direitos fundamentais e relaÇÕes afonso virgilio

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1. (META-)INTRODUÇÃOAntes de iniciar a análise das obras indi-cadas acima, parece-me ser necessárioum esclarecimento inicial sobre a pró-pria idéia de resenha, para que mal-entendidos sejam evitados. Isso porque,no Brasil, pelo menos na área jurídica,costuma-se entender por resenha a sim-ples exposição do conteúdo de algumaobra, um mero resumo. Resenha, noentanto, é muito mais do que isso, já quepressupõe menos a exposição sistemáti-ca de um trabalho e mais uma aborda-gem crítica das teses centrais defendidaspor seu autor ou por seus autores. Essa é

a tarefa que aceitei, a pedido do conse-lho editorial desta Revista. Passo, então,a desenvolvê-la.

2. PRELIMINARESAmbos os trabalhos que são objetosdesta resenha têm como origem teses dedoutorado, ambas defendidas em 2003.Daniel Sarmento defendeu seu doutora-do na Universidade do Estado do Rio deJaneiro (UERJ), sob orientação do Prof.Dr. Ricardo Lobo Torres, em junho de2003. Já Wilson Steinmetz, orientadopelo Prof. Dr. Clèmerson Merlin Clève,

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RESENHA

SARMENTO, DANIEL. DIREITOS FUNDAMENTAIS E

RELAÇÕES PRIVADAS. RIO DE JANEIRO: LUMEN JURIS, 2004.

STEINMETZ, WILSON. A VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES

A DIREITOS FUNDAMENTAIS. SÃO PAULO: MALHEIROS, 2004.

Virgílio Afonso da Silva

DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÕESENTRE PARTICULARES

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defendeu sua tese na UniversidadeFederal do Paraná (UFPR), algunsmeses antes, em fevereiro do mesmoano. Os trabalhos têm como objeto omesmo problema: a vinculação dos par-ticulares aos direitos fundamentais. Aquestão que está por trás do problema ébastante simples: os direitos fundamen-tais, que originalmente foram pensadospara regular as relações entre os indiví-duos e o Estado, devem produzir efeitosnas relações das quais este não partici-pa, ou seja, nas relações entre particula-res? Se sim, e mais importante, que efei-tos podem ser esses e de que formapoderão ser realizados? Ainda que aidéia seja simples, a resolução do pro-blema não o é. Esse é um debate queocupou especialmente a jurisprudênciae os juristas alemães por várias décadasapós a promulgação da constituição de1949. De uma certa forma, é tambémum debate que ocupa tribunais e juristasdos Estados Unidos, onde o debate étravado sob a epígrafe da “doutrina daação estatal”.

No Brasil, contudo, com exceção dealguns artigos esparsos,1 o tema nãohavia ainda sido objeto de monografiasmais extensas até a publicação, em2004, das obras de Sarmento eSteinmetz. O pioneirismo de ambos é,portanto inegável.

Pioneirismo não é, contudo, umvalor em si mesmo e os trabalhos rese-nhados não merecem atenção simples-mente por isso. Pioneirismo sem quali-dade nada significa. Os trabalhos deSarmento e Steinmetz devem ser enca-rados como referência pelo pioneirismo

aliado à qualidade acadêmica. E, aindaque involuntariamente, ambos os traba-lhos têm outro mérito: o de derrubar omito, muito difundido no Brasil, de quesomente o acesso ao debate travado naAlemanha proporciona as condiçõespara se elaborar um trabalho de dogmá-tica constitucional de qualidade. E oenfrentamento desse mito, no caso emquestão, tem um significado aindamaior, já que o tema da vinculação dosparticulares aos direitos fundamentais éum tema genuinamente germânico e gran-de parte da produção acadêmica sobreele é feita em língua alemã. Mas tantoSarmento quanto Steinmetz, a despeitode não terem tido acesso a boa partedesse material, já que pouco foi traduzi-do nessa área, puderam mostrar que aqualidade de um trabalho é decorrênciada acuidade da argumentação e não doargumento de autoridade.2

3. O PROBLEMAPoucos são os publicistas que ainda res-tringem a aplicação dos direitos funda-mentais apenas às relações entre os indi-víduos e o Estado (relação vertical). Agrande maioria deles aceita a existênciade uma produção de efeitos desses direi-tos também nas chamadas relações hori-zontais, ou seja, naquelas das quais oEstado não participa. O problema cen-tral que o tema coloca não é, portanto,o problema do “se” os direitos produzemefeitos nessas relações, mas do “como”esses efeitos são produzidos. Na literatu-ra e na jurisprudência alemãs, o debate édividido em dois grandes blocos de teses

