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DIREITO, LINGUAGEM E LITERATURA: REFLEXÕES SOBRE O SENTIDO E ALCANCE DAS INTER-RELAÇÕES Raquel Barradas de Freitas FDUNL N.º6 - 2002

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DIREITO, LINGUAGEM E LITERATURA: REFLEXÕES SOBRE O SENTIDO

E ALCANCE DAS INTER-RELAÇÕES

Raquel Barradas de Freitas FDUNL N.º6 - 2002

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Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 6/02

DIREITO, LINGUAGEM E LITERATURA: REFLEXÕES SOBRE O SENTIDO E ALCANCE DAS INTER-RELAÇÕES.

Breve estudo sobre dimensões de criatividade em Direito.

Raquel Barradas de Freitas

© Raquel Barrada de Freitas Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de

Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou

primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A

sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação

posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como Working

Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de

Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares Maduro,

[email protected], Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Travessa Estevão

Pinto, Campolide 1400-Lisboa.

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Tornou-se um lugar comum dizer-se que, se o século XIX foi o século da ciência, o sec. XX foi o século da linguagem. Apesar da banalidade da observação, são raros os trabalhos feitos entre nós sobre as questões da linguagem (e) do direito. Raquel Freitas resolveu, com independência de espírito e sensibilidade literária, aventurar-se nestes domínios inexplorados. Quanto a mim, agradeci-lhe na altura (continuo a agradecer-lhe) a aventura.

Maria Lúcia Amaral

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Estrutura do Relatório: 1. Nota prévia; 2. Estrutura do Relatório; 3. Linguagem e Direito: pre-compreensões e ‘lugares comuns’; 4. Direito e Literatura: o Direito como realidade heraclitiana. Busca de pontos de

convergência e paralelos. Direito e Teoria da Literatura; 5. Breves conclusões; 6. Bibliografia;

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Nota Prévia

‘O texto não passa de um piquenique em que o autor traz as palavras e os leitores o sentido’-

Umberto Eco∗

A linguagem como veículo de sentidos. A linguagem como elemento genético desses sentidos. A linguagem como arte de criação de símbolos, como origem e terminus de significados. Nenhuma destas acepções nos poderia ser alheia nesta tentativa de perscrutar as relações entre o mundo jurídico e a linguagem, num longínquo mas presente horizonte de interdisciplinaridade óbvia, mas nem sempre plenamente assumida, quanto ao Direito.

Usando a linguagem como ponto de partida, intentamos um ‘passeio’ pela estrutura dos vários níveis discursivos com que nos deparamos hoje, sendo que, nesta nossa realidade de princípio de século, esses discursos são tantos quantas as perspectivas pelas quais procuramos abarcar a realidade. E, não só na sua variedade, como na sua centralidade, parecem ser eles, porque manifestações multinivelares da linguagem, o leitmotiv do questionar metodológico emergido com o esbatimento e crise dos pressupostos e corolários Oitocentistas, inerentes ao ambiente cultural vivido em tal conjuntura histórica. Com a morte do Positivismo, adiada ou não, em certos momentos, parece surgir um reavivar da importância da linguagem, como moldura e medida de conteúdo, particularmente nas nobres e complexas tarefas de compreensão e análise de como surge, solidifica e se efectiva o Direito.

Neste estudo que nos propusemos fazer, partimos, desde logo, com uma pequena certeza: a de que, seja qual for o nosso percurso e linha de raciocínio, a natureza multi-disciplinar do universo jurídico estará, inevitavelmente, presente. E, para nós, assumir o jurídico como dimensão discursiva é um ponto de partida para reclamar relações específicas e localizáveis com a linguagem, embora, previsivelmente, a nossa abordagem não seja, nem possa ser, a esta dimensão, exaustiva ou tão completa como o desejaríamos.

Começaremos por uma fase de estabelecimento de pressupostos. Relembrando as características essenciais da linguagem como fenómeno humano, faremos um paralelo com a realidade do Direito. Deve, desde já advertir-se o leitor de que é deveras clara para nós a estreita e até mesmo simbiótica relação entre o Direito, em todas as suas manifestações e níveis de efectivação, e a linguagem, pelo que assumimos como ponto de partida para os nossos excursos o facto de todo o fenómeno jurídico se efectivar através de um uso específico da linguagem, estratégico e orientado à consecução de certos e determinados objectivos, que são normativos. A normatividade do Direito pode dizer-se depender, em grande parte, da linguagem utilizada, da sua vocação de vinculatividade, da sua força e especificidade, do seu teor localizado, orientador, circunscrito. Chamemos-lhe pre-compreensão, numa linha de subjectivismo hermenêutico, ou ‘lugar’, na senda da tópica reavivada. Seja qual for o nome a atribuir-lhe, ela existe em nós, pre-existe

Relatório realizado no âmbito da disciplina de Metodologia do Direito, sob orientação da Prof. Doutora Maria Lúcia Amaral, apresentado em Janeiro de 2002. ∗ in Os limites da Interpretação, Lisboa, Difel, 1990.

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relativamente à feitura e redacção deste relatório, orientando e motivando este estudo, dando-lhe um sentido e uma meta.

Explorados os termos do problema a colocar, passaremos a uma tentativa de localização dos pressupostos apontados quanto à relação entre Direito e Literatura. A área de estudos é tão fascinante quanto complexa e rica, tão cativante quanto problemática e fértil em concepções. Imensas seriam as perspectivas possíveis e as vias possíveis de tratamento deste binómio. Exigindo-se que circunscrevêssemos a nossa tarefa, optámos por focar a nossa atenção, sobretudo, no ponto de convergência da literatura como meio privilegiado de manifestação e ‘manipulação’ da linguagem, como via por excelência de apresentação estilística de estratégias discursivas, com objectivos vários, e o discurso jurídico. A literatura como arte, na sua vocação de fazer ressaltar as virtualidades da linguagem, criando realidades paralelas, universos alternativos, nos quais o leitor se vê inserido e vivido, na dimensão que mais lhe aprouver. Diríamos ser a literatura uma forma de realização das várias aspirações do ser humano, como veículo e fruto das suas próprias construções e motivações, numa realidade que pode não ser a sua, que pode não ser a do Direito. Por que não, até, chamar-lhe uma via privilegiada de realização da liberdade humana, sendo o Direito uma outra que, por via de uma racionalidade orientada a valores (também) supra-individuais, acaba por se lhe impor, não deixando de ser, em última análise, um reflexo da liberdade humana, quer no momento prévio de estabelecimento de metas a atingir e prosseguir pelo Direito, quer na real indiferenciação entre o momento criador e aplicador do processo jurídico. Também este é, e voltamos a sublinhá-lo1, uma manifestação inequívoca e apriorística do contexto pós-positivista, de transição metodológica, que é o nosso.

Ao questionar a forma pela qual a Teoria da Literatura nos pode ajudar a compreender e a melhor efectivar o Direito estaremos a assumir como nossos os princípios de alguns estudiosos autores anglo-saxónicos que, numa atitude muito mais espontânea do que a que a iniciativa continental poderia alguma vez assumir, colocam questões, apresentam perspectivas e discutem propostas num diálogo frutífero e construtivo2. Estaremos também, como, sem hesitação, admitimos, a transpor para a nossa ainda tão sedimentadamente legalista realidade, certas estratégias e pontos de vista da tradição metodológica anglo-americana, particularmente no que se refere ao alcance das nossas considerações: em rigor, mais do que à actividade legislativa, a discussão metodológica a que nos dedicaremos nas próximas páginas será dirigida à actividade jurisdicional, sobretudo, embora assuma como possibilidade e alcance possível todos os níveis e dimensões de aplicação e concretização do Direito, seja à escala 1 Já aqui nos ocorre relembrar as ideias de Habermas, citado por Stanley Fish a propósito daquilo a que este chama critical self-consciousness, ou seja a capacidade que temos para reconhecer e localizar os nossos próprios limitesinterpretativos, a nossa não ausência de pre- juízos («the inescapability of interest is one of the lessons the twentieth century has learned»). Nas palavras de Habermas: «Self –reflection is at once intuition and emancipation, comprehention and liberation from dogmatic dependence»; ‘Ye shall know that the truth is other than it seems, and that knowledge shall set you free.’. Quem sabe se não estaremos, ao menos, no caminho certo... 2 Na verdade, e como sublinha Fritjof Haft, «Ao passo que no espaço anglo-saxónico predomina o pensamento nominalista, entre nós o realismo conceptual é, tradicionalmente, forte.. Os anglo-saxónicos entendem o discurso como um processo, no qual são utilizados sinais para a representação, para a memorização e para o tratamento da realidade (daí que eles não tenham dificuldades de maior ao lidar com computadores). Ao invés, nós deixamos facilmente influir nos nossos conceitos a metafísicade um reino ideal platónico, na qual a ideia de direito também terá o seu lugar, introduzindo-se assim natural e imediatamente um elemento místico («visão» das ideias) na utilização da linguagem.»

