditas regionalidades estaria altura das demandas do alunado, se previa a curiosidade infantil e se contemplava a rapidez das informaes s quais as crianas brasileiras estavam expostas em todas as regies pela expanso dos meios de comunicao. Outra, era a situao de professoras de comunidades negras, especialmente no Nordeste. Mulheres que atingiam um certo grau de escolaridade no necessariamente o 2 grau, como previa a lei18 voltavam a seus locais de origem para ensinar em classes multisseriadas, tendo de dar conta no apenas de ensinar, mas de preparar a merenda, limpar a escola, a cozinha e preparar material e exerccios para que as crianas, em sua maioria negras, fossem realizando, enquanto elas se ocupavam de outros afazeres ligados ao cotidiano das pequenas escolas rurais19. O acmulo de perdas decorrentes do mau planejamento da expanso de acesso ao ensino de 1 grau mereceria, por si s, um estudo bastante aprofundado, pois as maiores taxas de evaso, especialmente do alunado negro, ocorrem no perodo entre 1980 e 1990, quando as decorrncias do processo de democratizao j estavam plenamente instaladas20. Uma outra resposta possvel poderia englobar trs aspectos mais atuais: 1) processos da chamada educao progressiva, que possibilitariam menores ndices de repetncia; 2) a facilitao de a educao progressiva proporcionar melhoria efetiva na qualidade do ensino, sem pressupor formao adequada de professores e funcionrios diante dos fatores bsicos de discriminao; 3) os sistemas de incluso de crianas com problemas de aprendizagem em classes regulares e a predio sobre os destinos escolares de crianas negras; e 4) como pondera Silva (2001), a 18 Lei n 5.692, de 11/08/71, p. 11. 19 Caderno de Pesquisa. Dossi Raa Negra e Educao, 1988. 41. 20 Ver Luiz Carlos Barcelos, 1998, e seu trabalho sobre anos de escolaridade e rendimento entre alunos negros e brancos.28 42. educao escolar, por si mesma, no poderia prevenir o racismo e a intolerncia, como tratam as legislaes sobre este tpico. No que se refere educao progressiva, h um acirrado debate sobre seus propsitos e seus efeitos. A organizao do sistema educacional em ciclos, como preconizado pela LDB/96 (Lei n 9.394/96) se fundamenta em alguns pressupostos: o aluno repetente oneroso para o Estado; a reprovao contribui para a excluso escolar, uma vez que afeta a auto-imagem do aluno; o ciclo seria a nica forma de organizao do ensino, capaz de romper a artificialidade da diviso do conhecimento em sries. Alguns autores defendem que o fator tempo (....) um dos mais influentes componentes do complexo processo de ensino-aprendizagem, fica muito menos rgido e muito mais prximo do ritmo real [natural] de cada criana (Ldke, 2000)21. A mesma autora pondera, porm, que mudanas bruscas, sem maior aprofundamento e discusso, pode levar a fracassos totais: promoo automtica, supresso da avaliao, passando o aluno de um professor para o outro, sem que se verifique e faa os necessrios ajustes para que haja aprendizagem. Outra autora bastante contundente na crtica aos ciclos, rebatendo o conceito de ciclos naturais de aprendizagem, questionando o fato de que aprender no um processo biolgico natural. , sim, um processo psicossocial no corao de uma experincia cultural. Ele resulta intrinsecamente de uma interveno pedaggica, formal ou informal, do ambiente onde se inscreve quem aprende. Aprende-se porque outros nos ensinam (Grossi, 2000)22. Nesta concepo, a reprovao seria fruto de uma inadequada interveno pedaggica, devendo ser atacada justamente neste aspecto: objetivos educacionais bem definidos e realizveis concretamente; estratgias didticas inteligentemente articuladas; valorizao dos vnculos entre os alunos, pela permanncia dos grupos; avaliao per manente como forma de orientar o planejamento do professor. Ciclo ou srie? O que se tem um grande descontentamento por parte de pais, educadores e sociedade em geral, a partir da constatao de 21 Menga Ldke. Um olhar sociolgico sobre a avaliao escolar, pp. 14-19. 22 Esther Pillar Grossi, Ptio, p. 40.29 43. que os jovens tm chegado ao ensino mdio sem saber se comunicar por meio da escrita. Os alunos, por sua vez, dizem perder o interesse em ir para a escola, pois o professor nem reprova nem ensina. No estaria a mais um mecanismo de excluso velada da populao negra?Analisando o terceiro aspecto por ns apontado, Flvia Rosemberg diz que, com o crescimento do nmero de pr-escolas e o barateamento dos custos com pessoal especializado, a criana negra vem sofrendo um processo de transio da pr-escola para a escola formal de 1o grau,[....] marcado por um processo de reteno de certos segmentos de alunos: especialmente negros e do sexo masculino. O ensino fundamental [atualmente merecendo uma ateno maior quanto ao preparo de professores] depura-se por meio da educao infantil: retm alunos(as) candidatos(as) ao fracasso [....]; e continua: No plano micro, o mesmo padro de segregao espacial, associado a trajetrias paralelas de educao infantil e de educao geral para crianas maiores (7 a 11 anos) quando a pr- escola define-se e dirige-se a crianas de 0 a 6 anos e aos preconceitos social/racial praticados cotidianamente no sistema educacional, permitem entender os guetos socioraciais observados. No encontro outra explicao possvel, alega-se a manuteno do pessimismo racial, que nos acompanha desde o sculo XIX (a apatia, indolncia e imprudncia do populacho negro), para entender a reteno to precoce de crianas negras na educao pr- escolar. Aposta-se, de antemo, que esta criana ter problemas no ensino fundamental.23O que o estudo aponta, como sugesto, que, no processode reteno de crianas em idade incompatvel com as creches, est subentendido um aspecto que pode ser considerado como altamente transgressor dos valores constitucionais e dos programas sociais de escolarizao da populao. Ao instituir a incluso de alunos com deficincias de aprendizagem em classes regulares, a resistncia do sistema de ensino geral recai sobre crianas negras, vistas, a priori, como menos dotadas intelectualmente. Sob este aspecto, o tratamento dado a estas crianas, seja em creches retidas como subdotadas ou mantidas parte e sofrendo a presso constante de colegas e professores com 44. 