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(cf. SARMENTO, p. 238-258; STEINMETZ,p. 135-175): de um lado ficam aquelesque entendem que os direitos funda-mentais devem ser aplicados de formadireta às relações entre particulares, damesma forma como são aplicados narelação entre o Estado e os indivíduos;do outro lado ficam aqueles que defen-dem que os direitos fundamentaisdevem produzir efeitos nas relaçõesentre particulares, mas que esses efeitossão apenas indiretos, produzidos sobre-tudo por meio de uma espécie de rein-terpretação do direito infraconstitucio-nal.3 Essa dicotomia entre efeitos direi-tos e efeitos indiretos foi “resolvida”, nocaso alemão, de forma francamentefavorável à segunda posição. O caso bra-sileiro é, por diversas razões, diferentedo alemão e uma simples transposiçãodo debate seria um equívoco. Ao abor-dar a nossa realidade, embora Sarmentoe Steinmetz partam, ao menos no planoteórico, da mesma dicotomia que pau-tou o debate alemão, ambos propõem-sea encontrar soluções que sejam aplicá-veis ao caso brasileiro, em face das pecu-liaridades de nosso texto constitucionale de nossa realidade. Em vista da limita-ção de espaço, pretendo me ater ao queme parece ser o essencial na questão,que é a forma de se compatibilizar aaplicação dos direitos fundamentais nasrelações entre particulares com a auto-nomia privada que está na base dessasrelações. Qualquer trabalho que preten-da enfrentar esse problema deve sedemonstrar apto a resolver essa situaçãode tensão. E, nesse ponto central, os tra-balhos de Sarmento e Steinmetz diver-

gem, já que o primeiro confere um pesodecisivo à questão da assimetria nas rela-ções entre particulares, enquanto que osegundo, embora também leve essa assi-metria em consideração, salienta aimportância da aplicação do chamadoprincípio da proporcionalidade.4

4. POSSÍVEIS SOLUÇÕESNos próximos dois tópicos, pretendofazer uma análise rápida do que conside-ro ser alguns pontos centrais nos traba-lhos de Sarmento e Steinmetz, que sãoas propostas de elaboração de parâme-tros para a solução da tensão entre direi-tos fundamentais e autonomia privada.Considero esses pontos como centraispor duas razões: (1) por ser, obviamen-te, o ponto nevrálgico de todo o debatesobre os direitos fundamentais nas rela-ções entre particulares, já que os direi-tos fundamentais, nessas relações, ten-dem a sufocar a autonomia privada senão houver uma forma de compreenderambos em harmonia; e (2) porqueSarmento e Steinmetz, independente-mente das críticas que serão feitas aseguir, não encaram a tarefa da colisãode direitos fundamentais com a superfi-cialidade que tem cada vez mais aumen-tado na doutrina e na jurisprudênciabrasileiras. Ou seja, os autores não secontentam com a fácil posição de quetudo se resolve no caso concreto pormeio de sopesamento e propõem-se afornecer critérios para esse sopesamen-to, tentando aumentar a possibilidade decontrole desse procedimento, evitando,assim, o excesso de subjetividade e a

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quase total liberdade dos juízes na solu-ção dos casos concretos. Fazer dogmáti-ca dos direitos fundamentais é, sobretu-do, justamente elaborar critérios quepossibilitem o controle intersubjetivo,aumentando a racionalidade do processode interpretação e aplicação das disposi-ções de direitos fundamentais.

4.1 DANIEL SARMENTO

Daniel Sarmento apóia boa parte da suaproposta de solução para o problema datensão entre autonomia privada e direi-tos fundamentais em dois conceitos-chave. O primeiro deles é a dicotomiasimetria/assimetria entre as partes; osegundo é aquilo que Sarmento chamade questões existenciais, que ele contra-põe às questões de cunho patrimonial.