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institucionalizada da actividade jurisdicional, seja ao nível quotidiano de participação dos vários agentes jurídicos na realização e efectivação dos ditames, mais ou menos específicos, do Direito. Ora, tal abrangência leva-nos a três conclusões: em primeiro lugar, que o Direito surge multinivelarmente, em instâncias várias e de acordo com contributos vários; em segundo lugar que, tal como nos ensina a tradição anglo-saxónica, com a qual temos muito a aprender, aos tribunais cabe, também nos sistemas de Civil Law, a tarefa de fazer Direito, sem que se veja cerceado ou desvirtuado o tão caro princípio da separação de poderes; e, por último, que já não fará sentido referir dois momentos essenciais na natureza do Direito: o da sua criação e o da sua realização. A assunção de tais corolários passará necessariamente pela colocação da interpretação jurídica no centro da nossa análise, sendo a mesma o eixo simultaneamente comparativo e gerador do contributo possível da(s) metodologia(s) literária(s) para a compreensão do Direito, para a adaptação das suas molduras metodológicas às exigências da complexa realidade a que se vêem aplicadas. O Direito é, cada vez mais, uma resposta e um mecanismo ‘pedagógico’ gerador relativamente a contextos específicos que, simultaneamente, se lhe impõem e são criados por ele. Faremos nossa a tarefa de apurar os termos em que, na multidisciplinaridade que comporta, pode ser fecunda a inter-relação dos universos jurídico e literário.

Não podendo antecipar eventuais conclusões relativamente à matéria sobre que nos propusemos discorrer, deixá-las-emos para o momento derradeiro deste relatório. Nessa fase final, procuraremos resumir, dentro das possibilidades que nos tiver fornecido a nossa análise, as ideias centrais do breve estudo a que nos dedicámos.

Na esperança de ver abertos novos caminhos e de possibilitar uma mais construtiva análise do sentido e limites do Direito, em todos os seus níveis de efectivação, prosseguiremos nesta, para nós, tão fascinante tarefa de descoberta de inter-relações. Nas palavras intemporais de William Shakespeare deixaremos todo o sentido da nossa atitude perante também esta nossa pequena tarefa: «there are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy».3

3 Hamlet (1601) act 1, sc. 5, l. 166.

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Parte I- Direito e Linguagem

‘O que há no mundo não depende em geral do nosso uso da linguagem, mas já depende deste uso o que podemos dizer que há’- Quine

Referindo-nos à linguagem como ‘arte’, fazemo-lo no sentido a que a ela S.Tomás de Aquino se referia, ou seja, como ‘virtude do intelecto prático que conhece e aplica as regras de bem fazer’. Muitas vezes, na busca de uma máxima suficientemente esclarecedora, pela sua simplicidade e riqueza de conteúdo, corremos o risco de cair em situações de alguma limitação. Não nos parece, no entanto, ser esse o caso. S. Tomás parece exprimir a ideia, que rápida e quase instintivamente ligamos ao conceito de arte, de que a chave da sua essência está na existência, assumida mas nem sempre institucionalizada ou definida em todos os seus termos, de determinadas regras, expressas ou tácitas, cujo seguimento e cumprimento conduzem e reflectem uma disposição ou predisposição, prática, para as aplicar, produzindo um determinado resultado: uma obra.

Dizem-nos certos autores integrarem a obra da linguagem, como arte, os símbolos

por ela produzidos, elaborados, descobertos, como potenciais nichos de significado. Por símbolo, entendemos também ‘a representação material de uma coisa por outra, em virtude de uma analogia formal percebida entre ambas’. A relevância dos símbolos, no seu poder evocativo, pode reflectir-se directamente na realidade, como resultado de uma forte ligação convencional à coisa representada. Verificada tão significativa movimentação do símbolo da esfera meramente evocativa para uma esfera mais localizada e directamente expressiva, surge o signo. Mas relevante é sublinhar que existem símbolos de diversíssimas naturezas e que todos eles integram aquilo a que chamamos linguagem, em sentido amplo.

Duas categorias de símbolos serão, no entanto, de destacar: de entre os símbolos

fónicos, os vocais, e, de entre os símbolos visuais, os gráficos, sendo a «palavra escrita» a sua manifestação primordial. São estas as duas dimensões da linguagem que mais relevância assumem nos universos em que nos propomos entrar: o mundo do Direito, como esfera de exercícios de linguagem especificamente vocacionada; e o mundo da criação e vivência literária, como espaço de liberdade (tradicionalmente assim visto) de aplicação e criação de linguagem. A palavra escrita ou falada; os seus vários conteúdos; os objectivos e destinatários a que se dirige; o contexto em que surge e é proferida; a forma como é recebida e compreendida pelo receptor. Todos estes problemas se colocam com acuidade na análise das disciplinas em questão, sendo todos eles, também, critérios para a compreensão do funcionamento das regras vigentes quanto a cada uma delas.

Como não podia deixar de ser referido, a linguagem surge, em remoto e imemorial

princípio, como manifestação por excelência da natureza racional e tendencialmente expressiva do ser humano. A sua racionalidade caracteriza-o como ser espiritual e simultaneamente corporal. Na realidade, poderá talvez dizer-se ser a linguagem um elo de ligação entre a dimensão espiritual do Homem e a sua dimensão física, corpórea, sendo um veículo de relação entre as suas necessidades de ser pensante e as exigências de ver o seu pensamento expresso através de uma qualquer materialidade. Há quem afirme, em

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consequência desta tarefa da linguagem, que a sua primeira função é a de dar ao Homem a possibilidade de pensar. A este propósito, evoca Herculano de Carvalho4 duas funções essenciais da linguagem: uma função dita ‘interna’, ou congnoscitiva, uma vez que, pela sua concretização, se dá o conhecimento, «no interior do próprio sujeito falante». Diz o Autor que «Esta função interna, que consiste no conhecimento, deve considerar-se a função primária da Linguagem, quer do ponto de vista do indivíduo falante quer sob a perspectiva da própria comunidade». Por outro lado, numa função dita secundária, serve a linguagem de «meio de comunicação» entre indivíduos.

Segundo os ensinamentos de Saussure, «o signo linguístico é bifronte, possui

significante e significado» e, enquanto os sinais não formam um sistema coerente, em conjunto, os signos «pressupõem sempre a existência de uma estrutura subjacente, de que são partes integrantes. Formam, como se diz, um código; mas esse código é também uma interpretação da realidade.». Tal como afirma Mattoso Câmara, «em cada língua dá-se uma divisão, ou recorte diferente na representação do mundo objectivo» ou, nas palavras de Porzig, «cada comunidade não possui apenas formas linguísticas próprias mas, ainda, aderente a essas formas, o seu modo de pensar e analisar o universo, a cujo encontro vai com outro sentir e outro querer.». Em rigor, parece poder concluir-se não ser o próprio pensamento possível sem o suporte simbólico representativo fornecido pela linguagem, numa dimensão lata de permitir o corporizar de cosmologias e molduras de pensamento, de mundividências e de verdadeiras estruturas de raciocínio e razão, sempre necessariamente localizadas e particularizadas, de acordo com as características e formas de representação linguística escolhidas e espontaneamente adoptadas por cada diferente comunidade humana, seja a sua diferença uma diferença puramente de língua, quer a mesma seja mais genérica, em termos de sector social, cultural, político, disciplinar ou até religioso. A diversidade dos fenómenos humanos conduz, necessariamente, à diversidade de linguagens existentes, sendo a linguagem a ‘primeira’ das dimensões essenciais do Homem, na sua natureza social.

Aqui caberá, de forma quase inevitável, uma referência à Semiótica. Referência

breve, contextualizadora, mas necessária. Aquela é, numa síntese, a ciência dos sinais, entre os quais se localizam os da linguagem. Dedica-se, em rigor, ao estudo de todos os sistemas e estruturas significativas que, constituindo ou não ‘linguagens’ e ‘textos’, não são linguagem por excelência nem, por conseguinte, os seus textos. O ser é o algo de que deve ocupar-se a semiótica e, nessa tarefa, questionar em que consiste esse algo que motiva a produção de signos. A Filosofia da Linguagem, no seu todo, vê-se confrontada com um ‘duplo terminus’: um terminus ad quem e um terminus a quo, sendo também seu o munus de perguntar ‘o que é que nos faz falar’. É nessa busca do que nos faz falar que se descobre que a produção de signos existe porque, por sua vez, ‘algo exige ser dito’5. É, em rigor, inultrapassável a pre-existência do ser relativamente ao dizer. A realidade, a ontologia do mundo e das coisas, impõem-se ao ser pensante, motivando as suas construções intelectuais, as suas estruturas linguísticas, as suas cadeias de raciocínio, baseadas em signos. E não é o ser apenas pressuposto da resposta cognoscitiva que efectiva por intermédio da linguagem, é também, e primeiramente, condicionante e

4 In Teoria da Linguagem, 34. 5 Cfr. Umberto Eco, Kant e o Ornitorrinco, 24. ‘(...) não seríamos capazes de pensar senão partindo do princípio (implícito) de que estamos a pensar qualquer coisa. O ser é o horizonte, ou o líquido amniótico, em que naturalmente se move o nosso pensamento- aliás, como para S. Tomás é o intelecto que preside à primeira apreensão das coisas, é aquilo em que se move o nosso primeiro esforço perceptivo’, p.29.

