cult 20, umberto eco, mar de 1999

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março/99 - CULT 1 14 Poesia Um ensaio de Leda Tenório da Motta sobre Francis Ponge e traduçıes inØditas do poeta francŒs nascido hÆ cem anos REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA 33 Criação Leia os minicontos que compıem o FabulÆrio de Claudio Daniel 10 Biblioteca Imaginária O ensaísta Joªo Alexandre Barbosa analisa os Cahiers do poeta francŒs Paul ValØry 56 Do Leitor Cartas, fax e e-mails dos leitores da CULT 31 Memória em Revista Um caso curioso de censura de capa na editora de Monteiro Lobato 28 Turismo Literário Uma viagem ao MØxico em companhia do escritor gaœcho Érico Veríssimo Na ponta da língua Prefixos que indicam negaçªo como des-, a- e an- provocam confusıes na linguagem cotidiana 17 35 Dossiê Depoimentos e livros de intelectuais russos mostram as tendŒncias da cultura russa contemporânea 03 Notas Divulgação 04 Entrevista ValŒncio Xavier, o autor de O mez da grippe, fala de seu novo livro, Meu 7” dia Uma novella-rØbus 18 Capa Lançamentos de Umberto Eco no Brasil, nos EUA e na ItÆlia reafirmam seu papel de maior pensador contemporâneo Joel Rocha/Divulgação O escritor ValŒncio Xavier Umberto Eco, autor de Kant e o ornitorrinco A Praça Vermelha, em Moscou Reprodução

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Page 1: Cult 20, Umberto Eco, Mar de 1999

março/99 - CULT 1

14 PoesiaUm ensaio de Leda Tenórioda Motta sobre FrancisPonge e traduções inéditasdo poeta francês nascidohá cem anos

REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

33 CriaçãoLeia os minicontos quecompõem o Fabulário deClaudio Daniel

10 Biblioteca ImagináriaO ensaísta João AlexandreBarbosa analisa os Cahiers dopoeta francês Paul Valéry

56 Do LeitorCartas, fax e e-mails dosleitores da CULT

31 Memória em RevistaUm caso curioso de�censura de capa� na editorade Monteiro Lobato

28 Turismo LiterárioUma viagem ao Méxicoem companhia do escritorgaúcho Érico Veríssimo

Na ponta da línguaPrefixos que indicamnegação � como �des-�, �a-�e �an-� � provocam confusõesna linguagem cotidiana

1735 Dossiê

Depoimentos e livros deintelectuais russos mostramas tendências da culturarussa contemporânea

03 Notas

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ção

04 EntrevistaValêncio Xavier, o autorde O mez da grippe, fala deseu novo livro, Meu 7º dia� Uma novella-rébus

18 CapaLançamentos de Umberto Econo Brasil, nos EUA e na Itáliareafirmam seu papel de maiorpensador contemporâneo

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O escritor Valêncio Xavier

Umberto Eco, autorde Kant e o ornitorrinco

A Praça Vermelha, em Moscou

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CULT - março/992

DiretorPaulo Lemos

Gerente-geralSilvana De Angelo

Editor e jornalista responsávelManuel da Costa Pinto � MTB 27445

Editor de arteMaurício Domingues

Editor-assistenteBruno Zeni

Diagramação e arteSandra Regina dos Santos SantanaRogério RichardJosé Henrique FontellesAdriano MontanholiYuri Fernandes

RevisãoClaudia Padovani

ColunistasCláudio GiordanoJoão Alexandre BarbosaPasquale Cipro Neto

ColaboradoresAdrián Gurza LavalleAurora F. BernardiniBoris SchnaidermanCristovão TezzaJerusa Pires FerreiraJoca Reiners TerronLeda Tenório da MottaSérgio Mauro

CapaUmberto Eco fotografadopor Contardo Calligaris/Folha Imagem

Produção editorial e gráficaJosé Vicente De Angelo

FotolitosUnigraph

Circulação e assinaturasRosangela Santorsola AriasAngela Regina Strutsel Lemme

Dept. comercial/São PauloValéria Silva

Dept. comercial/Rio de JaneiroMilla de Souza (Triunvirato Comunicação,rua México, 31-D, Gr. 1.403, tel. 021/533-3121)

Distribuição em bancasFERNANDO CHINAGLIA Distrib. S/ARua Teodoro da Silva, 907 - Rio de Janeiro - RJCEP 20563-900- Tel/fax 021/575-7766/6363e-mail: [email protected] exclusivo para todo o Brasil.

Assinaturas e números atrasadosTel. 0800 177899Alagoas, Bahia, Paraíba, Pernambuco, RioGrande do Norte e Sergipe: 081/428-9701; Ama-zonas: 092/800-8030 e 622-8095; Ceará, Mara-nhão e Piauí: 085/254-7016 e 252-3747; Rio deJaneiro: 021/751-1692; Mato Grosso: 065/682-1477 e 642-1890; Mato Grosso do Sul: 067/787-3685 e 921-3234; Pará: 091/246-1961, 226-5866e 981-3081; Paraná e Santa Catarina: 041/352-6444; Rio Grande do Sul: 051/222-3649

Departamento financeiroRegiane Mandarino

ISSN 1414-7076

CULT � Revista Brasileira de Literaturaé uma publicação mensal da Lemos Editorial eGráficos Ltda. � Rua Rui Barbosa, 70,Bela Vista � São Paulo, SP, CEP 01326-010tel./fax: 011/251-4300e-mail: [email protected]

REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

NÚMERO 20 - MARÇO DE 1999

AO L E I TORManuel da Costa Pinto

Foi o jornalista Marcos Faerman quem sugeriu à CULT fazer um

número sobre literatura e futebol no mês em que começava a

Copa do Mundo da França, no ano passado. E era de Faer-

man o texto intitulado “A prosa e a bola”, que abriu o

“Dossiê” daquele número (CULT 11). Coisa de craque

da pena. Um texto culto e envolvente, que traduz a

experiência de quem sempre conviveu com as emo-

ções dos livros e dos estádios. Faerman morreu no

mês passado, aos 55 anos, e deixa um vazio enor-

me no jornalismo brasileiro. Gaúcho radicado

em São Paulo desde 1969, ele fez história na

imprensa com suas colaborações no Pasquim

ou como fundador do jornal Versus, nos anos

70 – além de ter trabalhado no Jornal da

Tarde nos anos em que este periódico teve

papel decisivo na renovação da linguagem

jornalística. Quando morreu, Faerman era

editor da revista Hebraica, mas nunca

deixou de ser uma presença permanente

na pauta da CULT, com sugestões, críticas,

mas principalmente um inconformismo

eloqüente diante de certas limitações

mercadológicas que sempre impediram a

difusão satisfatória da cultura nos meios de

comunicação do país. Infelizmente, o leitor

da revista não poderá ver a matéria que ele

escrevia sobre a viagem de Julio Cortázar

ao Brasil nos anos da ditadura. A matéria ficou

inacabada, mas permanecem as imagens de

rara felicidade com que ele descreveu sua du-

pla paixão pela letra e pela bola. Para Faerman,

um conto de João Antônio sobre o futebol podia

ser “vadio e melancólico como uma peça de Pi-

xinguinha“, porque nada mais vadio e melancólico

do que os devaneios de quem vibra nas arquibancadas,

desejando ver realizados entre as quatro linhas do gra-

mado os sonhos que a vida não cessa de contrariar; porque

quem alguma vez invejou o destino dos deuses do futebol ima-

gina um dia “sair de sua vida cinzenta para o mundo ensolarado

dos craques”. Faerman saiu desta vida numa tarde ensolarada de

Carnaval, envergando a camisa de seu querido Grêmio de Porto Alegre.

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março/99 - CULT 3ASSINATURASDISQUE CULT 0800.177899

NO

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Reprodução

Ex-libris

A Casa da Palavra, editora carioca volta-da principalmente para �livros que falamsobre livros�, acaba de lançar um pequenovolume que reúne reproduções de ex-li-bris (selos com que os bibliófilos marcamseus livros, indicando sua posse com artee com um traço pessoal) de personalidadescomo os escritores Victor Hugo e GabrieleD�Annunzio, os políticos Charles deGaulle e Juscelino Kubitschek, e o artis-ta alemão Albrecht Dürer. Com o títulode Ex-libris, a publicação foi distribuídagratuitamente e é um �aperitivo� para umvolume maior, que será comercializadoainda este ano pela Casa da Palavra: r.Visconde de Carandaí, 6, RJ, CEP22460-020, tel.021/540-0137, 540-7598.

Poesia

O poeta e roteirista Gustavo Arruda lan-ça no dia 5 de março o livro de poemasIstmos. Publicado pela editora Imprima-tur, o livro foi escrito em Lisboa a partirdas páginas de um diário de viagem. Olançamento acontece entre 18h30 e21h30, na Livraria da Vila (r. FradiqueCoutinho, 915, SP, tel. 011/814-5811).

Manuel Bandeira

Libertinagem � Estrela da manhã , deManuel Bandeira, é o novo título dacoleção Archivos, publicada no Brasil pe-la Scipione Cultural. A coleção � conce-bida pela Unesco e publicada em convê-nios com editoras de diversos países �tem por objetivo promover a edição críti-ca de obras fundamentais da literatura la-tino-americana. Já saíram mais de trintatítulos na Archivos, incluindo obras docubano Lezama Lima, do peruano CésarVallejo, dos argentinos Julio Cortázar eMacedonio Fernández, e dos brasileirosClarice Lispector, Mário de Andrade,Lima Barreto e Lucio Cardoso. A ediçãocrítica de Libertinagem � Estrela da manhãteve coordenação de Giulia Lanciani etraz ensaios de Davi Arrigucci Jr., SilvianoSantiago, Haroldo de Campos, SérgioBuarque de Holanda e Gilberto Men-donça Teles, entre outros. O livro tem782 páginas e custa R$ 38,00. Infor-mações: tel. 011/239-1700.

Ex-libris de Albrecht Dürer

O poeta Manuel Bandeira

Novos autores

A Com-Arte, editora laboratório docurso de editoração da ECA (Escola deComunicações e Artes da USP), acabade lançar a série �Primeira Impressão�,cujos títulos reúnem o trabalho deescritores e gravuristas daquela univer-sidade. Os dois primeiros livros são Av.Marginal, com contos de Neuza Paranhose ilustrações de Alexandre A. Santos, eLivro de coisas, com poemas de RicardoMiyake e ilustração de capa por MoaSimplicio. Cada livro custa R$ 15,00.Informações: e-mail: [email protected],tel. 011/818-4087, fax 814-1324.

Capitu

O escritor e ensaísta Domício ProençaFilho lança em 15 de março o romanceCapitu � Memórias póstumas. Editado nacoleção �À Sombra do Texto em Flor�,da editora Artium, o livro transforma apersonagem criada por Machado de Assisno romance Dom Casmurro em narradora.A partir desse recurso intertextual,característico da pós-modernidade, aCapitu de Domício Proença Filho dá suaprópria versão de seu romance comBentinho (que, na versão machadiana,acusara a esposa de traição). O livro serálançado a partir das 19h na livrariaAcadêmica (r. Presidente Wilson, 203,Rio de Janeiro, tel. 021/524-8230), quefica na sobreloja do prédio da AcademiaBrasileira de Letras � cujo primeiropresidente, aliás, foi Machado de Assis.

Poesia erótica

O site de literatura PD-Poesia Diáriapromove no dia 6 de março o lançamentodo livro Eros, uma antologia de poemaseróticos de doze autores de diversas re-giões do país. PD-Poesia Diária é umespaço na Internet inteiramente dedicadoà literatura e, além do suplemento �Eros�(a partir do qual foram selecionados ospoemas), estão disponíveis no site um cy-berjornal literário e uma lista de dis-cussão sobre literatura (�Fórum�) . O en-dereço do site é: �www.poesiadiaria.net�.O lançamento do livro acontece a partirdas 19h30 no Paulicéia Dancing (r. dosPinheiros, 473, SP, tel. 011/883-5038).

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VALÊNCIOXAVIER

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Nascido em 1933, Valêncio Xavier é um dos mais intrigantese originais escritores brasileiros em atividade. Com uma obraliterária absolutamente singular em progresso, Valênciotambém dirige curtas-metragens e vídeos, já prestou asses-soria de imagens para cineastas como Silvio Tendler, SylvioBack e Eduardo Escorel, fez jornalismo televisivo e impressoe fundou e dirigiu durante anos a Cinemateca do Museu GuidoViaro, em Curitiba. Como criador de um universo freak,composto por recursos visuais aliados à morbidez na escolhados temas, muito sexo, extrema concisão e descontinuidadenarrativa, Valêncio parece estar catalogando itens para acuradoria de um pequeno museu do crime, inscrevendo seutrabalho na tradição de violência e sexo vinda desde Sade,passando por Baudelaire, Poe e Lautréamont até desaguarno brutalismo visual e enigmático de Raymond Roussel e ossurrealistas. Os personagens de Valêncio Xavier vêm ater-rorizando os leitores paranaenses desde 1975, quando saiuCuritiba, de Nós, uma parceria com Poty. Depois disso, Valên-cio lançou vários outros livros, sempre lá pelo Paraná, emedições modestas que sempre esgotaram rapidamente �dentre eles O mez da grippe, uma �novella� gráfico-polifônicaque retrata a Curitiba de 1918 assolada pela gripe espanhola.Nesta entrevista, o �Frankenstein de Curitiba� fala da reediçãode seus livros pela Companhia das Letras (sob o título O mezda grippe e Outros livros) e de seu novo livro, Meu 7º dia �Uma novella-rébus, texto enigmático que procura resolver asdiferenças pessoais do autor com ninguém menos do que Deuse que será lançado este mês pela Edições Ciência do Acidente.

Joca Reiners Terron

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CULT - março/996

CULT Apesar de sua trajetória ser toda curitibana, você nasceuem São Paulo. Onde se deu sua formação?

Valêncio Xavier Não sei. Sei que O mistério da prostitutajaponesa e um dos inéditos que tenho, Remembranças da meninade rua morta nua, se passam em São Paulo. E as histórias doMaciste no inferno e O minotauro (títulos de livros já publicadospor Valêncio Xavier) bem que poderiam ter acontecido por lá.E O mez da grippe tem muito mais de São Paulo do que vocêpensa, eram de lá as histórias da gripe espanhola que minha avóme contava em criança. Não me formei em nada: só fiz doisanos de Belas Artes aqui em Curitiba. E comecei a trabalharem televisão aqui, também, em 1960. De início como cenógrafo,depois produtor, daí comecei a escrever teleteatro (era no tempoda TV ao vivo), humor (com o Ary Fontoura, que é daqui) emusicais, reportagens e tudo o mais.

CULT Mas você chegou a morar em São Paulo?

V.X. Casei em 66, fui pra São Paulo e fiquei até 69. Lá trabalheicomo produtor pro Silvio Santos e daí fui pra Globo, onde fizcom o Túlio de Lemos (já falecido) o Processo 68. Era umprograma que misturava ficção e documentário rememorandocrimes insolúveis, com a assessoria da Secretaria de SegurançaPública. Eu recebia aqueles inquéritos policiais cheios de fotosdos assassinados, degolados, mulheres estupradas e mortas,envelopes com balas manchadas de sangue, coisas assim. Euchegava em casa de noite, ficava com medo de entrar e ver asparedes cheias de sangue e minha mulher estirada, morta. Nãosei se esses inquéritos influenciaram minha maneira de escrever.Talvez. Escrevi um texto chamado Mengano (mostrei pro WilsonMartins e ele implicou com a ortografia da palavra, mas pra

mim diz tudo, mengano, �que me enganei�, simples!) que foiconseqüência desse programa. A primeira vez que fui àSecretaria, um delegado, a troco de nada, me mostrou, rindo,uma foto de inquérito duma bicha num banheiro de pensãovagabunda. Ela havia pegado um cabo de rodo para semasturbar, enfiou lá atrás e acabou escorregando no chãomolhado e o cabo a penetrou, rasgando tudo por dentro,matando. Usei no Mengano um louquíssimo quadro do pintorfrancês David, mostrando um menino (uma figura meioandrógina) morto. Era um menino da época da RevoluçãoFrancesa que, intimado por soldados da milícia monarquista agritar �Viva o rei!�, gritara �Viva a república!� e foi morto.Usei o quadro de David, com um texto como se fosse o daperícia da bicha do caso do rodo e no formato de um inquéritopolicial, com carimbos, assinaturas e tudo o mais.

CULT E depois, você voltou direto para Curitiba?

V.X. Voltei e fui trabalhar na Tupi daqui, daí larguei e fui paraa emissora curitibana da Globo. Depois a televisão me encheuo saco. Faço uns bicos de vez em quando, mas me enchi.Televisão hoje em dia é profissão de publicitários, e não tenhoo mínimo interesse por publicidade.

CULT Sua produção pessoal de cinema e vídeo tambémdialoga com a literatura?

V.X. Fujo de diretores literários como Fellini. Acho que meusfilmes e vídeos não têm nada a ver com literatura, nem que aminha literatura tenha a ver com cinema ou televisão. No queeu escrevo pode ter referências ao cinema, TV e HQ (comoneste Meu 7º dia), mas certamente não são nada disso. Em OMez da grippe, tem uma cena de um alemão que cria um

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março/99 - CULT 7

incidente no Teatro Hauer. Como Balzac escreveria essa cena?Descreveria o personagem, detalharia o teatro e então contariao que aconteceu lá dentro. Eu fiz a mesma coisa, só que coloqueium desenho tirado de um anúncio da época, de um sujeito queme pareceu capaz de realizar aquela ação, daí coloquei umafoto do Teatro Hauer e então reproduzi uma notícia de jornalque descrevia o incidente. Fiz a mesma coisa que Balzac faria,só que, em vez de palavras, usei imagens e imagens de palavras.

CULT Quais são seus filmes e cineastas preferidos?

V.X. Meu filme favorito é o sueco A feitiçaria através dos tempos(1921), de Benjamin Christensen. É genial a mistura que elefaz de gravuras, desenhos, maquetes animadas ou não, cenascom atores profissionais contracenando com velhos e doentesmentais tirados de asilos, as imagens ora à la Bosch, Breughel,Goya, ora à la filmes pornôs do começo do século, tudo com umhumor finíssimo. Acho que tudo isso tem a ver com o jeito quetempero as minhas saladas. Meu diretor favorito é o velhoBuñuel, e curto demais a construção dos filmes de Alain Resnaise de Orson Welles. E Peter Greenaway e Shoei Imamura sãosantos da minha devoção. E cada vez gosto mais do cinemaprimitivo.

CULT Acho que seu trabalho, de modo geral, se utiliza muitodo artifício da colagem. A crítica americana Marjorie Perloff dizque a colagem costuma incorporar certos fragmentos reais doreferente, forçando o leitor a �considerar a interação entre a men-sagem ou o material preexistente e a nova composição artísticaque resulta do enxerto�. Como você encara essa afirmação?

V.X. Eu nunca penso antes de escrever, meu raciocínio é aposteriori. O trabalho já sai pronto � ou não sai. Eu retrabalho,

O sultão e seu cãoLenda das Mil e Uma Últimas Noites

O sultão Halrum Al-Richard– Que Alá o tenha em sua glória –tinha adoração por seu cão Afrit

cuja coleira de rubis cintilava mais do que o solNo dia da morte de Afrit engasgado por um osso

o Sultão chorou mil e um dias e noitese mandou erguer para ele um mausoléu de mármore

mais alto que as montanhas azuis da ArmêniaPara os funerais de Afrit

vieram potentados de todas as partes do mundo– até de Curitiba –

para consolar o sultão beijando suas lágrimasPoucos dias depois o sultão morreu de desgosto

e ninguém compareceu ao seu funeralO que causou espanto a todas as gentes

até que o sábio Abur, o iluminado, explicou“Para o funeral do cão vieram homenagear o sultão

se mostrar a ele e esperar suas recompensas¿ Com Halrum Al-Richard morto

a quem se mostrar e pedir recompensasA um cão?”

– Sábias palavras –

Valêncio XavierExtraído de Meu 7º dia � Uma novella-rébus

Page 8: Cult 20, Umberto Eco, Mar de 1999

CULT - março/998

mas só no sentido de ajustar as palavras, burilar, mudar umacoisa aqui e ali. Não que o processo tenha algo de sobrenatural,mas sai pronto. Não sei, não sou capaz de planejar nada. Talvezsó no caso de O minotauro � planejei que teria 32 capítulos deuma página cada, com no máximo 15 linhas de texto. Escrevia frase inicial do primeiro e não saiu mais nada. Pegueinovamente uns dias depois e saiu tudo. Em meu computador,tenho colada a frase de Alain Resnais: �A forma preexiste emalgum lugar e se incorpora no texto à medida que vamosescrevendo a história.�. Algum tempo depois da publicação,reli O mez da grippe e vi que ele era pra ser lido como umjornal, em que a pessoa olha uma manchete, pula para a páginade esportes, se detém na foto de uma atriz e já vai para ver ocrime do dia, e assim por diante. E, ultimamente, tenhodescoberto que em meus livros você pode ler cada páginaisoladamente, como se ela fosse um texto completo � esseMeu 7º dia é um bom exemplo disso. A montagem dessa leituraé feita na cuca do leitor, não tem nada de cinema, é coisanossa.

CULT Seus principais títulos foram reeditados em um únicovolume recentemente e têm obtido um grande retorno, tantode crítica quanto de público. Durante 23 anos você publicouapenas por editoras de pequeno porte, mas, apesar disso, seuslivros sempre esgotaram. Você chegou a apostar nessa suainsuspeitada vocação para as listas de mais vendidos?

V.X. A Companhia das Letras lançou, em setembro, meusquatro primeiros livros e um inédito, num volume só, com otítulo O mez da grippe e Outros livros: O mez da grippe, em ediçãofac-similar; o Maciste no inferno, com modificações substanciais;O mistério da prostituta japonesa & Mimi-Nashi-Oichi e O

LIVROS DE VALÊNCIO XAVIER� 7 de amor e violência (antologia de contos com outrosautores). Curitiba, Edições KM, 1964; Criar, 86.� Curitiba, de Nós (memória, com Poty). FundaçãoCultural de Curitiba, 1975; Curitiba, Nutrimental, 1989.� O mez da grippe � Novella. Curitiba, Fundação Culturalde Curitiba, 1981.� Maciste no inferno � Racconto. Curitiba, Criar, 1983.� O minotauro (novela). Curitiba, Logos, 1985.� O mistério da prostituta japonesa & Mimi-Nashi-Oichi.Curitiba, Módulo 3, 1986.� A propósito de figurinhas � Crônicas com Poty. Curitiba,Studio Krieger, 1994.� Poty, trilhos, trilhas e traços (biografia). FundaçãoCultural de Curitiba, 1994.� O mez da grippe e Outros livros (antologia incluindoO mez da grippe, Maciste no inferno, O minotauro,O mistério da prostituta japonesa & Mimi-Nashi-Oichi e13 mistérios + O mistério da porta aberta). São Paulo,Companhia das Letras, 1998.� Las meninas e Remembranças da menina de rua mortanua. Porto Alegre, Sulina, 1999.� Sem título (plaquete com os textos A visita da parente eA morte distante). Tipografia Fundo de Ouro Preto, 1999.

AUTOR AUTOGRAFA LIVRO NO DIA 22A editora Ciência do Acidente promove noite de autógrafoscom Valêncio Xavier, para lançamento de Meu 7º dia � Umanovella-rébus, no dia 22 março, às 19h30, no FinnegansPub (r. Cristiano Viana, 358, SP, tel. 011/852-3232). Naocasião será lançado também o livro Yumê, de Claudio Daniel.

Page 9: Cult 20, Umberto Eco, Mar de 1999

março/99 - CULT 9

minotauro, com poucas mudanças. O inédito é 13 mistérios + Omistério da porta aberta. São contos que, pelo menos em minhacabeça, tratam de enigmas que me incomodam. Eu esperavacerto sucesso, mas não desse tamanho. Isso mostra que escritorescomo eu, considerados experimentais � ou malditos �, têmmuito mais leitores do que se imagina. Outras editoras que seanimem: nada de menosprezar o leitor.

CULT O sexo é um tema recorrente em seus textos, vocêsituaria algum deles no âmbito da literatura erótica? ValêncioXavier seria um �auctor perverso�?

V.X. E eu é que sei? Sei que gosto de sexo (e mulheres, sou atécasado com uma) e sempre escrevo somente as coisas que eugostaria de ler. Tem apenas um livro que escrevi para outrapessoa ler, mas não vou dizer qual é. A Flora Süssekind, queparece saber mais de mim do que eu, escreveu que em minhashistórias tem sempre a presença da morte e que tem sempreuma pessoa que aparece sem que se saiba de onde, faz algumacoisa e depois vai embora, no meio da cidade. A Flora não achajusto, uma vez que ela fez o prefácio, mas este Meu 7º dia édedicado a ela.

CULT O Leminski o considerava um �exagerado�, acimados escritores curitibanos que insistiam em continuar médios.O que você acha da produção literária brasileira contemporânea?Tem algum outro �exagerado� por aí?

V.X. Não pega bem falar mal de pessoas que já morreram,mas o Leminski sempre se aproveitava para cutucar os escritorescuritibanos: quer exagero maior do que o fabbro Dalton Trevisan?E no resto do país, basta citar o Sebastião Nunes e o AndréSant�anna (com seu romance de estréia, Amor) e ponha exagero

nisso. E o que dizer dos exageros do Silviano Santiago? EscreviMCMXLII [conto de Valêncio Xavier publicado na Gazeta doPovo de 11/08/85] de inveja de não ter escrito Crescendo durantea guerra numa província ultramarina.