O primeiro dos critérios, aquelebaseado na dicotomia simetria/assime-tria das partes envolvidas na relaçãoentre particulares, é reputado porSarmento como primordial (p. 303). Porassimetria, Sarmento entende desigual-dade fática entre os envolvidos.Segundo ele: “quanto maior for a desigual-dade (fática entre os envolvidos), mais inten-sa será a proteção ao direito fundamental emjogo, e menor a tutela da autonomia priva-da. Ao inverso, numa situação de tendencialigualdade entre as partes, a autonomia pri-vada vai receber uma proteção mais intensa,abrindo espaço para restrições mais profun-das ao direito fundamental com ela em con-flito” (p. 303). No entanto, a associaçãode três fatores, que exponho a seguir,faz com que, na minha opinião, o recur-so ao conceito de desigualdade fáticaseja algo problemático:

(1) Sarmento usa o conceito comosinônimo de desigualdade material;

(2) O conceito é estanque, já quetende a pressupor que sempre que houverdesigualdade material entre as partesenvolvidas deverá haver maior proteçãodos direitos da parte materialmentemais fraca;

(3) Isso ignora o jogo de forças nointerior da relação, que pode ser muitomais importante do que a condiçãomaterial dos envolvidos e não estar a elanecessariamente vinculado.

Para se ter um exemplo do que sequer dizer com esses três fatores: aque-les que participam dos chamados realityshows, tão em voga nas emissoras de tele-visão no Brasil e no mundo, o fazemcom base no exercício de sua autonomiada vontade. Esse exercício acarreta, semdúvida, restrições a direitos fundamen-tais, especialmente ao de privacidade. Adesigualdade material entre, por exem-plo, a Rede Globo, uma das maioresempresas de comunicação do mundo, eos participantes de seu reality show é ine-gável. Isso não significa, contudo, quehaja uma necessidade de intervir nessarelação para proteger direitos funda-mentais restringidos: a desigualdadematerial não interfere, necessariamente,na autenticidade das vontades.

Com isso, quero salientar que orecurso a desigualdades (fática e mate-rial), ainda que possa ser usado comoelemento da argumentação jurídicanesse âmbito, deve ser encarado comextrema reserva. Parece-me que o deci-sivo é a sinceridade no exercício da auto-nomia privada, que não necessariamente

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terá alguma relação com desigualdadesexternas a ela.

Quanto ao segundo critério, queleva em consideração o tipo de questãoenvolvida – existencial ou econômico-patrimonial –, Sarmento sustenta que,nos casos envolvendo questões existen-ciais, a autonomia privada terá um pesomaior do que nos casos concernentes aquestões econômico-patrimoniais. Alémdisso, nesses últimos casos, a proteçãoda autonomia privada em face de umeventual direito fundamental restringi-do deverá variar em função da essencia-lidade do bem envolvido (p. 309). Aimportância desse critério consiste jus-tamente na tentativa de evitar, para usara expressão de García Torres e Jiménez-Blanco, um “totalitarismo dos direitos fun-damentais” ou, na expressão do próprioSarmento, a “homogeneização forçada docomportamento individual a partir de pautastidas como ‘politicamente corretas’, às custasdo pluralismo e da própria dimensão liberta-dora que caracteriza os direitos fundamen-tais” (p. 310).

4.2 WILSON STEINMETZ

Para Steinmetz, a compatibilização entredireitos fundamentais e autonomia pri-vada somente pode ser levada a cabo pormeio do chamado princípio da propor-cionalidade. Isso porque o autor partedo pressuposto – correto, na minha opi-nião – de que tanto os direitos funda-mentais – pelo menos em sua grandemaioria – quanto a autonomia privadatêm estrutura de princípios, nos termosdefinidos por Alexy. Ou seja, ambos sãomandamentos de otimização.5 A com-

patibilização entre ambos, portanto,deveria seguir a mesma linha mestraque dirige a compatibilização de direi-tos fundamentais em caso de colisõesentre eles.

A contribuição de Steinmetz,neste ponto, consiste no desenvolvi-mento de critérios que possam nor-tear a aplicação da proporcionalidadeaos casos de atos de autonomia priva-da que restrinjam direitos fundamen-tais (p. 216-225). Steinmetz usa comoexemplo a seguinte situação: em umarelação contratual entre dois particu-lares, estabeleceu-se, de comum acor-do, a restrição a um direito fundamen-tal de um dos contratantes – logo umarestrição a direito fundamental decor-rente do exercício da autonomia pri-vada; após a finalização do contrato, ejá em curso seus efeitos, o particularque teve seu direito fundamental res-tringido ingressa com ação judicialpara anular o contrato firmado; ooutro particular, em sua defesa, invocao princípio da autonomia privada (p.216-217). Segundo Steinmetz, a solu-ção para o caso somente pode serencontrada na aplicação do chamadoprincípio da proporcionalidade. Serianecessário, diante disso, que se exami-nasse se a restrição contratual ao direi-to fundamental é adequada, necessária eproporcional em sentido estrito. ParaSteinmetz, se houver a necessidade defazer um sopesamento (proporcionali-dade em sentido estrito) entre a auto-nomia privada e um direito fundamen-tal, é necessário que alguns critériossejam sedimentados para orientar o