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gerador do próprio questionar6. A natureza filosófica do ser surge por via da linguagem. É o facto de se falar dele que o transforma em problema, numa transformação daquilo que, não fora a linguagem, seria uma evidência empírica, como tal sentida, vivida, mas não problematizada. Não querendo alongar-nos em considerações puramente ontológicas, cumprirá apenas referir uma breve conclusão a que nos parece ser possível reconduzir o inesgotável problema do ser. A sua interminável circularidade, quando em relação com a linguagem, apresenta-lhe um dilema fulcral: ele é, como problema ‘materializado’ ou ‘materializável’, não só um produto- possível- da linguagem, mas é, sobretudo, indefinível. Eco cita Aubenque a propósito desta dupla limitação do ser, numa afirmação que nos parece plenamente esclarecedora: ‘não só não se pode dizer nada sobre o ser, como o ser não nos diz nada sobre aquilo a que o atribuímos: sinal não de superabundância, mas de pobreza essencial... O ser não acrescenta nada àquilo que se lhe atribui’, concluindo Eco, numa síntese luminosa, que ‘O ser fornece suporte a todo o discurso menos ao que fazemos sobre ele (o qual não nos diz nada que não soubéssemos já no próprio momento em que começámos a falar dele).’7 De qualquer forma, evidência por evidência, será de sublinhar que, para efeitos de uma possível relação entre os enunciados linguísticos, genericamente considerados, e o discurso jurídico, deverá ter-se presente, a inevitável circularidade do ser, como objecto e génese da linguagem, numa duplicidade de manifestações: o ser como suporte do discurso, como motivante e ratio do pensamento e da palavra; o ser, enfim, como consequência construída desse processo cognoscitivo, de que se vê ser, simultaneamente, origem e terminus. Veremos como concretizar essa duplicidade quando, mais abaixo, nos referirmos especificamente às manifestações da linguagem no Direito.

Sabemos, por a tal realidade já se ter feito breve referência, ter o século XX

trazido, entre outras manifestações de reacção anti-positivista e anti-ointocentista, uma colocação da linguagem no lugar de objecto de investigação. Tal facto é afirmado por A. Kaufmann, de forma pormenorizada. Refere-se o Autor a uma «bidimensionalidade da linguagem», consubstanciada a mesma numa «dimensão horizontal / racional-categorial» e numa outra, essa «vertical / intencional-metafórica». Na primeira dimensão «está em causa a univocidade lógico-formal da linguagem. Aponta-se para a forma e para a estrutura da linguagem. Pretende-se que a linguagem seja dividida pelo entendimento. (...) Tem-se por objectivo a linguagem inequívoca, exacta.», defendendo essa dimensão, refere Kaufmann a escolástica medieval, na sua representação da linguagem como espelho da realidade, e também a gramática setecentista francesa de Port Royal. Ambas as tendências visavam a elaboração de uma estrutura sistemática e racional de linguagem, com pendor universal. Tal tradição parece ter vindo recomeçar, no início do séc. XX, com Saussure e a sua «linguística estrutural», nas palavras esclarecedoras de Kaufmann, entendia-se que «a descoberta do elemento individual, da unidade linguística pressuporia já o reconhecimento de um sistema global, de uma ordem, de uma estrutura justamente, e

6 Ainda em Umberto Eco, ‘O ser não é um problema de senso comum (ou melhor, o senso comum não o coloca como problema) porque é a própria condição do senso comum’, op. cit., 28. ‘O ser já existe antes de se falar dele. Mas só podemos transformá-lo de evidência insuprimível num problema (que aguarda resposta) porque falamos dele. A primeira abertura ao ser é uma espécie de experiência estática, embora no sentido mais materialista do termo, mas enquanto permanecemos nesta evidência inicial, e muda, o ser não é um problema filosófico, tal como não é problema filosófico para o peixe a água que o sustém. Mas no momento em que é do ser que falamos, não falamos dele ainda nesta sua forma omnienvolente, porque, como já se disse, o do ser ( a mais natural e imediata das experiências) é o menos natural de todos os problemas, o que o senso comum nunca se põe: nós começamos a caminhar às apalpadelas no ser, nele recortando entes, e nele construindo pouco a pouco um Mundo.’, p. 31. 7 Op.cit., 35.

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o esforço deveria ser dirigido para a explicação dessa estrutura.». Também Wittgenstein, com o seu «empirismo lógico», veio reiterar a ideia de que seria possível aceder a uma univocidade da linguagem8. Com Carnap, e descobertas as inultrapassáveis insuficiências da linguagem, tenta-se a construção de uma estrutura operacional de «sintaxe lógica», mas conclui-se, com Kaufmann, que «a ‘verdade’ só é revelada pela correspondência recíproca de asserções complementares», sendo que, ao nível do Direito, essa conclusão se estende no sentido de atestar a inevitabilidade da imposição ao discurso jurídico «da imensa riqueza da realidade». Cumprirá ao Direito, e ainda nas palavras de Fritjof Haft9, «retratar aquela riqueza ilimitada com meios limitados e qualificá-la através de valorações.». A linguagem jurídica vê-se, assim, votada à equivocidade e à plurivocidade.

O Direito10 surge, nas sociedades, nas comunidades humanas, como manifestação

paradigmática da racionalidade humana, imposta por normatividade, através da linguagem. Assumimos esta afirmação como um postulado, visto que só existe Direito porque existem seres humanos em inter-relação e porque existem diferentes linguagens e formas de conceber a realidade. Impondo-se a necessidade de assegurar alguma coordenação entre as diversas modalidades de conformação da razão, ou, por vezes, procurando-se prevenir a ausência de racionalidade nos comportamentos humanos, numa prevalência de factores instintivos ou emocionais de consequências patológicas, o Direito nasce e concretiza-se, simultaneamente, em universalidade e imposição de padrões de conduta. O Direito é uma instituição eminentemente humana e, como tal, uma realidade da qual não poderia excluir-se a linguagem11. O mundo jurídico, nas suas diversas manifestações e instâncias, efectiva-se através da linguagem, de uma linguagem que se pretende universal ou universalizável. Uma linguagem que se quer, como, de forma um tanto excessiva, sublinha Fritjof Haft fria, afastando qualquer resquício de sentimento, e até rude e sucinta, prescindo de quaisquer vocações justificativas ou pedagógicas. Não se duvida da desejabilidade de concisão e rigor conceptual na linguagem jurídica, mas também não nos parece totalmente adequado despojá-la de todo e qualquer elemento

8 Diz o Autor, no seu Tratado Lógico-Filosófico: «Tudo aquilo que pode ser pronunciado pode sê-lo de forma clara»; « Aquilo que não pode ser falado tem de ser omitido»; 9 Num seu texto precisamente sobre Direito e Linguagem, integrado numa compilação a cargo de A.Kaufmann, a editar brevemente, na sua versão portuguesa, pela Fudação Calouste Gulbenkian. 10 Referimo-nos ao Direito, ao longo de todo o nosso estudo, na tripla dimensão que lhe atribui Castanheira Neves: « a) O Direito enauqnto a intencionalidade a cumprir concretamente mediante a sua realização- como quer que se entenda essa intencionalidade, uma axiológica normatividade, uma programático-formal legalidade, uma político-social estratégia; b) O Direito enquanto espaço institucional da decisão- espaço legitimado e demarcado constitucionalmente, definido por um estatuto orgânico e jurisdicionalizado por um processo; c) O Direito enquanto o fundamento e o critério do juízo ou da decisão em que se consubstancia a sua realização- ‘fundamento’ no sentido de elemento racionalmente concludente num discurso problematicamente judicativo, ‘critério’ no sentido de um operador técnico que pré- esquematiza a solução. O Direito, portanto, enquanto o conteúdo intencionalmente fundamentante do juízo ou o critério justificativo da razão.» . 11 Atenda-se às seguintes palavras de Castanheira Neves: « ‘(...) a função do Direito é determinada pela natureza das relações sociais prevalecentes numa dada época (Ost)’- O que implicaria para nós que o acto da mediação decisória e a sua metódica racionalidade seriam, não apenas, mediatamente, variáveis socialmente dependentes através da intencional dependência ou da social funcionalidade do próprio Direito, mas ainda, imediatamente e em si mesmos, condicionados- dependentes no paradigma cultural e no modelo de racionalidade que socialmente se lhe imporiam(...) a sua racionalidade abandonou a razão objectivo-material para assimilar a razão funcionalmente instrumental.»

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pedagógico ou até de uma certa elaboração teórica no sentido da mais completa compreensão dos seus conteúdos. A verdade é que deverá distinguir-se, a este propósito, entre a linguagem jurídica plasmada nas leis e códigos, concretizada e cristalizada, em fórmulas gerais e abstractas, na legislação, cuja vocação é a de servirem de guia e referência, o mais exacta possível, para os cidadãos inseridos numa jurisdição, ou, noutra terminologia, para os sujeitos jurídicos; e a linguagem das decisões jurisprudenciais, das obras doutrinárias e académicas e dos pareceres sobre questões específicas ligadas ao Direito. Nestes últimos casos, estão em causa contextos de conformação, justificada e fundamentada, de situações factuais concretas, à luz dos princípios e regras jurídicas existentes e aplicáveis, ou até de expressão de pontos de vista informados sobre questões particulares cuja resolução se revela premente e cujo impacto na vida dos destinatários será, em princípio, imediata e concreta. Assim, afigura-se-nos legítimo afirmar a necessidade de dotar a linguagem jurídica de diferentes virtualidades, em função dos contextos em que surge a sua intervenção. Embora sempre concisa e rigorosa, ela deve adaptar-se às necessidades da situação em que surge, sendo ora despojada e fria, ora profunda e fundamentante, assumindo, até, por vezes, dimensões de complexidade que podem não ser evitáveis. Mas tudo isto tendo em vista o melhor ajuste possível do discurso jurídico às necessidades dos sujeitos por ele conformados, sendo nossa a convicção de que a natureza do Direito deve ser, sem excepção, e num sentido de teleologia Kantiana, antropocêntrica. É essa a razão da sua riqueza. É essa, também, a razão da riqueza da sua linguagem. E a nossa referência à linguagem, na sua relação com o Direito, pode dizer-se ser uma pre-compreensão, no sentido hermenêutico de forma predeterminada de olhar a realidade, culturalmente motivada. De uma outra perspectiva, poderíamos chamar-lhe um ‘lugar’, na visão tópica de ponto fixo no iter discursivo. Talvez lhe possamos atribuir o estatuto de lugar comum, uma vez que é a partir da sua fixação como pressuposto que toda a argumentação surgirá.