23 Flvia Rosemberg. Educao, Gnero e Raa, p. 21. 30 45. punies e outros comportamentos que tm sido apontados por estudo feito na regio de Itarar, So Paulo, por Giovanna Gusmo24 , o processo de incluso (mais apropriado seria dizer excluso velada) de crianas consideradas com problemas de aprendizagem no passa nem pelas estratgias de verificao neuropsicopedaggicas, nem pela crtica aos modelos instr ucionais adotados. Correm paralelas discriminao sociorracial e ancora-se em atitudes preconceituosas que levam a prticas discriminatrias que beiram a ilegalidade.No quarto caso, Petronilha Beatriz Gonalves e Silva afirma que a educao escolar, por si mesma, no poderia ser um elemento de preveno contra o racismo e a intolerncia, como propem as normas e leis que se remetem ela, sem que haja deliberado empenho em recriar as relaes sociais com que vamos construindo nossa identidade e nossa nao [....]. Embora concordando com os aspectos, de que faz elaborada reflexo, sobre a construo histrico-social das hierarquias em sistemas patriarcais, desejamos ressaltar que as tomadas coletivas de propostas educacionais variadas, visando comunidade negra, podem sofrer alteraes e descontinuidade, sem o amparo legal e normativo de atividades de formao slida, principalmente da comunidade branca, para consolidar que as relaes entre grupos e pessoas tornem-se efetivamente igualitrias, na escola, na educao como um todo e em todos os planos da vida social e comunitria 25. 3. A DISCRIMINAO NO INTERIOR DA ESCOLASe as prprias instncias governamentais se preocupam atualmente em trabalhar, no interior dos currculos, temas voltados para a superao da discriminao e da excluso social tnico-raciais, deve-se considerar que estas mesmas instncias reconhecem a existncia da discriminao. Portanto, a resposta para a problemtica das relaes raciais no espao escolar poderia ser buscada, especialmente, no interior mesmo das escolas. Porm, poucos foram os estudos que se propuseram a obser var as24 Giovanna Gusmo. O papel do coordenador pedaggico na poltica de incluso de crianas com deficincia de aprendizagem na escola fundamental. (Dissertao em andamento) 25 Petronilha Beatriz Gonalves e Silva. Pode a educao prevenir contra o racismo e a intolerncia, p. 105. 46. 31 47. interaes e relaes entre professor-aluno e aluno-aluno, no interior daescola. Menos ainda, a relao alunos-agentes educativos (diretores,coordenadores, inspetores de aluno, equipe operacional), que muitas vezes marcada por autoritarismos e vises estereotipadas, que poderiam serexemplificadas nas falas: O pessoal da favela s vem na escola para comer; ou No adianta chamar o pai, porque ele s sabe beber!; ou ainda, Osalunos negros so os que mais do trabalho no recreio. Adoram umabaguna! Em um primeiro momento, os estudos voltaram-se para a estereotipia em livros didticos e paradidticos, apontadas como responsveis pelas imagens negativas com as quais alunos negros tinham de conviver e que, portanto, era necessrio reconsiderar o livro didtico na diversidade racial de seu pblico-alvo, for mulando novas imagens, mais positivas e igualitrias. O peso conferido s imagens de negros em livros didticos e paradidticos foi efetivamente tratado como um caso de polcia, pelo menos em uma situao, cujos traos emblemticos ilustram com fidelidade a dimenso e a gravidade deste problema na sociedade brasileira.3.1. A questo dos PCNs e a exclusoOs PCNs (Parametros Curriculares Nacionais), criados pelo MEC em 1998, apesar do seu carter de parmetro e no-obrigatoriedade, complementar s orientaes curriculares e LDB/96, quando propem a abordagem da Pluralidade Cultural como um tema transversal, com os objetivos, entre outros, de possibilitar o conhecimento do patrimnio tnico- cultural brasileiro; reconhecer as qualidades da prpria cultura, valorizando- a criticamente e enriquecendo a vivncia da cidadania; repudiar e denunciar toda e qualquer forma de discriminao baseada em diferenas de raa, etnia, classe social, crena religiosa, sexo e outras caractersticas individuais ou sociais. Silveira chama ateno para o fato de predominar nos PCNs, respondendo a uma tendncia mundial, um enfoque do culturalismo acrtico, baseado em consideraes essencialistas acerca de valores e prticas supostamente caractersticos de cada cultura (....) sem perguntar em que medida os conflitos, as lutas e as desigualdades sociais atuam como determinantes, tanto das caractersticas que vo assumindo as sociedades como na construo da diversidade cultural. Assim, os conceitos de diversidade, multiculturalismo e diferena, 48. devem estar articulados com 32 49. o conceito de desigualdade social, rompendo com o silncio e a indiferena s diversidades presentes no espao escolar, eficaz mecanismo de produo do fracasso escolar26.Se por um lado existe o aparato da legalidade e das intenes, por outro, nos deparamos com as dificuldades e despreparo de educadorespara efetivar tais propostas. Professores alegam no ter recebido qualquer tipo de orientao pedaggica sobre a questo racial no Brasil por ocasio de seu curso de formao profissional27 e continuam tratando a questo racial e a diversidade humana, como um contedo de histria e de artes, de carter efmero, sem assegurar uma abordagem contnua e transversal. Os PCNs, apesar de no serem impostos compulsoriamente para as escolas, afirmam, de modo incontestvel, a necessidade dos currculos escolares serem atravessados por temas da atualidade, que vm sendo debatidos pela sociedade: tica, cidadania, sexualidade, pluralidade cultural, meio ambiente etc. A expectativa de que os parmetros iluminem os projetos pedaggicos e os planos de aula, indiscutivelmente louvvel, mas insuficiente, se no for combinada a outros esforos de sensibilizao, infor mao, for mao, acesso a pesquisas atualizadas e propostas concretas para o tratamento de tema to delicado, como o das