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operador do direito. O autor parte deum conceito usado por Alexy – as pre-cedências prima facie – para desenvol-ver um modelo próprio (p. 214 e ss).Segundo ele, as “precedências prima facienão contêm determinações definitivas emfavor de um princípio [...], contudo esta-belecem um ônus de argumentação para aprecedência do outro princípio [...] nocaso concreto. Assim, uma precedênciaprima facie constitui uma carga de argu-mentação a favor de um princípio e, porconseqüência, uma carga de argumentaçãocontra o outro princípio” (p. 215).Transportando esse raciocínio para oproblema da tensão entre autonomiaprivada e direitos fundamentais,Steinmetz desenvolve quatro diferen-tes precedências prima facie (p. 224):

1. Em uma relação contratual departiculares em situação (ou sob condi-ções) de igualdade fática, há uma prece-dência prima facie do direito fundamen-tal individual de conteúdo pessoal ante oprincípio da autonomia privada.

2. Em uma relação contratual departiculares em situação (ou sob condi-ções) de desigualdade fática, há umaprecedência prima facie do direito funda-mental individual de conteúdo pessoalante o princípio da autonomia privada.

3. Em uma relação contratual departiculares em situação (ou sob condi-ções) de igualdade fática, há uma prece-dência prima facie do princípio da auto-nomia privada ante o direito fundamen-tal individual de conteúdo patrimonial.

4. Em uma relação contratual departiculares em situação (ou sob con-dições) de desigualdade fática, há uma

precedência prima facie do direito fun-damental individual de conteúdopatrimonial ante o princípio da auto-nomia privada.6

Dois são os problemas principais domodelo desenvolvido por Steinmetz.O primeiro deles diz respeito ao recur-so ao chamado princípio da proporcio-nalidade; o segundo refere-se, damesma forma como já apontado nocaso de Daniel Sarmento, à importân-cia que se dá à idéia de igualdade oudesigualdade fática entre as partes con-tratantes. Nesse último ponto, se cor-retas forem as observações feitas quan-do da análise do trabalho de Sarmento,mais correto seria substituir, tambémno modelo de Steinmetz, igualdade edesigualdade fáticas por sinceridade einsinceridade no exercício da autono-mia privada. Entendo, portanto, que oque foi dito no tópico anterior é aquitambém aplicável.

Mais problemático, contudo, é orecurso ao chamado princípio da pro-porcionalidade para solucionar proble-mas nas relações das quais o Estado nãoparticipa. Em razão da limitação deespaço, restrinjo-me a apenas um dessesproblemas, relacionado ao teste danecessidade. Quando se aplica a propor-cionalidade para os casos de atos estataisque restrinjam direitos fundamentais,perguntar se uma medida é necessáriaimplica indagar sobre a existência deoutras medidas que sejam eficazes parafomentar o mesmo objetivo, mas querestrinjam menos o direito atingido. Sehouver alguma medida alternativa nes-ses termos, a medida estatal adotada não

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NOTAS

1 Cf., por exemplo: Sarlet, Ingo Wolfgang.Direitos fundamentais e direito privado: algumas consid-erações em torno da vinculação dos particulares aos dire-itos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A

constituição concretizada. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2000. p. 107-163.

2 Para evitar incompreensões: não pretendo aqui,

era necessária e, por isso, foi despropor-cional. A mim me parece, contudo, queesse raciocínio não pode ser transporta-do para as relações entre particulares ea razão é trivial: exigir que os particula-res adotem, nos casos de restrição adireitos fundamentais, apenas as medi-das estritamente necessárias – ou seja,as menos gravosas – para o atingimentodos fins perseguidos nada mais é do queretirar-lhes a autonomia de livrementedispor sobre os termos de seus contra-tos. Em outras palavras: exigir a obe-diência à regra da necessidade não éuma forma de solução da colisão entredireito fundamental e autonomia priva-da, já que essa autonomia estará neces-sariamente comprometida pelas pró-prias exigências dessa regra. Se aos par-ticulares não resta outra solução quenão a adoção das medidas estritamentenecessárias, não se pode mais falar emautonomia. E, diante disso, as precedên-cias prima facie estabelecidas pelo pró-prio Steimetz perdem um pouco de seusentido, já que mesmo que a relaçãocontratual tenha sido estabelecida sobcondições de igualdade fática (ou de sin-ceridade) e o direito fundamentalenvolvido tenha conteúdo patrimonial,se os termos do contrato não forem osmenos gravosos a esse direito, o contra-to será sempre nulo.