Segundo nos parece (e já o esboçámos acima), a linguagem revela-se, no Direito,

como dicotomicamente vocacionada. Existe um suporte linguístico materializado, positivado, que exterioriza os ditames da autoridade que o elabora. Existe ainda algo de intangível, mas presente, conformador da normatividade posta, que a justifica, origina, motiva e suporta. Esser afirmava que a aplicação ou realização do Direito implicaria sempre uma associação entre ‘lex scripta’ e ‘jus non scriptum’. Algo de paralelo menciona Otto Bachof quando se refere à existência de uma ‘axiologia suprapositiva’, nos casos de normas constitucionais inconstitucionais12. Em rigor, na nossa opinião, a construção e concretização do Direito abarca uma circularidade da linguagem, nos seguintes termos: 1. No ‘achamento da decisão’ (Larenz), a linguagem como origo e moldura

necessariamente condicionante do conteúdo. O pensamento, consubstanciado na solução jurídica (jurisprudencial), é, ele próprio, moldado pela linguagem , pelos quadros significativos, mais ou menos latos, mais ou menos polissémicos, mais ou menos consensuais e contextualizáveis, vigentes;

12 Em Esser, dir-se-ia tratar-se de algo mais amplo: o jus non scriptum integrando também as pre-compreensões estabelecidas e enraizadas na comunidade jurídica e as vivências do aplicador do Direito, nunca isento ou liberto das mesmas. Tal como, em Engisch, a interpretação jurídica ultrapassaria a noção quotidiana de mera aplicação automática das normas aos casos concretos. Seria antes «uma verdadeira e omnímoda compreensão num sentido mais elevado, mesmo que esta nos arraste para uma posição filosófica, histórico-cultural ou política.».

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2. Na ‘fundamentação da decisão’13, a linguagem como instrumento legitimador do iter seguido no processo criativo. Realidade bifronte: a conformação apriorística das soluções procuradas e a simultânea vocação justificativa e instrumental do discurso, enquanto suporte de algo já construído;

A linguagem repartida e universalizada em vocações quase paradoxais: como

conteúdo do produto acabado, e matéria-prima fundadora e integradora do mesmo e, numa fase pós-criadora, como instrumento de validação, de justificação ou de conformação aposteriorística e legitimadora da norma jurídica aplicada. Neste sentido, parece-nos claro ser a jurisprudência o exercício, por excelência, da ‘interdiscursividade necessária da verdade’.

Pode considerar-se ser na interpretação que reside o ponto mais problemático de ligação entre linguagem e Direito. É também a esse nível que nos parece residir a ligação possível entre a metodologia do Direito e a Teoria da Literatura. A esta relação referir-nos-emos adiante. De qualquer forma, e pela relevância que assume em qualquer manifestação de linguagem, o fenómeno interpretativo merece uma referência neste breve estudo, particularmente no que se refere à sua natureza e objecto. Parece-nos que uma mais completa análise do seu escopo nos permitirá abrir algumas portas e alcançar alguns pontos de referência importantes para este trabalho.14

E, na interpretação jurídica (e na aplicação do Direito como processo genérico), o momento do ‘abandono’ do sentido literal da norma posta (vide Fikentescher e a dicotomia ‘limite de sentido literal’ vs ‘limite de sentido normativo’) não consubstancia um abandono da relevância da linguagem: o processo interpretativo representa uma forma de salientar e compreender cabalmente a relevância do discurso como matéria-prima do pensamento por surgir e, igualmente, como terminus ou meta, na sua dimensão expositiva, como resultado do pensamento e expressão do mesmo. «No momento em que se abandona o sentido literal- diz o autor-, começa a vinculação a precedentes e o estrito procedimento casuístico», e, acrescentaríamos, a verdadeira tarefa do aplicador do Direito como actor num processo criativo de composição de interesses, consciencialização de significados e consolidação de conceitos instrumentais importantes. Curiosamente, a grande importância da linguagem como génese ou elemento conformador do pensamento e do raciocínio agudiza-se (ou surge mesmo) quando ao aplicador do Direito passam a apresentar-se as eventuais dimensões extraliterais do objecto da sua análise. É no abandono da literalidade, na interpretação jurídica, que o jurista encontra o verdadeiro sentido criador da linguagem. A partir de então, o seu discurso é pressuposto e meta da função conformadora da solução obtida.

O papel criador da linguagem revela-se e corporiza-se nas manifestações e

formulações do Direito, numa continuidade e essencialidade, simultaneamente criadoras e

13 Vide p. 195 da obra citada de Larenz: ‘A prática não arranca dos métodos doutrinários do achamento do Direito , mas serve-se deles somente para fundamentar leges artis a decisão mais ajustada, de acordo com o seu entendimento do Direito e dos factos’- Esser 14 No mesmo sentido se pronuncia Joana Aguiar e Silva (op. cit., p. 126) quando afirma o seguinte: «Como palco de ensaios mais que natural, surge o domínio da interpretação, como campo preferencial para onde orientar essas pesquisas teoréticas. Um rumo alimentado pela própria viragem linguística operada no início do século no seio da actividade cognoscitiva em geral. O trabalho desenvolvido pela filosofia da linguagem e pela teoria da literatura influenciou e enriqueceu estudos congéneres levados a cabo pelos teóricos do Direito, que rapidamente se aperceberam das vantagens que havia em usufruir de todo esse património entretanto acumulado.»

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resultantes do pensamento, que possibilitam e enformam. No mundo jurídico, que também vive da linguagem, nada se perderá em perscrutar e compreender a natureza da linguagem jurídica e a sua localização no universo global das formas de expressão do pensamento. Haverá, porventura, quem afirme sem reservas a sua máxima especificidade, sem pontes de ligação à chamada ‘linguagem comum’. Outros dirão que é no Direito, por se destinar à conformação da sociedade como um todo e, como tal, ser vocacionado para a prática aplicação e manuseamento por todos os que são seus destinatários, que se encontra a acessibilidade e universalidade por excelência da linguagem, concretizada esta na simplicidade, crueza e sobriedade do discurso jurídico (pelo menos- Kaufmann- numa perspectiva de ‘dever ser’). Não nos aventuramos a respostas peremptórias. Parece-nos estarmos em face, quando confrontados com a natureza porosa do discurso jurídico, nas suas várias dimensões e manifestações, de uma realidade ecléctica. Sendo desejável e, até em alguns casos, efectiva, a objectividade e acessibilidade tendencialmente universal da linguagem do Direito, também é sua característica, por se tratar de um universo de alguma tecnicidade e circunscrição conceptual, a especificidade dos raciocínios que abarca, das generalizações que efectua e dos termos em que se vê aplicado à realidade. Quantas vezes nos vemos surpreendidos com a forma pela qual algumas soluções jurídicas se vêem desgarradas daquela que seria a resposta de senso comum? Várias, diríamos, e sem hesitação reconduziríamos essa sempre possível surpresa à especificidade da linguagem jurídica. Nessa constante capacidade de nos surpreender, aliada a uma sempre presente necessidade de segurança e estabilidade conducente à efectiva universalidade das suas soluções, é o Direito linguagem e discurso específico, localizado, num desafio de aplicação uniforme. É também nesse aparente paradoxo que se revela a sua riqueza.

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Parte II- Literatura e Direito ‘Nous savons tous ici que le droit est la plus puissante des écoles de l’imagination. Jamais poète n’a interprété la nature aussi librement qu’un juriste la réalité.’ Jean Giraudoux, La Guerre de

Troie n’aura pas lieu (1935) act 2, sc. 5

Uma das características da fase metodológica pós- positivista em que nos encontramos- não parecemos ainda fugir de tal qualificação, não se estando em face de indicações que nos permitam afirmar a passagem a uma etapa ou era diferente no âmbito da Metodologia jurídica-, e verificando-se, ainda como presentes significativos resquícios de reacção às anteriores tendências teóricas progressivamente abandonadas, é a de uma preponderância dos métodos hermenêuticos e uma abertura aos mesmos. Trata-se do produto de uma evolução verificada, segundo a qual, e parafraseando Joana Aguiar e Silva, «as atenções se voltam agora, numa fase mais madura da investigação, para os problemas hermenêuticos suscitados por um Direito feito linguagem, em que a substância se confunde com a forma e em que a verdade se assume como verosimilhança. Um Direito em que é urgente introduzir limites, em que é urgente introduzir certezas.»15 Não poderá haver dúvidas quanto à natureza ainda crítica da fase que atravessamos, sendo que a crise se consubstancia, ainda, precisamente, numa ainda não desvendada forma de substituir os dogmas positivistas, assim como os seus métodos. De resto, e como afirma Maria Lúcia Amaral, a discussão de problemas adjectivos de natureza metodológica surge, por definição, em fases em que anteriores paradigmas se vêem ultrapassados, limitados e não desejados, no seu âmbito de aplicação. E o pós- positivismo é isso mesmo: uma fase intermédia, uma fase que medeia a vigência do antigo paradigma e o estabelecimento de um novo modelo paradigmático que possa ver-se aplicado com mais adequação às realidades entretanto surgidas. E ainda parecemos buscá-lo.

