direito das autarquias locais - antónio cândido de oliveira

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Apresentao

DIREITO DAS AUTARQUIAS LOCAIS

ANTNIO CNDIDO DE OLIVEIRA

Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida por qualquer processo electrnico, mecnico ou fotogrfico, incluindo fotocpia, xerocpia ou gravao, sem autorizao prvia do editor. Exceptua-se a transcrio de curtas passagens para efeitos de apresentao, crtica ou discusso das ideias e opinies contidas no livro. Esta excepo no pode, porm, ser interpretada como permitindo a transcrio de textos em recolhas antolgicas ou similares, da qual possa resultar prejuzo para o interesse pela obra. Os infractores so passveis de procedimento judicial.ANTNIO CNDIDO DE OLIVEIRA

DIREITO DAS

AUTARQUIAS LOCAIS

COIMBRA EDITORA

1993

Composio e impresso Coimbra Editora, Limitada

ISBN 972-32~0632-3

Depsito Legal n. 72 358/93APRESENTAO

Este livro foi escrito a pensar na actividade desenvolvida pelas

autarquias locais a qual constituda, essencialmente, por actividade administrativa, ou seja, administrao pblica.

Desta, o cidado espera - e tem o direito de exigir - que cumpra devidamente as importantes tarefas de interesse pblico chamada a realizar e que actue dentro da ordem jurdica. Boa administrao com respeito pelo direito, eis a obrigao indissocivel das autarquias locais.

Aos que costumam acentuar a gesto, tendendo a desprezar o ordenamento jurdico, preciso lembrar que os fins no justificam os meios e que h direitos fundamentais dos cidados e regras de procedimento estabelecidas pelo legislador que tm de ser respeitadas, sob pena de se instalar a arbitrariedade nas autarquias.

Aos que destacam o respeito pelo direito, pondo em lugar secundrio os resultados, preciso recordar que o direito no existe para ser um estorvo da boa administrao, mas antes um auxiliar desta. Alis, por isso mesmo, as regras de direito devem ser adequadamente interpretadas para obter delas aquele sentido que melhor facilite a actividade administrativa.

Os aspectos jurdicos da administrao local autnoma so o tema da presente obra. O conhecimento deles indispensvel para administrar correctamente e no se compreende que, em muitas autarquias, o direito no seja tratado com a ateno que merece. H uma regra de boa administrao que nos diz que os problemas jurdicos - como muitos outros - previnem-se, em vez de se remediarem tarde e a ms horas.

A edio deste livro tem como causa prxima a elaborao de um artigo sobre a organizao municipal em Portugal, solicitado para um6 Apresentao

nmero monogrfico da revista espanhola Documentacion Administrativa. A redaco desse texto abriu caminho para a composio de um trabalho mais vasto, abrangendo a administrao das autarquias locais em geral.

Facilitou muito, tambm, esta publicao o facto de estar ainda indita a dissertao que apresentei a provas de doutoramento em Cincias da Administrao (especialidade de Administrao Pblica), na Universidade do Minho, intitulada A Autonomia Municipal: Evoluo e Significado Actual, da qual recolhi, com adaptaes e actualizaes, o material que compe as duas primeiras partes deste livro. Aproveito esta oportunidade para cumprir uma especial dvida de gratido para com a Faculdade de Direito da Universidade de Santiago de Compostela, onde fui sempre excelentemente acolhido, na pessoa do sr Prof. Doutor Jos Luis Carro Fernndez-Valmayor catedrtico de Direito Administrativo, e orientador da dissertao, que sempre me incentivou a fazer esta publicao.

Este trabalho divide-se em trs partes. A primeira de natureza histrica e procura salientar, a partir do sculo xix, a experincia da administrao local autnoma em Portugal e noutros pases europeus aos quais estamos particularmente ligados. A segunda detm-se sobre o conceito de autonomia local, focando a sua evoluo at aos nossos dias e o amplo acolhimento que teve na Constituio da Repblica Portuguesa de 1976. A terceira parte dedicada ao regime actual da administrao local autrquica, tendo em conta, principalmente, o desenvolvimento legislativo dos preceitos constitucionais relativos ao poder local e os contributos dados pela jurisprudncia e pela doutrina. Esteve sempre presente a preocupao de utilizar uma linguagem acessvel, pois este livro destina-se a todos aqueles que lidam com este importante sector da nossa administrao pblica.