relaes raciais em sala de aula. Na vivncia diria das escolas, os PCNs podem oferecer importantes diretrizespoltico-educacionais para as propostas curriculares a serem formuladas pelas Secretarias de Educao e Unidades Escolares, especialmente se osdirigentes educacionais e educadores no se detiverem a uma leitura superficial e enviesada que relativiza as diferenas, tratando-as como pluralidade de experincias 28 , sem analisar que, no modelo socioeconmico brasileiro, diferena sinnimo de desigualdade.Cabe questionar, ainda, por que os aspectos de natureza tica, nos quais se incluem o respeito diversidade e a superao da excluso e da discriminao so considerados como temas transversais e no como eixos condutores de todas as atividades educacionais. Ao instituir26 Marly Silveira. Pluralidade Cultural ou Atualidade do Mito da Democracia Racial?, pp. 51-66.27 Vera Moreira Figueira. O preconceito racial na escola, pp. 63-72.28 Marly Silveira. Pluralidade Cultural ou Atualidade do Mito da Democracia Racial?, pp. 51-66.33 50. parmetros curriculares que se pautem por princpios instrucionais, deixando valores e princpios humanos para serem repensados enquanto temas que atravessariam as disciplinas, os PCNs possibilitam que as escolas vejam estes temas como alternativos e no fundamentais, ou ainda que escolham dentre as diversidades aquelas menos conflitivas para incluir em suas propostas pedaggicas.Assim, nossa proposta, melhor detalhada na Parte II, prev que os PCNs sejam trabalhados em conexo com a LDB e as orientaes curriculares, nos aspectos de valorizao da diversidade tnico-cultural e eliminao das desigualdades raciais. Sugerimos que se inverta a ordem de incluso e prioridade de compreenso dos PCNs, tornando os temas transversais os primeiros orientadores para todas as etapas deles decorrentes: contedos disciplinares a serem ministrados; escolhas de livros didticos focalizando a natureza tica dos textos, bem como a qualidade de informao sobre aspectos de diversidade humana fsica, biolgica, social e cultural; tratamento dos temas que se apresentem nos livros-textos ou outros suportes didticos; e, principalmente, uma acurada pr-seleo de todo material que seja produzido pelo Estado, visando a cumprir as metas dos temas que, deixando de ser transversais, seriam eixos de reflexo.4. A DISCRIMINAO RACIAL NO LIVRO DIDTICO Na dcada de 1990, a Comisso de Religiosos, Seminaristas e Padres Negros do Rio de Janeiro Brasil formulou um dossi sobre Discriminao Racial no Livro Didtico Um caso concreto29, o qual focalizou uma cartilha denominada O sonho de Talita, da Editora Didtica e Cientfica Ltda., indicada na lista nacional de materiais didticos elaborada pelo Ministrio da Educao. O referido material foi denunciado publicamente por um cidado negro da cidade paulista de Lins, Sr. Edir Soares, como um dos livros didticos de teor racista mais agressivo. A Comisso Religiosa assumiu a denncia e instou a Editora a se explicar. 51. 29 Comisso de Religiosos, Seminaristas e Padres Negros do Rio de Janeiro Brasil. Dossi sobre Discriminao Racial no Livro Didtico Um caso concreto, p. 2.34 52. Embora se saiba que o livro didtico um importante meio de veiculao de racismo, este ultrapassava tudo que se tinha visto, posteriormente dcada de 70, quando, em decorrncia do impacto de estudos, pesquisas e gestes polticas do Movimento Negro, ocorreu um processo de dissimulao do preconceito, no livro didtico e paradidtico, sem que se registrassem alteraes substantivas nas ilustraes e textos referentes diversidade racial. Reproduzimos abaixo algumas passagens do livro texto e ilustrao, tal como aparecem no aludido Dossi:Grfico 33 35 53. Note-se que Diva ora branca, ora negra. O texto atribuialeatoriamente comportamento das crianas brancas diante de Diva semque se explicite a razo pela qual Diva motivo de chacota. Porque todos riem da cara de Diva? Nada ocorreu que possa justificaro riso gratuito. Mas Diva carrega em si os traos de um personagempattico: gulosa, desastrada, imprevidente, desobediente (em outrassituaes), e, por fim, a palhaa. Dagoberto J. Fonseca alerta: [....] apiada na relao entre negros e brancos na sociedade brasileiraconfigura-se como um processo discriminatrio e de descontrao,projetando-se como discurso de dissimulao, de consolidao edenncia da excluso social e do racismo. Neste sentido, ela vaicontra o pano de fundo da ideologia da democracia tnico-racial esocial, desvelando sua farsa30.Na dcada de 1980, Flvia Rosemberg realizou uma pesquisa defundo sobre a imagem estereotipada de negros em livros didticos e para-didticos escritos entre as dcadas de 30 e 50, utilizando uma amostra de157 textos. Na anlise de contedo, a pesquisa considerou no apenas otexto, mas, igualmente, a ilustrao. Os resultados da anlise apontaram aspectos especficos atribudos a personagens negras: ignorncia,subordinao, desumanizao (personagens negros associados a figurasde animais) e, principalmente, indiferenciao. Esta chegava a tal pontoque, num dos textos analisados, duas personagens femininas negras apareciam com nomes diferentes, mas na ilustrao eram representadas deforma idntica31. No incio da dcada de 90, Esmeralda V. Negropercebeu poucos sinais de progresso na representao grfica depersonagens, incluindo, uma vez mais, a desumanizao e umcaso particular de indiferenciao: num texto paradidtico, sobre ummenino que vive em uma favela, o menino no aparece. Em seulugar, a cada pgina ilustrada v-se a figura de um tambor de escola desamba32.No final da dcada de 1980, Ana Clia da Silva, realizauma pesquisa intitulada Esteretipos e preconceitos em relao aonegro no livro de Comunicao e Expresso de 1 grau, nvel 1,identificando esteretipos nos textos e ilustraes de 82 livros de LnguaPortuguesa33. 30 Dagoberto Jos Fonseca. A piada: uma forma sutil de excluso, p. 8.31 Flvia Rosemberg. Literatura infantil e Ideologia, p. 83. 54. 32 Esmeralda V. Negro. Histria e histrias da literatura infantil brasileira, s/p. 33 Ana Clia da Silva. A Discriminao do Negro no Livro Didtico, p. 28. 