Passámos da linguagem como um todo à esfera mais localizada da Literatura. Parece-nos lógica e previsível tal ligação: o discurso literário como uma das mais admiráveis formas de domínio, manipulação e vivificação da linguagem.

Assumimos como objectivo procurar encontrar pontos de contacto relevantes entre a metodologia do Direito, na sua vivência jurisprudencial, sobretudo, e a Teoria da Literatura, numa acepção muito genérica e lata da mesma. Parece-nos ser o Direito, como ciência ou arte, sobretudo um discurso orientado a metas, motivado por objectivos de busca de um momento de intersubjectividade e de normatividade assumidas. Nesse sentido, o Direito aparece-nos, também, como uma via de operatividade linguística, ou seja, como uma modalidade de apresentação e autonomização da linguagem, talvez como veículo de ideologias. Mas esse munus também se encontra, talvez até com mais

15 Afirma também a Autora, antecipando a nossa tarefa, que: «a exigência epistemológica de uma mediação interpretativa abre perspectivas interessantes quanto à possibilidade de sediar os limites à actuação jurisprudencial. Esta exigência, sentida desde logo por filósofos da linguagem e teóricos da Literatura, justifica a conjugação de esforços das duas disciplinas- Direito e Literatura- num eixo de trabalho ao qual subjaz uma procura de valores que fundamentem e legitimem, filosófica e racionalmente, a própria realidade jurídica.»

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intensidade e liberdade, na Literatura, onde se produzem, apresentam e frutificam visões do mundo, da vida, da História, da razão de ser de cada existência e de todas as existências. A diferença será talvez a de as consequências de tal expressão não serem significativas em termos de vinculatividade, pelo menos directamente (veremos infra o desacordo de Stanley Fish relativamente a esta matéria).

Uma das formas possíveis de recolocar questões tão discutidas ao longo da História poderá ser procurando descobrir novas vias de abordagem dos problemas jurídicos. E os contributos procurados serão, previsivelmente, cada vez mais amplos e diversificados, mesmo no seu objecto originário. Uma das grandes ‘vantagens’ de uma atitude pós- positivista é a abertura a novas interferências metodológicas e a consequente liberdade na análise de eventuais inter-relações. Neste novo rol de potenciais contributos surge, a nosso ver, a Teoria da Literatura.

Afirmando, desde já, a impossibilidade de transformar este breve relatório num

estudo exaustivo e completo das matérias em discussão- tarefa que, tanto por limitações de tempo como de espaço e contextualização, não nos foi possível realizar -, pareceu-nos interessante, para uma mais abrangente e frutífera compreensão do fenómeno literário como um todo e, particularmente, com a noção e alcance da Teoria da Literatura, apontar alguns dos mais relevantes momentos da sua evolução, cronológica e substancial. Fá-lo-emos de forma breve e sucinta, tentando, no entanto, fazer realçar um paralelismo, que cremos efectivo, entre o percurso evolutivo do estudo do Direito e da Literatura, particularmente para efeitos de localização interparadigmática de ambas as disciplinas, no momento em que vivemos. Na verdade, faríamos deste paralelismo um primeiro possível ponto de contacto entre ambos os universos: um ponto de partida para uma aproximação que, desde logo, se não vê inviável, mas possível.

O termo ‘teoria da literatura’ é, ele próprio, um produto do século XX. Tem como

origem as construções do formalismo russo e do estruturalismo checo, difundidos no Ocidente no inicio da década de 60. Trata-se, numa tentativa definitória, da ‘disciplina que estuda o sistema literário, isto é, uma entidade teorética equivalente à langue, que Ferdinand de Saussure definiu como o objectivo formal da ciência linguística(...)’16. Diz-nos ainda Aguiar e Silva que ‘a teoria da literatura assim entendida postula a autonomia e a especificidade da esfera do fenómeno literário- os formalistas russos designaram com o termo literariedade essa autonomia e essa especificidade- e assenta no princípio de que a literatura, como as outras artes, é constituída por signos, convenções, normas, processos e mecanismos que transformam uma estrutura verbal não-estética numa estrutura verbal estética.’17. Os principais autores a referir, no universo da teoria da literatura, são o já várias vezes mencionado Ferdinand de Saussure, Boris Tomasevskij, René Wellek e Austin Warren. Denota, desde logo, como nos parece ser de sublinhar, um certo pendor científico, de abordagem localizada e metódica de realidades circunscritas, numa busca de uma certa universalidade, homogeneidade e uniformidade na conceitualização e nos padrões de análise do fenómeno literário. Trata-se da busca de 16 Vítor Aguiar e Selva, Teoria e Metodologia Literária. 17 Continua, afirmando que ‘ a teoria da literatura (...) não tem como objecto formal a obra literária concreta e individual- equivalente à parole da linguística saussuriana-, a obra literária de um autor ou a literatura produzida num determinado período histórico. A teoria da literatura, porém, deve elaborar os conceitos, as hipóteses explicativas, os métodos e os instrumentos de descrição e análise que permitirão conhecer, com rigor sistemático, a obra de um autor, um período literário, etc. Quer dizer, a teoria da literatura deve ser o fundamento epistemológico e metodológico de todos os ramos disciplinares do campo de estudos literários.’

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regras que possam valer como referência para o estudo da literatura, regras que a orientem, emoldurem e localizem, num esboço de sistematização. Tal ideia da possível cientificidade do conhecimento das artes ‘e da poesia, em particular’ vê-se formulada já durante Setecentos, mais uma vez, como nos explica Aguiar e Silva, ‘no quadro das orientações racionalistas do Iluminismo e do Neoclassicismo. Henry Kames, por exemplo (...), concebe a crítica como uma ciência racional que proporciona um entendimento rigoroso das belas artes, que solicita o exercitamento da faculdade do juízo e que modera e harmoniza os afectos e as paixões.’.

Parecia esboçar-se, já no séc. XVIII, essa possível e desejada recondução do

estudo metódico do fenómeno literário a um conjunto de critérios e regras uniformes e sistemáticas. Tal tendência sistematizante e científica não nos surpreende, considerando que perto estava o surgimento da fase aguda de positivismo e cientismo, nascida com a chegada de Oitocentos. Não só o Direito, mas todas as áreas do conhecimento se viram influenciados pelos dogmas e certezas do Positivismo, o que terá mesmo levado a que se visse surgir um verdadeiro ‘espírito comum’ impregnando todas as esferas do saber. Por essa razão, não nos surpreendemos com o facto de, também na teoria da literatura, se ter verificado um ressurgimento ou reabilitação da Retórica, durante os primeiros anos do séc. XX. Também na área do Direito sabemos ter-se verificado um renascimento dos métodos retóricos, da tópica. No paralelismo que acima anunciámos, essa tendência não foi localizadamente jurídica, antes parecendo alastrar a outras disciplinas que, por razões de estreita dependência da linguagem e suas construções, viram nas regras da tópica e da retórica um instrumento possível de manuseamento. A Estilística, nesse período de início de século, ‘(...) em oposição ao new criticism norte-americano, valorizou a capacidade didáctica e a força ética da literatura e chamou a atenção para a importância dos leitores na construção do significado do texto, ou seja, introduziu perspectivas retóricas no estudo do fenómeno literário.’. Muito relevante, neste contexto, terá sido o contributo da Escola dos Neo-Aristotélicos de Chicago, com R.S. Crane, Richard McKeon, Elder Olson e Wayne Booth. Para trás parece ficar as concepções do Romantismo, que identificavam a retórica com a esterilidade do normativismo neoclássico, fazendo equivaler os ‘lugares comuns’ a um artificialismo e vacuidade decorativa, cujo afastamento convictamente propugnavam. Ora, não nos ocorre senão uma referência aos pressupostos e termos da Hermenêutica, cujas formulações, num conjunto que qualificaríamos como harmónico, sublinham a relevância inelutável do sujeito na própria vivificação do texto com que é confrontado. Por via das suas pre-compreensões, das suas cosmologias, pre-conceitos, e até daquilo que ele próprio deseja ver no texto que lê e trabalha, o sujeito está a participar activamente na construção do seu significado efectivo, do seu alcance, que será tão vasto quanto for exigido pelas suas expectativas e entendimento relativamente ao objecto da sua análise. È esta a característica mais marcante da época interparadigmática em que vivemos: a crescente porosidade das realidades criadas, oferecidas aos sujeitos, a sua incompletude, reclamando contributos e preenchimentos que, hoje, são contributos e preenchimentos de construção, de criação. Vemos, com alguma clareza, que não se trata de uma fase exclusivamente localizada no mundo do Direito.