CULT É possível ver em O mez da grippe um momentoantecipador do CD-ROM e da multimídia? Que futuro vocêprediz para a literatura, com tantas novas mídias tecnológicassurgindo?

V.X. Você está numa rua, mesmo num bairro distante como oSolitude, na periferia de Curitiba. Você vê cartazes, placas, comdesenhos, cores, símbolos e palavras. Letras imóveis formandopalavras, que se movimentam andando no ônibus, na rua vazia.Ouve sons, do motor, do silêncio depois que o ônibus passa.Um cão caminha apressado, grita (ou late) suas palavras para avelha na janela que retruca: �Passa, guapeca!�. A menina saipela porta verde, a velha procura prever: �Vá com Deus!�.Palavras, imagens e sons, que podemos pôr no papel. Para mim,as imagens têm o mesmo peso que as palavras. Eu não vivo nopassado, mas o passado vive em mim. E no futuro eu não penso,não posso prevê-lo. Talvez isso que eu ponho no papel, escrevo,talvez isso seja o meu passado e talvez seja o meu futuro, em quenão penso.

Joca Reiners TJoca Reiners TJoca Reiners TJoca Reiners TJoca Reiners Terronerronerronerronerrondesigner gráfico e poeta, autor de Eletroencefalodrama

(Edições Ciência do Acidente)

Esta entrevista, editada aqui parcialmente,será publicada na íntegra como posfácio

do livro Meu 7º dia - Uma novella-rébus

Page 10: Cult 20, Umberto Eco, Mar de 1999

CULT - março/9910

João Alexandre Barbosa

Os Cadernosde Paul Valéry

Não são cadernos de leitura nem notasíntimas de um diário, como eram, porexemplo, aqueles de seu grande amigoAndré Gide. (De quem, aliás, foi recente-mente republicado o famoso Journal, numamagnífica edição da Gallimard, na cole-ção Pléiade, em dois volumes que recuampara 1887 o início de sua composição,editados por Éric Marty). Não são tam-bém notas de um escritor que façamconvergir acontecimentos circunstanciaise experimentos ficcionais numa estruturacompósita em que a história e a ficção serevezam e se confundem por força doimaginário, como é o Diário de um escritor,de Dostoiévski, sobre o qual já me detiveem páginas anteriores desta coluna (CULTnº 17).

Como definir os Cahiers de PaulValéry?

A história de sua composição é bemconhecida e as referências a eles sãoabundantes, sobretudo a partir da ediçãofac-similar realizada pelo CNRS em 29volumes de aproximadamente mil pági-nas cada um publicados entre 1957 e 1961e, sobretudo, a partir da edição daGallimard, na Bibliothèque de la Pléiade,na verdade uma antologia, editada porJudith Robinson em dois volumes publi-

cados em 1973 e 1974. A mesma editoracrítica (agora assinando Judith Robinson-Valéry, depois de seu casamento com umdos filhos do escritor), em parceria comNicole Celeyrette-Pietri, encarregou-seda �edição integral� dos Cahiers, pelamesma Gallimard, cujo primeiro volumefoi publicado em 1987 e o último, o sexto,a que só agora tive acesso, em 1997. Osseis volumes publicados trazem, como

subtítulo, as datas 1894-1914 e, a partirdo quarto, uma maior especificaçãocronológica: 1900-1901, 1902-1903 e1903-1904, respectivamente. São, portan-to, dez anos de publicação (1987-1997)que correspondem rigorosamente a dezanos de escritura dos Cahiers (1894-1904).Como se sabe que a composição dosCahiers somente foi interrompida em1945, com a morte de Valéry, é de imaginar

O poeta francês Paul Valéry (1871-1945) no lago de Zurique, na Suíça

Page 11: Cult 20, Umberto Eco, Mar de 1999

março/99 - CULT 11

A prosa de fragmentos dos Cahiersé configurada pela intranqüilidadeda reflexão e pela experiênciacom os limites e as possibilidadesda própria linguagem, mantendocom a poesia de Valéryuma relação substancial

João

Lei

te

que a publicação da �edição integral�ainda deva incluir mais uns quarenta anosda tensa e bela prosa valeriana, pois seuexercício transcorreu durante cinqüenta eum anos precisos.

Por outro lado, os anos que correspon-dem à publicação desses seis volumes sãoanos em que Paul Valéry publica apenasdois livros, a Introduction à la méthode deLéonard de Vinci, em 1895, e Soirée avecMonsieur Teste, em 1896, embora escrevessee rescrevesse os poemas que comporão oprimeiro de seus dois livros de poemas,Album de vers anciens, que somente serápublicado em 1920. O segundo é, comose sabe, Charmes, de 1922. E antes dos doisé que se deu a publicação daquele poemaque, de uma vez por todas, impôs o nomede Valéry como um dos mais importantespoetas do século, La jeune parque, de 1917,que, certamente, foi responsável, dada avisibilidade que deu ao poeta, pela publi-cação daqueles dois outros volumes depoemas.

É possível dizer que a leitura dessesseis volumes dos Cahiers sairá ganhandose for feita simultaneamente com a leiturados dois livros publicados nos anos 90, damesma maneira que a leitura daqueleslivros sairá enriquecida por aquilo que for

possível apreender da leitura dos Cahiers.É que entre esses e aqueles parece haveruma relação substancial: quer num caso,quer no outro, o que se lê é uma prosa quefoge aos mecanismos de repetição, seja deuma forma de pensar aprisionada peloslimites do bom senso, seja de uma lingua-gem esgotada pelos limites da represen-tação. Para além do bom senso e darepresentação, a prosa de Valéry, sobretudo

nesses seus ensaios iniciais como escritor,cava o espaço en abîme que se abre pelaprocura de uma maneira de pensar e dedizer sem concessões.

Assim como o método de Leonardo ée não é de Leonardo, porque esse só existe,no texto de Valéry, como uma linguagemde busca de relações e analogias, ou uma�lógica imaginativa�, como ele preferiachamar, e por isso a figura real do mestreitaliano parece se desfazer por entre amultiplicidade das invenções de que foicapaz; assim como o personagem EdmondTeste apenas existe no momento fugaz dasenunciações de outros personagens,fugindo a qualquer possibilidade derepresentação realista, desvencilhando-se,desse modo, daquela bêtise que o narradorrecusa como sendo seu fort com que abrea narrativa; assim aquele que escreve osCahiers é e não é o poeta de La jeune parque,do Album de vers anciens ou de Charmes, namedida em que a escrita que ali se revelaestá sempre aquém ou além da realizaçãode uma obra, mas, ao mesmo tempo, incluiem sua formulação, que só é argumentono sentido mais inglês de discussão, umadesconfiança, que é sempre poética, paracom os valores da linguagem. Aquém,porque vestígios desordenados e à mar-

Manuscrito com desenho de Valéry

João

Lei

te

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CULT - março/9912

gem de uma obra já realizada, como acon-tece claramente nas páginas iniciais dosCahiers com relação às duas obras dos anos90 referidas, e além, porque casulos dereflexões que serão retomadas posterior-mente. Desse modo, como não perceber apresença das reflexões sobre o método deLeonardo no texto seguinte:

Un objet ou un fait, arbre, paysage, pensée,mouvement se place dans une classification deschoses connues fondée sur la moindre actionimaginative et logique. Cette moindre action sevoit dans l�engendrement de la géométrie, dansl�association des idées, dans les arts naissants,grandissants, dans la loi de l�évolution � partout!dans tout déplacement spirituel. On arrive desuite à établir des ordres de symétrie suivant ladifférence des parties de tout accord, c�est-à-direde toute chose considérée finie, fermée.

J�appelle ordre de symétrie d�un objet lenombre d�objets qu�il faut supposer pourreconnaître ou imaginer cet objet (??�).L�objet est le lieu des conditions qu�il implique.Si on prend alors un autre objet quelconqueplus CONNU et qu�on y rapporte les conditionsdu 1er. on obtiendra en plus connu ce lieu ouobjet dans le langage du 2ème.1

E como não reconhecer em outro texto,o que se vai ler em seguida, a linguagemenviesada das apreensões tumultuadas desensações e pensamentos que percorre tãocontinuamente a formação da imagemdaquele Monsieur Teste da Soirée:

Des milliers de souvenirs d�avoir senti lasolitude et souhaité avec rage la fin des mauvaistemps ou de la pensée.

Peut-être ne laissera-t-il qu�un amasinforme de fragments aperçus, de douleursbrisées contre le Monde, d�années vécues dansune minute, de constructions inachevées etglacées, immenses labeurs pris dans un coupd�oeil et morts.

Mais toutes ces ruines ont une certaine rose.2

Entre a obra feita e aquela a fazer, alinguagem dos Cahiers ocupa um espaçode tensão reflexiva para onde convergetudo o que a mente busca traduzir comosinais da existência.

No primeiro texto transcrito, os sinaissão, por assim dizer, captados por umalinguagem que se pretende lógica eclassificatória, mas que, exatamente porser linguagem, incide sobre os elementos

que constituem uma outra lógica, que étambém imaginativa, embora para a suaexpressão ecoem os termos de uma mate-mática revelada, sobretudo, na abstraçãode conteúdos, respondendo uns aos outrosa partir de um princípio forte de relaçõese analogias. E é só assim que é possívelevitar a contradição em que a �ordem desimetria� inclui a assimetria da variedadedas coisas do mundo. Uma espécie dedesordem essencial que se recupera pelaordenação imposta pela imaginação.

Desse modo, ao mesmo tempo que poraqui se percebe a sombra daquilo que aleitura dos textos de Leonardo, assimcomo a meditação sobre suas realizaçõescriadoras, pôde significar para o jovem depouco mais de vinte anos ensaiando-se nalinguagem da poesia, é possível tambémantever o modo pelo qual a criação poéticaem Valéry estará sempre acompanhada deum journal de bord em que o poeta vai, como

ele dirá mais tarde, notant jour par jour etpresque heure par heure ce qui est la route versl�ouvrage (anotando dia a dia e quase horaa hora aquilo que é o caminho para a obra).

Por outro lado, o segundo texto, aqueleque parece saído do Log-Book de MonsieurTeste, deixa ver em que medida os Cahiersacolhem também fios de sensações, ou me-lhor ainda, de pensamentos sobre sensa-ções que aguardam a simetria possíveldaquela rosa que explode na última frase.

Os Cahiers, entretanto, não permitemdefinições parciais: solicitam, ao contrário,que o leitor se deixe contaminar pelo esfor-ço de esclarecimento e de montagem derelações que as suas páginas propõem. Éde crer que, para Valéry, sendo um exercíciodiário por mais de cinqüenta anos, aescritura dessas páginas fosse um lugarreservado, não para a liberação recreativade alguma intimidade, mas para a intensi-ficação daquilo que fora distendido pela

O autor dos Cahiers e do poema O cemitério marinho em seu escritório

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março/99 - CULT 13

João Alexandre Barbosa é um dosmaiores críticos literários do país,autor de A metáfora crítica, Asilusões da modernidade (pelaPerspectiva), A imitação da forma,Opus 60 (Livraria Duas Cidades) eA leitura do intervalo (Iluminuras).Professor titular de teoria literáriae literatura comparada, foi diretorda Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências Humanas da USP,presidente da Edusp e Pró-reitor deCultura da mesma universidade.João Alexandre assina mensal-mente esta seção da CULT, cujonome foi inspirado no título de seumais recente livro, A bibliotecaimaginária (Ateliê Editorial). Aindaeste ano, o crítico lançará a cole-tânea de ensaios Entre livros, tam-bém pela Ateliê.

Clóvis Ferreira/AE

Entre a obra feitae aquela a fazer,a linguagem dosCahiers ocupa umespaço de tensãoreflexiva para ondeconverge tudoo que a mente buscatraduzir como sinaisda existência

realização de alguma obra. O poder defazer seria matar o desejo de fazer que,somente ele, para Valéry, seria essencialcomo alimento da inteligência. É o queestá dito numa frase do último volume dosCahiers: Le désir de faire excite le pouvoir defaire qui tue le désir (O desejo de fazer excitao poder de fazer que mata o desejo).

Sendo assim, o que os Cahiers recolhemsão aqueles momentos de linguagem que,livres de um propósito de realização deobra, desdobram os próprios valores designificação que o trabalho com a lingua-gem vai impondo àquele que a utiliza. E,a partir disso, as perguntas são infinitas:quem fala, ou quem escreve, aquilo que sediz passa por uma consciência que sabe desi mesma ou desconhece sua procedência,há um peso físico para as sensações ou essasderivam de uma energia da qual não épossível medir a potência, perguntas cujasrespostas, para Valéry, são tramadas pelascontribuições possíveis das mais diversasciências de seu tempo, da psicologia àfísica, da filologia à neurofisiologia. (Porisso mesmo, diga-se entre parêntese, sãoconstantes as leituras dos Cahiers porhomens de ciências, tal como está docu-mentado, por exemplo, no livro precioso,editado também por Judith Robinson-Valéry, Fonctions de l�esprit. Treize savantsredécouvrent Paul Valéry [Paris, Hermann,1983], em que físicos, neurologistas,matemáticos, ou um químico-físico comoIlya Prigogine, discutem páginas da obrade Valéry e sua contribuição para suas áreasespecíficas de atuação.)

Para o leitor do poeta e ensaísta PaulValéry, no entanto, talvez a maior contri-buição dos Cahiers esteja precisamente nacomplexidade de seu projeto: o sentido deuma prosa configurada pela intran-qüilidade da reflexão e pela experiênciacom os limites e as possibilidades daprópria linguagem.

Sem desconhecer o fato de que algunsde seus temas são de grande importâncianão apenas para o conhecimento dopróprio Valéry, como da mais ampla teoriapoética, e é o caso daquilo que está no quechamou de caderno Júpiter e que constituio sexto e último volume dos Cahiers, istoé, notas em torno da idéia de atenção (e

como isso tem grande alcance para umaboa parcela da melhor poesia moderna!),a maior significação dos Cahiers está, paramim, na própria estruturação da obra, ena linguagem que a conforma, lugar si-multâneo de reunião e de dispersão,imagem viva do intervalo entre biografiae escritura que somente a prosa defragmentos de Valéry é capaz de preencher.

Como definir os Cahiers de PaulValéry?

Pensando-os como parte daquelemosaico de obras do século XX para asquais, como queria Joyce para a sua, seráindispensável a insônia de um leitor doséculo que se anuncia. Aquela insônia deMonsieur Teste que um seu grande leitor denosso tempo e de nosso país, João Cabral,soube fisgar:

Uma lucidez que tudo via,como se à luz ou se de dia;e que, quando de noite, acendedetrás das pálpebras o dentede uma luz ardida, sem pele,extrema, e que de nada serve:porém luz de uma tal lucidezque mente que tudo podeis.

NOTAS1. �Um objeto ou um fato, árvore, paisagem,pensamento, movimento colocam-se numaclassificação das coisas conhecidas fundada sobrea mínima ação imaginativa ou lógica. Essa açãomínima se vê no engendramento da geometria,na associação de idéias, nas artes nascentes,crescentes, na lei da evolução � em tudo! emtodo deslocamento espiritual. Chega-se emseguida a estabelecer ordens de simetria seguindoa diferença das partes do conjunto, isto é, detoda coisa considerada terminada, fechada.�Chamo ordem de simetria de um objeto onúmero de objetos que é preciso supor parareconhecer ou imaginar esse objeto (??�). Oobjeto é o lugar das condições que ele implica.Se se toma então qualquer outro objeto maisCONHECIDO e para aí se levam as condiçõesdo 1º se obterá como mais conhecido esse lugarou objeto na linguagem do 2º.�2. �Milhares de lembranças de ter sentido asolidão e almejado com raiva o fim dos maustempos ou do pensamento.�Talvez ele não deixará senão um resto informede fragmentos percebidos, de dores espatifadascontra o Mundo, de anos vividos num minuto,de construções inacabadas e frias, imensostrabalhos vislumbrados e mortos.�Mas todas essas ruínas contêm uma certa rosa.�

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Ponge é um virtuosístico pintor deobjetos, um genial visualista. Tão maisinteressado nessa sua tarefa de pintorquanto entende que, em literatura,ninguém nunca se pôs a observar objetosde muito perto, ninguém nunca soube, porisso mesmo, dizer as coisas maiselementares a respeito de nenhum.1 Ele éum expert de quem João Cabral de MeloNeto, dos poucos a conhecê-lo entre nós,junto com Haroldo de Campos, tem razãode dizer que �gira as coisas nos dedos�, ou�gira ao redor das coisas�.2 É mais oumenos o que diz Picasso, que o comenta, eque ele também comenta, em seus escritosde salonnier, de comentador de exposições,

para quem a grandeza de um Braque, porexemplo, está em nunca ter queridosuplantar a realidade.3

Há acuidade, aprofundamento,precisão, percuciência, insights impres-sionantes nesse campo � como o de quea matéria da casca do camarão é quase ada unha humana4 � disseminados nosmuitos volumes, em torno de 15, de umapoesia que se realiza, do mesmo golpe,como crítica, ou que ao trabalho doolhar acrescenta uma reflexão sobremaneiras de olhar, em literatura comoem pintura. Tudo isso ocorrendo numaespécie de prosa, materializada quasesempre em linha tipográfica, com todo

o peso do verso rompido (toda aresistência aos alexandrinos, tão fran-ceses), como em Mallarmé, mas que, nocaso, incursiona francamente peladissertação, de resto, com narradorcapcioso. Prosa fraturada, que, ainda porcima, reivindica não ser mais queprólogo ou pincelada � �proême� e�pochade� (�proêmio� e �esboço�, esteúltimo, um termo das artes plásticas) �e constitui-se, por isso também, num dosfraseados mais inquietantes da literaturafrancesa neste século, depois do deProust, que lhe serve de intertexto, comojá se notou, e do de Céline, que Pongenão cita, et pour cause.

Leda Tenório da MottaLeda Tenório da Motta

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Há cem anos, no dia de 27 março, nascia na cidade deMontpellier o poeta Francis Ponge. Leia a seguir umtrecho extraído do ensaio introdutório de Leda Tenórioda Motta para o livro Francis Ponge – O objeto em jogo,que traz traduções inéditas de seus poemas e será lançadopela editora Iluminuras no segundo semestre deste ano.

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julho/98 - CULT 15

...C’est alors que du fond chaos liquide et d’une épaisseurde pur qui se distingue toutefois mais assez mal de l’encre,parfois j’ai observé qui monte un petit signe d’intérrogationfarouche.Ce petit monstre de circonspetion, tapi tantôt d’aguet auxchambranles des portes aux chambranles des portes du sous-marin séjour, que veut-il, où va-t-il?Arqué comme un petit doigt connaisseur, flacon, bibelottranslucide, capricieuse nef qui tient du capricorne, châssisvitreux grée d’une antenne hypersensible et pleine d’égards,salle de fêtes, des glaces, sanatorium, ascenseur, – arqué,capon, à l’abdomen vitreux, habillé d’une robe à traîneterminée par des palettes ou basques poilues – il procèdepar bonds. Mon ami, tu as trop d’organes de circonspection.Ils te perdront.Je te comparerai d’abord à la chenille, au ver agile et lustré,puis aux poissons.À mon sac échapperont mieux ces stupides fuseaux de vitessequi goûtent, le nez aux algues. Tes organes de circonspectionte retiendront dans mon épuisette, si je l’extirpe assez tôtde l’eau – ce milieu interdit aux orifices débouchés de nossens, ce cuvier naturel –, à moins que bonds par bonsrétrogrades (j’allai dire rétroactifs, comme ceux du pointd’intérrogation), tu ne rentres aux spacieuses soupentes oùse réalise l’assomption, dans les fonds non mémorables, dans

les hauteurs du songe, du petit ludion connaisseur quicaracole, poussé par quelle instigation confuse...

La crevette, de la taille ordinaire d’un bibelot, a uneconsistance à peine inférieure à celle de l’ongle. Ellepratique l’art de vivre en suspension dans la pire confusionmarine aux creux des roches.Comme un guerrier sur son chemin de Damas, que lescepticisme tout à coup foudroie, elle vit au milieu du fouillisde ses armes, ramollies, transformées en organes decirsconspection.

La tête sous un heaume soudé au thorax, abondammentgreée d’antennes et de palpes d’une finesse extravagante...Douée d’un pouvoir prompt, siégeant dans la queue, d’unerupture de chiens à tout propos.Tantôt tapie d’aguets aux chambranles des portes des sous-marins séjours, à peu près immobile comme un lustre – parbons vifs, saccadés, successifs, rétrogrades suivis de lentsretours, elle échappe à la ruée en ligne droite des gueulesdévoratrices, ainsi qu’à toute contemplation un peu longue,à toute possession ideále un peu satisfaisante.Rien au premier abord ne peut en être saisi sinon cette façonde s’enfuir particulière, qui la rend pareille à quelquehallucination bénigne de la vue...

Francis PongeExtrato de Pièces (1961)

LA CREVETTE DANS TOUS SES ÉTATSLA CREVETTE DIX FOIS (POUR UNE) SOMMÉE

O CAMARÃO À TODAO CAMARÃO DEZ VEZES (UM) MULTIPLICADOÉ então que, do fundo do líqüido caos, de um espesso puroque se distingue, mas não muito, da tinta, me ocorre àsvezes ver subindo um pequeno ponto de interrogação arisco.Pequeno monstro de cirscunspecção, bancando de repenteo vigia no batente das portas da submarina morada, o queserá que ele quer, onde será que ele vai?Arqueado como um dedinho que sabe se portar, frasco, bibelôtranslúcido, caprichosa nave da família do capricórnio, dechassi vidrado contemplada com uma antena hipersensívele ultra-atenciosa, salão de festa, sala dos espelhos, sanatório,elevador –, curvo, malandro, de barriga vidrada, com umvestido que termina em cauda de paletas ou pontas peludas– ele procede por saltos. Amigo, você tem órgãos demais decircunspecção. Eles ainda vão te pôr a perder.Haverei de te comparar, primeiro, com a lagarta, ágil elustroso verme, depois com o peixe.Da minha rede podem tranqüilamente escapulir essesestúpidos moluscos rapidinhos que degustam, o nariz enfiadonas águas. Já teus órgãos de circunspecção vão te prenderdentro dela, se eu a extirpar bem depressa da água – essaambiência proibida para os orifícios destapados de nossossentidos, essa cuba natural – a menos que, evoluindo porsaltos retrógrados (quase que eu ia dizendo retroativos, comoos do ponto de interrogação), você não enverede pelosespaçosos desvãos em que se realiza a subida, nos fundos

não memoráveis, nas alturas de sonho do pequeno ludiãoentendido que caracola, movido por tão confusa instigação...

O camarão, do tamanho de um bibelô ordinário, tem umaconsistência pouco inferior à da unha. Ele pratica a artede viver em suspenso na pior confusão marinha, no vãodas rochas.Como um guerreiro em seu caminho para Damasco,bruscamente fulminado pelo ceticismo, vive no meio datrapalhada de suas armas, amolecidas feito órgãos decircunspecção.

A cabeça debaixo de um elmo soldado no tórax, abun-dantemente servida de antenas e barbilhões de uma finezaextravagante... Dotado do lépido poder, sediado na cauda,de mudar de assunto, sem mais aquela.Bancando de repente o vigia no batente das portas dassubmarinas moradas, mais ou menos imóvel como um lustre,– por saltos vivazes, sincopados, sucessivos, retrógradosseguidos de lentas retomadas, escapa da investida direta dasgoelas devoradoras, como ainda qualquer contemplação umpouco mais detida, qualquer posse um pouco mais satisfatória.Nada, à primeira vista, de tangível a não ser essa maneiraparticular de empreender a fuga, que faz com que pareçacom alguma alucinação benigna da vista...

Tradução de Leda Tenório da Motta

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CULT - julho/9816

Mas Ponge é ainda, por luxo, e porfalar em humor (e em Picasso, e emBraque), capaz de frustrar seus objetospicturáveis, à força, justamente, de girarem volta deles, de querer fazê-los falar ede falar por eles, de fazer deles sua razãode viver feliz � já que o poeta pratica aarte classicista francesa de obedecer ànatureza � e infeliz � já que o objeto étambém a razão da Rage de l�expressio(como traduzi-la, ímpeto, impulso,capricho, gana da expressão?), outrotítulo, entre iniciados, bem conhecido. Jáque, além de concentração, há emoção,além de aplicação, perturbação. É emnome da emoção e da perturbação,acrescente-se, que ele vai tomar aprovidência, em 1975, no ColóquioCerisy, de desfazer-se de mais umaetiqueta, a de cubista, que algunsquiseram lhe pregar: não há cubos nemem Ponge nem no cubismo.5

Como Proust com sua catedral �Proust que dizia que não era romancista,o que Ponge deslê, nos dizendo que não époeta � ele é, enfim, principalmente,capaz de girar em círculo, ou de girar emfalso. E, não bastasse, de retirar algumcontentamento de seu passo em falso, oque é possível, nos explica, não forçandonota nenhuma, nem a da nostalgia deabsoluto, nem a do sentimento de derrota,mas mantendo-se, do modo o mais�airoso� (plaisant), num certo dis-tanciamento, ou ficando �no �relativo�,isto é, �no absurdo�.6 Acirramento dosentimento romântico de perda daligação com a natureza, como não fica

difícil perceber, o que esse absurdorecupera, juntamente com o velhohomem, o velho homem que o Parti prisdes choses havia descartado.