36 55. Dentre os esteretipos presentes se destacam: a) negros rejeitados explicitamente: apareciam como criana negra barrada, castigada, faminta, isolada, em ltimo lugar; b) exercendo atividades subalternas: domstica, trabalhador braal, escravo; c) considerado minoria; d) incapaz: burro, ingnuo, desatento, desastrado, inibido; e) sem identidade: sem nome, sem origem e) pobre: maltrapilho, favelado, esmoler; f) estigmatizado em papis sociais especficos: cantor, jogador de futebol; g) desumanizao do negro: associado a objeto, a formiga, a burro, a macaco. Assim, o que a Comisso Religiosa denunciou era apenas a ponta do iceberg, num perodo em que, imaginava-se, a figura pfia ou subordinada do negro no livro didtico j se encontrasse banida dos textos que as editoras, fornecedoras vitalcias do MEC, produziam em escala nacional. A Comisso manifestou-se junto editora e consultou um advogado que elencou cinco possibilidades, no excludentes, de levar a questo pelo caminho jurdico34. A editora respondeu prontamente aos reclamos da Comisso, mas s retirou os atributos de Diva, mantendo a inconsistncia das imagens, quando a Comisso, declarou que iria levar o caso justia. Diz o Dossi: No dia 08/06/90, recebemos as primeiras cinco cartilhas [re]impressas, o que foi festejado por todos ns como uma grande vitria do povo negro que intensifica sua organizao. Em todo o processo, no esqueamos a importncia do papel psicolgico exercido pela determinao de usarmos o caminho jurdico para colocar fim em mais esta fonte geradora de racismo35. Na mesma dcada, uma anlise do Projeto Salve o Treze de Maio?36, que propiciou debates nas escolas paulistas sobre a importncia do livro didtico, foi fundamental para se compreender que a estereotipia no livro didtico tinha uma certa importncia nas relaes intra-escola, mas o que permitiria um uso menos tendencioso deste instrumento didtico, era menos o teor de seus textos e material visual e mais a postura do professor diante da discriminao explcita nos livros e, principalmente, na vivncia do cotidiano escolar. A maioria dos professores que responderam ao questionrio sobre a necessidade de se trabalhar com34 Comisso de Religiosos, p. 5. 35 Comisso de Religiosos, p. 20. 36 Rachel de Oliveira. Salve o Treze de Maio: uma experincia de interveno. 56. 37 57. o livro didtico onerava a criana negra e sua condio social e familiar pelo desencorajamento diante dos estudos, por um lado; por outro, as professoras declaravam que no sabiam como lidar com a discriminao racial. Deste ponto de vista, se estudos como os de Flvia Rosemberg, Regina Pahim Pinto e Esmeralda V. Negro37, Pinto38, Negro39 e Silva40 entre outros, serviam de denncia ao preconceito, no observavam que, na interao entre professor e alunos negros e brancos, o que sustentava a discriminao era um imaginrio que preservava os lugares sociais da criana negra; e no conseguia orientar crianas brancas para uma atitude menos discriminatria. O foco do mais recente trabalho de Silva41 foi o livro didtico. Desta feita, no fez apenas o levantamento dos esteretipos presentes neste instrumento que, sem dvida, o material pedaggico mais utilizado pelos educadores; deteve-se, particularmente, em desconstruir os esteretipos atribudos aos negros nos livros didticos, tomando como sujeitos de pesquisa professores que, at aquele momento, no haviam identificado tais esteretipos e muito menos inferido sobre a existncia de uma ideologia de inferiorizao do negro, que contribui para coloc-lo sob rejeio ou suspeita, sendo que o produto final da invisibilidade e do recalque a auto-rejeio e a rejeio ao outro assemelhado tnico-racial. o dio contra si prprio e contra seu outro assemelhado, um tipo insidioso de autodesvalorizao, que resulta em desagregao da identidade tnico-racial e em desmobilizao coletiva42. Podemos concluir que a sistemtica negao de uma justa imagem do outro, a negao e a viso estereotipada dos negros, um dos mecanismos mais violentos vividos na escola e um dos fatores que mais37 Flvia Rosemberg; Regina Pahim Pinto & Esmeralda V. Negro. A situao educacional de negros (pretos e pardos). 1986 [Relatrio de Pesquisa]. 38 Regina Pahim Pinto. A representao do negro em livros didticos de leitura. p. 19-23. 39 Esmeralda V. Negro. Preconceito e discriminao racial em livros didticos e infanto-juvenis.p. 52-65. 40 Ana Clia da Silva, A Discriminao do Negro no Livro Didtico, p.28. 41 Ana Clia da Silva, Desconstruindo a discriminao do Negro no Livro Didtico, p. 15. 42 Idem, p.1938 58. concorrem para a eliminao da criana negra. Segundo Bordieu43, o sistema escolar, valendo-se da ideologia da escola libertadora, concorre eficazmente para a conser vao social, uma vez que legitima as desigualdades sociais, tratando a herana cultural e social como dons naturais. As diferenas de xito so tratadas, freqentemente, como diferenas de dons e no final as oportunidades objetivas se encontram transfor madas em esperanas ou desesperanas subjetivas (....) Os psiclogos observam que o nvel de aspirao dos indivduos se determina, em grande parte, em referncia s probabilidades de atingir o alvo visando: aquele que vence, escreve Lewin, situa seu prximo um pouco (mais no muito) acima de seu ltimo xito. Assim, ele eleva regularmente seu nvel de aspirao (....) Aquele que malogra, por outro lado, pode ter duas reaes diferentes: ele pode situar o seu alvo muito abaixo, freqentemente aqum de seu xito passado (....) ou ento ele situa seu alvo acima de suas possibilidades 44 . Cabe, cada vez mais, interrogar-nos sobre a responsabilidade da escola na perpetuao das desigualdades. Boudieu conclui que no h melhor forma de continuar favorecendo os favorecidos e desfavorecendo o desfavorecidos, seno ignorando, no mbito dos contedos do ensino que transmite, dos mtodos e tcnicas de transmisso dos contedos e dos critrios de avaliao, as desigualdades culturais entre as crianas de diferentes classes sociais. No interior da questo do livro didtico, um outro aspecto se desenvolveu, junto comunidade negra: o da incluso da Histria da frica, na expectativa de que conhecer as origens era despertar uma outra dimenso de sujeitos que tinham sido incorporados a uma outra histria, sem passado e sem origens. Porm, a complexidade do assunto demandava uma srie de questes que se sobrepunham e que, de certo modo, se anulavam na total ignorncia da educao ocidental sobre o continente africano. 