Convirá, aqui, fazer uma brevíssima advertência. Todo este nosso estudo se baseia

num ponto de apoio que se revelou como um elemento de alguma segurança, como um ponto de referência para quem, como nós, pela primeira vez se dedica ao estudo de uma matéria tão multinivelar e complexa. Encontrámos na interpretação o ponto de aproximação entre o Direito e a Literatura. Apoiámo-nos naquele que se revela como o

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momento por excelência de comunhão possível entre os dois universos a que aqui nos referimos. Tanto na interpretação jurídica como na interpretação de textos literários nos vemos confrontados com elementos ligados à linguagem e ao apuramento do sentido e alcance das suas construções. Em ambas as esferas estamos em face de textos que reclamam clarificação e esclarecimento, que reclamam reflexão, assim como estamos face a sujeitos, destinatários dos textos, a quem compete perscrutar, para deles retirar sentido e ‘utilidade’, o seu alcance como objecto de análise. Ora, poderia parecer inequívoco o localizar da relação entre o jurídico e o literário nesse momento, tendencialmente pós-criador, que é o momento da interpretação. Não nos parece, no entanto, que assim seja. Dir-se-ia ser esta uma via possível, num momento inicial de um estudo que promete ser longo, se não mesmo interminável. É essa a fase em que nos encontramos. É essa a nossa abordagem aqui. No entanto, e numa quase autocrítica, afirmamos que não se nos afigura suficiente essa solução. O que queremos dizer é que, embora constitua um ponto útil de possível aproximação entre o Direito e a Literatura, a verdade é que, só como esboço poderá apresentar-se e manter-se. Uma mais profunda e rigorosa análise dos termos em que pode pensar-se sobre esta matéria faz-nos, já, concluir que a resposta verdadeiramente construtiva deverá estar, primeiramente, não no momento pós-criador, ou seja, no momento da interpretação, mas no momento criador, do sujeito que faz o Direito, que escreve o texto literário. E a ponte a construir poderá estar aí, e não só na fase em que um outro sujeito, o sujeito confrontado com o texto, vai interpretá-lo, enchê-lo de sentido, e dar-lhe um destino, uma direcção específica. Trata-se da distinção entre o sujeito da enunciação e o sujeito da recepção, distinção essa que deve estar presente num estudo cabal desta matéria. Começar, precisamente, pelo primeiro, caminhando, depois, progressivamente, para o segundo, deverá ser o caminho a seguir em estudos mais completos e desenvolvidos.

Feito este breve parêntesis, diríamos que, antes de mais, um contributo possível da

teoria da literatura para o estudo do Direito será o de apresentar soluções aos desafios crescentes da interdisciplinaridade e da dispersão do jurídico. Parece-nos ser cada vez menos legalista o fulcro de criação do Direito. Mesmo no nosso contexto jurídico, em que ainda imperam concepções e mecanismos resistentemente positivistas, grandemente baseados no Direito posto, plasmado na Lei, mesmo nos sedimentadamente legalistas sistemas de Civil Law se colocam cada vez mais problemas e dilemas no que se refere à relevância da Lei como fonte de Direito, numa exclusividade própria do Positivismo. Vêmo-lo, em rigor, hoje, praticamente ultrapassado. E a jurisprudência tem, cada vez mais, um papel muito relevante na criação de Direito, não sendo só um mecanismo fixista de aplicação da Lei. Essa vertente da actividade jurídica- a vertente da actividade jurisprudencial- assume uma importância fulcral, há séculos, na tradição jurídica anglo-saxónica e, segundo nos parece, essa abertura à relevância do papel dos juizes na feitura do Direito é algo de muito positivo e necessário para uma flexibilização do ordenamento jurídico e da metodologia do Direito. Num panorama em que, ‘os limites da autoridade legítima do Direito se confundem com os limites impostos à interpretação’18, o contributo da teoria da literatura poderá revelar-se precioso, de formas diversas, na medida em que poderá fazer surgir para o sujeito jurídico- que hoje não pode separar-se em sujeito criador e sujeito aplicador – novos critérios e instrumentos para o não cercear da flexibilidade no uso do Direito19. Ora, o Direito parece unir-se, já aqui, à Literatura, no

18 Joana Aguiar e Silva, op. cit., 86. 19 Veja-se, em Dworkin, a seguinte passagem: «Semantic theories like positivism crimp our language by denying us the opportunity to use ‘law’ in this flexible way, depending on context or point. (...) But this buys linguistic tidiness at much too high a price. (...) », « Each judge’s interpretive theories are grounded in his

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sentido em que a interdisciplinaridade dos estudos literários ‘é requerida pela natureza plurímoda da própria literatura, entendida quer como sistema semiótico, quer como instituição, quer como corpus textual’20. Tal equivocidade ou plurivocidade já foi por nós afirmada, citando Haft, a propósito d o discurso jurídico.

O ponto de convergência que encontramos, neste esforço de sistematização, entre

os estudos jurídicos e literários é, na senda do que temos vindo a expor, o momento da interpretação. Mas não de uma forma adjectiva, de moldura dinâmica de significados. Antes de uma forma vasta e profunda, de contextualização. Num percurso de construção, de criatividade dentro do que é dado ao sujeito intérprete. Como nos explica Dworkin, cada aplicador do Direito (simultaneamente seu criador) tem as suas próprias convicções relativamente à razão de ser da prática jurídica como um todo. Na sua busca por um meio termo, entre o fixismo positivista e a extrema liberdade interpretativa, semente da insegurança jurídica, Dworkin propõe um modelo de interpretação jurídica cerceado, nos seus limites necessários, por um conjunto de elementos que aponta: a doutrina do precedente (própria dos Direitos de Common Law), o ambiente intelectual geral em que se insere o juiz, assim como a linguagem comum que reflecte e protege esse ambiente, e, por fim, o inevitável conservadorismo da educação jurídica formal e do processo de selecção de juristas para cargos administrativos ou jurisdicionais. Esta sua construção revela, a nosso ver, um grande ponto de ligação, mais uma vez, com os termos da Hermenêutica jurídica, sublinhando, embora sempre numa atitude de cuidadosa circunscrição, o carácter inultrapassável das pre-compreensões. E, de resto, esses elementos de criatividade e limitação são partilhados com a literatura. Como refere Vítor Aguiar e Silva, ‘os significados não estão no texto, como muitas vezes se afirma em jeito de lugar-comum e como, com perfeita consciência teorética, defendeu o new criticism anglo-americano. Os significados do texto literário é produzido na transacção do leitor com o texto, no diálogo que se estabelece entre o leitor e o texto, no jogo das perguntas que o leitor formula ao texto e das respostas que o texto vai proporcionando ao leitor.’. Manuel Frias Martins parece fazer ressaltar a relevância do elemento institucional na interpretação do texto literário, num efeito limitador que diríamos semelhante àqueles realçados por Dworkin: ‘ A legitimidade da sua interpretação não pode ser separada, portanto, e num primeiro momento, dos princípios reguladores dessa mesma interpretação no quadro de uma opinio communis de outros especialistas. A acção da memória do sujeito crítico faz com que a instância solidária do seu discurso se revele nos lugares comuns em que esse mesmo sujeito se confronta com a sua própria subjectividade como posição interpessoal.’. Note-se, mais uma vez, a utilização de uma terminologia identificável com os pressupostos e instrumentos da hermenêutica e da tópica, e em ambas as esferas, ou seja, tanto no Direito como na Literatura. own convictions about the ‘point’- the justifying purpose or goal or principle- of legal practice as a whole, and these convictions will inevitably be different, at least in detail, from those of other judges. Nevertheless, a variety of forces tempers these differences and conspires toward convergence. Every community has paradigms of law, propositions that in practice cannot be challenged without suggesting either corruption or ignorance.»- «The practice of precedent presses toward agreement.» «Judges think about law, moreover, within society, not apart from it; the general intellectual environment, as well as the common language that reflects and protects that environment, exercises practical constraints on imagination. The inevitable conservatism of formal legal education, and of the process of selecting lawyers for judicial and administrative office, adds further centripetal pressure. It would be a mistake to ignore these various unifying and socialising factors, but a more insidious and dangerous mistake to exaggerate their power. The dynamics of interpretation resit as well as promote convergence, and the centrifugal forces are particularly strong where the professional as well as the larger community is divided over justice. (...) Law gains in power when it is sensitive to the frictions and stresses of its intellectual sources.» 20 Mais uma vez, Vítor Aguiar e Silva.

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Relevante será considerar que a compreensão do objecto apresentado ao intérprete,

seja ele jurídico ou literário, deve inserir-se num contexto, mas num contexto que, na construção de Derrida, não é um algo que exista no mundo, por si mesmo, mas algo que é construído, ele próprio, algo que como construção do mundo, é efectivado sob condições contextualizadas. Dir-se-ia que, neste sentido, o contexto a ter em conta é um contexto condicionado, ele próprio, pelas limitações que se lhe colocam pela sua própria contextualização, como produto do mundo21. Assim sendo, a noção de contexto servirá, não como legitimação e confirmação de sentidos inequívocos, mas como indicação de todos os elementos que contribuem para a construção feita pelo sujeito, ao ser confrontado com um texto22. Ora, nesta acepção, o contexto é, por excelência, uma categoria hermenêutica, de conglobação de pre-compreensões. É assim que o entendemos, na senda de Derrida23.