Braga, Novembro de 1993

ANTNIO CNDIDO OLIVEIRA

SIGLAS

AC Assembleia Constituinte Ac. Acrdo

AD Acrdos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo AJDA Actualit Juridique. Droit Administratif AM Assembleia Municipal AR Assembleia da Repblica BFDC Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra CM Cmara Municipal CRP Constituio da Repblica Portuguesa DAC Dirio da Assembleia Constituinte DAR Dirio da Assembleia da Repblica

DR Dirio da Repblica DV Die ffentiiche Verwaitung DVB1 Deutsches Verwaitungblatt GG GrundgesetzLei fundamental de Bonn de 1949 LAL Lei das Autarquias Locais LFL Lei das Finanas Locais RAP Revista de Administracin Pblica

RDp Revue du Droit Public et de Ia Science Politique en France et 1tranger REDA Revista Espanola de Derecho Administrativo REDC Revista Espanola de Derecho Constitucional REALyA Revista de Estdios de Ia Administracin Local y Autonmica

REVL Revista de Estdios de Ia Vida Local RFDLFL Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

RU Revista de Legislao e de Jurisprudncia RTDP Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico STA Supremo Tribunal Administrativo

TC Tribunal Constitucional VVDStRL Verffentiichen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer

PARTE I

PERSPECTIVA HISTRICA DA AUTONOMIA LOCAL DESDE O SCULO XIX EM PORTUGAL E NOUTROS PASES EUROPEUS

TITULO I

HISTRIA DA AUTONOMIA LOCAL EM PORTUGAL

CAPTULO I

AS BASES DA ACTUAL ORGANIZAO DA ADMINISTRAO LOCAL AUTNOMA

1. Da Revoluo Liberal legislao de inspirao napolenica de Mouzinho da Silveira (1832)

a) A Revoluo Liberal e a instabilidade subsequente

A organizao da administrao local autnoma portuguesa tem os seus alicerces nas reformas introduzidas na primeira metade do sc. xix pela Revoluo Liberal. Ela est intimamente ligada, tal como sucedeu nos pases europeus que nos esto mais prximos, formao e consolidao do Estado liberal, aps a Revoluo Francesa.

Um recuo da perspectiva histrica Idade Mdia (e at ainda mais longe) seria porventura muito interessante, mas no teria em conta um facto essencial que foi a formao do Estado moderno, fortemente centralizado poltico-administrativamente, o qual vai resistir mesmo ao impacto da Revoluo Francesa, ainda que a legitimidade do poder se desloque do monarca-soberano para a nao-soberana. E exactamente a partir do modo como se vo estabelecer as relaes entre o Estado moderno legitimado pela soberania do povo e os municpios (e outros entes pblicos territoriais representativos das comunidades locais) que vai surgir a moderna autonomia local. Esta situao pouco ou nada tem a

12 Parte I Perspectiva Histrica da Autonomia Local

ver com o municipalismo da Idade Mdia exactamente pela falta de um Estado tal como hoje o conhecemos (1).

Surgido em 1820, o liberalismo caracterizou-se por um perodo inicial de forte instabilidade com constantes avanos e recuos. Convocadas as Cortes em 1820, inicia-se o novo regime com a Constituio de 1822, mas logo em 1823 uma contra-revoluo traz de novo o absolutismo. Em

1826, a Carta Constitucional abre novo perodo liberal com eleio de novas Cortes, mas em 1828 elas so dissolvidas. Pouco tempo depois inicia-se uma guerra civil entre absolutistas e liberais (1832) que terminou em 1834 com a vitria dos liberais e o restabelecimento da Carta Constitucional de 1826. S nesta data vai ser possvel tentar pr em prtica uma organizao da administrao local de acordo com os princpios do liberalismo, servindo para o efeito um Decreto elaborado nos Aores (bastio dos liberais), ainda em plena guerra civil (1832), da responsabilidade de Mouzinho da Silveira.

b) A Constituio de 1822

Certo que j anteriormente a Constituio de 1822 e a Carta Constitucional de 1826 continham preceitos que diziam respeito administrao local.