O homem com um sorriso céticopregado nos lábios, digamos. Sorrisocertamente na origem do interesse porPonge, além dos filósofos e da refinadaescola crítica que sai do grupo de Sollers,e inclui Gérard Genette, de um escritorcomo Calvino, para quem Ponge é umdos clássicos que temos que ler.

No centenário do nascimento, afinalidade deste livrinho estará cumpridase ele conseguir despertar aqui, ondequase tudo está por ser traduzido, e muitopoucos sabem da sua existência, parte dointeresse que desperta hoje, dentro e forada França, o poeta �que não tem parada�(Francis Ponge qui n�a de cesse, assim ochamava o autor de uma das comu-nicações de 1975 em Cerisy)7 . O maisdividido dos language poets, que é como ovêem alguns (bons) manuais.8 O mais suigeneris, o mais insólito representantedaquilo que alguns têm chamado,evocando ainda René Char, André duBouchet, Henri Michaux e YvesBonnefoy, e não sem entrar em inte-ressante atrito com a idéia de uma poesiada linguagem, de �poésie du lieu�.9

Pela violência (mais uma palavraquerida) de sua dupla inserção, FrancisPonge suporta, eventualmente, estes eoutros pertencimentos. E podeperfeitamente figurar nos manuais por ummotivo ou pelo outro � poeta do lugar oudo lugar da poesia � ao lado dos grandes

contemporâneos. Mas melhor que tentarassim pacificá-lo, em detrimento de suainfinita ironização dos partidos, talvezfosse preferível tomar o caminhocontrário, e chamá-lo, simplesmente,como ele nos autoriza, por toda parte,aliás, a fazer, de seguidor fora-de-modado Grand Siècle. Cultor do século em queMalherbe, vindo para reinventá-la, ousoupôr toda a poesia, todo o surto lírico daPléiade, em posição de linguagemordinária.

É assim também que Ponge tende aver, ao longo do presente século, o que sepassa, poeticamente, em volta. Naousadia de um tal parti pris no negativoresidindo toda a diferença. Suficientepara fazê-lo dizer de si, na abertura deum poema em que resume a luta de seuspartidos, como um perfeito e extem-porâneo honesto homem: �A que calma nodesespero eu consegui chegar... � 10

Leda TLeda TLeda TLeda TLeda Tenório da Mottaenório da Mottaenório da Mottaenório da Mottaenório da Mottaprofessora do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação e Semiótica da PUC-SP, autora de Catedral emobras (Iluminuras) e Lições de literatura francesa (Imago)

1. “Introduction au galet”, Proêmes, 173.2. No poema “O sim contra o sim”, de Serial. Ponge entraainda em João Cabral, em epígrafe, em Museu de tudo edepois.3. “Braque Japon”, Lyres (1961).4. Ver a tradução na página anterior.5. “Ponge inventeur et classique”, Colloque de Cerisy,10&18, 1977.6. “Pages bis”, Proêmes (1948).7. A de Jean Tortel. Cf. Philippe Bonnefis, Pierre Oster org.,Colloque de Cerisy.8. Cf. Mary Ann Caws, “Lieu de la poésie, poésie du lieu”,in Denis Hollier org., De la littérature française. Paris,Bordas, 1993.9. Idem, ibidem.10. “Fragments de masque”, Proêmes, 150.

A GRAMAQue pode haver em nós de semelhanteà grama?Fina e nua, sempre de cabeça fria,Fria e una,Não de graças mil, mas miligramas.

A atitude é natural.Bem contente em seu canto,Certa da antigüidade da decoração,Ela assiste ao boi.

Tradução de Leda Tenório da Motta

L’HERBEQu’y a-t-il en nous de pareil auxherbes?Fines et nues, toujours d’humeur froide,Froides e unes,Non pas mille grâces mais mille herbes.

D’attitude très naturelle.Contentes sur place,Sûres de l’ancienneté de leur décoration,Elles assistent au boeuf.

Francis PongeLyres, 1961.

No Colloque de Cerisy (1975), da esquerdapara a direita, Francis e Odette Ponge,

Raymond Jean, Jacques Derrida e Jean Tortel

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março/99 - CULT 15

Há um ou dois anos, numa questão daprova de português, o vestibular da USPpediu aos alunos que comparassem osvários valores do prefixo �des-�. Assuntobom, porém perigoso para quem gosta dedecoreba.

É sabido que nem sempre o ensinoprivilegia o raciocínio. Muitas vezes, o que sefaz � e se incentiva � é a mera decoreba. Umdia aprende-se na escola que o prefixo �a-�(ou �an-�) indica idéia de negação. Nessemesmo belo dia também se aprende que oprefixo �des-� indica negação. E aí muita gentepassa a achar que tudo o que começa com �a�,�an� ou �des� tem sentido negativo.

Será? Numa das partidas que decidiramo último Campeonato Brasileiro de futebol, olocutor Galvão Bueno, da TV Globo, disseque �a bola descaiu�. Em determinado lance,havia a impressão de que a bola iria passarsobre o travessão. Subitamente, a pelota(pelota?!) desceu e foi em direção ao gol. Galvãodisse que a bola �descaiu�. No dia do jogo edurante aquela semana, muitas pessoas meperguntaram se existe o tal verbo �descair�.

Será que o �des-� de �descair� tem omesmo valor do de �desonesto�? Em �deso-nesto�, o prefixo �des-� indica negação. Seráque �descair� é o contrário de �cair�? Sefor, �descair� será sinônimo de �subir�.Que tal? Nem pensar.

O jornalismo esportivo nem sempreprima pelo bom emprego da linguagem.Um bom exemplo é o emprego rebarbativo� e supostamente requintado � da prepo-sição �a� em frases como �A falta favoreceao Vasco�, ou �Ronaldo driblou ao za-gueiro�. O próprio Galvão, por sinal, aindaé usuário freqüente dessa construção.

�A BOLA DESCAIU�Pasquale Cipro Neto

Por outro lado, é preciso elogiar olocutor quando se esforça para acertar.Galvão se corrigiu durante uma transmis-são, trocando �penalizar� por �punir�(�Isso penaliza ... Não! O certo é pune�,disse Galvão, narrando uma corrida deautomóveis.).

E desta vez devo � de novo � dar razãoa Galvão. A bola descai, sim. O verbo�descair� é mais do que legítimo. E o quesignifica? �Deixar pender ou cair, inclinar-se lentamente, abaixar-se, curvar-se, ver-gar� são alguns dos sentidos que atribui aesse verbo o dicionário do Aurélio Buarque.Em última análise, �descair� é �cair�.

Sobre o prefixo �des-�, o mesmoAurélio diz que �assume, às vezes, caráterreforçativo�. E vem uma enorme lista deexemplos, de que faz parte o verbo�desinquietar�. Será que �desinquietar� éo contrário de �inquietar�? Não. �Desin-quietar� é �tirar do sossego, perturbar apaz, incomodar, inquietar�. Isso tambémocorre com �desinfeliz�, em que o prefixo�des-� não indica negação. �Desinfeliz� nãoé o contrário de �infeliz�. Em última análise,�desinfeliz� é �infeliz�.

Lembra-se de um personagem vividopor Jô Soares que dizia �desafasta�? Odicionário Aurélio registra o verbo �desa-fastar� como popular. E lhe dá o mesmosentido de �afastar�.

E �desesperar�? Eis um caso interes-sante. Nunca nos vem à mente que �deses-perar� é o contrário de �esperar�. Quemespera tem esperança, tem fé. Quem sedesespera perde a fé, a esperança. Se vocêprocurar a origem desse verbo, vai constatarque ele é o resultado de �des- + esperar�.

No caso, esse �des-� não tem valor refor-çativo, e sim negativo.

O prefixo �a-� (ou �an-�) pode indicarnegação, privação, como em �acéfalo�,�amoral�, �ateu,� �anestesia�. Anestesia?Por que se aplica anestesia? Para que não sesinta nada. �Anestesia� é exatamente isso,ou seja, �ausência de sensibilidade�. Não édifícil deduzir o que seja �hiperestesia�. Se�hiper-� é �excesso�, �hiperestesia� nadamais é do que �excesso de sensibilidade�.O radical grego �estesia� significa �sen-sação, sensibilidade�.

E o prefixo �a-�? É sempre negativo?Não. Em �acalmar�, por exemplo, nempense em negação. �Acalmar� resulta de �a+ calmo + ar�, em que o prefixo �a-�expressa idéia de �mudança de estado�.�Acalmar� nada mais é do que �tornarcalmo�.

O verbo �afear� também é interessante.Não o confunda com �afiar� � o que se fazcom facas e tesouras. �Afear� resulta de �a+ feio + ar�. �Afear� é �tornar feio�: �Porque você vai cortar os cabelos? Para afeá-los?�. O povo parece preferir a forma�enfear�, equivalente: �enfear os cabelos�.Na língua literária, parece predominar�afear�.

Cuidado com a decoreba. E, se valer umbom conselho, divirta-se com mestreGuimarães. Ninguém melhor do que elefez uso expressivo dos prefixos e sufixosem nossa literatura.

Até a próxima. Um forte abraço.

Pasquale Cipro NetoPasquale Cipro NetoPasquale Cipro NetoPasquale Cipro NetoPasquale Cipro Netoprofessor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e

apresentador do programa Nossa língua portuguesa, da TVCultura, autor da coluna Ao pé da letra, do Diário do Grande

ABC e de O Globo, consultor e colunista da Folha de S. Paulo

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Fotos Contardo Calligaris/Folha Imagem

Existem leitores onívoros.Existem escritores que são leitores onívoros(o caso mais célebre é o do argentino JorgeLuis Borges, cujos escritos falam sempre doslivros que leu, ou mesmo dos livros que nãoleu...). E existem também � o que é mais raro� os escritores onívoros. Umberto Eco pertencea essa última classe, uma aberração num mun-do de ágrafos, um escândalo filogenético quesó encontra paralelo (no reino animal) na exis-tência do ornitorrinco, esse mamífero ovíparoque vive como peixe ou anfíbio e que dá títuloao mais recente livro de Eco no Brasil.

Comparar o autor a sua obra, mergu-lhando o sujeito em seu objeto, não constituimera boutade ou violação daqueles �limites dainterpretação� que Eco vem procurandoestabelecer em estudos sucessivos. O amál-gama de conceitos, o processo aditivo decamadas de reflexão, o mosaico de autores etemas, o acúmulo de livro sobre livro, o proje-

to ambicioso de compor uma enciclopédiasempre reescrita de nossa cultura e de nossalinguagem � tudo isso está no cerne daquelaque é provavelmente a mais poderosa e excên-trica personalidade intelectual da atualidade.

Teórico da semiose ilimitada, esse pro-fessor da Universidade de Bolonha, nascidoem 1932 na cidade de Alessandria (regiãoitaliana do Piemonte), é responsável por umaprodução incessante e pluridiscursiva. Ecoacaba de lançar três livros em três diferentespaíses. Os mais recentes são Serendipities, pu-blicado nos EUA (leia texto na pág. 20), e Tramenzogna e ironia, na Itália. No Brasil � paísque marca a trajetória teórica e ficcional deEco (além de ter dado aulas na USP, pas-sagens inteiras de seu romance O pêndulo deFoucault se passam por aqui) �, surge agoraKant e o ornitorrinco (leia texto na pág. 23), umambicioso tratado semiológico; e poderíamosacrescentar ainda Cinco escritos morais, lançado

uma cartografia do serKant e o ornitorrinco,

obra recém-lançada no

Brasil, e livros publicados

nos EUA e na Itália

revelam o diálogo de

Umberto Eco com a

tradição fi losófica e

renovam a leitura da

trajetória intelectual

do semiólogo italiano

manuel da costa pinto

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Tra menzogna e ironiaEditora Bompiani112 págs.Pode ser encomendado àLivraria Italiana (av. São Luiz, 192,loja 18, CEP 01046-913, SãoPaulo, tel. 011/259-8915)

Serendipities � Languageand LunacyTraduzido para o inglês porWilliam WeaverColumbia University Press/ItalianAcademy Lectures120 págs.Pode ser encomendado àLivraria Cultura (av. Paulista, 2073,loja 151, CEP 01311-940, SãoPaulo, tel. 011/285-4033)

Kant e o ornitorrincoTradução de Ana Thereza B. VieiraEditora Record436 págs. � R$ 35,00

Cinco escritos moraisTradução de Eliana AguiarEditora Record126 págs. � R$ 15,00

em meados do ano passado. São livros di-ferentes, que percorrem desde os funda-mentos ontológico-lingüísticos do Ser até adefesa de uma ética fundada numa �religio-sidade laica�, passando pela crítica literária epor labirintos bibliográficos comparáveisàqueles criados ficcionalmente por Eco noromance O nome da rosa.

Tal multiplicidade temática, porém, nãoé apenas o diletantismo intelectual de um aca-dêmico brilhante, mas está implicada no pro-jeto que Eco vem executando desde os anos60 e 70, e que se inicia com dois livros fun-damentais: Obra aberta e Tratado geral desemiótica � ambos publicados no Brasil pelaeditora Perspectiva. Em poucas palavras, Ecodelineou nessas obras a idéia de que a culturaé um sistema de signos com o qual nosrelacionamos segundo o princípio da semioseilimitada. Ou seja, a formulação do filósofo elingüista norte-americano Charles SandersPeirce (referência onipresente na obra deEco) � segundo a qual o significado de umapalavra ou signo não é um objeto do mundoempírico, mas as cadeias de palavras ou sig-nos que explicam esse significado, fazendo-nos mergulhar num mundo composto pri-

meiramente de palavras e no qual os objetosnos escapam continuamente, por força de seurecobrimento lingüístico � ganha com Ecocontornos mais amplos, explicando a dinâmi-ca da cultura sem perder o solo firme dosvários códigos a partir dos quais os artistasou simples seres falantes fazem crescer nossoacervo de bens simbólicos, personificandosignos interpretantes que por sua vez tor-nam-se signos a serem interpretados.

Uma vez proposta a mecânica dessacadeia ilimitada de semioses, Eco concebeuentão uma enciclopédia que deveria ser umaextensão pragmática do conceito semânticode código, um receptáculo infinito de signose procedimentos interpretativos e criativosda cultura com base em diferentes armaçõessemiósicas e nos procedimentos lógicos deinferência, dedução, abdução etc.

O grande mérito desse projeto é talvez ode formular uma idéia de cultura que, semabdicar da evidência de que lidamos compalavras (e não com coisas), vai além doslimites estritos do estruturalismo francês,salientando o papel constitutivo do leitor/receptor das mensagens (e para isso Ecoassimila contribuições da estética da recepçãode Jauss e Iser, postulando um leitor implícitoou leitor modelo estruturalmente presente emtodo artefato sígnico).

Ao mesmo tempo, Eco sempre esteveatento ao risco de que a semiose ilimitada setornasse um abuso interpretativo. Por isso,obras posteriores, como Lector in fabula e Oslimites da interpretação (Perspectiva), insistiramna necessidade de, sem abdicar de um modelodinâmico de semiose, estabelecer as fronteirasalém das quais a interpretação colide com aintentio operis ou �estratégia textual� pela qual,num aparente paradoxo, cada mensagemcircunscreve as possibilidades infinitas de sualeitura.

Essa síntese do pensamento de Eco éobviamente insatisfatória, mas ao menos per-mite contemplar sua evolução atual e entendermelhor os livros que sua voracidade de escritaacaba de produzir. De outra forma, seriadifícil compreender por que, de uma horapara outra, Eco publica um livro que estápreocupado com a �questão do ser�. PoisKant e o ornitorrinco não é senão um diálogocerrado com a tradição metafísica a partir dealguns pressupostos da semiologia. Sobre-tudo na primeira parte do livro, em que Ecovê como a tarefa de pensar o ser só é possíveldepois da constituição da linguagem, o quenos lança � por um mis-en-abîme de quetentaram escapar Kant (pela via do aparato

transcendental), os filósofos analíticos (querecorrem a um conceito inessencial de verdadeque apenas organiza consistentemente osdiscursos) ou Heidegger (o mais profundofilósofo do ser, com o qual Eco conversa sub-liminarmente em todo o livro) � num afasta-mento desses entes que a linguagem almejaapreender:

�Mal entramos no universo das essên-cias, entramos no universo das definições,isto é, no universo da linguagem quedefine.(...) O ancoradouro das substâncias,que deveria fazer frente à multivocidade doser, devido à linguagem que o diz, nos leva àlinguagem como condição daquilo que sa-bemos das próprias substâncias.�

Nessa espécie de cartografia do ser, ofundamento daquilo que é equivale ao funda-mento da linguagem. Mas, obedecendo àmesma dinâmica do Tratado, Eco não faz comque tudo aquilo que é linguagem seja exis-tente; pois se o ser é visto pela lente do signo,nem toda interpretação do signo é permitida:o ser-signo ou natureza-signo oferece �linhasde resistência� a sua semiose.

Do ponto de vista prático, isso significaque o Eco de Kant e o ornitorrinco pode falaragora de alguns �universais lingüísticos� queresistem a interpretações desviantes, e queesses universais, ao nomearem nossa reali-dade objetiva, oferecem-nos princípios uni-versais para o conhecimento científico e,sobretudo, para decisões éticas (leia texto napág. 26). Partindo de uma concepção da cultu-ra como sistema de signos, portanto, Ecochega a uma concepção do mundo e seusobjetos como entes só pensáveis como signoscuja pluralidade é infinita (embora limitada).

Numa das passagens de seu livro, Econos diz que talvez o ornitorrinco �não sejafeito com pedaços dos outros animais, masos outros animais é que sejam feitos dos seuspedaços� (alusão ao fato de que o estranhomamífero bote ovos, tenha bico de pato ecauda de castor). Da mesma maneira, a obrade Eco é uma espécie observatório ativo dapluralidade do mundo, alimentando-se detodo tipo de informação, das serendipities àsiluminações de Tra menzogna e ironia (quecontém prefácios e conferências sobre as dis-simulações e despistes de linguagem presen-tes nas lendas históricas sobre o aventureiroCagliostro, nas obras dos escritores Man-zoni e Campanile, e do desenhista HugoPratt). São registros diferentes, que vão daalta literatura ao mass media, da filosofia àlógica, e que compõem o cardápio variado doonívoro ornitorrinco da semiologia

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O último livro de Um-berto Eco, a que tive acesso e que li emtradução para o inglês, traz uma palavraestranha como título: Serendipities.Language and Lunacy. A palavra que,segundo o Concise Oxford Dictionary,significa a faculdade de fazer, por acidente,felizes e inesperadas descobertas, foi intro-duzida, na língua inglesa, ainda segundoo mesmo Dicionário, no século XVIII,por Horace Walpole, o autor do famosoromance gótico O castelo de Otranto, apartir de um conto de fadas do Sri Lankachamado Os três príncipes de Serendip.

Nem sempre, entretanto, os cincoensaios de Eco � na verdade três sãoconferências lidas em lugares diversos (aprimeira, The force of falsity, na Univer-sidade de Bolonha; a segunda, Languages

reescrevendo a enciclopédiajoão alexandre barbosa

Serendipities, livro que

acaba de ser lançado nos

EUA, relata descobertas

casuais contidas nas

errâncias bibliográficas

de Umberto Eco e em

textos de uma hipotética

enciclopédia que inclui

desde Ptolomeu e Marco

Polo até Dante e Leibniz

in paradise, em Jerusalém; a terceira, FromMarco Polo to Leibniz, na Universidadede Columbia) e os dois últimos, Thelanguage of the Austral land e The linguisticsof Joseph de Maistre, textos publicados emvolumes dedicados à memória de LuigiRosiello � seguem à risca a definição doDicionário: se nos três primeiros ensaiosé mais fácil perceber a presença dofenômeno da serendipity, dada a atuaçãodo acidental em algumas descobertas, nosdois últimos a determinação, quer deGabriel de Foigny, no primeiro caso, querde Joseph de Maistre, no segundo, tor-nam bem mais difícil sua percepção.

Na verdade, embora todos os textossejam, por assim dizer, produtos secun-dários, ou by-products, para usar umaexpressão inglesa, do livro de 1993, La

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conhecimento é agora copernicano, nossapercepção é ainda ptolomaica: nós não apenasvemos o sol se levantar no oriente e viajaratravés do arco do dia, mas nos comportamoscomo se o sol se movesse e nós permanecêssemosimóveis. E dizemos �o sol se levanta�, �o solestá alto no céu�, �ele cai�, �ele se põe�. Mesmoseus professores de astronomia falam ptolomai-camente); a descoberta da América porColombo, em que a viagem ao Orientepelo Ocidente contrariava as convicçõesdos sábios de Salamanca, para os quaisnão havia dúvidas sobre a redondeza daTerra, mas que haviam feito cálculos maisprecisos do que Colombo sobre a exten-são do globo e, por isso, acreditavam seruma loucura do genovês tentar atingir oOriente pelo Ocidente (Naturalmente,diz Eco, nem ele nem os sábios homens deSalamanca suspeitavam de que entre aEuropa e a Ásia existia um outro continente.(�) Embora estivessem certos, os sábios deSalamanca estavam errados; e Colombo,embora estivesse errado, perseguiu fielmenteseu erro e provou estar certo � graças àserendipity); a famosa carta de Preste João,também conhecida como Doação deConstantino, em que se falava da existênciade uma terra de utopia cristã situada noExtremo Oriente e que, embora viesse ase revelar falsa posteriormente, foiresponsável por numerosas aventuras deexpansão e exploração (foi, como observaEco, provavelmente um documento depropaganda antibizantina forjado porFrederico I, mas � completa o autor � oproblema não é tanto sua origem (�) quantosua recepção. A fantasia geográfica gradual-mente gerou um projeto político. Em outraspalavras, o fantasma evocado por algumescriba com uma intuição para documentosfalsos (�) serviu como um álibi para aexpansão do mundo cristão na África e na Ásia,um argumento bem-vindo favorecendo o fardodo homem branco); finalmente, a últimanarrativa deste capítulo refere-se a duasinvenções que tiveram enormes conse-qüências de ordem histórica: a criaçãoda Ordem de Rosa-cruz e os Protocolos dosSábios de Sião. Caracterizadas ambas porum lastro de segredo que vai desde osentido de fraternidade, que está naprimeira, até as teorias conspiratórias,

que estão na segunda, envolvendo repre-sentações ficcionais (e Eco sublinha aimportância, para sua divulgação, dasobras de Eugène Sue), ambas tambémcoincidem na escolha de, por assim dizer,bodes expiatórios, seja o jesuíta, noprimeiro caso, seja o judeu, no segundo.

Em todos os episódios referidos, ficaevidente a importância assumida pelaleitura e releitura de textos, às vezesesquecidos, às vezes lidos em contextosnão adequados, para que se possa refazeras relações entre verdades e mentiras queconstituem a matéria daquela enciclo-pédia referida inicialmente. Mesmoporque, como diz Umberto Eco fechandoo capítulo, o primeiro dever da pessoacultivada é estar sempre preparada parareescrever a enciclopédia.

É a essa tarefa de reescritura que sededicam os demais capítulos do livro.

É o caso, por exemplo, do belíssimotexto sobre as especulações acerca dasorigens das línguas, Languages in paradise,traçando um caminho que está antes edepois da Torre de Babel, que terminatomando Dante e sua De Vulgare Eloquen-tia como centro e, o que é mais importan-te, levantando a hipótese de uma conflu-ência entre Cristianismo e Judaísmo nopensamento dantesco, sobretudo atravésda obra do cabalista Abulafia, para quemexistiriam inicialmente dois tipos delíngua: a Divina, resultante de um acordoentre Deus e Adão, e a natural, decorrentedo acordo entre Adão e Eva e seus filhos.Somente essa última teria sido confundidadepois de Babel; a primeira passariaapenas de Adão para Set e depois seconservaria como língua secreta até oscabalistas. Teria sido essa aquela vislum-brada pelo poeta nos últimos versos doParadiso.

Desse modo, perceber Dante comovértice na convergência de duas tradições� a judaica e a cristã �, sabendo anotar,com precisão, os mínimos pontos de inter-relação das duas, mas sem esquecer dotrabalho concreto do poeta que, sobretudoem sua De Vulgare Eloquentia, buscavaencontrar a língua com que falaria em suaenorme obra poética, é marca inconfudívelda serendipity atualizada por Eco.

ricerca della lingua perfetta [�A procura dalíngua perfeita�, inédito no Brasil], creioque é nos dois últimos ensaios que maisclaramente se revela essa dependênciaque, aliás, é explicitada pelo próprio Econas palavras iniciais de seu prefácio paraeste novo livro:

�Na introdução a meu A procura dalíngua perfeita, informava ao leitor que,tendo em mente os limites físicos de umlivro, tinha sido forçado a omitir muitosepisódios curiosos e concluía: �Consolo-me a mim mesmo em ter o material parafuturas excursões eruditas�.�.

Sendo assim, os ensaios agora reuni-dos podem ser lidos como exemplaresdessas excursões e é, de fato, espantosa aerudição que as embasa. Mais do queserendipities, o que, sobretudo, opera aconvergência entre elas é o gosto pelalíngua e pelas linguagens, suas origens,suas estruturas e relações, seus significa-dos culturais, não fosse o autor o grandesemiólogo que é, com algumas incursõesmuito bem-sucedidas no campo da ficçãoliterária. Sem ser por acidente, pararetornar aos termos da definição deserendipity, a faculdade semiológica de Ecoleva-o, de fato, a felizes e inesperadasdescobertas. As serendipities são antes dopróprio Eco que do anedotário de que seserve para ilustrá-las.