4.1. Possibilidades e dificuldades da incluso de contedosSobre a incluso da Histria da frica, as demandas eram no sentido de valorizar uma populao que, no seu local de origem, era dotada de 43 Maria Alice Nogueira e Afrnio Catani, Escritos de Educao (orgs), p. 70. 44 Maria Alice Nogueira e Afrnio Catani, Escritos de Educao, op. cit. 59. 39 60. cultura e valores que foram desmantelados com o processo de escravizao, perdendo assim vnculos com seus povos, famlia, lngua, tradies religiosas e aspectos da cultura de cada grupo ou nao. A dizimao da populao jovem da frica, durante os primeiros anos da captura e escravizao incluiu diferentes culturas e etnias que foram formando um amlgama de populao negra, sem considerar diferenas inerentes a cada grupo. Instituir uma Histria da frica como um continente nico e com uma populao com os mesmos traos culturais derivaria em considerar todos os africanos como idnticos, ou seja, sem traar os limites de suas tradies e contradies. Num texto de grande interesse para pensar o que seria considerar a Histria da frica, do ponto de vista da imensa diversidade de grupos e dos esteretipos que sempre pesaram sobre o continente, V. Y. Mundimbe estabelece a dificuldade de se trabalhar com culturas desconhecidas, com valores atribudos pelo colonizador a um universo cuja histria no considerava a equivalncia de culturas. Diz o autor: Considerando seriamente o relativismo cultural de Herkovits, eu sugeriria que a questo real no aquela da teoria versus coleta emprica. , principalmente, sobre o silncio e a escolha, a priori, da verdade que um dado discurso estabelece. Neste contexto, considero verdade como uma abstrao derivativa, como um signo e uma tenso. Unindo e separando objetivos conflitivos de sistemas constitudos sobre as bases de diferentes axiomas e paradigmas, a verdade no nem idia pura nem simples objetivo45. Assim, a caracterstica que embasou a questo de uma disciplina voltada para o ensino da Histria da frica tinha embutida muito mais uma perspectiva antropolgica do que pedaggica, embora visasse a retirar, do contexto de uma histria puramente nacional e sem passado, o contingente da populao negra brasileira, assim como a prpria Histria do Brasil se tornaria efetivamente complementada pelos episdios referentes a todos os povos que aqui se instalaram, voluntariamente ou no.Eliza Larkin Nascimento, ao recuperar a cultura Sankofa, anterior cultura egpcia, alertava para a desinformao sobre a antigidade 61. 45 V. Y. Mundimbe. The Idea of frica, p. 39.40 62. africana, na qual vastas naes possuam cultura escrita e poderiam ter influenciado a prpria cultura egpcia. Possibilitava repensar os valores trazidos pelos africanos, por meio no apenas de uma cultura oral (prpria de primitivos) mas um cabedal de conhecimentos, registrados em um complexo sistema de escrita que vai-se estruturando dos smbolos para signos cada vez mais depurados, at atingir o estgio de um alfabeto46. Da mesma forma, a idia de uma frica homogeneizada, de cultura oral, como continente primitivo no incorporava o fato de que africanos escravizados vinham de regies onde predominava a religio muulmana, letrada e que, ao serem escravizados, no Brasil e em outros pases, formam proibidos de falar o rabe e escrever em sua lngua materna. A questo de incluir a Histria da frica foi considerada como uma estratgia de recuperao dos fatos, de superao da viso eurocntrica dos contedos, mas tambm como elemento de valorizao da populao, num processo que visava auto-estima por meio do conhecimento de suas origens. O projeto, includo em alguns livros de Histria do Brasil para o 2 grau, na realidade no altera muito do que se sabe ou ainda do que no se sabe sobre este universo. Torna-se objeto incuo ou pouco elucidativo, j que privilegia aspectos de regies de uma frica contempornea, ps- colonizao, sem abordar que os processos histricos e as atuais relaes tnico/raciais, so conseqentes de interesses e necessidades econmicas originadas no passado. 5. OS ESTUDOS EMPRICOS A partir do momento em que estudiosos negros vo formando um contingente de pesquisadores, a temtica passa a incluir uma outra srie de propostas. Destacamos os trabalhos que incluem os depoimentos de vivncia da discriminao e a percepo acurada do preconceito. Ao pesquisar a memria das vivncias cotidianas de mulheres negras, na infncia, na escola e no trabalho, Maria Aparecida da S. Bento47, 46 Eliza Larkin Nascimento. Educao e identidade afro-decendente, pp. 115-140. 47 Maria Aparecida da Silva Bento. Resgatando minha bisav: discriminao racial nas vozes dos trabalhadores negros, p. 50. 63. 41 64. aponta o impacto do racismo e da discriminao e coloca luzes sobre osadolescentes negros, os quais, muitas vezes, devido a seu comportamento,so vistos, pela escola, como transgressores ou desviantes.A observao direta, porm, tem sido rara e dificultada pelosprocessos de impedimento que as escolas geram para que esta observaoseja efetivamente realizada, temendo, talvez, que se desvelem oscomportamentos discriminatrios que ocorrem entre alunos e entre estese professores. Vera Moreira Figueira48 enfatiza a necessidade de estudosque se construam a partir de uma observao direta, de questionrios ede tratamento dos dados de for ma a no apenas qualificar, mas, igualmente, quantificar os tipos de respostas de crianas sobre seus modelos de identidade social e a expectativa de trajetrias ocupacionais para gruposde brancos e negros. Ela observa que a maioria das crianas brancas enegras preserva valores morais e sociais atribudos ao grupo branco.O primeiro estudo desta natureza deu-se durante a dcada de 50,realizado por Aniela Guinsberg49, como parte do relatrio de pesquisasobre Preconceito Racial em So Paulo, ao observar a dinmica deinternalizao do racismo entre crianas brancas e negras de um parqueinfantil (creche),utilizando como objeto inter mediador bonecas brancas e negras,e constatando a preferncia de ambos os grupos de crianas pelasbonecas brancas. Mais recentemente, a educao pr-escolar tem sidoobjeto deestudos que apontam aspectos extremamente discriminatrios eestigmatizantes de crianas negras, desde a mais tenra infncia.6. ESTUDOS DE OBSERVAO DIRETA Os estudos estatsticos e sobre o livro didtico no deixam sombra de dvida sobre o que se passa no cenrio da educao brasileira e seus resultados tm sido de grande valia para as estratgias do Movimento Negro de denunciar e buscar recursos legais para garantir a igualdade de 48 Vera Moreira Figueira. O preconceito racial na escola, p. 30. 