Assim a Constituio de 1822 (2) de acordo com o princpio liberal da separao dos poderes estabelecia a independncia dos poderes legislativo, executivo e judicial (art. 30.) e matria da administrao local consagrava um ttulo prprio, o VI, com a epgrafe Do Governo Administrativo e Econmico (arts. 212. a 223.), dividido por dois captulos.

No Cap. I (arts. 212. a 217.) previa-se a existncia de distritos a designar por lei (art. 212.) tendo frente um Administrador geral,

(1) M. CAETANO, O Municpio na Reforma Administrativa (Conferncia), Lisboa,

1936, p. 9. No mesmo sentido, M. S. GIANNNI (cfr., infra, Cap. III). Ver ainda J.-M. PONTIER, Ltat et ls coilectivits localesLa rpartition ds comptences Paris, 1978, pp. 330/331.

(2) As Constituies Portuguesas (1822-1826-1838-1911-1933-1976), org. por JORGE MIRANDA, Lisboa, 1976.

13 Ttulo I Histria da Autonomia Local em Portugal

nomeado pelo Rei e auxiliado por uma Junta administrativa (de base electiva) tendo competncia sobre todos os objectos de pblica administrao (art. 216.). A explicitao das respectivas atribuies era remetida para a lei (art. 217.). O Cap. II era dedicado administrao municipal determinando-se que haveria Cmaras em todos os povos, onde assim convier ao bem pblico nos termos a estabelecer pela lei que marcar a diviso do territrio (art. 219.). Competia s Cmaras o exerccio na conformidade das leis do governo econmico e municipal dos concelhos (art. 218.). No havia um captulo ou artigos sobre administrao ao nvel das freguesias.

A administrao municipal era objecto de particular ateno nos arts. 220., 221. e 222.. estabeleciam-se algumas regras sobre a composio das Cmaras, sendo de destacar no art. 220. a eleio dos vereadores e de um procurador pela forma directa e pluralidade relativa de votos dados em escrutnio secreto e assembleia pblica;

No art. 221., uma larga enumerao de atribuies como as de fazer posturas ou leis municipais (I), de promover a agricultura, o comrcio, indstria, a sade pblica, e geralmente todas as comodidades do concelho (II), de estabelecer feiras e mercados (III), de cuidar das escolas

de primeiras letras, hospitais e estabelecimentos de beneficncia ( A existncia de um poder tributrio, na forma que as leis determinasse resultava tambm explicitamente deste mesmo artigo (VII). V-se, pois que a Constituio de 1822 inclua j os preceitos que caracterizam a moderna administrao local autnoma e particularmente a municipal. De notar que as Cortes, eleitas aps a Revoluo de 1820, procuraram mesmo antes da publicao da Constituio, providenciar pela reforma da administrao local, desenvolvendo trabalhos parlamentares nesse sentido, mas sem xito (3). Em 1823 abre-se uma grave crise poltica (Contra-Revoluo) que significou, na prtica, o regresso ao absolutismo que vai prolongar-se at 1834 opondo, por um lado, os liberais chefiados por D. Pedro e, por outro, os absolutistas chefiados por D. Miguel ambos filhos de D. Joo VI.

(3) M. CAETANO, Os Antecedentes da Reforma Administrativa de 1832 (Mouzinho da Silveira), in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa vol. xxn, 1968-1969, pp. 7 e segs., esp. p. 9.