Apresentam-se, normalmente, alguns conjuntos de conceitos opostos quando se

pretende distinguir a linguagem dita comum da chamada linguagem ficcional, normalmente presente nos textos literários. Fala-se, por vezes, na oposição entre um discurso órfão e um discurso dito completo, procurando sublinhar-se diferenças características entre eles. Segundo nos parece, não existe um imobilismo, uma absoluta divisão entre aquilo que se considera ser linguagem comum e aquilo a que se chama linguagem de ficção. De facto, no Direito existem indícios de indefinição, de subjectividade (acrescentada pelo contributo da hermenêutica), de ficção, também- através das várias ficções jurídicas que a Lei estabelece e consagra-, de factualidade já não bruta mas institucionalizada e, enfim, de não-literalidade. Não passará por aí, segundo nos parece, a distinção entre Direito e Literatura e a separação das suas esferas e metodologias.

Por onde poderá passar, então, a relação entre o jurídico e o literário? A nosso ver,

tudo passará pelo sentido e importância que a contextualização e as pre-compreensões assumem em ambas as esferas. Certo é que, por definição, somos confrontados com textos de naturezas muito diversas, mediante se trate de textos jurídicos ou literários. Certo é, também, que o Direito coloca exigências de objectividade e universalidade que a Literatura não abarca. O Direito é um discurso orientado à normatividade, por definição. Tem como munus a regulação da sociedade como um todo, nas suas várias subdivisões e ramos, e, como tal, deverá comportar limites e critérios que se não apresentam ao autor literário, cuja vocação é, em princípio, a de enriquecer o espírito de quem lê, talvez também a de desconcertar o leitor, visando alertá-lo para situações dignas de atenção, mas não constitui uma esfera de normatividade necessária, embora possa contê-la, como 21 Diz-nos Stanley Fish que, assim compreendido o contexto, ‘(...) one can no longer have any simple (that is noninterpretive) recourse to context in order to settle disputes or resolve doubts about meaning, because contexts, while they are productive of interpretation, are also products of interpretation.’. 22 Ainda neste sentido, embora de forma mais abrangente, Stanley Fish afirma o seguinte: ‘ Interpreters are constrained by their tacit awareness of what is possible and not possible to do, what is and is not a reasonable thing to say, what will and will not be heard as evidence, in a given enterprise; and it is within those same constraints that they see and bring others to see the shape of the documents to whose interpretation they are committed.’(...) ‘The crucial point is that one cannot read or reread independently of intention, independently, that is, of the assumption that one is dealing wiht marks or sounds produced by an intentional being, a being situated in some enterprise in relation to which he has a purpose or a point of view. This is not an assumption that one adds to an already construed sense in order to stabilize it, but an assumption without which the construing of sense could not occur.’ 23 Já Austin dizia que ‘what we have to study is not the sentence but the issuing of an utterance in a speech situation.’.

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reflexo, na sempre presente importância da reacção do destinatário do texto para a verdadeira construção do mesmo, no seu sentido e alcance. Estes, como imaginamos e compreendemos, desprendem-se, a certo momento, da esfera inicialmente criadora do autor, deixando-se ao sabor do sentido que lhe for dando o leitor. Em rigor, dir-se-ia ser esta uma questão de vinculatividade, e não de normatividade. Não é o texto literário vinculativo, ainda que possa ter uma função normativa. O texto jurídico, por seu turno, é, por definição, vinculativo e, sempre, normativo. A normatividade de um texto não resulta necessariamente da sua vinculatividade. A primeira pode existir sem a segunda, sendo, como o é no texto literário, nesse caso, uma normatividade potencial. Quando seja vinculativo, como o é o texto jurídico (a norma por antonomásia), será efectivamente normativo.

O que nos parece ser de reter, colocando de lado questões como a da legitimação

da fonte (dotada de particular acuidade no Direito e, como sabemos, inexistente no que se refere ao texto literário), é que não obstante as diferenças tendenciais apontadas ( que nos remetem, de facto, para uma diferença óbvia na natureza dos textos no âmbito de uma e outra esferas), a verdade é que os métodos de interpretação de textos literários- pela flexibilidade que atribuem ao processo interpretativo e pela relevância que dão, numa lucidez pós-positivista notória, ao papel do sujeito da produção e construção do texto- poderão contribuir significativamente para uma mais aberta e frutífera visão do Direito, como algo de verdadeiramente heraclitiano, movendo-se ao sabor dos desafios colocados pela sociedade às estruturas de resposta do jurídico, e devendo corresponder a esses desafios, estando sempre pronto a reformular soluções que já não se adaptem ao panorama vigente e a oferecer aos sujeitos a melhor conformação dos seus interesses possível. Dir-se-ia ser esta, também, uma exigência do Estado de Direito Democrático, nas suas várias dimensões.

A possibilidade de inter-relacionar o Direito e a Literatura, a possibilidade de

encontrar, em ambas as esferas contributos específicos e frutíferos para o estudo de cada uma, tem vindo sido discutida, já até com alguma tradição, nos círculos académicos norte-americanos e britânicos. No nosso País, no entanto, os contributos nesta matéria são escassos, mas parece-nos que o eventual desenvolvimento desta vertente da Metodologia jurídica traria muitas vantagens ao estudo do Direito em Portugal. Não só acrescentaria pontos de vista e perspectivas, como alertaria os juristas em geral, e os estudiosos do Direito em particular, para a relevância da jurisprudência na feitura do Direito, também no nosso ordenamento jurídico.

Stanley Fish expõe, na obra que temos vindo a citar ao longo deste relatório,

aquela que é uma querela que o opõe a Richard Posner, no debate sobre a possível aproximação entre o Direito e a Literatura. Parece-nos interessante a visão que apresenta, em oposição à construção excessivamente ontológica de Posner. Segundo este autor, a metodologia da análise literária não se aplica ao Direito, por razões ontológicas, ligadas à natureza díspar dos textos que lhes subjazem. A recusa em aceitar a comunhão entre os dois estudos (literários e jurídicos) deve-se, segundo Fish, e numa ironia que achámos curiosa, ao desejo de fazer realçar as virtualidades da Análise Económica do Direito, disciplina a que, com convicção, se dedica. Propõe Fish, numa construção que, mais uma vez tendemos a identificar com as estruturas da Hermenêutica, que essa separação metodológica entre o jurídico e o literário não se deve a quaisquer argumentos ontológicos, sendo antes devida ao presente estado de coisas que não permite, efectivamente, que um jurista, no exercício das suas funções, recorra a textos literários.

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Trata-se de uma consequência da presente situação histórica, cultural e interpretativa, numa contextualização (naquele sentido mais vasto e multinivelar, de Derrida) específica que, por tradição, hábito, prática reiterada, separa o universo desvinculante da literatura, como arte, como busca do belo, pelo belo, da esfera necessariamente normativa do Direito24. Ora, como resultado de um contexto, ele próprio construído, não se trata de algo inexorável ou inalterável. Segundo Fish, nada de parmenidiano está na base desta separação metodológica. Apenas razões de localização de cada ‘comunidade interpretativa’ em diferentes esferas de operacionalidade. Assim sendo, e concordando com Fish, proporíamos uma solução para tal segregação: recorrendo-se aos princípios propugnados pela Hermenêutica jurídica e às sábias palavras de Habermas que citámos na nota prévia a este relatório, deveria assumir-se a relevância do património de pre-compreensões do intérprete, seja ele jurista ou leigo apaixonado por literatura, criando-se uma capacidade autocrítica capaz de realçar e localizar os próprios limites, alertando-o para a sua existência efectiva, e impedindo os seus efeitos, pela sua indesejabilidade.

24 Explica-o Fish nas seguintes palavras: ‘All shapes are interpretively produced, and since the conditions of interpretations of interpretation are themselves unstable- the possibility of seeing something in a new light, and therefore of seeing a new something, is ever and unpredictably present- the shapes that seem perspicuous to us now may not seem so or may seem differently so tomorrow. (...) while legal and literary texts may change with changes in the conditions of interpretation, the disciplines themselves remain stable- continue always to be what they essentially are- as do the differences between them. Something like this seems to lie behind Posner’s insistence that when all is said and done «the study of literature has little to contribute to the interpretation of statutes and constitutions». As I have already indicated, this seems to me a correct judgment; but while for Posner the judgment follows from the essential nature of the two disciplines, I see it as an accurate account of interpretive conditions presently- but not inevitably- in force. That is, while I agree with his assertion of difference, I disagree with his specification of its source and with his assumption of its durability. (...) To the extent that literary texts are unclear- do not yield straightforward messages as do statutes or signs in lavatories- it is not because something called literary language has certain properties, but because literary critics (or at least some of them) approach their task already in possession of, or possessed by, a sense of what the object of their professional attention is like, and that sense, put into operation as a reading strategy, produces both the literary text and its (supposedly antecedent) properties.(...) as a fully situated member of an interpretive community, be it literary or legal, you naturally look at the objects of the communitie’s concerns with eyes already informed by community imperatives, urgencies and goals. Therefore if it is the goal of your community to derive single lines of direction from particular texts (...), your first glance at such a text will be informed by that interpretive disposition (indistinguishable from what you think, in advance, the text is for and also from what you take to be your relation to it), and you will see, and by seeing produce, that kind of text. Conversely, if it is the goal of your community to derive as many lines of direction as possible from a text, you first glance at it will be informed by that interpretive disposition (and , remember, reading independently of an interpretive disposition, of some already-in-place sense of the enterprise in relation to which this is a text , is impossible) and multiple meanings will force themselves upon your attention. Obviously, with respect to the two communities and their enterprises, interpretive activity will be different, but rather than being a difference that follows from the essential properties of law and literature or from the essential properties of legal and literary language, the difference will be originary, assumed in advance and then put into operation so as to produce the formal evidence of its rightness, the evidence of straightforward or ambiguous language, or of legal as opposed to literary significances. One cannot then ground the difference between literary and legal interpretation in the different kinds of texts they address, because the textual differences are themselves constituted by already differing interpretive strategies, and not the other way round. Nor can one turn this insight into a new reification of difference by assuming that the strategies specific to law and literature are themselves basic and unchanging, for they are no less historically achieved (and therefore contingent) that the texts they enable us to produce. (...) As things stand nowin our culture, a person embedded in the legal world reads in a way designed to resolve interpretive crises(...), while someone embedded in the literary world reads in a way designed to multiply interpretive crises. (...) Whatever preferences we have are themselves historically constituted in relation to various contending political and social agendas, and when we defend them or reiterate them (as Posner does here) we are doing so not in the name of some transparent truth, but in the name of interests whose universality is always contestable.’, op. cit. 302-305.