65. 49 Aniela Guinsberg. Pesquisa sobre as atitudes de um grupo de escolares de So Paulo em relao com as crianas de cor, pp. 322-3.42 66. oportunidades. Porm, os estudos de observao direta, que tratam das interaes e relaes internas na escola so os que, no sentido tanto da etnografia quanto desta como testemunho das problemticas vivenciadas por professores e crianas negras e brancas, s recentemente tm surgido como veculo de descrio e anlise das interaes. So, em sua maioria, estudos pautados em aspectos da Psicologia do Self ou de estratgias da Psicologia Clnica, no trabalho de descrever e de propor novas iniciativas para a recuperao da auto-estima e identidade positivas. Uma vez que mais estudos de observao direta e descrio do campo das relaes em sala de aula sejam levadas a efeito, as dinmicas cotidianas de excluso viro luz, o que poderia tornar-se, efetivamente, objeto de procedimentos interdisciplinares, tanto quanto de observao rigorosa de leis que protejam crianas em situao de discriminao e sofrimento mental. A observao direta, como estratgia metodolgica, tem oferecido um cabedal de informaes e perspectivas de anlise que, ao mesmo tempo, recupera a prpria trajetria dos pesquisadores. A subjetividade de algumas observaes em nada desmerece os estudos, uma vez que teorias de anlise e modelos analticos bem estruturados suportam a narrao e anlise das interaes observadas, gerando propostas de reverso do quadro de preconceito e discriminao que se observa. Marilene Leal Par estabelece uma estratgia de coleta das manifestaes e aes do preconceito e da discriminao narradas pelos alunos. [....] escutas atentas, nas escritas, nas leituras e re-leituras compreensivas das entrevistas sensibilizaram-me criao de textos literrios de cada aluno. Da explorao destes textos foram surgindo dimenses que eu ia agrupando em torno de contedos significativos as Essncias. NO que se refere ao preconceito racial, identificou que a maior incidncia se d: nas piadas, apelidos, brincadeiras, risos zombeteiros e ofensivos ao ser negro, na postura implicante de professores com atitudes racistas etc.50 Tomando-se o que a autora intitula de 1a Essncia, temos a macroestrutura do preconceito social brasileiro51. Paralelamente, uma tomada de 50 Marilene Leal Par. Auto-Imagem e Auto-Estima na Criana Negra: um Olhar sobre o seu Desempenho Escolar, p. 100. 51 O que Par chama de preconceito, parece ser, na realidade, aes discriminatrias (Cf. Doray, 1988) que ocorrem como discurso. Falar, atribuir nomes e qualidades (negativas ou positivas) uma ao que vai- se desdobrar em situaes psicolgicas ou de internalizao do preconceito, ou de tentativas de superar a discriminao. 67. 43 68. conscincia mobiliza a percepo dos comportamentos que propiciam adiscriminao. Par identificou, tambm, alguns impactos no indivduo que sofre a discriminao: vergonha de ser negro(a); medo da rejeio; baixa auto-estima; desgosto s piadas raciais; tristeza por no saber reagir; mgoa pelarejeio; desvalia; utilizao de mecanismos ou aes de defesa, tais como:xingar, agredir fisicamente, indiferena aparente, negar a discriminao etc. Estes so contedos latentes originrios da discriminao e formam um sistema afetivo auto-atribudo que vai da vergonha de ser negro at a desvalorizao de si mesmo. Cabe considerar, porm, o impacto dos comportamentos e percepes, naqueles que discriminam, que, em se tratando de escola, ocupam o mesmo espao. Poderamos destacar alguns sentimentos que emergem na criana branca: alta auto-estima e auto- confiana, orgulho de ser branco, prazer de rejeitar os outros etc. Ana lisando a percepo do aluno sobre o processo de aprendizagem, Par identifica em sua composio, entre outros, a omisso do professor nos momentos de agresso discriminatria por outros alunos. No eixo horizontal: a desorganizao e agitao com dificuldades para aprender, at a expulso e suspenso do aluno, numa atitude radical de punio. No eixo vertical as variaes propostas por professores sobre for mas de estudar (ausncia de uma metodologia unificada entre professores, pressuposta para o bom desempenho de alunos num clima de estudos interdisciplinares), at o comportamento do professor diante de atos discriminatrios de colegas. Outros componentes, como as diferentes metodologias de ensino na passagem da 4 para a 5 srie, podem estabelecer o eixo transversal que vincula diferentes metodologias aos resultados de desempenho do aluno e a rejeio s falhas de aprendizado. A 5a essncia, no modo como a compreendemos, um retrato sem retoques do que se pode observar da formao de professores, da aplicao de diferentes metodologias de ensino-aprendizagem muitas vezes improvisadas e o despreparo para lidar com as manifestaes de racismo, em que a discriminao parece operar como um mediador entre as falhas de formao e quem deve ser onerado por essas falhas. O que se tem assistido a responsabilizao do indivduo discriminado pela discriminao sofrida. Nas duas ltimas grandes essncias, a autora oferece a possibilidade de se refletir se uma no seria decorrncia da outra, isto , se a capacidade 69. 