14 Parte I Perspectiva Histrica da Autonomia Local

c) A Carta Constitucional de 1826 e trabalhos parlamentares

Entretanto, em 1826, aps a morte de D. Joo VI, seu filho D. Pedro, j ento Imperador do Brasil, procura solucionar a crise poltica existente em Portugal outorgando um diploma fundamental (Carta Constitucional) de tendncia mais conservadora do que a Constituio de

1822 e abdicando do trono de Portugal em favor da sua filha Maria da Glria, ento com 7 anos de idade.

A Carta Constitucional estabelecia igualmente a diviso dos poderes (art. 10.) e dedicava administrao local o Tt. VII com a epgrafe (restritiva) Da Administrao e Economia das Provncias (arts. 132. a 138.). Muito mais parca do que a Constituio de 1822, a Carta estabelecia no art. 132. que A Administrao das Provncias ficar existindo do mesmo modo que actualmente se acha, enquanto por Lei no for alterada. No havia qualquer referncia ao distrito.

No que respeita administrao municipal a Carta mantinha, ainda que por forma mais sucinta, os princpios da Constituio e assim estabelecia que haveria Cmaras em todas as cidades e vilas ora existentes e nas mais que para o futuro se criarem competindo-lhes o governo econmico e municipal das mesmas cidades e vilas (art. 133.). O art. 134. determinava que as Cmaras seriam eleitas e compostas do nmero de vereadores que a lei designasse e o que obtivesse maior nmero de votos seria Presidente da Cmara. O art. 135., finalmente, limitava-se a remeter para uma lei regulamentar a matria respeitante ao exerccio das suas atribuies, a formao das posturas policiais e a aplicao das suas rendas. Tal como sucedia na Constituio de 1822, a Carta omitia, no ttulo que temos vindo a referir, qualquer aluso freguesia como nvel de administrao local.

Tendo entrado em vigor em Agosto de 1826 e tendo sido convocadas as Cortes nela previstas (arts. 13. e 14.), a matria da reforma administrativa mereceu logo a ateno da Cmara dos Deputados que, para o efeito, constituiu duas comisses. Uma, encarregada da diviso do territrio e outra, denominada do Cdigo Administrativo, com a incumbncia de dar cumprimento aos preceitos da Carta atrs mencionados, nomeadamente o art. 135.(4). A comisso de diviso do territrio

(4) M. CAETANO, Os Antecedentes..., p. 11.

Ttuo I Histria da Autonomia Local em Portugal

apresentou um parecer preliminar no qual se previam, no que toca diviso administrativa, 7 provncias no continente europeu e 2 nas ilhas, subdivididas por 17 comarcas (administrativas). Na base estariam os concelhos e, quanto a estes, a Comisso chamava a ateno para a existncia de 228 com menos de 200 fogos. Este facto colocava aos membros da comisso embaraos, pois se o art. 133. da Carta determinava que em todas as cidades e vilas, ora existentes, e nas mais que para o futuro se criarem haver Cmaras, por outro lado o art. 134. estabelecia o princpio da eleio das Cmaras com o nmero de vereadores que a lei designasse, sendo certo ainda que s poderia ser vereador quem tivesse pelo menos cem mil ris de renda lquida (arts. 66. e 65., 5., da Carta). Ora, perguntavam os membros da Comisso, como seria possvel formar Cmaras electivas nesses pequenos concelhos de menos de 200 fogos Havia aqui mesmo um problema constitucional que era o da dificuldade de compatibilizar os dois preceitos constitucionais (5). De qualquer modo a sugesto da supresso pela reunio ou anexao a concelhos mais prximos era aflorada no Parecer. Quanto aos concelhos cuja popula fosse muito grande sugeria-se a sua diviso em dois ou em mais.

A Comisso do Cdigo Administrativo apresentou, por sua vez, um projecto de lei orgnica da administrao geral das provncias do reino;

de que foi relator Rebelo da Silva. Neste projecto, de manifesta inspira o napolenica como resulta claramente no s do texto como da con fisso de Rebelo da Silva durante a sua discusso (6), dividia-se o pas

em provncias, comarcas e municipalidades. O seu objectivo era a admi nistrao geral (que pertence exclusivamente ao Governo e deve, por isso, ser feita por agentes seus) e no a administrao municipal. Assim em cada provncia haveria um Administrador Geral de nomeao rgia representante do Governo e com amplos poderes, assistido por um Con

(5) A. PEDRO MANIQUE, Mouzinho da Silveira Liberalismo e Administrao Pblica, Lisboa, 1989, pp. 135 e segs.