Assim, por exemplo, no primeiroensaio do livro, The force of falsity, lendonumerosos textos medievais e renas-centistas e estabelecendo correlações quenão estavam disponíveis ou eram muitodifíceis de serem feitas em seus momentosde elaboração, Umberto Eco aponta parao fato de como certas afirmações infun-dadas ganharam foro de verdade e foramincorporadas a uma hipotética enciclo-pédia do conhecimento.

Nesse sentido, são narrados quatroepisódios que exigiram a reescrituradaquela enciclopédia, embora nem tudotenha sido negativo em sua crença: ateoria de Ptolomeu que, não obstantesuperada pela de Copérnico, ainda seconserva em nosso repertório de lingua-gem (ou, para citar Umberto Eco: hojesabemos que a hipótese ptolomaica eracientificamente falsa. Ainda assim, se o nosso

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CULT - março/9922

Mas, talvez, onde melhor se revele essamarca seja no terceiro ensaio, From MarcoPolo to Leibniz, que traz um subtítuloesclarecedor: Stories of intellectual misun-derstandings. Aqui, tratando do encontrode culturas diferentes e estabelecendouma tríade de possibilidades para aocorrência dos encontros, isto é, conquis-ta, pilhagem cultural e troca, UmbertoEco encontra no que chama de backgroundbooks (�livros de fundo�) um artifício paraexplicar as diversas incompreensões quepodem ocorrer nos encontros entreculturas diferentes. Diz ele:

�Nós (no sentido de seres humanos)viajamos e exploramos o mundo carre-gando conosco alguns background books.Esses não necessitam nos acompanharfisicamente; o caso é que viajamos comnoções preconcebidas do mundo, deriva-das de nossa tradição cultural. Numsentido muito curioso, viajamos conhe-cendo de antemão o que estamos à beira

de descobrir, porque leituras passadas nosdisseram o que deveríamos descobrir. Emoutras palavras, a influência desses livrosde fundo é tal que, não importa o que osviajantes descobrem ou vêem, interpre-tarão e explicarão tudo nos termos desseslivros.�. É o caso divertido de MarcoPolo, que, assim como todos seus contem-porâneos, havia lido na tradição medievalacerca da existência do unicórnio e,quando, em suas viagens, encontrou orinoceronte, pensou se tratar daqueleanimal fantástico, com a diferençasubstancial de que não apresentavaaqueles traços de amabilidade que seriama característica fundamental do animaldescrito pelos viajantes medievais.

Menos divertido e mais trágico é ocaso da leitura equivocada que se fez daescrita dos povos pré-colombianos daAmérica e que levou à destruição de todaa riqueza de uma civilização cultural-mente muito evoluída.

Mas o ensaio tem mais: tem, porexemplo, a discussão das idéias deAthanasius Kircher, para quem a lingua-gem adâmica seria a dos egípcios oumesmo, depois, a dos chineses, ou asrelações possíveis entre o I Ching ealgumas formulações essencias do pensa-mento de Leibniz.

E ainda ficou por nomear os doisúltimos ensaios, em que se aborda seja alíngua fictícia criada por Gabriel deFoigny como sendo a da imaginária TerraAustral, seja as elucubrações lingüísticasconservadoras de Joseph de Maistre (nãoconfundir com o outro de Maistre,Xavier, que viajou à roda de seu próprioquarto).

Enfim, uma proliferação intermi-nável de serendipities que a imaginação ea erudição de Umberto Eco, encontrandono grande narrador que ele é um parceiroperfeito, transformam também o leitornum ocasional habitante de Serendip.

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O que se passa em nossa�caixa preta�, quando percebemosalguma coisa, é problema que as ciênciascognitivas debatem, diz Umberto Eco �e, com certa ironia, provavelmentealudindo aos numerosos divulgadorescientíficos que têm chegado com seusbest-sellers em vagas contínuas dasdiferentes universidades dos EUA, já vaielencando o que ele não vai discutir nestelivro: (i) se o ambiente já nos fornece todaa informação necessária, sem necessidadeda intervenção construtiva de nossoaparato neural; (ii) se na caixa-pretahaveria algo designável como �mente� ouse pode ser afirmada, como fazem os neo-conexionistas, uma identidade entre aregra e os dados; (iii) onde ficam, se éque ficam, os tipos ou esquemas cogniti-vos de qualquer espécie; (iv) como é queeles se configuram mentalmente oucerebralmente. Ah, sim, ele não diz, masprovidencialmente também vai deixar delado a comparação desses últimos comos das várias formas de �máquinas pen-santes�.

a tartaruga disse a Aquiles� ou com asfunções ou disfunções da incrível máquinade Turing (você sabia que certa vez o cien-tista da computação Joseph Weizenbaummostrou como construir uma delas comum cubo, algumas pedras e um rolo depapel higiênico?!), num momento comoesse, dizíamos, é quase um alívio saberque um ensaio recente e consistente comoeste Kant e o ornitorrinco não só foipublicado em português, mas também,numa das listas de recomendações deleitura, foi considerado um dos livrosmais importantes do ano.

Com Eco saímos do nível devestibulando para o da pós-graduação, aomenos nos primeiros capítulos em que,num método assistemático, mas amarra-do, num tom jocoso, mas rigoroso, eprocedendo por parábolas, indaga sobreo ôntico (Seiende, �ente�) e o ontológico(Sein, �ser�), indo de Aristóteles aHeidegger:

�É preciso, então, tal como se operoua duplicação ôntico/ontológico, fazendodivorciar o ser de si próprio, fazer com

parábolas do ornitorrincoO novo tratado do

semiólogo italiano vai

na contra-corrente do

cognitivismo e dos livros

de divulgação científica,

assumindo uma reflexão

voltada para o problema

filosófico do Ser e

propondo sistemas de

conceitos que obedecem

às regras da linguagem

aurora f. bernardini

Num momento em que nossainteligência é desafiada pela divulgação,em obras ditas científicas, de fatoscompletamente insólitos � como, porexemplo, �ele foi ensopado por um jarrod�água gelada em uma convençãocientífica, e os estudantes berraram emmegafones pedindo sua demissão emostraram cartazes instigando as pessoasa levarem matracas para fazer barulho emsuas conferências�, que atingem, como éo caso, sócio-filo-lítero-biólogos comoE.O. Wilson (autor de pérolas como:�The love of complexity withoutreductionism makes art; the love ofcomplexity with reductionism makesscience�, conforme escrito emConsiliência, um de seus livros maisfamosos) � ou é confrontada com �o que

que a linguagem também se divorcie desi mesma. Haverá de um lado alinguagem da metafísica já no fim,envelhecida em seu obstinado esque-cimento do ser, aflita para tornarpresentes objetos, e de outro lado umalinguagem capaz � diremos � de donnerun sens plus pur aux mots de la tribus. Demodo que desperte o ser, antes de ocul-tá-lo.

�Conferimos então um poder imensoà linguagem e sustentamos que existeuma forma de linguagem tão forte, tãoconsubstancial ao próprio fundamento doser, que nos �mostra� o ser (ou melhor, oplexo inseparável ser-linguagem) deforma a não deixar resíduos � de modoque na linguagem atue o autodes-cobrimento do ser. Será seu emblema o

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último verso do Andenken de Hölderlin:Mas o que resta, instituem-no os poetas.�.

Os poetas � explica Eco � procuramexplorar ao máximo a ambigüidade dalinguagem para dela extrair um acrés-cimo de ser � de interpretação. (O quetem muito em comum com o que deixaentrever a famosa injunção deWittgenstein no final de seu Tractatus,segundo sua excelente biógrafaChristiane Chauviré [Seuil, 1989], deacordo com a qual o que a Lógica devecalar cabe à Poesia dizer.) �Podeacontecer�, conclui Eco, �que na nossalinguagem existam seres em supera-bundância�. E, arrematando com umatirada aparentemente paradoxal, mas nemtanto: �Talvez quando o cientista diz queas hipóteses não foram verificadas, masantes falsificadas, queira dizer que paraconhecer é preciso podar o excesso de serque a linguagem pode afirmar.�.

Eco retoma em seguida, num viéstambém mais filosófico, o clássicoTratado de semiótica geral (1975), a partirde Peirce � quando, diante da afirmação�a neve é branca�, alguém (Peirce)perguntou como se percebe que a neve ébranca e como se pode ter certeza disso �,utilizando o esquema: �Um ObjetoDinâmico nos leva a produzir umrepresentamen, isso produz numa quase-mente um Objeto Imediato, por sua veztraduzível numa série potencialmenteinfinita de interpretantes e algumas vezes,através do hábito elaborado no curso doprocesso de interpretação, retornamos aoObjeto Dinâmico e fazemos algo dele.(...) Encontramo-nos de novo no pontode partida, devemos tornar a nomeá-loatravés de outro representamen, e numcerto sentido o Objeto Dinâmicopermanece sempre como uma Coisa emSi, sempre presente e nunca apreensível,

a não ser, precisamente, através dasemiose.�

O segundo capítulo, em que Ecocompara o esquema de Kant com odiagrama de Peirce � formando com oscapítulos I e III a tríade brilhante dolivro �, é também o lugar onde começa aaparecer o ornitorrinco. Vejamos como.Nossa mente joga com sistemas deconceitos que obedecem às regras dalinguagem, mas a linguagem, lembraEco, não constitui o ser ex novo: coloca-lhe perguntas encontrando sempre algode já dado (�linhas de resistência� ou�resistências� do ser). O ser pode não terum sentido, mas tem sentidos; quem sabenão sentidos obrigados, mas com certezasentidos proibidos. Há coisas que não fazsentido dizer. O ser opõe-nos alguns�nãos� como no-los oporia uma tarta-ruga, se a forçássemos a voar. Não se tratade ela perceber que não pode voar. Ela

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março/99 - CULT 25

procede em seu caminho terrestre, empositivo, e não conhece a condição de nãoser tartaruga. Ora, quando Marco Poloesteve na China e viu o rinoceronte, ochifre no meio do focinho fê-lo recorrerà noção de unicórnio, dado que sua culturalhe colocava à disposição � tanto que emsua obra Milione, teve ocasião de escrever:�Ela é uma besta muito feia de se ver.Não é, como se diz por aqui, que ela sedeixe apanhar como uma donzela, masacontece o contrário.�.

Imagine-se agora que Marco Polo,em lugar de ir à China, tivesse ido àAustrália e lá encontrado o ornitorrinco,animalzinho estranho capaz de desafiarqualquer classificação tanto científicaquanto popular, parecido com a toupeira,mas com bico de ave e rabo de castor,botando ovos; mas aleitando os filhotesetc., etc. Qual seu caminho, em positivo,e quais seus sentidos proibidos? Com eleteria tido problemas o próprio Peirce.Uma vez que se pode afirmar que noreconhecimento do já conhecido inter-vêm os processos de semiose, por setratar de conduzir os dados sensíveis aum modelo, o problema surge no mo-mento em que se quer saber quantoprocesso semiósico intervem na com-preensão (por inferência � como Peircepropõe que seja o processo perceptivo/semiósico) de um fenômeno desco-nhecido. A partir daí, Eco torna apercorrer as operações lógicas dointelecto que levam à produção dequalquer tipo de conceito, baseando-seem Peirce com projeções em Kant eretomando vez ou outra seu Tratado, detrás para frente como ele sugere,esclarecendo e completando aspectosque se desenvolveram nesse quarto deséculo.

Vemos assim como o intelecto refletesobre os dados que os sentidos lhe trazem(interpretação de estímulos e de sensa-ções), passando pelas fases da compa-

ração, da figuração (que não é oimaginar) e chega não exatamente àabstração, mas à construção de esquemase à elaboração de conceitos puros e deconceitos empíricos (esses últimos,fundados sobre as possibilidades, não setornam culturais). Vemos o pensamentode Peirce acompanhar o processo per-ceptivo (firstness: adverte que é possívelque haja algo; secondness: há algo; thirdness:abre-se o caminho para a generalização epara a elaboração do juízo perceptivo),passar da lógica à gnoseologia (knowledgeof), do diádico (estímulo-resposta) aotriádico (estímulo-interpretações-inter-pretante lógico final).

O terceiro capítulo é o mais extenso eo mais criativo, encerrando de certaforma o raciocínio de Eco e contribuindocom a elaboração das noções �contra-tuais� de tipo cognitivo � TC (a idéia quecada um faz em sua mente de um objeto);conteúdo nuclear � CN (fenômeno deacordo comunicativo: quais traçoscompõem determinado TC); e conteúdomolar - CM (competência mais ampla ecomplexa do objeto). Nos outroscapítulos, que são ricos em exem-plificações e retomadas (dicionário,enciclopédia, referência, iconismo ehipoiconismo, incluindo um apêndicesobre Croce e sobre a denotação), Ecodialoga e muitas vezes polemiza com osestudos culturais e o �cognitivismo�contemporâneo, para gáudio do leitorque, diga-se de passagem, foi didati-camente preparado para participar dadiscussão pela �base� adquirida noscapítulos precedentes. Voltando à caixa-preta dos processos do cérebro � na qual,como disse, Eco não vai entrar �, eleformula uma série errática de perguntasque podem ser exemplificadas por umaúnica: Como se colocam os conceitosempíricos e a semiose perceptiva (infe-rencial) diante do neo-esquematismo dosprocessos mentais?

Uma das respostas que Eco dá é que�Dizer que entender seja efeito deinfinitas negociações (e de atos decaridade para poder compreender ascrenças alheias, ou o formato de suacompetência) diz respeito à com-preensão de enunciados ou de textos.Mas não significa que possamoseliminar a noção de significado, dissol-vendo a velha e venerável semântica nasintaxe, por um lado, e na pragmática,por outro lado. Dizer que o significadoé contratado não significa dizer que ocontrato nasça do nada. (...) É certo quese eu, sentado num carro ao lado domotorista, o solicito dizendo-lhe passa,o sinal está azul, o motorista entende logoque eu desejava dizer verde (ou pensaque eu seja daltônico, ou me atribui umlapso). Talvez isso aconteça porque osignificado das palavras não conta e omotorista me entende apenas porque meatribui uma crença semelhante à sua?�Não é bem assim, diz Eco. É que emquase todos os discursos se confundesignificado dos termos e sentido doenunciado.

E não apenas isso: faz-se confusãotambém entre enunciados elementares etextos. E conclui: �Os significados(enquanto conteúdos) podem ser semprecaracterizados, mesmo que flutuem, sereagrupem, para alguns falantes seenruguem até quase impedir que falemde modo apropriado ou que reconheçamalgo. Mas não vejo nenhuma razão paraque uma visão contratual do sentido dosenunciados deva excluir que por um ladoexistam linhas de tendência que vinculamos nossos tipos cognitivos, e por outrolado existam convenções lingüísticas queregistram esses vínculos e fornecem a basepara interpretações � e contratações �sucessivas.�.

Aurora FAurora FAurora FAurora FAurora F. Bernardini. Bernardini. Bernardini. Bernardini. Bernardiniprofessora de pós-graduação em Teoria Literária e

Literatura Comparada da USP

março/99 - CULT 25

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CULT - março/9926

Cinco escritos morais é umpequeno volume que reúne cartas,conferências e ensaios sobre assuntos quevão da Guerra do Golfo à intolerânciados novos �nazistas�, passando pelaincômoda situação da imprensa no reinoda TV e da Internet.

Numa breve introdução, Eco enfatizao caráter �ético� dos ensaios. Assim, noprimeiro ensaio � �Pensar a guerra�,publicado na Rivista dei libri em abril de1991 �, Eco prefere discutir a �impos-sibilidade� da guerra nos nossos dias atomar partido entre as facções belige-rantes na Guerra do Golfo, respondendoassim aos que exigiam dele, e de outrosintelectuais, uma posição pró ou contraos Estados Unidos.

O complexo funcionamento dosneurônios, com suas infinitas possibili-

o dever do intelectualsérgio mauro

Cinco escritos morais

revela as preocupações

do lingüista Umberto Eco

em relação ao mundo

contemporâneo, a sua

concepção da guerra

moderna, do fascismo,

do racismo e de uma

�religiosidade leiga�

que preserve a ética

num mundo sem Deus

dades de associação e conexões, forneceao autor a metáfora necessária para quepossa elaborar a análise da complexidadeda guerra neste final de milênio. Partindode uma passagem do livro Come vivere inun mondo high-tech, de Arno Penzias, emque se afirma a impossibilidade dedeterminar o que acontecerá com umneurônio após o disparo inicial, Ecochega à conclusão de que as guerrasatuais, sobretudo após o fim da �guerrafria�, não devem necessariamente chegarao final costumeiro, vencedor e vencidos,pois se assemelham a jogos paracomputadores que estabelecem milconexões e possibilidades até seesgotarem num tilt.

Com a possibilidade de destruiçãototal provocado pelo possível uso dearmas atômicas, a guerra torna-se tabu.

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Chega-se, assim, ao ponto crucial daquestão: o único dever do intelectual éanunciar a impossibilidade da guerra. Eaqui, pela primeira vez, Eco levanta umaquestão que ainda suscita polêmica: afunção intelectual dificilmente se aplicaao fato que está ocorrendo, devendoreferir-se ao que poderia suceder ou aoque já sucedeu.

Dessa maneira, a brilhante análise dofascismo italiano e dos vários fascismosdo segundo ensaio � �O fascismo eterno�� somente agora pode ser elaborada, àdistância de meio século, por um intelec-tual que, tendo nascido em 1932, passou ainfância entre os tiros das SS, dos fascistase dos partigiani. Eco demonstra por que ofascismo italiano não foi um sistema com-pletamente totalitário, à diferença do nazis-mo e do stalinismo. No fascismo italianoconviviam, por exemplo, exército real emilícia pessoal de Mussolini, proteção àIgreja e uma educação que exaltavaviolência, livre mercado e controle absolu-to. Para o autor, o caráter mais �ameno�do fascismo italiano derivava sobretudoda fraqueza ideológica.

O ponto alto do ensaio é certamentea análise do que ele denomina de �Ur-Fascismo�, isto é, as várias formas defascismo que se perpetuam. Segue-se,então, a �lista� de todas as característicasque reúnem as tendências fascistas. Oapelo às classes médias frustradas, onacionalismo como único fator de reco-nhecimento para os que nada possuem, oculto da ação pela ação e o conseqüentedesprezo pelos intelectuais, o pavor dodiferente e a concepção de guerra perma-nente � Eco, enfim, mostra como ofascismo, devido a sua elasticidade, podeesconder-se no discurso do político po-pulista contra o Parlamento, ou no voca-bulário pobre e sem gramática de umentrevistador num talk show.

O terceiro ensaio, �Sobre a imprensa�,é a comunicação apresentada numa sériede seminários organizados pelo Senadoitaliano. Pretende enumerar os males queafligem a imprensa italiana, mas acaba sereferindo aos vícios e à crise dos jornaisno mundo inteiro.

O mais tocante capítulo deste livro é,sem dúvida, o penúltimo: �Quando ooutro entra em cena�. Trata-se de umacarta na qual Eco procura responder a

pergunta que lhe fizera o cardeal CarloMaria Martini, de Milão. Martini queriasaber em que se baseia a atitude moral e avisão de mundo de quem não se refere a�princípios metafísicos� ou a �impera-tivos categóricos universalmente váli-dos�. Para responder, Eco realiza umaimpressionante defesa do que chama de�religiosidade leiga�. O fato de cami-nharmos eretos, de sabermos o que é altoe o que é baixo, esquerda e direita, enfim,de conhecermos a posição de nosso corpono espaço demonstra que existem noçõeselementares comuns a toda a espéciehumana. A dimensão ética surge quandoo outro entra em cena. Toda a forma delei procura regulamentar relações inter-pessoais. Essa consciência da impor-tância do outro constituirá a base da�ética leiga�. Mesmo quem não crê oudeixou de crer em Deus pode encontrarsentido nesse amor pelos outros.

Com muita argúcia, Eco responde,enfim, à parte mais complexa da perguntaformulada pelo cardeal: a consciência daimportância do outro basta para consti-tuir uma ética tão sólida quanto a dos queacreditam, por exemplo, na sobrevivênciada alma após a morte? Para ele, quem temconsciência de ter cometido o mal e nãoacredita na existência de uma entidadeque o vigia e, conseqüentemente, napossibilidade de redenção precisa muitomais do que o crente do perdão dos outros.

Por fim, para que nenhuma parte dapergunta fique sem resposta, Eco convidao clérigo milanês a ceder, ainda que porapenas um segundo, e admitir a inexis-tência de Deus. Assumindo tons leopar-dianos (ou montalianos), ele pensa na hi-pótese do acidente da natureza que conce-beu o ser humano, um animal condenadoa ter consciência da condição de mortal.Não se resignando com sua mísera condi-ção, o ser humano precisou criar �nar-rações� que o pudessem ajudar a entendere aceitar a morte. Para o autor, deve-seadmirar o fato de que, em determinadomomento da história, o homem tenhaconcebido a figura de um Cristo que morrepara salvar a todos. É assim que Ecoidentifica, nessas poucas páginas, ospontos de coincidência entre a ética naturale a ética baseada na fé na transcendência:ambas buscam, por diferentes caminhos, asalvação. Eco consegue conciliar aqui sua

formação católica juvenil com a culturaleiga da maturidade. Para realizar essaconciliação, desvencilhou-se de todos ospreconceitos de natureza ideológica emanifestou, até com alguma emoção,apreço pela narração cristã que não cessade enternecer os corações dos descrentes.

O último ensaio, �As migrações, a tole-rância e o intolerável�, traz duas conferên-cias proferidas em Valência e em Paris. Ecodefine primeiramente dois conceitos:imigração � uma parte da população quese desloca de um país para outro e cujofluxo pode ser controlado, encorajado oureprimido � e migração � a totalidade dapopulação de um lugar que se transfere,aos poucos, para outro país, sem possibili-dade de controle. Para ele, então, a partirdo momento que a Europa atual trata deum fenômeno de migração como se fosseimigração, permite o surgimento de umaintolerância geral que poderá se agravarfuturamente. Em seguida, procede aoestudo das várias doutrinas que pregarama intolerância e o desprezo pelo diferente,ou seja, os fundamentos religiosos, ointegrismo e o nazismo. Ao contrário doque muitos pensam, essas doutrinas apenasexploram uma intolerância preexistente,como por exemplo o anti-semitismo,presente na Europa desde os tempos dos�pais da Igreja�. O medo do que é diferentetem origens biológicas, mas a criança podeser educada para a tolerância.

Para definir o intolerável, as últimaspáginas deste volume aproveitam arecente polêmica sobre o julgamento doex-nazista Priebke na Itália. O holo-causto dos nazistas parece ao autor into-lerável, pois, mesmo não sendo o primeiroda história da humanidade, pretendeu-seum modelo mundial e quis obter respaldocientífico e filosófico.

Eco pensa, enfim, que somente aeducação constante desde os primeirosanos de vida possa afastar o perigo daintolerância selvagem. Desses ensaios�éticos� resta uma grande lição: pode-see deve-se vencer o medo do diferente pormeio da ética leiga baseada na consciênciada importância do outro. Não sendo umdom natural, a tolerância se aprende nasescolas. Cinco escritos morais reforça, por-tanto, a fé do autor na educação.

Sérgio MauroSérgio MauroSérgio MauroSérgio MauroSérgio Mauroprofessor de literatura italiana na Unesp/Araraquara

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CULT - março/9928

Acima, vista geral da Cidade do México. No alto, à direita, Catedral Metropolitana, na Plaza de Armas da cidade; embaixo, a cidade de Mitla, em Oaxaca. Abaixo,à esquerda, Monte Albán, capital da região de Oaxaca. No centro, foto superior, o Palácio Nacional, situado na Plaza de la Constitución, também conhecida comoZócalo; na foto inferior, detalhe de mural de Diego Rivera, no Palácio Nacional. Abaixo, à direita, a igreja La Soledad, em Oaxaca, exemplo do barroco mexicano.

Fotos reproduzidas do livro México, da editora Manole

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março/99 - CULT 29

Era de se esperar que eles pergun-tassem como os brasileiros amam, vivem,dançam, sonham ou morrem. Porém, sóqueriam saber de cifras e mais cifras: deexportação, de precipitação pluvial, derenda per capita... Por isso, quando nessapalestra foi inquirido sobre as políticascontra a erosão do solo, a melhor respostade Érico Veríssimo, diante do públicoseleto do Clube dos Alegres Ursos, foi�que Villa-Lobos havia escrito umasinfonia intitulada Erosão e que todos nósesperávamos que isso resolvesse definiti-vamente o problema�. O pior foi nãofaltar quem perguntasse pelos porme-nores de tão extraordinário expediente deintervenção pública. Impossível, paraalguém como Veríssimo, não se estranharcom essas particularidades tão própriasda sociedade norte-americana.

Não é que a vida de diplomata nosEstados Unidos fosse desagradável, nemsequer que Washington, esse �burgoencantador�, �correct, charmant et ridicule�,

não fosse uma cidade convidativa, boa dese morar. Na verdade, o acúmulo deexperiências através dos anos de vida nessepaís fizeram de Veríssimo um grandeconhecedor dessa sociedade e de suacultura � do que há testemunho abundantenos seus livros Gato pardo em campo de nevee A volta do gato pardo. Porém, mudar deares foi um recurso de sobrevivênciaporque tanta perfeição começava a asfixiá-lo: a obsessão pelo �fazer� dominando o�ser� � time is money �, a �lógica� oprimindoqualquer possibilidade de espanto, qual-quer espaço para o �mágico� � wilderness.Nada seria melhor para escapar dessasensação de opressão do que uma viagemaproveitando a vizinhança de um paíscomo o México, que, de um modo ou deoutro, deveria ser mais próximo do Brasil� um país, aliás, onde se chama de desperfectoa razão de as coisas não funcionarem di-reitinho.