44 70. de revidar a discriminao j no comportaria uma dimenso de negritude, ou se o desenvolvimento da conscincia negra no estaria na base desta capacidade de enfrentamento do preconceito e da discriminao. possvel que ambas ocorram simultaneamente, uma, anterior, preparando a integrao na seguinte, e a ltima assegurando uma estabilidade afetivo- emocional-cognitiva independentemente das relaes e interaes discriminatrias. A esse propsito, a anlise das etapas de formao da negritude, formuladas por Cross Jr.52 so elucidativas. Demonstram como sujeitos passam da apatia e da estabilidade no interior da negao do preconceito e da discriminao para comportamentos cada vez mais conscientes, at a superao da racialidade, para um processo de plena humanizao. Ou que se estabilizem em alguma fase em que seja possvel reconhecer o preconceito e a discriminao e atuar individualmente, por meio de mecanismos de autovalorizao, j que todo processo de construo de identidade dinmico e est em permanente reconstruo. As dimenses analisadas por Par, a partir da escuta e anlise do discurso das crianas, estabelecem um ponto de partida extremamente importante para se analisar outros estudos que considerem depoimentos como dado emprico para a anlise da experincia e da superao do preconceito pela comunidade negra, na escola. Um outro estudo que elucida a realidade da escola brasileira em termos de relaes raciais discriminatrias e que se destaca por comparar comportamentos de alunos negros em dois pases (EUA e Brasil) o de Jonathan W. Warren53. O estudo se baseia em entrevistas e anlise dos depoimentos dos entrevistados, destacando as diferentes formas de enfrentamento do racismo, nos dois pases. Inicialmente, o autor critica os estudos americanos baseados num declarado confronto de comportamento entre estudantes brancos e negros. Para Warren, seria um vis inter-relativo de parte dos estudiosos negros, sobre o desempenho escolar de alunos negros, a tese do fardo de agir como branco. Segundo essa tese, a identidade dos afro-americanos, construda por oposio ao52 Willian Cross Jr. Shades of Black, cap. III. 53 Jonathan W. Warren. O fardo de no ser negro: uma anlise comparativa do desempenho escolar de alunos afro-brasileiros e afro-americanos, pp. 107-120. 45 71. dos euro-americanos, estabeleceria a negritude como sagrada e a branquidade como profana. Assim, para os negros americanos do norte, realizar uma trajetria escolar bem-sucedida seria uma afronta prpria identidade do negro e/ou marcava os que [a] adotam como traidores da comunidade negra Discordando desta postura, Jonathan Warren critica o mtodo de coleta de anlise dos dados em estudos que adotam esta tese (associada teoria do medo do sucesso) apoiando-se em Joyce King, que sugere ser esta postura mais metafrica e se refere arrogncia de negros letrados ou inteligentes, chamados de metidos. O universo brasileiro que este autor escolheu para analisar quase inteiramente urbano, situado no sudoeste e inclui alunos e ex-alunos do 2 grau, como tambm professoras negras. O autor considera nas entrevistas, principalmente, como os sujeitos se sentem em situaes onde racismo, escravido e temas correlatos so invocados. Considera ainda o comportamento agressivo de alunos brancos contra alunos negros. Um ex-aluno recorda: Sempre que se debatia a escravido na escola, os alunos me provocavam, jogavam coisas em mim. Muitos de meus colegas eram filhos de fazendeiros. Assim, diziam que eu iria trabalhar para eles, que iam me chicotear. Provocavam-me assim [....]54. Outros alunos reportaram que colegas brancos no faziam amizade com eles e isto era visto como racismo. Uma professora negra relata que, estando na escola e vendo o comportamento de alunos brancos, especialmente os rapazes, os alunos negros pediram autorizao para realizar um debate em classe. W O que foi dito durante o debate? R Foi sobre racismo. Aconteceu durante o ltimo tempo de aula. Ento no houve muito debate. Mas foi bom. Foi timo. S a diretora falou. Ela disse que no Brasil impossvel que exista racismo, porque todo mundo tem sangue azul55, houve muita miscigenao. [....] e assim, ningum pode querer estar por cima. Foi a nica coisa, a nica parte que me interessou, todo o resto foi xerox de racismo. 54 Ibidem. 55 O uso desta expresso no se refere a ser de origem real. Em algumas regies do Brasil sugere o contrrio, utilizado como uma ironia para se referir miscigenao.46 72. W O debate foi um sucesso?R Foi. Esse tipo (de racismo) parou na escola toda. Depois melhorou. Por exemplo, o novo ano estava chegando e todo mundo comeou a estudar junto. Conversvamos uns com os outros. Acabou completamente.W Havia outras formas de racismo na sua escola ou s aquelas dos seus colegas brancos, burgueses? Por exemplo, seus professores ou o currculo eram racistas?R No! No. S os garotos, s os colegas da sala. Mas os professores, o supervisor, o currculo... No. No eram no.O autor nota que, no livro didtico que ela usava, s havia imagens de pessoas negras como empregadas domsticas, jogadores de futebol e escravos. Todas as demais eram brancas, mas a ento aluna no identifica estes esteretipos como parte de uma experincia racista. possvel supor que, para o brasileiro negro, o racismo no lhe aparea como algo que o exclua to completamente da vida escolar, ou social mais ampla, ou que o proba de interagir com brancos em qualquer situao. A posio social que ele ocupa no entendida como parte de sua racialidade, mas de uma classe social onde alguns brancos tambm se incluem. Em certo sentido, as experincias sociais no confirmam o que ele entenderia como racismo, no entanto, quando provocado, ele reflete e elabora uma situao de sofrimento e de excluso, sobre a qual deseja agir e, por vezes, age56.Uma terceira pesquisa, que inclumos aqui, foi desenvolvida na dcada de 90, por Adlia Luiza Portela57 que, tendo como sujeitos alunos e professores de seis escolas de Salvador, passa a investigar a gnese da repetncia escolar a partir do estudo do cotidiano da sala de aula, incluindo entre os elementos que contribuem para o fracasso escolar: as condies materiais de vida do aluno, seu modo de viver, suas condies de estudo fora da escola, as relaes entre a sua vida e a escola58 e a temtica racial. 