(6) No seu discurso perante a Cmara dos Deputados Rebelo da Silva dizia clara mente: A Comisso buscou o tipo do seu projecto na administrao francesa; aquela administrao chegou ali perfeio, em que se acha no fim de mui tristes, e ruinosa experincias, a que a sujeitaram teorias quimricas e tentativas populares. Um homem grande em Administrao, e ao qual no trato de fazer a apologia em objectos diversos, emendou o esprito de vertigem de que se ressentia a administrao francesa desd a Assembleia Constituinte at ao seu tempo cfr. M. CAETANO, Os Antecedentes..., p. 15.

16 Parte I Perspectiva Histrica da Autonomia Local

selho Administrativo da provncia (arts. 1., 2. e 6. do projecto); em cada comarca haveria Sub-Administradores Gerais de nomeao rgia subordinados ao Administrador de Provncia (arts. 1., 63., 64. e 65.);

finalmente em cada distrito municipal haveria um Administrador de municipalidade, de nomeao ministerial, sob a direco central do Administrador de provncia (arts. 1., 71., 72. e 73.). Na discusso havida na Cmara dos Deputados manifestou-se uma corrente de opinio que mostrava as maiores reservas quanto diviso provincial e aos administradores provinciais considerada de origem napolenica e fundada no mais absoluto despotismo (7). A discusso dos trabalhos de ambas as comisses no chegou ao fim, pois, entretanto, foi dissolvida a Cmara dos Deputados (13 de Maro de 1828) iniciando-se o reinado de D. Miguel e pouco depois uma sangrenta guerra civil que s viria a terminar em 1834 com a Conveno de vora Monte. De qualquer modo ficaram abertos caminhos (diviso administrativa do territrio, supresso de pequenos concelhos, existncia de um agente do governo junto dos municpios) que viriam a ser postos em prtica mais tarde.

de recordar, entretanto, que em 1830 por Decreto de 26 de Novembro publicado nos Aores (8) foram criadas as Juntas de Parquia por se entender que era necessrio que houvesse em todas as parquias uma autoridade local que possusse a inteira confiana dos vizinhos e que estivesse especialmente encarregada de prover e administrar os negcios e interesses particulares dos mesmos. Estabelecia o art. 1. que haveria em cada parquia uma Junta nomeada plos vizinhos da parquia e encarregada de promover e administrar todos os negcios que fossem de interesse puramente local. As Juntas de Parquia tinham um leque amplo de atribuies (art. 17.) e previa-se recurso para a Cmara Municipal das suas deliberaes (art. 18.).

Por sua vez um curto Decreto de 27 do mesmo ms organizava as Cmaras Municipais de acordo com a Carta Constitucional repetindo no art. 1. o disposto no art. 133. da Carta acima citado. Determinava ainda este Decreto, subscrito como o anterior por Mouzinho de Albuquerque

(7) Era o caso do deputado Francisco Campos, cfr. M. CAETANO, Os Antecedentes..., p. 13.

(8) Coleco de Decretos e Regulamentos publicados durante o Governo da Rregncia do Reino estabelecida na Ilha Terceira, Primeira Srie, de 2 de Junho de 1830 a 27 de Fevereiro de 1832, Lisboa, Imprensa Nacional, 1834, pp. 39 e 49.