Adentraram � Veríssimo e sua esposa� por terra nesse vizinho distante dos

Estados Unidos: nada de avião, apenastrem e ônibus para uma viagem queatravessou três quartas partes do territóriomexicano, com estadias na Cidade doMéxico, Puebla, Oaxaca, Taxco e Guana-juato e com minuciosas escalas em maisonze cidades � sem contar os inúmerospovoados que tingiram de cores pardas esecas o pano de fundo de uma viagemrespingada pelas cores gritantes doartesanato, pelos verdes e vermelhosrutilantes dos chiles, por arquiteturasescandalosas e pela intensidade das festas.

Não é tudo. Veríssimo contou com apresença e a sugestões de Vianna Moog,que havia um ano morava na Cidade doMéxico, e fez uma parte da viagem nacompanhia do �mestre Aurélio� � Auré-lio Buarque de Holanda, que então aílecionava. Isso sem esquecer do fato de oinquieto romancista entrevistar-se emvárias ocasiões com personalidades daenvergadura de, por exemplo, José Vas-concelos ou David Alfaro Siqueiros.

O autor de O tempo e o vento viajou ao país nos anos 50,deixando um registro de cores, aromas, feições

fisionômicas e culturais das cidades mexicanas, além decaptar a intensidade trágica da capital asteca, definida por

Érico Veríssimo como �Cidade Insubmissa�

UMA VIAGEM À VERA:VERÍSSIMO NO

MÉXICO

Adrián Gurza Lavalle

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CULT - março/9930

Como o fizeram Aldous Huxley,Graham Greene e D.H. Lawrence,embora com muita menor empatia peloMéxico por eles esquadrinhado, Verís-simo também se deu ao trabalho detranspor essas agitadas semanas para opapel. Dois anos depois e após a leiturade uma bibliografia nada desprezível, eleconcluiu um livro � México � que vai alémdas memórias de viagem, oferecendouma interpretação �histórica� e �socio-lógica� da cultura desse país e de suagente. Sem dúvida, Veríssimo era umviajante, um procurador de encantosdisposto à aventura do extravio nolabirinto dos universos culturais deoutros lugares. Nada a ver, evidente-mente, com os bandos de entusiasmadosturistas brasileiros que em nossos diaslotam vôos rumo ao México para nãoadentrar nele, isto é, para (des)conhecê-lo a partir do lugar menos mexicano detodo o território desse país: Cancún.

Resulta impensável que Veríssimopudesse conhecer Cancún, pois esse póloturístico foi desenvolvido só nos anos 70e o romancista esteve no México emmeados dos 50. Contudo, ele não enve-redou os passos de seu longo percursopara Acapulco, nem para Puerto Vallarta� nesse momento os principais centrosturísticos desse país �, mas para aqueleslugares com maior poder para encantá-lo pela força testemunhal desse universocultural desconhecido e substancial:�Não há país mais substancial que oMéxico, as coisas são duma maneiraintensa, sem meios termos�. Assim, paraVeríssimo, uma �viagem à vera� (comodiriam os gaúchos) teria de se debruçarsobre as ruas, os costumes, a arquitetura,a culinária e a gente das cidades históricasmexicanas � e isso foi, precisamente, oque ele fez. Dos diferentes encantos queo afetaram, mistura de cores, aromas,

barulhos, espaços e feições fisionômicase culturais, apenas um foi incompre-ensível, ou melhor, impossível de verba-lizar de forma não-fragmentária. Trata-se, nada mais, nada menos, da incômodae cativante Cidade do México a rejeitarqualquer tentativa de harmonização desuas caraterísticas.

De �Cidade Insubmissa� batizouVeríssimo a outrora Ciudad de los Palaciossituada na que fora chamada, pelosconquistadores, de Región Más Transpa-rente: �sinto uma espécie de cordialirritação ante esta Cidade Insubmissa quenão se deixa classificar, que repele todosos adjetivos que lhe ofereço, apresen-tando-se-nos ora moderna, ora antiga;agora encantadora, logo depois sinistra;aqui bela e ali adiante feia... Afinal decontas em que ficamos? Não ficamos�.Talvez o viajante tenha sido tocado poressa aura da Cidade do México quecomove até as pedras, investindo-as dareiteração de uma historicidade trágica:o Castelo de Chapultepec, por exemplo,construído onde fora o palácio de verãodo Imperador asteca Moctezuma; tam-bém cenário e bastião da última batalhacontra a invasão norte-americana quearrancara do México a metade de seuterritório nacional; também, apenaspoucos anos mais tarde, sede do efêmeroe fatal império do Arquiduque Maximi-liano de Habsburgo, quando da invasãofrancesa do pequeno Napoleão III;também centro do Poder Executivo eresidência do presidente da República até1934; também, Museu Nacional deHistória � o mais visitado do país;também... Afinal, a Cidade de Méxicotoda se ergue literalmente em cima doque fora a Grande Tenochtitlán e seusquase dois milhões de habitantes.

�O México� � disse Veríssimo prestesa encerrar a viagem � �nos tem ensinado,

entre muitas outras coisas, a apreciar abeleza das velhas pedras�. Entretanto, nãoé apenas a história que subjaz soterradapela metade, numa cidade que é modernatambém pela metade, o que produz asensação de uma vivência inabarcável: oenorme Zócalo � praça central � flanque-ado pela majestosa catedral, pelo paláciode governo, pela prefeitura e pelas ruínasastecas do Templo Mayor; ou a arqui-tetura moderna, ora funcionalista, orareconhecivelmente mexicana, entretecidanos extensos conjuntos arquitetônicoscoloniais � sem esquecer de outros con-trastes nada prazerosos como as desigual-dades socioeconômicas. Todas as cidadestêm contrastes, deles se nutrem paradefinir sua personalidade. Para Veríssimo,contudo, trata-se de uma estranha intensi-dade que paira na vida da cidade: umaintensidade trágica.

�Por que terá esta cidade uma tãogrande personalidade? Que é o que atorna tão diferente de todas as outras? Deonde virá a aura de drama que a envolve?Creio que são vários os fatores, muitas astintas que, combinadas, produzem �apesar de todo o sol � esse tom escuro,ominoso que nos dá a sensação de quealgo de trágico está sempre por acontecer� um assassínio, um terremoto, umarevolução...� Essa sensação forte eindigerível, todavia, encantou Veríssimoe continua a encantar e, às vezes, apenas aespantar aqueles olhares que se defrontamcom a dignidade trágica da cidade doMéxico, na qual nada parece ocupar umsítio fortuito ou acontecer ao acaso � nemsequer a morte, diria Veríssimo, pois�tem-se a impressão de que no Méxiconinguém morre de morte natural�.

Adrián Gurza LavalleAdrián Gurza LavalleAdrián Gurza LavalleAdrián Gurza LavalleAdrián Gurza Lavalledoutorando em ciência política pela USP, mestre em

sociologia pela Universidad Nacional Autónoma de México eprofessor dessa universidade (1991-1995) e da Universidad

Iberoamericana (1992-1996)

Ao lado, obras pertencentesao acervo do Museu Na-cional de Antropologia daCidade do México. Daesquerda para a direita:porta-incenso maia, urnavotiva da civilização zapo-teca, Pedra do Sol (calen-dário asteca que pesa 24toneladas e tem 4 metrosde diâmetro) e urnazapoteca de Monte Albán

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março/99 - CULT 31

Vimos há alguns anos formandoum acervo com exemplares deobras editadas por Monteiro Lo-bato, quando teve ele sua própriaGráfica/Editora (1918-1925). Issonos ensejou, em 1996, a realizaçãode pequeno trabalho intituladoMonteiro Lobato editor, em queexibimos algo da produção desseque, sem dúvida, foi um divisor de águas na atividadeeditorial brasileira. Apontamos características para asquais nem sempre se dá atenção, além de inventariar oque foi possível com o material de que dispúnhamos.Servida pela cortesia de José Luís Garaldi, pudemosexibir o que terá sido quem sabe uma “censura de capa”,que só o acaso facultou descobrir-se. Foi o caso queGaraldi achou um exemplar da obra A Caminho daFelicidade de Selda Potocka, cuja capa apresentava areprodução de uma figura sobreposta à capa pro-priamente dita. Acontece que essa reprodução estavaparcialmente rasgada, permitindo que se percebesse aexistência de outra figura em baixo. Removida a aplicação,viu-se que a capa primitiva fora mascarada. Por qualquerrazão, o desenho original de J. Prado não terá agradadoao editor (ou mais provavelmente à autora, pelo teor desua dedicatória), que solicitou outra ilustração, dessa vezmais pudica. Aqui fica o registro da curiosa ocorrência.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

FABULÁRIO○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Claudio Daniel

33março/99 - CULT

CONTO

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CULT - março/9934

A revista CULT publica mensalmente a seção CRIAÇÃO – um espaço destinado a poemas, contos e textos literáriosinéditos. Os originais – contendo no máximo 150 linhas de 70 caracteres – serão avaliados e selecionadospela equipe da revista CULT. Os trabalhos e os dados biográficos do autor (incluindo endereço e telefonepara contato) podem ser enviados via e-mail ou pelo correio (nesse caso, os originais impressos devemobrigatoriamente ser acompanhados pelo texto em disquete, gravado no formato Word). O endereço da revistaCULT é Rua Rui Barbosa, 70, São Paulo, SP, CEP 01326-010, e-mai l : lemospl@netpoint .com.br

O LUNÁTICOO lunático é a maior atração do circo.Ele é um texugo de pele branca, semolhos, o rosto liso, com meio metro dealtura. Veste um longo hábito azul comum rosário de conchas na cintura. OLunático está sempre sentado em umbanco cilíndrico, o rosto recurvadoentre as mãos, imóvel, silencioso.Quando ele se vira para a platéia, apóslevar uma chibatada do Domador, umalágrima escorre em seu rosto. Esta visãochoca os espíritos mais sensíveis e causaem todos uma estranha comoção � nãopela dor do homenzinho, mas pelo atoinsólito de se derramar lágrimas. Apóso espetáculo, muitos tentam chorar,mas ninguém consegue imitá-lo.

O VELHO REISUICIDAVA-SE TODASAS MANHÃSA escada infinita era helicoidal. Seusdegraus de pedra conduziam a múlti-plas galerias e câmaras que abrigavamum louco (que já fora rei) nu e obesoe suas trezentas esposas. Havia na resi-dência pátios e sacadas e um númeroincalculável de pequenas janelas octo-gonais. Falava-se também de umjardim (ou de vários jardins) cujasárvores davam maçãs de ouro, aboca-nhadas por estranhas girafas cegas, ede um lago subterrâneo cujos peixessalmodiavam versos de um livro sa-grado. Num saguão tortuoso, o velhorei suicidava-se todas as manhãs, pararenascer, com apetite voraz, na horado suntuoso banquete, em que deviapermanecer em jejum para cumprirsua triste penitência (ele ofendera umdeus de pele azul e pés de lótus). Àsvezes, o rei (ou talvez suas esposas)recebia visitas inesperadas; sua hospi-talidade convidava os visitantes a per-noitar no calabouço, de onde nãoregressavam. Certo dia, porém, umjovem estrangeiro ali aprisionadolocalizou-me � e eu o auxiliei na fuga.O varão enterrou sua arma (que erade prata) na garganta do anfitrião elogrou matá-lo. O jovem escapou semdizer-me adeus, e fui seu cúmplice noassassinato. Eu, o velho alçapão, souo único que conhece a história, paraminha eterna vergonha.

O ANACRÔNICOEm minhas viagens ao Japão, vi osgalhos retorcidos de cerejeiras emKyoto e também as espadas dossamurais, máscaras de teatro nô ekabuki e antigos instrumentos detortura. Conheci os dragões de pedrade um templo em Bancog e as colunasde uma catedral gótica em Londres.Li incontáveis livros e sei de cor osPensamentos de Pascal, o tratado deClausewitz, o Canto X da Odisséia edois ou três versos de Safo. Hoje soubede minha doença. Ela deve ter semanifestado há uma semana, doismeses ou quinze anos. Infelizmente,os fatos vêm à minha memória muitotempo depois que aconteceram. Tal-vez eu já esteja morto.

A ARTE DA POESIAOs poetas em Lizzey são todos cegos.Caminham apoiados em bengalas emforma de serpente e sao guiados porcães que lhes mordem as pernas edepois lambem as feridas. Ninguémpode tocá-los, nem mesmo ficar à suasombra ou dirigir-lhes a palavra semsujar-se. Eles se arrastam pelas ruasdeclamando seus romances, cuspindoas sílabas entre caretas de suas bocastortas. Quando um poeta conseguecausar êxtase à multidão, às vezes pelapronúncia de uma única palavra, todosse calam e ficam como sonâmbulos.Depois, como recompensa, os habi-tantes de Lizzey juntam paus e pedrase apedrejam o rapsodo. O seu corpo,então, é disputado com avidez pelasferas, que nada sabem de poesia.

O ECO DE DEZ MILSINOS DE BRONZEAlonso ouvia o lento labor da aranhaque tece sua teia, a circulação do sangueno corpo, o tinir de moedas no bolsode alguém, os passos de gigante dasformigas no jardim e a queda de umagota de orvalho. O ladrido de um cãoressoava em seus ouvidos como o ecode dez mil sinos de bronze. Isto vemacontecendo há duas semanas; desdeentão, ele não pronuncia uma sópalavra, não se alimenta e permaneceestático na poltrona da sala, ouvindo oruidoso trabalho de seus pulmões, àespera do momento glorioso em queestará surdo ou morto. O relógio oacompanha na vigília.

Claudio DanielClaudio DanielClaudio DanielClaudio DanielClaudio Danielnasceu em São Paulo, em 1962; poeta, autor do livro

Sutra (poemas, 1992), é formado em filosofia e jornalismo

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a c u l t u r a n a r ú s s i a c o n t e m p o r â n e a

Page 35: Cult 20, Umberto Eco, Mar de 1999

CULT - março/9936

O colapso da antiga União Soviética e as crises sucessivas da Rússiaatual salientaram os traumas sociais e culturais da terra deDostoiévski, mas permitem perceber, através de suas fraturas, asutopias e o poder renovador do povo russo. Neste “Dossiê”, a CULTtraz o depoimento de intelectuais como o historiador AaronGurévitch e o lingüista Meletínski, que representam as tendênciasdas ciências humanas na Rússia contemporânea, além de ensaiode Boris Schnaiderman – nosso maior intérprete da cultura russa –sobre sua viagem a esse país cujos dilaceramentos têm umasurpreendente semelhança com os dramas do Brasil contemporâneo.

notas de verão sobreimpressões de inverno

Boris Schnaiderman

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março/99 - CULT 37

forte nos seus oitenta anos; ela, rechonchuda,sorridente, amabilíssima.

Tomamos um táxi e vamos jantar em casadeles. Um apartamento acanhado, apenasdois cômodos, cada um com um sofá, mas háuma parede forrada de livros em várias lín-guas. Aquela pobreza extrema impressionaainda mais quando lembramos que o donoda casa é um dos grandes nomes das ciênciashumanas e que seus livros circulam emmuitos países. Mas se o ambiente é pobre, amesa é farta, dá vontade de perguntar comoos russos conseguem, no meio daquelapenúria, receber os hóspedes com tantaprodigalidade.

Por volta de meia-noite, eles chamam umtáxi que vai nos levar ao hotel da Univer-sidade. Um Lada velho mas valente nosconduz em meio a uma tempestade de neve,resfolegando e dando a impressão de quenão vai conseguir sair do turbilhão. Atempestade amaina, porém, e nos deslumbra-mos com a visão de Moscou, que aindaguarda a majestade de uma capital de império.Tudo tem proporções enormes. A cidade estábem iluminada e os edifícios que aparecemestão todos recém-pintados. Celebraram-serecentemente os 850 anos da fundação deMoscou e isso explica a paisagem garrida.Em toda parte se vê a imagem de São Jorgematando o dragão, símbolo da cidade, masque depois nós vamos encontrar comfreqüência também em Petersburgo.

A suíte no hotel, ou melhor, as duas suítesconjugadas parecem quase um acinte depoisdo despojamento da habitação de nossosamigos.

No dia seguinte, saímos para a rua. Édifícil andar, pois a temperatura subiu umpouco, o gelo da véspera se converteu em

algo lamacento e pastoso e temos de fazeresforços para não cair.

As calçadas e passeios encontram-se empéssimo estado. As pessoas estão quase todasmuito simplesmente vestidas, mas de vez emquando aparecem rapazes e moças com osatavios normais no Ocidente, alguns atémuito bem trajados.

Os prédios de apartamentos têm quasetodos aquele aspecto que já conhecíamos anosatrás: mal conservados, lembrando envelhe-cimento precoce. Mas, num ou noutro quar-teirão, há prédios construídos recentementee já com acabamento melhor. Depois, iríamosver, nos arredores, umas construções enor-mes, também recentes, de aspecto solene, complacas em letras garrafais: APARTA-MENTOS DE ELITE. Evidentemente,as batatas do vencedor estão em toda a parte.

Na rua se encontram muitos sem-teto,mas, depois do Brasil, isso não nos espanta.Em alguns aspectos, porém, essa miséria sediferencia da nossa. Estávamos no metrôquando entrou uma mulher ainda nova comum bebê no colo e começou a pedir esmolaem altos brados, como alguém que exige oque é seu direito, e atacando o governo quenão tomava providências para acabar com amiséria.

Depois da viagem de metrô, entramosnuma lanchonete, pouco depois aparecem aliduas adolescentes e também exigem aos gritosque lhes dêem auxílio. Enfim, algo completa-mente inconcebível no Brasil. Será porqueali tudo é mais recente, e não houve aindaaquela �cristalização�, depois da qual cadaum sabe o lugar que lhe cabe e não ultrapassaos limites consagrados? Ou será que, apesarde toda a violência e opressão dos anos deregime soviético, o povo adquiriu certa noção

À direita, Boris Schnaiderman emnovembro de 1997, diante do

cinema e sala de concertos Puchkin,em Moscou (o cartaz anuncia,em alfabetos latino e cirílico, a

première russa de Batman e Robin).Na página oposta, as escadarias

de Potemkin, que fazem parteda mitologia soviética e foram

celebradas por Sergéi Eisensteinno filme O encouraçado

Potemkin, de 1925.

Já faz tantos meses que vocês,meus amigos, me pedem que lhes

descreva o quanto antes as minhas impressõesdo estrangeiro...

Fiódor DostoiévskiNotas de inverno sobre impressões de verão

1 O avião da British está descendo nadireção de Moscou*. Avistam-se pela jane-linha imensas planícies geladas, dá um arre-pio só de olhar. Este país me fascina e meassusta. Lembro-me de uma tarde em Odes-sa (eu tinha uns seis anos) quando volteipara casa aos prantos, os pés enregelados.

Os russos em volta pouco se importamcom aquela extensão gélida. Homens dequarenta a cinqüenta anos e mulheres degrandes cabeleiras loiras parecem ter voltadoà infância. Dão risadinhas e soltam exclama-ções, mostrando um ao outro a aparelhagemeletrônica que estão levando. Certamente, elestêm muito em comum com os rapazes que seaproximavam de mim em 87, perguntavam-me num inglês miserável se eu queria venderpeças de roupa e saíam correndo depois queeu lhes respondia em russo. Dá vontade dedizer: �Ao vencedor as batatas�.

No aeroporto, formam-se filas intermi-náveis para controle de passaportes. Um ho-mem magro esgueira-se para perto de nós,lança um olhar cobiçoso para o meu relógiode pulso e diz em voz baixa que ele podefacilitar tudo.

Encaminhamo-nos para o casal que veionos receber. Ele, atarracado, sisudo, bem

* A viagem a que este texto se refere contou com uma ajuda daFundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp),que o autor agradece.

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CULT - março/9938

de cidadania? (�Cidadão� era o tratamentocorrente entre desconhecidos, na rua).

Jerusa (Pires Ferreira) ficou muito im-pressionada porque, no hotel, a encarregadado andar, que estava bem vestida e penteada,conversava de igual para igual com as faxi-neiras. E essas também não nos tratavam comaquele servilismo típico dos hotéis noOcidente. Para dizer a verdade, eu não meimpressionei tanto com esse fato, pois estavaacostumado com isso em minhas viagensanteriores.

Junto ao gradil de uma igreja, velhos evelhas ficam vendendo seus pertences. Alihá pentes usados, bonecas em farrapos,velhos urinóis, toalhinhas bordadas. Quemiséria extrema, haver compradores paratudo aquilo! Não, certamente, isso impres-siona mesmo quem está bem acostumadocom a miséria brasileira.

Depois da recepção na noite de nossachegada, aceitamos convites de outrosprofessores da Universidade e pudemos veroutros apartamentos. O que assusta é odesnível entre uns e outros. Quase todoseram pobres, mas estivemos num bemconfortável e até luxuoso para os padrõesrussos. O professor que nos recebeu não fezsegredo sobre o fato de que era filho de umfigurão do partido e, por isso, dispunhadaquelas regalias. Monarquista convicto, eleme fez perguntas sobre o herdeiro do tronobrasileiro (�o rei do Brasil�, dizia ele).

Em toda parte, uma irrupção violenta dosaspectos de uma cidade capitalista ocidental.

Junto a um edifício de colunas brancas,um grande cartaz anunciando filme doBatman. E outros cartazes com propagandade danças eróticas e sessões de strip-tease.

Em Petersburgo, ficamos num hotelenorme que dá para uma das pontes prin-cipais da cidade. Em outros tempos, haviaali grandes bandeiras vermelhas com osdizeres: �Glória ao trabalho!� Pois bem, aoacordar, olhamos para a ponte e vimos out-doors vermelhos enfileirados. Foi precisofixar bem a vista para ver que, em lugar davelha inscrição, estava ali propaganda decoca-cola.

Tanto em Moscou como em Petersburgovêem-se butiques muito chiques com asúltimas marcas de produtos ocidentais. E hajaimportação! Quase todos os objetos de usocotidiano vêm do exterior, desde a pasta dedentes até a tesourinha de unhas, e toma-seágua mineral da França e da Itália, emboraexistam águas russas excelentes.

Em toda parte, lanchonetes anunciando�fastfud� em alfabeto cirílico, mas às vezesos nomes ingleses não são transliterados. Orusso de hoje não diz que vai ao escritório,ele vai ao �office�, e até o chá ele desaprendeude tomar de samovar. Em vez disso, colocaum saquinho em sua xícara, e até a vodcamuitas vezes vem da Finlândia.

O tráfego de carros é intenso e não parecemuito disciplinado. Os �novos russos�(como os chamam), os beneficiários dasbatatas ao vencedor, têm meios de ditar assuas normas. E o descalabro geral, o mauestado dos veículos, o relaxamento reinantecontribuem para agravar esse quadro.

Outro motivo de espanto é a música maiscorrente no país. Já chegou ao conhecimentoquase geral que a música russa �de concerto�é uma das grandes realizações artísticas denosso tempo. Igualmente, o jazz e o rocktêm entre os russos grandes cultores. No

entanto, não se ouve isso no rádio na pro-gramação mais corrente, nem é a música to-cada em lanchonetes, táxis etc. Parece que amúsica russa nunca existiu, pois o que noschega ao ouvido é certo som pasteurizado dedanceteria. E tanto em Moscou como emPetersburgo não é difícil encontrar um jovemao volante de um carro parado, com o toca-fita a todo vapor repetindo a zoeira de sempre.

Outras surpresas desagradáveis nosreserva a imprensa periódica atual. Se antesera aquela repetição monótona de chavões enotícias rigorosamente filtradas, agora sesente uma grande massificação, um nivela-mento por baixo, depois dos grandes mo-mentos da imprensa russa com a glasnost,quando se procurou dar um mergulho narealidade do país, com todas as suas misériase contra-sensos.

Assim, a revista Ogoniók , que foi ogrande porta-voz da intelectualidadepartidária da pierestróika, transformou-seagora numa revistinha de fatos do dia efofocas, do tipo de tantas que existem noOcidente. É verdade que as revistas decultura, de nível muito bom, continuamsaindo, mas com tiragem limitada. Por isso,dá arrepios lembrar que a Ogoniók, nos seusbons momentos, chegou em 1987 a umatiragem de 3.082.811. Mas terá sido tudoem vão? Afinal, não sumiram do mapaaqueles milhões de leitores das publicaçõesculturais, como também não deixaram defazer parte da população aqueles milhõesque adquiriam as obras dos clássicos. Aliás,essa minha suposição é reforçada pelo fatode que, ao surgir em 1996 a ameaça defechamento das principais bibliotecas públi-cas russas, por falta de verba, houve comícios

O Teatro Bolshói,em Moscou

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nhada por um fato da história recente deMoscou � a reinauguração do templo doCristo Redentor, o maior da cidade.

Construído em meados do século passa-do, era um edifício que aliava o estilo dasigrejas medievais russas com o desejo depompa e grandiosidade dos czares do séculoXIX, o que dava ao conjunto algo de pesadoe opressivo, ao contrário das outras igrejasrussas. De longe, as cúpulas do templo nãodestoavam das igrejas do Kremlin, mas deperto a diferença era flagrante.