5. CONCLUSÃOClaro que, neste curto espaço disponí-vel, pude apenas abordar pouquíssimospontos dos trabalhos de Sarmento eSteinmetz. A escolha foi, proposital-mente, pelos pontos que entendo sermais problemáticos.7 Como já salienteina introdução, não é a intenção de umaresenha resumir toda a obra resenhada,mas desenvolver uma breve análise críti-ca sobre questões fundamentais dos tra-balhos analisados. Foi o que se tentoufazer. Não há dúvida de que a análise crí-tica aqui exposta não é a única possível.Ela é, por razões óbvias, uma análise crí-tica que parte dos pressupostos teóricosde seu autor. Partindo-se de outrospressupostos – como aqueles dos quaisos respectivos autores partiram –, asconclusões seriam necessariamenteoutras. A divergência de conclusões nãoé, portanto, reflexo do certo ou doerrado, mas de enfoques e pressupostosdiferentes para o mesmo problema. E ésomente a existência de divergências,como tenho sempre insistido, que podefazer com que o debate acadêmico noBrasil fique cada vez mais interessante.No plano da dogmática dos direitos fun-damentais e de seus efeitos nas relaçõesentre particulares, o pontapé inicial jáfoi dado pelos ótimos trabalhos deSarmento e Steinmetz.

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obviamente, fazer uma defesa de uma desimportância dodebate germânico. Isso seria incongruente com a minhaprópria produção acadêmica. Para mim, quanto maior fora possibilidade de leitura em outros idiomas (leia-se: deoutros debates), maior será a possibilidade de arejar eaperfeiçoar o debate brasileiro. O que eu quis ressaltarfoi apenas que nada substitui o rigor na pesquisa e aacuidade na argumentação.

3 Exceções a essa dicotomia entre efeitos diretose efeitos indiretos são principalmente as obras deSchwabe e Alexy. Cf. SCHWABE, Jürgen. Probleme derGrundrechtsdogmatik. 2. Aufl., Hamburg, 1997; Die sogen-nante Drittwirkung der Grundrechte. München: Goldbach,1971; e ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. Aufl.,Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994. p. 484 e ss.

4 É claro que essa é uma simplificação da análisede ambas as soluções. Por razões de espaço, contudo, nãohaveria como entrar em maiores detalhes e abordar out-ros aspectos das monografias resenhadas.

5 Sobre o conceito de mandamentos de otimiza-ção, cf. ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte, p. 75.

6 Para evitar incompreensões, é preciso distin-guir o binômio “conteúdo pessoal/conteúdo patrimoni-

al”, usado por Steinmetz, e a dicotomia entre “questõesexistenciais e questões patrimoniais”, usada porSarmento. No caso de Steinmetz, pessoal e patrimonialsão atributos do direito fundamental em jogo, razão pelaqual ela confere maior valor à autonomia privada quandose trata de direitos de conteúdo patrimonial. No caso deSarmento, existencial e patrimonial não são atributos dosdireitos em jogo, mas do tipo de relação. É por isso queé justamente nas relações de cunho existencial que aautonomia privada deve ser mais respeitada. Um exemp-lo dado pelo próprio Sarmento (p. 309-310) podeesclarecer melhor esse ponto: em uma relação de cunhopatrimonial, como um contrato de aluguel, seria impen-sável que se aceitasse uma cláusula que estipulasse arescisão do contrato de aluguel se o locatário recebessepessoas negras (ou judias, ou muçulmanas etc.) em seuimóvel. Por outro lado, não seria possível, com base nodireito fundamental de igualdade, obrigar alguém a con-vidar pessoas negras (ou judias, ou muçulmanas) a suafesta de aniversário, já que essa seria uma decisão decunho existencial.

7 Outros pontos são abordados em obra maisampla, dedicada ao tema, a ser publicada em breve. Cf.SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito:os direitos fundamentais nas relações entre particulares.São Paulo: Malheiros, 2005. No prelo.

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Virgílio Afonso da SilvaPROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE

DE SÃO PAULO

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