56 Falamos aqui da maioria da populao negra, informada mas no atuante, em termos de militncia, no Movimento Negro. Na experincia do militante, a conscincia e a identidade racial em desenvolvimento permeiam todas as relaes e lhe fornece os dados para interpretar o mundo, social, econmica e culturalmente. 57 Adlia Luiza Portela, Escola pblica e multirrepetncia: um problema supervel? In Educao e os afro- brasileiros: trajetrias, identidades e alternativas, pp. 85-106. 58 Adlia Luiza Portela, op. cit., p. 90. 73. 47 74. Foram feitas observaes em sala de aula, aplicados questionrios e analisados materiais produzidos por alunos e por professores. Do universo de 120 alunos, da 1 4 srie, as idades variaram, na primeira srie, de 7 a 15 anos, e da 3 4 srie, entre 12 e 18 anos; apenas 22,9% nunca tinham repetido e 55,1% j haviam repetido mais de uma vez. Utilizando o critrio da autoclassificao, 10,1% se identificaram como brancos, 68% como negros (negro, moreno escuro, moreno claro) e 21,8% como outros. Quanto distribuio por sexo: 63% so homens e 37% mulheres, confir mando a tendncia mundial de que as mulheres tm melhor desempenho escolar que os homens.Quanto ao impacto da famlia sobre a vida escolar dos filhos, observou que o apoio familiar para a realizao dos deveres de casa, influi reduzindo a mdia de repetncia. Um fator preocupante que a maioria das famlias de classes populares no tem condies de colaborar na realizao dessas atividades, seja porque trabalham o dia todo, seja pelo baixo nvel de escolarizao. A professora acha que eu preciso aprender mais, e minha me no fala nada, ela chega muito cansada do trabalho.59 Portela chama ateno para a necessidade da escola repensar como vem usando o tempo dedicado realizao das atividades escolares, de maneira a no continuar sendo to desiguais as oportunidades de aprendizagem entre os alunos que podem receber ajuda da famlia e aqueles que no podem.60Quanto autopercepo dos alunos como estudantes, merece destaque o fato de que a maioria (57%) responsabiliza a si prprio pela repetncia. E este sentimento de fracasso pessoal no impede que esse mesmo grupo continue gostando de freqentar a escola. Um nmero significativo de alunos acha que a professora no liga para eles, no os percebe, nem os valoriza. Alguns depoimentos podem ilustrar isso: A professora nunca me disse o que acha de mim, eu me acho uma aluna ruim. Meu pai e minha me tambm no dizem nada, so todos uns mudos 61.Portela destaca que o conceito de aluna ruim ou mau aluno raramente, na fala dos alunos, est relacionado aprendizagem; estes dizem respeito a comportamentos definidos e valorizados pela professora.59 Adlia Luiza Portela, op. cit., p. 104. 75. 60 Adlia Luiza Portela, op. cit., p. 98. 61 Adlia Luiza Portela, op. cit., p. 100. 48 76. Eu sou bom aluno, porque no abuso muito, fao as coisas que a pr [professora] pede, fico quieto e no jogo papel no cho. No sou boa aluna porque converso muito com meus colegas. 62 Desta forma, ainda que o desejo seja o de brincar, conversar, festejar quando se aprende algo novo, a criana vai aprendendo que o silenciar virtude do bom aluno e, assim, vo negando-se a si mesmas e quando no conseguem, acreditam-se incapazes, incompetentes para o estudo. E a baguna, a indisciplina, to presentes nas salas de aula, vo produzindo fracassos, pois o professor que foi preparado para trabalhar com o aluno ideal do padro de classe mdia branca no sabe trabalhar e no quer este aluno real. A autora conclui, que a multirrepetncia um fenmeno multideterminado por fatores intra e extra-escolares [porm] na sala de aula que ela gerada (....) Sendo assim, reconhece-se que, se as condies de vida dos alunos tm um peso importante no seu processo de escolarizao, elas no so totalmente determinantes deste processo (....) torna-se, portanto, necessrio mudar a escola, palco onde [as desigualdades] podem ser acentuadas e perpetuadas ou palco onde [essas desigualdades] podem ser trabalhadas como pontos de partida para se alcanar um ensino de boa qualidade63.6.1. O Silncio como discurso Outros estudos consideram a questo do silncio escolar sobre o assunto, como uma forma de manuteno das diferenas. Entretanto, este silncio no em si mesmo uma ausncia de discurso, mas um discurso em que o no dito ganha significados ambguos ou se estabelece em relao apenas a uma das partes da relao racial. Par64 j comentava que, em muitos dos depoimentos de crianas, a famlia seria um ncleo de silncio, ou, em ltima anlise, de omisso, em termos de no oferecer o suporte necessrio para a vivncia da discriminao. Tambm Barcelos65, em certa 62 Adlia Luiza Portela, op. cit., p. 101 63 Adlia Luiza Portela, op. cit., p. 106 64 Marilene Leal Par, op. cit., p. 32. 65 Luiz Carlos Barcelos, e seu trabalho sobre anos de escolaridade e rendimento entre alunos negros e brancos, pp. 7-16. 77. 49 78. medida onerava a famlia pela ausncia de estmulo ao estudo e por no preparar a criana para a discriminao inevitvel.As implicaes entre famlia e escola surgem nos estudos e pesquisas que consideram a socializao da criana como um momento que ocorre primeiramente na famlia e passa a ser expandida pela escola. Entretanto, deve-se considerar que a socializao oferecida pela famlia geralmente tende a preservar a criana do universo extralar e que a socializao na escola se refere aquisio de um tipo de conhecimento que a famlia s poderia oferecer em certa medida. No por acaso os dados estatsticos analisados em estudos comparativos de rendimento entre estudantes negros e brancos consideram a varivel escolaridade da me como um possvel preditor do rendimento e trajetria escolar dos filhos. A figura materna constantemente invocada na constituio da famlia negra e considerada como responsvel pela educao dos filhos. A figura paterna, por sua vez, no aparece, seno se considerarmos o termo famlia como famlia nuclear composta de pai, me e filhos. Parece