Todavia, certamente não foi esse o motivoque levou os responsáveis pelo traçado dametrópole (o Plano Geral para a Reconstru-ção da Cidade de Moscou, de 1935, tinha aassinatura do próprio Stálin) a decidirem peladerrubada do edifício. Numa época em queo governo stalinista fazia questão de ex-pressar uma atitude anti-religiosa (anos de-pois, ela mudaria completamente, emboracontinuasse a educação atéia dos jovens), con-siderou-se aquele local o mais apropriado paraa construção do Palácio dos Sovietes.

Em 1931, anunciou-se a abertura doconcurso para o projeto. Inscreveram-se nelearquitetos de muitos países, dentre os quaisnomes em grande evidência, inclusive LeCorbusier e Walter Gropius. �Em 1934 foiaprovado o projeto de três arquitetos sovié-ticos, que era bastante pomposo, um verda-deiro monstrengo aos nossos olhos de hoje,mas adequado ao sistema stalinista�, comoescrevi em meu livro Os escombros e o mito � Acultura e o fim da União Soviética (São Paulo,Companhia das Letras, 1997). O edifíciodeveria ser o mais alto do mundo, 315 metrosde altura, e seria encimado por um monumentoa Lênin com mais de 100 metros.

Campanário de Ivan III,no interior do Kremlin,

em Moscou

Jovens soviéticos participam depilhagem do convento Símonov,que seria destruído em 1930

de protesto que obrigaram as autoridades adesistir daquele retrocesso absurdo.

Outro motivo para desconfiar dasconclusões pessimistas sobre o futuro cul-tural: a freqüência dos jovens aos teatros.Depois de um período em que a crise econô-mica esvaziara completamente as salas deespetáculo, o público está voltando ao teatro,aliás num momento de boas realizações. E oque espanta é a grande proporção de jovens.Rapazinhos e moças de quatorze a dezesseisanos assistindo, a respiração presa, a umamontagem de Tio Vânia, de Tchékhov, ou auma adaptação arrojada, bem moderna, danovela Coração de cachorro, de MikhailBulgákov. Daria para ouvir o vôo de uminseto, tal a concentração e seriedade com queeles assistiam à representação. E diga-sedepois disso que tudo está perdido!

2 Quem chega hoje à Rússia tem a impres-são nítida de que houve no país umarestauração monárquica. Nos quiosques dejornais e revistas vendem-se grandes retratosde Nicolau II e da família imperial. Em todaparte se vê o brasão da Rússia atual: a águiabifronte, isto é, o mesmo da dinastia dosRomanov. Nas bancas de livros mais popu-lares (vender livros na rua chega a ser umatradição), o tema predileto é a velha Rússiados czares.

E também em toda parte as marcas deuma religiosidade profunda. As igrejas deMoscou foram quase todas restauradas, ascúpulas douradas e azuis fulgindo ao sol.

A importância que os russos grego-ortodoxos, que são a grande maioria, dão àssuas tradições religiosas pode ser testemu-

Todavia, não se levou a efeito a construção.Segundo algumas fontes, constatou-se que osolo era encharcado demais para uma edificaçãodesse porte. E, em lugar do palácio, construiu-se ali uma grande piscina aquecida.

Por conseguinte, havia razões de sobrapara o atual governo promover uma repara-ção daquele ato de vandalismo. Depois demuitas discussões pela imprensa, aprovou-se a reconstrução do edifício, tal qual. E emvez de colocar ali um marco que lembrasse àpopulação e aos turistas o ocorrido, com odevido respeito pelo templo derrubado, essefoi reconstruído fielmente, com todas asdespesas que isso acarretou, ostentando hojeo seu contorno pesado, em contraste com aleveza e graça das catedrais do Kremlin, quelhe ficam próximas. Isso num país em quehá toda uma população na miséria e onde osjornais noticiam mortes e mais mortes decrianças por infecção hospitalar (às vezes,abrindo-se um jornal, tem-se a impressãonítida de estar no Brasil).

Outros templos foram também recons-truídos. Assim, numa das entradas doKremlin ficava a capela de Nossa Senhora deÍver, que foi derrubada, ao que parece,porque impedia uma eventual passagem detanques. Reconstruída, ela ostenta o encantodas antigas capelinhas russas. Quando avisitei, estava ali um pintor procurandorefazer os afrescos primitivos. Que resultariade tudo aquilo? Seria possível alguém pintaros mesmos ícones antigos?

Incréu e materialista de convicção, assis-to a tudo isso com grande perplexidade. En-caro com respeito a crença alheia, mas às ve-zes me assusto com o fanatismo que se ma-nifesta.

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3 Quando estávamos em Moscou, haviamuita discussão em torno de um artigo, quenão cheguei a ler, do conhecido escritorDaniil Grânin, sobre �o fim da intieliguêntziarussa�. Depois, tive oportunidade de leroutros no mesmo sentido.

Realmente, lutando para sobreviver,submetendo-se muitas vezes a um trabalhoextenuante em outros setores, o intelectualrusso tem muitos motivos para entrar emdesespero.

Assim mesmo, uma visão apocalíptica,como a de Grânin, não me convence.

Vi professores da Universidade de Ciên-cias Humanas de Moscou interessadíssimosna apresentação de um trabalho de Jerusasobre a relação entre o oral e o escrito nacultura popular brasileira e, depois, deba-tendo, confrontando a experiência brasileiracom o que se fez na Rússia. E com o mesmointeresse acompanharam a minha exposiçãosobre as gravuras e desenhos de nossoOswaldo Goeldi para as obras de Dos-toiévski. O velho hábito russo de discutiridéias encontrava ali um campo fértil. E, alémdos professores de carreira feita, muitosjovens em vias de obter os seus primeirostítulos universitários.

Já se tratou muito, também, do fim dolivro cultural na Rússia. Chegou-se a afirmarque o mercado fora totalmente tomado pelosbest sellers, os livros do esoterismo mais vulgare a pornografia barata. Realmente, o iníciodos anos 90 dava essa impressão. Mas quemvai hoje a uma grande livraria na Rússia vê,ao lado de toda uma parafernália de lixocultural originário do Ocidente, um elencode títulos de obras russas e traduzidas quedá até inveja. Elas estão longe das tiragens

astronômicas do período soviético, mas, comtodas as dificuldades, o livro cultural tem oseu lugar importante.

Quantitativamente, nas livrarias, os li-vros de temas sociais e políticos sobrepujamos puramente literários. Se uma LiudmilaPietruchévskaia e uma Liudmila Ulítzkaia,por exemplo, atraem o interesse dos leitoresde ficção, se um poeta como Guenádi Aigui,que passou mais de trinta anos sem publicarnada em seu país, encontra finalmente o seupúblico (naturalmente pouco numeroso, poissua poesia é avessa a qualquer concessão aogosto médio) e se nas prateleiras aparecemedições de escritores do passado antes mal-ditos (assinalem-se nesse sentido as impor-tantes publicações da Sociedade VielímirKhlébnikov, de Moscou, que se dedica apublicar a obra do grande poeta e o que serelaciona com ela), o interesse da maioria dosleitores se dirige para outros campos.

Tratemos disso um pouco mais empormenor, na base das minhas últimas lei-turas.

Além das traduções de Freud, Jung eoutros autores da psicanálise, aparecemestudos russos neles baseados.

A teorização de Jung parece ir aoencontro das preocupações de muitosintelectuais russos com a religião e com o�componente humano do político�, comoescreveu A.P.Lógunov, no prefácio dacoletânea A mitologia política contemporânea �Conteúdo e mecanismos de seu funcionamento(Moscou, Universidade Estatal Russa deCiências Humanas, 1996). Trata-se de umconjunto de trabalhos orientados no sentidode frisar a importância do estudo dos mitospolíticos, que, segundo os autores, forammenosprezados na Rússia, no período

soviético, devido à ênfase exclusiva no social.Os vários estudos incluídos no volumedetêm-se particularmente na abordagemjunguiana desse tema. Assim, um dos tra-balhos, de autoria de N. N. Firsov, com re-ferência às condições atuais na Rússia, chama-se: �Os partidos políticos contemporâneos eos arquétipos do inconsciente coletivo�. Mashá também, no livro, quem aponte para oselementos mitológicos na valorização domercado. É o caso do estudo de M. V. Iev-guênieva, �Fundamentos psico-sociais naconstituição da mitologia política�. Nessecontexto, adquire especial relevo a afirmaçãodo pensador russo A. E. Golossóvker, em1987 (citado no trabalho de A. N. Mossiéiko,�O inconsciente coletivo e a mitologia dasrelações étnicas contemporâneas�), sobre asconseqüências danosas de quando um povoperde seus contos e mitos.

Na realidade, todos esses trabalhos ex-põem uma concepção oposta à de EleazarMieletínski, da mesma universidade quepublicou o livro de estudos, pois ele faz, emOs arquétipos literários [leia texto na página45], uma crítica de nível às concepções deFreud e Jung, bem como às de Campbell,Neumann, Bachelard, Northrop Frye eDurand, na base de sua própria abordagemdos mitos e da literatura, que se fundamentano social e tem muito em comum com a visãodo psicólogo Lev Vigótski, sobre a relaçãoentre o social e o psicológico.

O pequeno livro de A. Káchina-Ievréi-nova, O subterrâneo de um gênio � Fundamentossexuais da obra de Dostoiévski (Leningrado,Atus, 1991), surge na esteira da quebra dostabus sexuais na sociedade russa atual.Reimpressão de um livro de 1923, constituiaplicação muito imediatista das concepções

Projeto do Paláciodos Sovietes

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freudianas, uma abordagem das persona-gens de Dostoiévski em termos de manifes-tação de neuroses. Para um leitor ocidentalde hoje, ele parece muito linear e sem maioralcance, apesar de bem escrito. Sua reedição,com tiragem de 50.000, mostra a sofreguidãocom que, na Rússia, se procurou recuperartudo o que fora até então sonegado.

No entanto, esta freqüência com que sediscutem os temas sexuais, antes tabus, nãose limita à divulgação apressada de textosapresentados de modo sensacionalista, nemse reduz à mera pornografia.

Um dos livros que chamaram a atençãopara esse tema foi Decameron feminino, de IúliaVozniessiênskaia, publicado em 1992 (Mos-cou, Vernissage), com tiragem de 150.000,reedição de um volume que saiu em Israelcinco anos antes. Trata-se de uma coletâneade contos com um toque de bom humor,sobre dez mulheres russas que permanecemnuma quarentena de dez dias, por determi-nação das autoridades sanitárias, e se dedicama �contar uma à outra diferentes históriassobre a vida, os homens, o amor, o ciúme e astraições e sobre muitas, muitas outras coisasque perturbam qualquer mulher normal,inclusive as soviéticas�.

Uma atuação importante, nesse sentido,vem sendo desenvolvida por alguns historia-dores. É o caso, por exemplo, do trabalho deA. I. Kupriianov, �A �paixão fatal� de umcomerciante moscovita�.

A tese central do estudo consiste emafirmar que a crise de um sistema social nãose reduz à contradição entre as forçasprodutivas e as relações de produção, comose lia nos historiadores marxistas, mas afetaa população inclusive em sua vida íntima. Ora,na Rússia de meados do século XIX, estavam

em desenvolvimento a grande crise dosistema servil e um incipiente surto capitalistaque se acentuaria no final do século.

Em defesa de sua tese, o autor lança mãode um material que certamente seria proibidoaté há poucos anos: o diário de um comer-ciante de Moscou, conservado em arquivo,e onde aparecem, com riqueza de porme-nores e uma linguagem saborosa, um tantoarcaica mesmo na época, os seus problemasconjugais advindos de um casamento porinteresse, o adultério de parte a parte, as bri-gas com a família do sogro, a religiosidade e,finalmente, o homossexualismo (o autor doestudo afirma que a Igreja russa era bemmais tolerante em relação a este que ao adul-tério).

Esse trabalho de A.I. Kupriianov saiuem Casus 1996 � O individual e único na história(Moscou, editora da Universidade EstatalRussa de Ciências Humanas, 1997). Nacontracapa dessa publicação lê-se: �O atoinesperado, a volta inesperada do destino, aconjunção estranha de circunstâncias, o casosurpreendente � eis os casi do passado deque trata este almanaque�. Desenvolvendomais essa afirmação, um dos organizadores,I. L. Biesmiértni, expõe uma série de argu-mentos no estudo introdutório �Que casus éeste?�, bem como no encerramento de umdebate realizado em Moscou sobre o mesmotema.

Afirmando de início que o termo latinofoi tomado na acepção de caso, ocorrência,acontecimento, ele destaca que a preocupaçãodos autores foi desvincularem-se da preocu-pação com leis gerais, com módulos demundo e fixarem-se no estudo do que eraconsiderado episódico e, por isso, despre-zado. No entanto, ele sublinha a diferença

entre essa abordagem e o anedótico e factualcorrente na historiografia do séxulo XIX,pois os autores dos trabalhos baseiam-senuma grande preocupação em desvendar osmóveis das ações humanas através do tempo.

De modo geral, no almanaque se procla-ma a proximidade com as pesquisas desen-volvidas na Itália a partir dos fins da décadade 70 e que se englobam na noção de �micro-história�. Aliás, confirmando essa preocupaçãocom as fontes italianas, inclui-se a traduçãorussa de �Ainda sobre a micro-história� de E.Grandi (Quaderni storici, 1994, nº 86).

Um exemplo interessante nesse sentidonos é dado pelo livro de I. N. Ksienofontov,Geórgui Gapon: Fantasias e verdade (Moscou,editora da Enciclopédia Política Russa, 1996),que estuda uma figura misteriosa do movi-mento revolucionário russo, o padre orga-nizador de uma grande manifestação deoperários em greve em São Petersburgo, quesaíram à rua em 1905, acompanhados de suasfamílias, carregando estandartes religiosos eentoando cânticos, para levar ao czar umapetição, e foram massacrados pela tropa nofamoso Domingo Sangrento, em 9 de janeiro.Quem foi Gapon? Um agente provocador?Um homem identificado com o povo eansioso de encontrar uma solução que nãofosse contra a veneração do czar e dastradições religiosas? Pesquisando numerososdocumentos antes inacessíveis, o autorprocura responder a essas indagações semchegar a uma resposta definitiva, mas trans-mitindo ao leitor os resultados de sua pes-quisa.

No setor de história da cultura têm saídoobras muito importantes, devendo-se destacaraí os livros póstumos de Iúri Lotman, o grandeteórico da semiótica, falecido em 1993, mas

A catedral de SãoBasílio, em Moscou

A loja de departamentosUniversal, em Moscou, um dossímbolos da Rússia capitalista

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que também trouxe contribuição importantecomo historiador e estudioso das manifes-tações culturais. Uma obra como Palestra sobrecultura russa (São Petersburgo, Arte, 1997),apesar de seu título modesto (em contrastecom o volume imponente, muito bemilustrado), transmite as concepções básicasdo autor sobre cultura e traça um vastopanorama da vida da nobreza russa em finsdo século XVIII e início do século XIX.

Outros desdobramentos da assim cha-mada escola de Tártu e Moscou, tão impor-tante para os estudos da linguagem e dacultura, atualmente extinta, também setraduzem em muitos trabalhos que se encon-tram nas livrarias.

Os dicionários de filosofia publicadosrecentemente permitem acompanhar umpouco as mudancas na opinião dominantenas instituições culturais russas.

O Dicionário filosófico organizado por I.T. Frólova (Moscou, Editora de LiteraturaPolítica, 1991, 6ª edição, refundida e am-pliada) teve sua sexta edição, refundida e am-pliada, em plena pierestróika. Nele aparecemtemas marxistas, inclusive um artigo sobre a�Natureza partidária da filosofia�, e, apesarde uma abordagem menos sectária que a deoutras obras no gênero, anteriores, há umavisão negativa dos oponentes do marxismo.

Já a Enciclopédia filosófica sucinta, de 1994(Moscou, Grupo Editorial Progresso),apresenta uma diferença radical em relaçãoàs obras no gênero publicadas anterior-mente na Rússia. Não só os diversos au-tores que assinam artigos e verbetes nãoseguem orientação marxista, mas surge atéuma preocupação de atacá-la. Não há umartigo sobre Marx, nem sobre o marxismo,mas aparece um sobre materialismo histó-rico � uma abordagem bastante negativa,

sendo a autoria da concepção atribuída aSaint-Simon.

No artigo �Dialética�, lê-se uma expo-sição sobre a evolução do conceito, comreferência ao uso indevido do termo pelosadeptos da �utopia marxista�. Não apareceartigo ou verbete sobre Mikhail Bakhtin,embora nos últimos anos se tenha frisado naRússia a importância de sua contribuição àfilosofia e à teoria da cultura, a par de seustrabalhos sobre literatura, e não obstante elefigure em dicionários filosóficos ocidentais eo impacto da divulgação de sua obra noOcidente, a partir da década de 70, apareçacom muita ênfase em trabalhos de pensa-dores importantes, como foi o caso de GillesDeleuze e Félix Guattari. Será por causa desua relação (embora complexa) com omarxismo?

Dostoiévski foi abordado num artigopraticamente com a mesma extensão doreservado a Platão. Definido corretamentecomo �escritor-filósofo�, é louvado principal-mente pelo romance Os demônios, apresentadocomo �advertência premonitória contra asconseqüências mostruosas da doutrinasocialista�.

Seria, porém, uma injustiça atribuir essavisão simplista de sua obra à crítica russa emgeral. O redobrado interesse por Dostoi-évski, que parece crescer nos momentos dasgrandes crises morais na Rússia, já deuorigem a várias obras importantes, conformepude constatar mais de perto ao participar,em Petersburgo, em novembro de 97, dasXXII Leituras Internacionais Dostoi-evskianas.

Todavia, nos mais diversos campos, o quepredomina nas publicações que chegam àslivrarias é a tirania do mercado. Assim, o poetaGuenádi Aigui, apesar de sua fama interna-

cional, teve o seu livro Sobre Pasternak(Kherson, Ucrânia, Escolas-Piloto, 1997)publicado numa edição de 100 exemplares,embora se trate de um texto importante parao conhecimento tanto de Pasternak como dopróprio autor do livro (felizmente, ele mefez chegar às mãos um desses exemplares).A edição foi realizada em Kherson, pequenacidade à beira do mar Negro, e esse fato parecebastante comum nas publicações atuais emrusso: muitas delas saem longe dos grandescentros, pois às vezes é mais viável conseguirisso na província, ora na própria Rússia, oraem outras repúblicas da Comunidade deEstados Independentes. Assim, tenho rece-bido publicações de poesia visual, das me-lhores produzidas em russo, enviadas, porintermédio de Haroldo de Campos, da cidadede Iéisk, junto ao mar de Azóv.

Enfim, em meio à miséria e ao descalabroa que a Rússia chegou, a cultura continuaencontrando os seus meios de realização.

4 A cidade de Pedro, São Petersburgo(antes de 1917, este �São� aparecia quaseexclusivamente nos documentos oficiais, masagora a maioria dos habitantes faz questãode usá-lo e até me corrige para que não oesqueça), Petrogrado, Leningrado e, depois,novamente São Petersburgo, a antigametrópole (nem tão antiga assim, data doinício do século XVIII) parece renascer con-tinuamente das cinzas.

Fundada por Pedro, o Grande, em terri-tório conquistado aos suecos, foi construídaem local de grande importância estratégica eponto de irradiação para o mundo, mas com-pletamente inadequado para uma cidade: oterreno pantanoso era sujeito periodicamentea grandes cheias.

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Drenados os pântanos, ergueu-se ali acidade magnífica, onde artistas e artesãos doOcidente europeu encontravam as condiçõespropícias que nem sempre existiam nos paísesde origem. Os espaços imensos das praças,os palácios imponentes, as pontes monumen-tais testemunham até hoje o esplendor daRússia dos czares. Mas, nesse espaçoimperial, acotovelava-se uma população mi-serável, mal vestida e mal alimentada, lado alado com coches luxuosos e toaletes esplên-didas. Não é por acaso, pois, que Puchkin,em O cavaleiro de bronze, nos conta a históriade um pobre funcionário que, por ocasião deuma grande cheia do rio, corre pelas ruas,até a exaustão e a morte, ouvindo atrás de si otropel do cavalo de bronze do monumento aPedro, o Grande.

Este caráter fantasmagórico da cidade é umaconstante na literatura russa. Assim, no finalde Um coração fraco, conto da mocidade deDostoiévski, depois de uma alusão ao �vaporgélido� que se desprendia dos cavalos espan-cados brutalmente pelos cocheiros e das pessoasem correria incessante, lemos: �O ar conden-sado tremia com o mínimo rumor e, qualgigantes, de todos os telhados de ambas asmargens erguiam-se e corriam pelo céu frígidocolunas de fumaça que se trançavam edestrançavam, de modo que, parecia, novosedifícios se erguiam por sobre os velhos, e umanova cidade se formava no ar...�. Isso adquireum acento particular quando comparamos essetrecho com o final de A avenida Niévski deGógol, em que o próprio demônio acende oslampiões da avenida. (Tratei disso, maisextensamente, no artigo �A São Petersburgode Fiódor Dostoiévski�, atualmente no prelopela Revista Ciências e Letras de Porto Alegre.)

Sim, o demônio parece ligado a todo odestino da cidade. Nos anos que se seguiram

à Revolução de 1917, foi uma das cidadesrussas que mais sofreu com a escassez dealimentos. Toda uma população definhavaentão de fome. Foi a época em que o grandeÓssip Mandelstam dirigia-se à �estrelatransparente, fogo-fátuo�, dizendo-lhe �Acidade de Pedro, tua irmã, está morrendo�(Cf. Boris Schnaiderman, Os escombros e omito). Sim, a cidade estava morrendo, masconseguiu sobreviver e atravessar os anostenebrosos do stalinismo.

Foi assediada pelos nazistas na SegundaGuerra Mundial, mas, tal como nos anosapós a Revolução, não se entregou ao inimigo.O bloqueio acarretou fome atroz, quandoocorreram até casos de canibalismo emorreram cerca de 650 mil de seus habitantes.

Tudo isso faz parte da cidade, não há comoesquecer os fantasmas, como não dá paraesquecer os nordestinos que trabalharam atéa exaustão na construção de Brasília e aliencontraram a morte. (Como isto lembra oscamponeses levados, no reinado de Pedro, oGrande, para trabalhar junto ao Nievá, ecujos ossos balizaram a nova capital!)

Vejo agora os transeuntes na rua, em meioà cidade-Fênix, correndo para o ônibus ou ometrô, encolhendo-se dentro dos capotes eerguendo a gola para se proteger do vento.A magnificência dos exteriores parecesublinhar ainda mais a miséria daquelas vidas.A majestade das estações de metrô, com seusmármores e mosaicos, com aqueles vastossalões, como ela me parece opressiva!

O aparelho estatal se encolheu, a moçaque me digita um texto tem evidentementeformação universitária, tudo se apequenounaquelas vidas, em meio ao esplendorimperial da cidade.

Participo do congresso sobre Dostoi-évski, mas, embora ele tenha sabido ex-

pressar com tanta força a alma da cidade ede seus habitantes, dá certa vergonha tratarde literatura em meio a uma catástrofe na-cional.

Mas, assim como a cidade renasce de suascinzas, o russo sempre encontra meios decriar uma realidade cultural que espanta.

E é com esta certeza que me encaminhopara o avião da British, agora de volta a ummundo que tem tanto em comum com ocotidiano russo.

Boris SchnaidermanBoris SchnaidermanBoris SchnaidermanBoris SchnaidermanBoris Schnaidermanprofessor e criador do curso de língua e literatura russa

da USP; tradutor e ensaísta, autor de Dostoiévskiprosa poesia (Perspectiva), Turbilhão e semente –

Ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin (Livraria DuasCidades) e Os escombros e o mito – A cultura e o fim

da União Soviética (Companhia das Letras), dentre outros.

Post ScriptumEssas Notas foram escritas após uma viagemde vinte dias à Rússia, em novembro de 1997.Todos sabem que, depois disso, a crise econô-mica resultou numa verdadeira calamidade,e os jornais têm publicado números sinistrossobre a miséria da população e a escassez domínimo essencial à subsistência. Lembro-mede que algumas pessoas com quem tivemoscontato sentiam realmente a aproximação dealgo terrível. Elas nos diziam que estávamosvendo apenas a “vitrine da Rússia”, pois nointerior do país as condições eram muito maisprecárias. Uma vez em que me perdi emMoscou e fiquei procurando o hotel daUniversidade, o porteiro de um prédio, e quetinha todas as características de um intelectual,me ensinou o caminho, acrescentando: “...realmente, na Rússia estamos todos perdidos”.Com freqüência, diziam-nos que em 90 e 91 asituação era bem trágica, mas que as coisasestavam se acomodando: “Na Rússia, a gentesempre dá um jeito.”Não desejando fazer conjeturas, continuo naexpectativa, não acreditando muito que o “jeiti-nho russo” traga bons resultados a curto prazo,mas confiando em que as grandes qualidadesdo povo russo permitam encontrar, ainda que aduras penas, o caminho da recuperação.

Dezembro de 1998

Ao lado, na foto daesquerda, o campanáriode Ivan III, em Moscou.Na imagem da direita,vista aérea do Kremlin

Na página oposta, na foto maior, vistada Praça Vermelha. Nas fotos dadireita, no alto, os fundos do Kremlinbanhados pelo rio Moskvá; embaixo,vista panorâmica de Moscou.