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Nada mais do que um ‘true shield’, tal como nos propões Wayne Booth, contra os pre-juízos e contextualizações de cada intérprete, como parte de uma comunidade interpretativa específica e localizada.

‘O que nos revelam os poetas? Não é que eles digam o ser, eles muito

simplesmente tentam emulá-lo: ars imitatur naturam in sua operatione. Os Poetas assumem como sua tarefa a substancial ambiguidade da linguagem e tentam explorá-la para dela fazerem sair, mais que um excedente de ser, um excedente de interpretação. A substancial polivocidade do ser costuma impor-nos um esforço para dar forma ao informe. O Poeta emula o ser repropondo a sua viscosidade, tenta reconstruir o informe original, para nos induzir a ajustar contas com o ser. Mas não nos diz sobre o ser mais do que aquilo que o ser nos diz ou nós lhe fazemos dizer, ou seja, pouquíssimo.’25 Onde se encontra o Direito em face dessa evidência? No polo oposto da objectividade e busca do inequívoco? Talvez, sim, na incessante busca desse inequívoco, mas não no seu encontrar: a linguagem, na literatura como no Direito, não perde jamais a sua equivocidade, e é nessa certeza que encontramos terreno fértil para aproximar o Direito e a Literatura: em orientações metodológicas opostas (uma buscando a objectividade e o consenso, outra procurando a viscosidade reafirmada da linguagem), encontram uma base constitutiva comum, que é a linguagem como veículo e origem de construções, de cosmologias. E a linguagem, corporizada em textos, carece de interpretação, de esclarecimento, de construção.

Na interpretação encontramos terreno para a criatividade. Na interpretação

omnímoda, como a compreendemos, na senda dos ensinamentos hermenêuticos. E porque a criatividade só existe com outros textos, que não apenas aquele que se interpreta, a Literatura pode ser veículo de criatividade no Direito. Por alargar o horizonte referencial do jurista, permite-lhe alcançar soluções a que não chegaria se se mantivesse nos limites do Direito posto, como no Positivismo, na fronteira do que está colocado à vista e à disposição do intérprete, como dado, como algo descritivamente analisável, mas não completável, susceptível de ser construído. O Direito, como imaginação na racionalidade, continua a não separar-se necessaria e metodologicamente da Literatura, ainda que sendo sempre poesia, ou seja, desafio à narratividade da linguagem.

Não obstante a separação ontológica dos universos a que se reportam, o Direito e a Literatura estão, no momento metodológico presente, em potencial convergência, no que se refere ao momento, hoje já não tão pós-criador, da interpretação. É por via do abandono das referências puramente legalistas, alheias ao poder e eficácia criadora da actividade do intérprete, por via dos ensinamentos da Hermenêutica, sobretudo, e da Tópica reavivada, também, que a ligação entre o jurídico e o literário, em termos de funcionalidade e multidisciplinaridade, se revela e ganha forma. O momento é de redescoberta de paradigmas. O momento é de repensar o Direito, o seu estudo, a sua efectividade. Nesta fase de pós-positivismo, é tempo de procurar para o jurídico, contributos na teoria da literatura.

Porque o poeta é um legislador do mundo...

25 Umberto Eco, op. cit. , 43-44.

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Breves conclusões Este trabalho assumiu como principal objectivo a apresentação e aprofundamento

dos termos em que poderá colocar-se a hipótese de encontrar na Literatura e sua metodologia algum contributo útil para o enriquecimento dos estudos jurídicos. Em face da riqueza do tema, não esperávamos, desde logo, encontrar muitas respostas ou soluções unívocas. Foi confirmada essa nossa forte suspeita. No entanto, procurámos expor aquela que é a nossa própria visão sobre a possibilidade de inter-relações, num pressuposto de que este não é senão um começo para futuros aprofundamentos e desenvolvimentos nesta matéria. De qualquer forma, e num esforço de sistematização final, procuraremos reconduzir a alguns pontos aquilo que tentámos esboçar ao longo deste relatório.

1. A relação entre o Direito e a Literatura, ao nível metodológico, que não ao

nível substancial, é não só concebível como desejável, numa fase interparadigmática de busca, como a que se nos apresenta neste momento. O Direito apresenta-nos, hoje, desafios cuja resolução se não basta já com os modelos puramente legalistas, de concepção do jurídico e também da realidade social;

2. O Direito, como a realidade social que o faz nascer e operar, é heraclitiano. Nenhum mecanismo que se baste com respostas fixas e rígidas pode considerar-se adequado à resolução dos problemas que o Direito nos vai colocando;

3. Não existe, hoje, uma separação entre criação e aplicação do Direito. Os dois momentos diluem-se, interpenetram-se. Interpretar um texto é criá-lo, naquelas que são as ramificações deixadas em aberto pelo seu autor. A efectividade de um texto pressupõe essa interpretação e, nesse sentido, essa construção complementar, que lhe atribui o seu verdadeiro sentido;

4. Esser e a aplicação do Direito como associação entre lex scripta e jus non scriptum. A criatividade no Direito existe, ainda que não seja assumida como tal. É por via das construções da Hermenêutica jurídica que chegamos à ligação entre o Direito e a Literatura: a flexibilidade na interpretação, por via da participação plena do intérprete na sua construção e revelação, é-nos dada pela ideia de pre-compreensão. Porque, tanto no jurídico como no literário, ‘o texto não produz significados por si’;

5. ‘Hoje é difícil virar a cara à criação jurídico-normativa da hermenêutica jurisprudencial’ (Joana Aguiar e Silva). A criatividade em Direito existe e é inultrapassável, mesmo nos panoramas jurídicos de matriz continental, como o nosso. A dificuldade em limitar e controlar totalmente a actividade do julgador traz o Direito para uma maior proximidade com o discurso literário;

6. Como afirma James Boyd White, ‘a ficção estimula a capacidade do leitor para imaginar outras pessoas, noutros universos’ e, como refere Martha Nussbaum, ‘a nossa experiência é, sem a ficção, demasiado confinada e paroquial’. Ora, não existe nada pior para um jurista, a não ser uma deficiente preparação técnica, do que a estreiteza de horizontes. A Literatura alarga os horizontes do jurista, permitindo a sua participação na vida complexa de

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escolhas, decisões e submissões cuja utilidade para a sua formação como agente crítico e analítico se revela essencial;

7. A Literatura releva para o auto-conhecimento do jurista, para a formação das suas pre-compreensões, para um aperfeiçoamento do seu sentido crítico e da sua capacidade de análise quanto à realidade que o circunda, para (Dunlop) o reconhecimento do Direito como ‘instância cultural profundamente mergulhada numa estrutura cultural ou civilizacional muito mais vasta, que por sua vez se verte numa específica cultura literária.’;

8. O Direito é linguagem. ‘Compreendê-lo e construí-lo diariamente como tal, são tarefas que implicam desafios que não podem virar os olhos aos recentes desenvolvimentos da filosofia da linguagem e da teoria da literatura’. O Direito fez-se linguagem ao descobrir o intérprete. A linguagem é necessariamente ambígua. Tanto o é no Direito como na Literatura;

9. O jurista como especialista do saber global (Baptista Machado). A sua formação passa por um conhecimento tão vasto quanto possível da natureza humana. A Literatura como espelho e manifestação da mesma; como veículo de conhecimento de diferentes linguagens e de mundos paralelos ao, por vezes circunscrito, mundo do jurista, no momento concreto de aplicação do Direito;

10. A jurisprudência como exercício, por excelência, da interdiscursividade necessária da verdade;

Dando por temporariamente terminada, mas não verdadeiramente concluída, esta nossa análise, deixamos aqui esboçados aqueles que nos parecem ser os termos de um verdadeiro desafio à vocação e natureza do Direito. Deus e o Verbo. O Direito e o verbo. Terá o Direito lugar entre o fixismo positivista e a total viscosidade da linguagem? Qual será o lugar do Direito entre a poesia e a religião?

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