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Ateliê do escultor Maniziéiev,que criava estátuas de propagandasoviética. Na página oposta,o lingüista Eleazar Meletínski

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A única visita de Eleazar MoisséievitchMeletínski ao Brasil ocorreu em 1995,quando o mitólogo russo veio a São Paulopara uma série de conferências, a convite doNúcleo de Poéticas da Oralidade do progra-ma de Pós-Graduação em Comunicação eSemiótica da PUC-SP. Nessa oportunidade,Meletínski concedeu entrevista a Jerusa PiresFerreira, Boris Schnaiderman e Manuel daCosta Pinto � entrevista que permaneceuinédita até a presente publicação pela CULT,mas que conserva sua atualidade, seja pelapermanência dos temas abordados peloteórico, seja pelos comentários que faz arespeito de seu livro Os arquétipos literários,que acaba de ser lançado pela Ateliê Editorial.

CULT Quais são as fontes de seu trabalhocom a poética dos mitos?Eleazar Moisséievitch Meletínski Todos osmeus livros são consagrados à poética histórica,ou seja, à análise da gênese dos gênerosliterários, sobretudo os gêneros narrativos �análise que está diretamente ligada ao mito,que é o berço da cultura em geral e dos gênerosliterários em particular. A escola da poéticahistórica é uma escola russa. Seu fundador foio acadêmico Alexander Vesselóvski [autor deA poética dos enredos] e o líder dessa escola nosanos 20, 30 e 40 foi meu mestre, V. Jirmúnski.Dito isso, posso dizer que também sou umdiscípulo de Vladímir Propp, que era aomesmo tempo meu amigo e mestre. MasPropp já é uma outra coisa, ele está maispróximo do formalismo russo e sua obrarepresenta a passagem do formalismo russopara o estruturalismo europeu. Como dis-cípulo de Propp, eu reuni em minha atividade

Em entrevista concedida em sua única visita ao Brasil,Meletínski discute a função do mito, as teorias deautores como Propp, Jung e Lévi-Strauss, e o carátermítico-religioso das ideologias que marcaram a culturarussa antes e depois do fim do império soviético

científica elementos da poética histórica e doestruturalismo, da semiótica. Depois, eu meliguei de forma bastante estreita aos semiólogosfranceses e a Claude Lévi-Strauss, que meinfluenciou muito e também é um de meusmestres.CULT Em A poética do mito o sr. faz muitascríticas a Lévi-Strauss...E.M.M. Mas também faço críticas aJirmúnski, a Propp e a Bakhtin. É natural,nesse intercâmbio de idéias. Em meu livrohá uma crítica a eles, mas sobretudo a Vesse-lóvski, pois ele subestimava o mito. Ele falavamuito do sincretismo poético do começo dahistória da literatura, mas em certa medidaele ignorava o mito. No que concerne a Lévi-Strauss, o que me agrada em sua obra é queele compreende muito bem os elementosracionais na mitologia. Ele nos abriu paraprocedimentos específicos � como porexemplo a bricolagem � com os quais o mitoage. Mas, na minha opinião, ele utiliza sualógica pessoal para compreender os materiaisda mitologia indígena. Lévi-Strauss raciona-liza a lógica primitiva, mais do que seriadesejável. Às vezes ele substitui a mitologiareal dos índios por construções de seupróprio cérebro.CULT Como são os mitos do século XX?E.M.M. Não são necessariamente mitosnovos, embora esses existam. Os escritoresdo século XX utilizaram os mitos tradicio-nais com um novo tratamento, que expres-sasse essa nova situação do homem, aban-donado na sociedade burguesa, ao passo quena Antiguidade e nas sociedades primitivasos mitos exprimiam pensamentos e sen-timentos coletivos, sociais. Há aí uma grandediferença. Isso levou a que os mitos se

transformassem em antimitos. Por outro lado,a ideologia do século XX continua sendo, nofundo, mitológica, mesmo a ideologia co-munista, que é anti-religiosa, antimitológica,e ao mesmo tempo repete a estrutura do mito:o tempo da revolução comunista é o tempomitológico, Lênin e Stálin aparecem comoheróis civilizadores, os congressos comu-nistas são festas rituais, o Partido Comunistaé uma igreja e seus adversários são heregesetc.CULT E o que acontece com o fim do comu-nismo?E.M.M. Depois do comunismo, esse ele-mento mitológico é conservado, embora àsavessas. Idealiza-se o tempo czarista comoidade do ouro � uma idéia mitológica.CULT As sociedades capitalistas têm umarelação mitologizante com tecnologia?E.M.M. Sim, embora de outra maneira. Eufalei do comunismo porque ele é contra omito, contra a religião, e mesmo assim essaideologia anti-religiosa é uma religião; a idéiade felicidade da era comunista era uma idéiacristã às avessas. A consciência mitológicamuda suas formas e estruturas. A consciênciade massa ou popular é sobretudo mitológica.CULT Roland Barthes conseguiu dar umaboa idéia dessa nova mitologização, com suaanálise dos fenômenos da cultura de massa...E.M.M. Sim, mas ele analisa uma mitologiaburguesa. O mitólogo burguês esconde ahistória sob a forma da natureza. Ele trata dahistória como natureza para ir de encontroao mito.CULT A situação dos cientistas e pensadoresna antiga União Soviética era dificílima. Noentanto, foram realizados trabalhos formi-dáveis. Como isso foi possível?

harmonia míticacom o cosmos

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CULT - março/9946

E.M.M. O contraste entre as ciências e asidéias revolucionárias, nos anos 20, não eratão grande. Podia-se crer no comunismo etrabalhar no domínio científico, qualquer quefosse ele. Nos anos 40 e 50, com o dogmatismosoviético, isso se tornou quase impossível.Agora, depois da queda do comunismo, asituação é paradoxal. Existe uma reação contrao dogmatismo, mas essa reação se trans-formou em reação contra o racionalismo emgeral � e a ciência nao pode existir sem oracionalismo. Por isso a situação hoje é muitodifícil.CULT O Instituto de Altos Estudos, que osr. criou, reúne autores que trouxeramgrandes contribuições ao ocidente, comoBoris Uspênski e Aaron Gurévitch. Comosurgiu essa instituição?E.M.M. No começo da pierestróika, I. N.Afanássiev, um jovem historiador e ativistapolítico liberal e democrático, trabalhavanuma revista de teorização comunista econvidou um grande número de intelectuaisindependentes (incluindo a mim) para umdiálogo, propondo-lhes escrever uma carta aGorbatchóv, pedindo-lhe que criasse uminstituto independente da burocraciasoviética. Escrevemos essa carta. Gorbatchóva recebeu, mas nada fez. Quando, algunsanos depois, Afanássiev tornou-se diretor danova Universidade de Ciências Humanas,ele me ligou e pediu que organizasse oInstituto. Eu aceitei e convidei os estudiososmais independentes e conhecidos mun-dialmente. Nós escolhemos uma direçãoteórica que abordasse temas como a poéticahistórica, a antropologia e a psicologiahistóricas, a teoria dos arquétipos, orga-nizando conferências e seminários; temos

também uma revista chamada Arbor Mundi,consagrada à história da cultura.CULT Seu livro Os arquétipos literários[recém-lançado no Brasil] pertence a essalinha de reflexão?E.M.M. Sim. A primeira parte do livro éteórica e a segunda é dedicada ao destino dealguns arquétipos literários da literaturaclássica russa. Aprofundando esse tema, euescrevi também um trabalho intituladoDostoiévski à luz da poética histórica, que estudaesses arquétipos na obra do escritor.CULT Podemos dizer que o sr. faz umarevisão crítica da teoria dos arquétipos deJung?E.M.M. Jung é da opinião de que no mitose refletem as relações entre o pensamentocoletivo subconsciente e o pensamentoconsciente individual, havendo um pro-cesso de individuação no qual pouco apouco se harmonizam os pensamentosindividual e coletivo. Sou da opinião deque no mito essa situação ainda não estárefletida, que essa harmonização, essarelação complicada entre consciênciasindividuais e coletivas começa no estadodo romance de amor cortês, do romancemedieval � e não no estágio do mito. Paramim, o mundo que rodeia uma pessoa nãoé somente matéria secundária para formarcertas imagens, e por isso a mitologia nãoé somente uma psicologia. Para umapessoa, é muito importante concretizaressa relação com o mundo que a rodeia, asociedade, o cosmos. O objetivo principaldo mito é harmonizar as relações doindivíduo com a sociedade e o cosmos, enão somente harmonizar sua consciênciaindividual com o subconsciente coletivo.

CULT Propp acredita numa concepção dearquétipo diferente de Jung, ele materializasua concepção, à luz do folclore. Existehoje, no mundo moderno, um folclorevivo?E.M.M. Naturalmente. Há duas formas: ofolclore tradicional, do camponês, ainda vivoem certas sociedades; e há um folclore urba-no, ligado ao mundo contemporâneo, umfolclore da cidade, da juventude, das novasidéias, das novas simbologias, que é estudadopela antropologia urbana.CULT No ensaio �Tipologia estrutural efolclore� (incluído na antologia Semióticarussa), o sr. defende uma teoria que seria asíntese da análise do sintagma, da narrativa(como em Propp), e da análise do paradigma,da semântica (como em Lévi-Strauss). Qualo significado dessa síntese?E.M.M. Atualmente eu me ocupo, entreoutras coisas, de um índex de enredosfolclóricos. Para Propp, a base de um índexdesses seria sintagmática; ele analisa orelato do ponto de vista de sua composição.Eu me interesso mais pelo sentido para-digmático, pelo sentido mais profundo decada enredo como um todo � e nesse sen-tido estou mais próximo de Lévi-Strauss.O mito é algo eterno, reflete a consciênciaprimitiva e, em certos níveis, permanecepara sempre, sobretudo na consciênciapopular, de massa, porque garante a longoprazo a harmonização das relações entreos homens e aquilo que os rodeia. A ciêncianão pode responder a esse problema. Háproblemas eternos, do sentido da vida, dafinalidade da história, do mistério do amor.O mito � e não a ciência � responde a essasquestões.

À esquerda, cartaz de propaganda comunista em que Lênin eStálin aparecem como heróis de proporções míticas. No centro,o antropólogo Claude Lévi-Strauss. À direita, O tribunal do povo(1934), de S.B. Nikritin, em que a representação de um julgamentoremete à cena da última ceia de Cristo e seus apóstolos, ou talvezao tribunal da Inquisição.

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A publicação do livro Os arquétiposliterários, de Eleazar Meletínski, numa bemcuidada tradução do russo por AuroraFornoni Bernardini, Arlete Cavaliere eHomero de Freitas, constitui um passo im-portante para um conhecimento maior, emnosso meio, da obra desse eminente etnólogo,cujo octagésimo aniversário se comemorourecentemente, inclusive com um simpósio emsua homenagem, realizado conjuntamentepelo Instituto de Estudos Avançados da USPe pelo Núcleo de Poéticas da Oralidade daPUC- SP.

Seu nome tornou-se conhecido, no Oci-dente, sobretudo graças ao trabalho �O

estudo tipológico-estrutural do contomaravilhoso�, publicado, inicialmente, nareedição russa de 1969 do clássico livro deV. I. Propp, Morfologia do conto maravilhoso,incluído em quase todas as edições deste,inclusive a brasileira.

Outros trabalhos seus publicados noBrasil: �Tipologia estrutural do folclore�(que integra a antologia Semiótica russa) e ofundamental A poética do mito, cuja traduçãobrasileira teve papel pioneiro na divulgaçãode seus trabalhos entre nós. Seus contatoscom o Brasil se fortaleceram ainda mais como curso que ministrou no Programa deComunicação e Semiótica da PUC-SP.

O livro Os arquétipos literários resultoude seu convívio de muitos anos com a obrade Jung. O que lhe dá um toque peculiar é ofato de o autor ser um grande estudioso decontos e lendas, bem como da literatura emgeral, e que se defrontou com as concepçõesjunguianas depois que seu universo con-ceitual já estava formado.

Ainda na década de 70, ele publicou emrevistas russas trabalhos sobre Jung, e esteseu interesse só poderia contribuir paraacirrar as desconfianças em relação a alguémcomo ele, egresso do Gulag. Agora, ele voltaao tema, numa obra mais desenvolvida, umverdadeiro balanço do confronto entre suas

o idioma dosarquét iposOs arquétipos literários, recém-lançadono Brasil, reflete o convívio de Meletínskicom a obra de Jung e define os arquétiposcomo linguagem temática da literaturauniversal, presente no mito, no epos, noconto maravilhoso e na ficção moderna deautores como Gógol, Dostoiévski e Biéli

Os arquétipos literáriosE. M. MeletínskiTradução de Aurora Fornoni Bernardini,Arlete Cavaliere e Homero de FreitasAteliê Editorial320 págs – R$ 17,00

Boris Schnaiderman Na foto maior, o suíço Carl GustavJung, criador da psicologia analítica.No alto, o escritor Dostoiévski, autor

de O idiota. Embaixo, NicolaiGógol, autor de Almas mortas.

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próprias concepções e a teoria dos arqué-tipos.

Depois de definir o que ela representapara Jung, Meletínski é levado a fazeralgumas distinções. O �fundador da psico-logia analítica� não teria levado na devidaconta a importância do social na determinaçãodo comportamento humano; e a mesmacrítica ele estende a Freud e a outros autoresque trataram dos mitos em relação com apsique: �As figuras da Grande Mãe e do Painão seriam de modo algum redutíveis àsrelações da pequena família, como tendem afazer os psicanalistas. Tanto a concepção deJung como as de Frye, Bachelard e Durandnão podem ser aceitas na totalidade devido aseu reducionismo psicológico ou ritual-mitológico, que leva à modernização do mitoarcaico e à arcaização da literatura dos NovosTempos.�

Mas, tendo feito esta e outras restrições àteoria junguiana, revela o autor grande fascíniopor ela e acaba refazendo o caminho quepercorreu em outras obras, dessa vez em fun-ção da teoria dos arquétipos. A sedução chegaa ponto de Meletínski aceitar a noção deinconsciente coletivo, embora negando-lhe ocaráter hereditário, como queria Jung.

O que seriam então os arquétipos?Lemos logo no início do livro: �O propósitodo presente trabalho é estudar a origemdaqueles elementos temáticos permanentesque acabaram se constituindo em unidadescomo que de uma �linguagem temática� daliteratura universal. Nas primeiras etapas dedesenvolvimento, esses esquemas narrativosse caracterizam por uma excepcional unifor-midade. Nas etapas tardias, eles são bastantevariados, porém uma análise atenta revela quemuitos deles não passam de transformaçõesoriginais de alguns elementos iniciais. A esseselementos primeiros podemos atribuir adenominação de arquétipos temáticos, paramaior comodidade.�

Ele os estuda no mito, no epos, no contomaravilhoso e na ficção moderna. Com isso,naturalmente, voltam à baila preocupações

que nortearam outros livros do etnólogo, mastrata-se agora de um novo ponto de vista.

Enfocando as diferenças entre o epos e oconto de magia, que em seu trabalho járeferido sobre a polêmica de Lévi-Strauss ePropp acentuava a distância entre asconcepções de um e de outro, ele afirma agoraque o arquétipo do herói é muito distintoquando se trata de uma ou de outra forma.Enquanto no epos ele conduz ao cósmico, aotribal e estatal, no conto de magia tende aofamiliar e social. Paralelamente, ocorre maiorpersonalização, pois no mito heróico abiografia da personagem central se associafreqüentemente com a alternância ritual dasgerações, sobretudo quanto à alternância dossoberanos, isto é, um processo que estariano limite do biológico e do social.

Afirmando isso, o autor frisa a im-portância de alguns modelos rituais para aformação dos enredos arquetípicos, masacrescenta: �Está claro, não se pode reduziros enredos aos rituais, como fazem os repre-sentantes do ritualismo, que deduzem dosrituais não só os enredos, mas a própria cul-tura em sua totalidade. Pois o ritual é comoque o lado �formal�, e o mito, o �conteudístico�do mesmo fenômeno.�.

Aliás, a passagem do mito ao conto demagia aparece no livro quase obsessivamente,agora muitas vezes em termos que não sãoos daquela diferenciação entre o para-digmático da abordagem de Lévi-Strauss eo sintagmático do sistema proppiano, comose lia no trabalho de 1969, embora ela tambémapareça.

Curiosamente, o autor vê o herói doromance cortês como herdeiro, ao mesmotempo, do herói épico e do herói do conto. Ea relação dos dois subsiste, mesmo na ficçãomoderna.

Ao contrário do que ocorre em A poéticado mito, o romance contemporâneo compareceapenas em breves alusões e toda a segundaparte do livro é dedicada à �transformaçãodos arquétipos na literatura russa clássica�,entendendo-se por �clássica� a que se inicia

com Púchkin e vai até Andréi Biéli, no iníciodeste século.

Voltando a refletir sobre esse tema, o autorchega a conclusões bem interessantes. Assim,abordando o arquetípico da figura do duplo,nos diz que O nariz, de Gógol, seria umaparódia das novelas românticas sobre essetema. Aliás, ele estuda a passagem de Gógoldo mito e do conto maravilhoso ao epos e,deste, ao realismo do século XIX.

Dostoiévski teria começado onde Gógolterminou, mas afastou-se ainda mais dasraízes arquetípicas. Depois, porém, ele teriavivificado os arquétipos. Um dos pontos altosdo livro é, certamente, o estudo arquetipalde Os irmãos Karamazov. Seguindo estalinha, o autor analisa, por exemplo, a relaçãoentre o capítulo sobre o Grande Inquisidore o mito do Anti-Cristo e da volta de Cristoao mundo. Segundo ele, a �lógica interior�de Ivan Karamazov apóia-se internamentenaquilo que Jung chama de �sombra�, istoé, �a parte inconsciente e, em certo sentido,demoníaca� da alma.

Meletínski detém-se particularmente nasrelações arquetípicas caos/cosmos e herói/anti-herói em Gógol, Dostoiévski e Biéli.Considera, de modo geral, que os escritoresrussos pretendem chegar a uma abrangênciamaior dos problemas de visão de mundo queos autores ocidentais � o que seria sua marcadistintiva, relacionando-os mais estreitamenteaos arquétipos. Porém, depois desta afirmação,conclui de maneira bastante pessoal e diferenteda opinião consagrada. Segundo ele, Tolstói éum escritor não vinculado aos arquétipos. Eem lugar do romance-epopéia, conformedesignação atribuída pelos estudos literáriosa Guerra e paz e que o próprio Tolstói queriaefetivar, o autor discerne aí uma antiepopéia evê seus personagens como anti-heróis.

Muito rico e às vezes surpreendente, Osarquétipos literários é um livro que merece leituraatenta e refletida sobre temas que nos ajudama entender a retomada de cogitações e nospermitem situar melhor o nosso enten-dimento da literatura, da narrativa e do mito.

Meletínski em Português• “O estudo tipológico-estrutural do conto maravilhoso”, ensaio incluído no livroMorfologia do conto maravilhoso, de V.I. Propp, organizado por BorisSchnaiderman e traduzido do russo por Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro,Forense Universitária, 1984.• “Tipologia estrutural da folclore”, ensaio traduzido do russo por Aurora FornoniBernardini e incluído no livro Semiótica russa, organizado por Boris Schnaiderman.São Paulo, Perspectiva, 1979.• A poética do mito, traduzido do russo por Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, ForenseUniversitária , 1987.

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individualismo e diferençaLeia a seguir entrevista realizada em Moscou comAaron Gurévitch, medievalista mergulhado no estudo doindividualismo europeu e que faz da comparação dasmais diversas culturas populares um método que dialogacom historiadores como Le Goff, Le Roy Ladurie e Peter Burke

Jerusa Pires Ferreira

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A visita*Neve caindo em Moscou e chegamos, comotínhamos combinado, à casa de AaronGurévitch. Eu não podia prever algo assimquando lhe telefonei e ele me disse que nosreceberia por alguns minutos apenas. Cego,tinha perdido sua mulher e companheira porcinqüenta anos há bem pouco tempo. No13° andar de um edifício modesto comotantos outros, um elevador rudimentar, umcorredor tosco e depois sua voz, por trás daporta, pedindo que, ao entrar, tirássemos ossapatos! Das semitrevas de um dia queanoitece às quatro horas da tarde, distin-guíamos, sentado ao fundo da sala, aquelehomem sozinho, tateando para encontrar osobjetos. Era impossível deixar de evocar ofilme Perfume de mulher, em suas duas versões,e ali o nosso interlocutor � Al Pacino, altivo esabendo das coisas como ninguém. Na voz eno corpo uma vibração bem forte, prisioneirode um destino trágico, não perdeu a forçaque projeta e que estimula.Começamos a falar. Há cinco anos perdeu avisão. Tem agora 73 anos. Começa dizendoque está velho, limitado, cego. Essa afirmaçãonão combina porém com sua fala. Voz firme,mãos firmes, decisões tomadas. Sua intençãoé prosseguir, abrindo-se, como sempre, à

discussão em tom franco, ao diálogo e àpolêmica. Em seu inglês fluente diz queainda trabalha com os estudantes, é pesqui-sador da Academia de Ciências de Moscou eno momento está preparando em grupo umtrabalho de grandes dimensões: o Dicionárioda cultura medieval.Faz questão de colocar que seus textos maisrecentes estão basicamente voltados para oindivíduo. Ao nos oferecer um de seus últimoslivros em espanhol, Los orígenes del indivi-dualismo europeo, começa a nos falar de suaintensa preocupação com essa atitude e noque isso implica como procedimento, ao fazerhistória. Considera imprescindível a inserçãodas dimensões antropológica e psicológicana avaliação dos fatos sociais.Comento com ele o que acho da experiênciapeculiar que desenvolve em Cathégories de laculture médievale (livro já traduzido em 16línguas). Pergunto-lhe, de frente, o que eleconsidera ser nesse caso sua inovação, o que,diga-se de passagem, Georges Duby, aoescrever o prefácio da edição francesa, nemsempre pôde compreender. E ele respondecom firmeza: o foco. São os impulsos váriosque me levam a ver as coisas, não estou instaladoapenas numa única cultura, como o fazemfranceses, alemães, italianos, mas a partir de todasas culturas com que sempre estive em contato.Diz haver nessa atitude uma posição deuniversalismo e abertura. Neste seu livro oautor mostra como subjaz à cultura européia,à chamada civilização medieval, uma camadaprofunda e arcaica de tradições, de hábitosde pensar e de comportamentos que têm deser levados em conta. Qualifica, em seuprólogo, o livro de culturo-lógico e afirma

que se concentra na contradição fecunda ena paradoxalidade da cultura medieval. Buscaentão compreender o que é oscilante, ambi-valente, contraditório. Passa da démarcheantropológica à perquirição filosófica, paradar conta da concepção de mundo domedievo dizendo: o microcosmo era, de qualquermodo, a réplica do macrocosmo.E é aí que passa a discutir as relações entre atipificação e a individualização. Trata das re-presentações espaço-temporais, tendo emconta a semântica. No centro dessas reflexõessitua a questão da consciência humana, oconfronto entre a noção cíclica, mitopoéticado tempo, e a noção linear, sem esquecer dadimensão onírica do tempo, de que nos falaThomas Mann.Confessa e, de fato, está sempre preocupadocom a sutileza, a fronteira histórica em que asdiferenças na percepção e na compreensão decategorias se tornam essenciais.

Universo de pesquisaJá teve por foco os lendários e primeirosescandinavos, concentrando-se nos nasce-douros daquela civilização. Seu parâmetroé a comparação de culturas, e o que de fatolhe interessa mais diretamente são ascontradições. Por isso a importância decomparar e combinar as mais diferentestradições. Diz também que os historiadoresdas mentalidades se concentraram semprena França e no mundo românico e queDuby, por exemplo, ignorou o problemada cultura popular. Cita Le Goff, Le RoyLadurie e Peter Burke como historiadoresque admira.

À esquerda, o historiador PaulZumthor. À direita, o pensadorda cultura Mikhail Bakhtin.Na página oposta, Aaron Gurévitch.

Quem é Aaron GurévitchNascido em Moscou, em 1924, Gurévitch éprofessor do Instituto Geral da Academia dasCiências e da Universidade Estatal Russa deCiências Humanas. Prestigioso medievalista,publicou obras sobre história socioeco-nômica e cultural, metodologia histórica,estudos medievais e nórdicos, e culturaspopulares. Em contato com historiadores dasmentalidades, tem empreendido um rigo-roso diálogo entre o pensamento russo e oocidental. Vive em Moscou e em seu cartãoencontramos: ARBOR MUNDI - The WorldTree (nome da revista de cultura em quecolabora, dirigida por Eleazar Meletínski).

* A visita ao historiador foi feita por mim epor Boris Schnaiderman em 3/11/97. Dadasas circunstâncias, a conversa não pôde sergravada e assume aqui o papel de umarememoração – que traz um rico depoi-mento de um pensador de sua dimensão.

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março/99 - CULT 51

Ele e o medievalista Paul Zumthor têmmuitos pontos em comum e eu poderia dizerque, presentes um na biblioteca do outro,levantaram ambos o interessante aspecto damanifestação de massas no medievo.Transitando entre história e poética, traz comoum exemplo bem conseguido o de IúriLótman, sobre quem comenta: agradável,bom e sábio. (Aliás, é preciso dizer que Lót-man é para os pensadores modernos umaunanimidade). Conta ter participado dos Se-minários Tártu/Moscou e publicado muitosartigos ali e acrescenta que esses seminários,em seu conjunto, constituíram um importantematerial de informação e de inspiração.Confessa que está agora afastado dos grupossemióticos.

Formação e atividadesComeçou suas atividades de pesquisa e suavida profissional na Moscou dos anos 40.Ocupava-se de marxismo, pensamento sociale econômico, era um historiador de expressãotradicional (refere-se à União Soviética e àspráticas de então). Depois foi investindo naliteratura antropológica, no estudo da Escolados Anais, na semiótica, visando sobretudoreconstruir o conceito de História Social. Todoesse trajeto foi muito difícil, confessa, nascircunstâncias em que foi feito. Em 1970publica um pequeno livro: Os problemas doscomeços do feudalismo. Sofreu severos ataques.Foi esse, no entanto, o primeiro passo paraquebrar uma série de imposições que eramfeitas ao historiador e pensador da cultura.Intensificaria, a partir daí, os estudos parasituar nas categorias históricas o individual e

a personalidade. Considera essa uma con-quista importante para poder atacar de frenteas limitações ao encarar-se a construção dahistória.

Bakhtin 1965 – A revelaçãoQuando surgiu o livro de Mihail Bakhtin sobreRabelais e a cultura popular, o fato foi umarevolução surpreendente. Da primeira leitura vitratar-se de algo extraordinário, uma revelação,e a palavra tem aqui o sentido pleno �daquilo quese descobre�, do que é realmente extraordinário.Diz que imediatamente reagiu com umartigo no Vopróssy Litieratúry e continuaachando Bakhtin um pensador notável. Dizque até seus �erros� sempre foram produ-tivos; não são para ser rejeitados, mas parafazer pensar. Constata, no entanto, que mui-tos epígonos difundiram e perverteram oespírito da obra bakhtiniana, aplicando meca-nicamente suas categorias, tomando dele oriso e o carnaval. Nesse sentido faz críticasseveras a Litchatchóv (um estudioso do risona Rússia antiga, espécie de monumentonacional, agora com noventa anos).

Estudos comparativosDiscute a voga de comparar, mas atenta paraque se veja o que e como se está comparando.Ao comparar e encontrar grandes similari-dades, é preciso mostrar as diferenças. Relevao fato de as idéias de Marc Bloch conti-nuarem a repercutir no historiador Guré-vitch e prossegue: Só é possível compararfenômenos semelhantes, mas é o estudo dasdiferenças, das especificidades, das particu-laridades que faz clara a percepção dos objetos, e

exemplifica: uma caçada na corte dos reispersas não pode ser vista, tendo comoreferência a condição zoológica de hoje...

Os tempos recentesEm 1994 publicou um texto na coletânea:The history of humour (Cambridge, Uni-versity Press) que recomenda e afirma que1988 (plena pierestróika) é um ano marco.Começou a poder viajar para o exterior e, apartir daí, desenvolver cada vez mais novasleituras e perspectivas que a cegueira e asdificuldades não fecham.Há muita força e inventividade neste homeme pensador, comprometido sempre com o ladomais difícil � o caminho teórico renovador.Sua biblioteca bem arrumada e farta é umconvite para se viajar pela experiência queatravessa vários domínios do saber.Voltando à rua, à neve, vamos pensando: querumos seguirá agora seu pensamento, imersonuma outra condição, privado de tantaspercepções, mas certamente acrescido deoutras? O que poderá continuar a nos trans-mitir de rigor e de audácia? Desde já, ele nosfaz entender que buscando as diferençaspoderemos achar em nós a similaridade,rumo à mistura e à força e partir para a criaçãode nosso múltiplo tecido identitário,desconfiando sempre da simplicidade dosachados fáceis.

Jerusa Pires FerreiraJerusa Pires FerreiraJerusa Pires FerreiraJerusa Pires FerreiraJerusa Pires Ferreiraprofessora da ECA-USP e do Programa de pós-gradruação

em Comunicação e Semiótica da PUC-SP (onde fundoue dirige o Núcleo de Poéticas da Oralidade); autora

de Cavalaria em cordel (Hucitec), O livro de São Cipriano –Uma legenda de massas (Perspectiva), Armadilhas

da memória (Fundação Casa de Jorge Amado)e Fausto no horizonte (Hucitec), dentre outros.

Obras de GurévitchVeja abaixo uma lista de obras de Gurévitch publicadas em diversas línguas:� As culturas e o tempo. Rio de Janeiro, Vozes, 1975 (a partir de coletâneapatrocinada pela Unesco).� Les catégories de la culture Médievale. Paris, Gallimard, 1983.� Contadini e santi. Problemi della cultura popolare nel medievo. Turim, Einaudi, 86.� Mittelalterliche Volkskultur. Munique, Beck, 1987.� Historical anthropology of the middle ages. Cambridge, Polity Press, 1992.� A síntese histórica e a Escola dos “Anais” (Istorítcheskii síntez i chkola “Analov”).Moscou, Ed. Indrik, 1993.� Los orígenes del individualismo europeo. Barcelona, Grijalbo-Mondadori, 1994.(Simultaneamente publicado em 5 editoras européias: Beck, de Munique; BasilBlackwell, Oxford; Critica, Barcelona; Laterza, Roma e Bari; Seuil, Paris).

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Em livros recém-lançados no Brasil, o músico Solomon Volkov traçaa história cultural de São Petersburgo, cidade que melhor expressaas interrogações da cultura russa, enquanto o escritor Andrei Bitovrealiza no romance A casa de Puchkin uma simbiose da poéticapós-moderna com a dualidade entre a alma eslava e o espírito ocidental

Cristovão Tezzao fio da navalha

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geral da outra, a (quase) definitiva revoluçãode outubro de 1917. Já transformada pordecreto do czar Nicolau II em Petrogrado �para reforçar o significado eslavo da cidadecontra a �invasão� do ocidente �, sediará aexposição futurista de 1915, com a telaQuadrado negro, de Casimir Malévitch. Noano seguinte, Andrei Biéli publica Peters-burgo, um romance cubista que é uma sínteseda efervescência cultural da cidade e se tornouum dos clássicos do modernismo.

A literatura é apenas uma das faces dapersonalidade artística de São Petersburgo.Ao lado da fantástica arquitetura da cidade,da inacreditável ousadia de sua concepção erealização, todos os campos da arte desen-volveram-se na cidade � basta lembrar amúsica de Mussorgski, Rimski-Korsakov eTchaikóvski; no século XX, surgirão osnomes de Prokófiev, Shostakóvitch e Stra-vinski.

Não por acaso, a revolução vitoriosa de1917 transferirá a capital do país paraMoscou, temerosa daquele foco de sub-versão. E no longo período de Stálin, SãoPetersburgo, agora ironicamente rebatizadade Leningrado (Lênin detestava a cidade),será vítima de uma das mais sinistras políticasde extermínio da inteligência de que se temnotícia. Ressoará solitária e clandestina a vozda poeta Anna Akhmátova, cujos poemasRéquiem e Poema sem herói correm ma-nuscritos de mão em mão. Na Segunda

Guerra, São Petersburgo sofrerá o terrívelcerco de 900 dias, quando pessoas caíam nasruas, literalmente mortas de fome. No exílio,o escritor Vladimir Nabokov, também de SãoPetersburgo, passará a escrever seus livrosem inglês. No final da década de 50, quandose prenunciava alguma liberalização pelobreve sopro da era Krushev, uma novageração de escritores ressurge na cidade, masnão consegue publicar nada. O melhorexemplo será o poeta Joseph Brodsky (1940-1996), que nos anos 60 foi preso (por�vadiagem�) e condenado a trabalhos for-çados; em 1972 será expulso da UniãoSoviética, ganhando o prêmio Nobel em 1987por sua obra poética e ensaística.

Essa magnífica e quase sempre trágicahistória pode ser acompanhada passo apasso no livro São Petersburgo � Uma históriacultural, de Solomon Volkov, um músicorusso que emigrou para os Estados Unidosem 1976. Esse é exatamente o caso de umlivro de não-ficção em que caberá o velho esimpático lugar-comum das resenhas: umaobra que se lê como se fora um romance. Aolongo de suas mais de 500 páginas � comum texto tão agradável, que poderiam sermuito mais �, o leitor fará uma saborosíssimaviagem histórico-cultural pela cidade, de-tendo-se em seus momentos mais significa-tivos. São seis capítulos temáticos, que vãoda Petersburgo clássica, de Puchkin, Gógole Dostoiévski � escritores que pelo poder

1 Poucas cidades do mundo serão tãoinescapavelmente literárias como SãoPetersburgo, a antiga capital da Rússia.Construída no início do século XVIII sobreum pântano às margens do rio Neva, pelavontade única e férrea de Pedro, o Grande,contra toda a lógica geográfica e estratégica,São Petersburgo em pouco tempo se tornouuma referência obrigatória do universorusso, o ponto de encontro e de choque desua cultura com o mundo ocidental. Pelassuas ruas literárias continuam desfilando osfuncionários de Nicolai Gógol, asatormentadas figuras de Fiodor Dostoiévski,os pais e filhos de Ivan Turguénev, e o célebre�Cavaleiro de Bronze�, de AlexanderPuchkin � a estátua do czar Pedro que, nosversos do poeta, se desprende da pedra epersegue o pobre Ievguéni, cuja amadamorreu numa enchente �, entre centenas deoutros personagens que de um modo ououtro anteciparam as grandes questões doséculo XX. A famosa estátua eqüestre,encomendada pela imperatriz Catarina aoescultor francês Etienne Falconet, terminadaem 1782 depois de 16 anos de trabalho,tornou-se o símbolo da cidade.

Povoada de revolucionários, terroristas,figuras messiânicas, músicos de vanguarda,filósofos, artistas � todos parece que ex-perimentando os limites da condição humana�, São Petersburgo será também o palco deinsurreições violentas, como a de 1905, ensaio

À esquerda, litografia com imagem doGrande Teatro de São Petersburgo.

À direita, gravura representandoa catedral de Kazan. Na página oposta,

planta de São Petersburgo.

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de sua literatura acabaram por definir a almada cidade �, passando pelo início do séculoXX e sua extraordinária revolução mo-dernista, depois pelos anos negros doGrande Terror stalinista e do cerco deLeningrado (a Leningrado de DmitriShostakóvitch, nas palavras de Volkov) atéa Petersburgo de Joseph Brodsky, ageração mais recente, que continua a ouviro longínquo Cavaleiro de Bronze, dePuchkin, galopando nas ruas da cidade.Galopando para onde? � pergunta-seSolomon Volkov. Uma pergunta semresposta, mas que está no cerne de SãoPetersburgo desde sua fundação. Uma per-gunta que, aliás, não pode ter resposta � é oque depreendemos desse livro, como se acidade fosse, por si só, pela sua origem epela sua história, o fio da navalha da culturarussa, o ponto de interrogação do que elapretende ser e de o seu destino real.

2 Um outro modo de revisitar São Peters-burgo e sua história, agora estritamente nocampo da literatura, é ler o romance A casa dePuchkin, de Andrei Bitov, escritor da geraçãode Brodsky, nascido em 1937. De algummodo, também Bitov tenta responder àgrande pergunta da cidade. O livro seguiu ocaminho difícil e tortuoso de toda produçãonão-oficial da União Soviética. Escrito em1970, sob o desespero do fim da era Krushev,da pesada estagnação que se seguiu e sob o

impacto do kafkiano �julgamento� deBrodsky (conforme relata Solomon Volkova partir de entrevista com o autor), foipublicado apenas 8 anos depois, no exterior,permanecendo na lista dos livros proibidosaté 1987.

Bitov enfrenta a história literária de SãoPetersburgo já a partir do título, altamentesimbólico: a Casa de Puchkin é o Institutode Literatura Russa da Academia deCiências de Leningrado, e é lá que trabalha(em nossos anos 60) o personagem centraldo romance, Liova Odoievstsiev, filho e netode filólogos, numa família de estirpe nobre.Ele se relaciona com três mulheres, masuma delas, Faína, ocupa praticamente todoo espaço do livro, junto com o amigo (deLiova e de Faína) Mitichatiev. Há tambémum certo tio Dickens. O enredo, sepodemos dizer que existe um enredo nosentido �normal� da palavra, é nebuloso,incerto, difuso e freqüentemente duplo.Trata-se mais de um eixo condutor: Liovasente um terrível ciúme de Faína e acabapor duelar com Mitichatiev, ao modo dopróprio Puchkin e de Mikhail Lermontov(1814-1841), outro clássico russo. O autor� ele mesmo, Andrei Bitov � intromete-semuitas vezes na narrativa, comentando-a,refazendo-a e apresentando versões dife-rentes. O livro inteiro é carregado decitações literárias, a partir dos títulos doscapítulos: Pais e filhos, da obra de Turgué-

niev, O herói do nosso tempo, de Lermontov,além de inúmeras referências ao Cavaleirode Bronze, personagem fantástico da obrade Puchkin. Já o prólogo (�ou capítulo,escrito depois dos outros�) � Que fazer? �retoma tanto o romance de N. G. Tcherni-chévski, escrito na prisão em 1863, confor-me esclarece nota do tradutor, quanto o títulode um célebre panfleto de Vladimir IlitchLênin, dos anos revolucionários.

Num primeiro momento, o leitor maisou menos familiarizado com uma certatradição da prosa russa (que, nas palavrasde Brodsky, preferiu o mimetismo dogigante Tolstói às alturas metafísicas deDostoiévski, o que acabou descambandona mediocridade do realismo socialista)sentirá alguma estranheza em Bitov,alguma coisa que poderíamos, a propósito,chamar de �a invasão do ocidente�, comotemiam os eslavófilos de Petrogrado.Quase não há no romance aquela �nitidezdramática� que aprendemos a amar emobras tão diferentes quanto Os irmãosKaramazov e A morte de Ivan Ilitch, umanitidez que permanecerá viva nas obrasexperimentais do início do século, cujomelhor exemplo será talvez Petersburgo, deAndrei Biéli. E, obra tão filha dos anos 60e 70 quanto a literatura que se produziano ocidente, Bitov assimila os truques maisou menos datados daquilo que, porrarefação teórica, se convencionou chamar

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Obras citadas• Menos que um, ensaios de Joseph Brodsky. Companhia das Letras, 1994.Tradução de Sergio Flaksman.• Petersburgo, romance de Andrei Biéli. Ars Poetica, 1992. Tradução direta dorusso de Konstantin G. Asryantz e Svetlana Kardash; posfácio de Albert Avramenko;notas de Robert A. Maguire e John E. Malmstad.• Réquiem, poema de Ana Akhmátova. Art Editora Ltda., 1991. Tradução livre enotas de Aurora Fononi Bernardini e Hadasa Cytrynowicz; prefácio de Leo GilsonRibeiro.• Problemas da poética de Dostoiévski, de Mikhail Bakhtin. Forense-Universitária,1981. Tradução direta do russo de Paulo Bezerra.• O mestre e margarida, romance de Mikhail Bulgákov. Ars Poetica, 1992.Tradução direta do russo de Konstantin G. Asryantz; posfácio de Boris Sokolov.• A hero of our time, de Mikhail Lermontov. Traduzido do russo para o inglês porVladimir e Dmitri Nabokov. Everyman�s Library, Alfred A. Knopf, Nova York, 1992.

de �pós-modernismo�. Simplificando,trata-se do recurso de lembrar o leitor,reiteradamente, de que aquilo que ele estálendo é uma obra de ficção, um recursoque Bitov não economiza.

Um russo �pós-moderno� � essa levezade brincar com estruturas narrativas comonuma bem-humorada aula de literaturaacadêmica � não parece algo estranho? Etransparece também uma influência danarrativa americana, com toques de WilliamFaulkner, a sintaxe circular que avança parao centro da cena pelas beiradas e que sedefine pelas negativas, tateante: �Para tantoera indispensável que ele não precisasse deninguém para que ninguém precisasse dele,porque a mínima dependência, a mínimaobrigação de amar levava-o imediatamenteao fundo do poço como um tronco pesado ejá ebanizado; tampouco suportaria a mínimacarga de sentimentos: explodia, dissipava-se, desfazia-se em cacos � cacos secos,pontiagudos, miúdos, de que se constituíaa muito custo. E Liova o sentiu nãoexatamente assim, não inteiramente empalavras mas com muita plenitute, emproporções densas, como se ele já não fosseLiova mas o próprio tio Mítia, e expe-rimentou tamanha nostalgia, tamanho medoe embaraço ao enxergar aquela imagem quese projetava na memória que parecia vê-laprecisamente naquele momento e não meiahora antes.�

Se analisamos A casa de Puchkin apenaspelo ângulo formal, estaremos diante de umacuriosa obra pós-moderna, já repousando naprateleira do tempo. Mas, de fato, esse é umlivro substancialmente temático � e como todaa literatura russa, pré-e pós-revolução, pareceincapaz de se descolar do mundo social,concreto, filosófico, religioso, das causasprimeiras e dos fins últimos; a velha pergunta� para onde vamos? � estará sempre presente.O narrador tateante de Bitov, ele próprio,parece sussurrar ao leitor o tempo todo, sobo mormaço estagnado do sistema totalitárioprovavelmente mais perfeito que já se criouna terra (Eles queriam construir um novohomem, diz Joseph Brodsky, e conseguiram),que não pode dizer tudo o que tem a dizer; onarrador se move num mundo delirante emque as palavras não têm direção ou sentido;elas não pertencem aos objetos a que sereferem e as coisas não são nem o que são,nem o que parecem ser. Sem ar, o próprioespaço se transfigura num universo me-donho de possibilidades. Assim, os truquespós-modernos serviram perfeitamente paraa paisagem desconstruída de Bitov. Na belapretensão de mergulhar em toda a tradiçãoliterária de São Petersburgo � porque só nelaseria possível respirar �, Andrei Bitov retomaa linhagem que o teórico russo MikhailBakhtin (1895-1975), outro perseguido deSão Petersburgo, chamará de �sátiramenipéia� (gênero cujo nome vem de

Menipo de Gadare, século III a.C); naspalavras de Bakhtin, ela é �a combinaçãoorgânica do fantástico livre e do simbolismoe, às vezes, do elemento místico-religioso como naturalismo de submundo�, umafortíssima tradição literária russa. �Amenipéia�, diz Bakhtin, �é o gênero das�últimas questões�, em que se experimentamas últimas posições filosóficas� � ela vive sobo sopro da totalidade.

Um universo que vive sempre na tensãode seu próprio limite, prestes a explodir, a setransfigurar em outra coisa, incontrolável:esse é o mundo que, desde Gógol, será umasdas marcas mais notáveis de alguns mo-mentos da literatura russa, como Petersburgo,de Andrei Biéli, e O mestre e margarida, deMikhail Bulgákov. A casa de Puchkin, deBitov, é uma experiência literária que cabeperfeitamente nessa tradição. E representa,mais uma vez, na sua simbiose formal com anovidade pós-moderna, a clássica dualidadeque está na origem de São Petersburgo, a�alma russa� versus a �decadência doocidente�. Uma questão que Bitov define,num momento do livro, com uma bela edelicada imagem: �Essa permanente preo-cupação russa com o destino da Torre dePisa...�

Cristovão TCristovão TCristovão TCristovão TCristovão Tezzaezzaezzaezzaezzaescritor, autor de Breve espaço entre cor e sombra, Trapo e

Uma noite em Curitiba (editora Rocco), entre outros, eprofessor do Departamento de Lingüística da Universidade

Federal do Paraná

LançamentosSão Petersburgo - Uma história culturalSolomon Volkov.Tradução de Marcos Aarão ReisEditora Record584 págs. – R$ 50,00

A casa de PuchkinAndrei BitovTradução do russo de Paulo BezerraEditora Record414 págs. – R$ 38,00

Acima, guache representandoa estátua eqüestre de Pedro,o Grande. Na página oposta,à esquerda, Vladimir Nabokovnos anos 70; à direita, o compositorDmitri Shostakóvitch.

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Cartas para a revista CULT devem ser enviadas para a Lemos Editorial (r. Rui Barbosa, 70, São Paulo, CEP01326-010). Mensagens via fax podem ser transmitidas pelo tel. 011/251-4300 e, via correio eletrônico, para oe-mail �[email protected]�.

CinemaNão li a CULT desde seu início por faltade informação, mas desde que a desco-bri, não perco um número. A “BibliotecaImaginária”, de meu amigo – abraçopara ele – João Alexandre Barbosa, é umadas minhas preferências. Muito divertidaa coluna sobre língua portuguesa, e nogeral, os ensaios veiculados são de altonível. Não sou de ficar preferindo amigos,mas aqui para nós, Reynaldo Damaziose revela um excelente resenhista. Sósinto falta de alguma coisa sobre cinemanuma revista que se chama CULT. Umacoluna denominada “CULT Cinema” –título que poderia ser lido em portuguêsou inglês – vinha a calhar.

João Batista de Britopor e-mail

CriaçãoGosto da maioria dos artigos que arevista publica, especialmente das colu-nas assinadas por João AlexandreBarbosa e Cláudio Giordano e, claro,do “Dossiê”, que sempre reúne compertinência textos sobre uma matériageralmente relevante. Embora não tenhanada contra literatura brasileira con-temporânea, não acho muito frutuosa apublicação de continuadas resenhassobre livros de autores da nova cenaliterária nacional. Além disso, na seção“Criação”, a qualidade dos contos epoemas publicados deixa sempre adesejar. Vai então aqui uma sugestão:por que, ao invés de dar espaço a autoresde qualidade pouco confiável, não sãopublicados textos pouco conhecidos –ou mesmo inéditos – de grandes nomesda literatura universal (especialmenteos de expressão portuguesa)? No mais,só elogios à CULT, cujas páginastrazem, numa linguagem clara efluente, um refresco para nós, estudiososda literatura, que temos de, todos os dias,enfrentar densos textos teóricos que –no mais das vezes – muito pouco prazernos proporcionam.

Antony C. Bezerrapor e-mail

Festival Universitáriode Literatura

Parabéns pela excelente qualidade dosartigos da revista. O número sobreMallarmé (CULT nº 16) está excelente.Aproveito a oportunidade para sugerira divulgação dos premiados no IIFestival Universitário de Literaturapromovido pela Xerox do Brasil e pelarevista Livro Aberto. Como leitora daCULT e como uma das ganhadoras,ficaria muito feliz se a revista coope-rasse na divulgação do evento.

Eliane F.C. Ferreirapor e-mail

Resposta da redaçãoOs ganhadores do IIº Festival Universitáriode Literatura, promovido pela Xerox doBrasil e pela revista Livro Aberto, são:Categoria “Tradução”: Lisístrata, de Aristó-fanes, por Ana Maria César Pompeu; PoesiaGrega Antiga (fragmentos das obras depoetas gregos), por Celina Figueiredo Lage;Os anos cor-de-rosa: Casa Turca — comé-dia de (maus) costumes em um ato emprosa, de Guy de Maupassant, por Clémen-ce Marie Chantal Jouët-Pastré; DoutorFaustus liga a luz, de Gertrude Stein, porFábio Fonseca de Melo; A epopéia deGilgamesh, por Maysa Monção Gabrielli.Categoria “Ensaio”: Globalização e identi-dade cultural, de Agassiz Almeida Filho;Machado de Assis sob as luzes da ribalta,de Eliane Fernanda Cunha Ferreira; Trem eCinema: Buster Keaton on the railroad, deFernando Fábio Fiorese Furtado; Else Lasker-Schüler: aproximações ao expressionismoalemão, de Juliana Pasquarelli Perez;Resgate de um sonho: Cidadão Kane eKublan Khan, de Miriam Lidia Volpe.Categoria “Novela”: O povo e o populacro,de Gustavo Dumas; O firme pulso de ManéInácio em mão, olhos e fleme, de JoséHumberto S. Henriques; The Boxman, deJosiel Vieira de Araújo; De genes, clones eafins, de Márcio Augusto Vicente de Carvalho;O desparato total da existência: Cartas aoAbismo, de Maria Lúcia Abaurre Gnerre.Categoria “Poesia”: Fada e outros poemas,de Antonio Brasileiro; Limites, de CelsoTakashi Yokomiso; Ave, sertão!, de Franciscode Freitas Leite; O orvalho e os dias, de NiltonResende; Saguão de Mitos, Roberval Pereyr.Categoria “Contos”: Ah! O amor é maravi-lhoso..., de Adilson Fernandes Machado;Os doze nomes, de Marcelo Cid; A grande

dama dos gatos, de Richard Miskolci Escu-deiro; O homem que virou alma, de RobertoDonizete Buzzo; Feitiço de Áquila, deWhisner Fraga.

José Paulo PaesFelizmente a revista CULT vem ocuparum lugar bastante valioso na esfera daspublicações destinadas às discussõesculturais. Admirável o “Dossiê” com opoeta Stéphane Mallarmé (CULT nº 16).Sugiro que o mesmo seja feito com opoeta brasileiro José Paulo Paes, recém-falecido. Sua contribuição à criaçãoliterária, assim como sua atuação decrítico, merece destaque.

João BatistaSalvador, BA

Isabel AllendeGostaria de que Isabel Allende fizesseparte de uma dessas matérias mara-vilhosas que vocês vêm publicando,principalmente se o lugar reservadopara ela fosse o “Dossiê”. Que a CULTcontinue derramando, em suas páginasmágicas, letras cultas.

Andréia DantasSalvador, BA

Fortuna críticaA divulgação dos ensaios “FortunaCrítica” (CULT de nº 12 a nº 17),assinados sempre pelo professor IvanTeixeira, foi uma iniciativa exemplarda revista. Sou estudante de letras evocês não calculam o quanto eles sãoúteis para quem está disposto aenveredar por “outras leituras” dentrodos estudos literários. CULT ampara ecritica as literaturas de um modo comonunca antes fora visto. Parabéns. Vocêsestão além do preenchimento delacunas do mercado editorial. A cadamês, é uma nova surpresa; um novoaprendizado. Pedidos: gostaria de queos autores e os poetas da literaturalatina fossem mais discutidos, assimcomo os estudos lingüísticos.

Maurício Almeida Barbosapor e-mail