Ttulo I Histria da Autonomia Local em Portugal 17

(e no Mouzinho da Silveira), o nmero de vereadores das Cmaras tendo em conta a respectiva populao (art. 2.) e que o vereador que obtivesse maior nmero de votos seria o Presidente (art. 3.). Existia neste diploma a preocupao da separao das funes judicial e administrativa (art. 13., 1.) que um outro Decreto de 29 do mesmo ms sobre a administrao da justia acentuava referindo a inteira separao dos poderes judicial e municipal (art. 9.).

d) O Decreto de Mouzinho da Silveira de 1832: seu carcter centralizador

Interessa referir agora o Decreto n. 23, de 16 de Maio de 1832, de Mouzinho da Silveira que, apesar de mal ter sofrido a prova da experincia, pois vigorou por curto espao de tempo, foi e ponto de referncia da moderna administrao local portuguesa.

Este diploma, para alm de consagrar a separao dos poderes de julgar e administrar, estabelecia uma organizao administrativa territorial uniforme de forte inspirao napolenica, abolindo as antigas divises territoriais. O pas era dividido em provncias, comarcas e concelhos (9), estando frente de cada provncia um Prefeito, frente de cada comarca (administrativa) um Subprefeito e frente de cada concelho um Provedor. Estas autoridades detinham todo o poder administrativo e estavam encadeadas hierarquicamente. Junto delas existiam, tal como em Frana, corpos administrativos com funes muito limitadas, cabendo s autoridades administrativas a execuo das respectivas deliberaes. Na provncia, o corpo administrativo era a Junta Geral de Provncia, na comarca era a Junta de Comarca e no concelho era a Cmara Municipal.

A Cmara Municipal, eleita indirectamente, compunha-se por um nmero de vereadores igual ao nmero de freguesias (10). As Juntas de Comarca eram compostas de procuradores eleitos pelas Cmaras Municipais dos concelhos de que constava a Comarca, na proporo de dois

(9) O nmero de concelhos segundo o mapa das divises eleitorais elaborado para a eleio das Cortes de 1822 era, no continente, de 785 (Decreto de 11 de Julho de 1822).

(10) Nos concelhos com apenas uma freguesia o nmero de vereadores era de trs (art. 11., 9.).

18 Parte I Perspectiva Histrica da Autonomia Local

procuradores por concelho, e as Juntas Gerais de Provncia compunham-se de procuradores eleitos pelas Juntas de Comarca (um procurador por cada concelho) (art. 11., 12.).

De notar a referncia freguesia neste diploma. Efectivamente ao mesmo tempo que, nos termos do art. 29., extinguia da organizao administrativa as Juntas de Parquia criadas em 1830 (), o Decreto utilizava as freguesias para encontrar o nmero de vereadores da Cmara. Isto merece realce pois a freguesia comunidade local profundamente ligada organizao religiosa que a parquia vai acompanhar sempre o municpio at aos dias de hoje. O municpio em Portugal , efectivamente, formado por vrias freguesias (12). Estas nunca alcanaro um lugar de alto relevo na vida local quer plos meios financeiros ao seu dispor quer pelo pessoal, mas nunca sero ignoradas.

Alis, enquanto os municpios vo sofrer, em 1836, uma profunda reforma territorial a que nos referiremos de seguida, esta no atinge as freguesias cujo nmero permanece praticamente inalterado. Em 1822, tnhamos 4086 freguesias no continente (contagem para as eleies das Cortes de 1822) e hoje temos 4005 (13).

2. A reforma territorial dos municpios e o Cdigo Administrativo de 1836

a) As leis descentralizadoras de 1835

A reforma de Mouzinho da Silveira no foi bem recebida no Pas provocando fortes crticas especialmente dirigidas contra os poderes considerados excessivos dos Prefeitos e contra os abusos dos Provedores. Ficou conhecido o grito: Abaixo as Prefeituras (14). Uma interessante

(11) As Juntas de Parquia tinham sido criadas, como dissemos, por Decreto de 26 de Novembro de 1830 para o bom regimento e polcia dos povos.

(12) H uma excepo que o municpio do Corvo que no tem freguesias (art. 78. do Estatuto Poltico Administrativo da Regio Autnoma dos Aores na redaco dada pela Lei n. 9/87, de 26 de Maro). No continente h, por outro lado, alguns municpios que tm apenas uma freguesia.

(13) Administrao Local em Nmeros 1991, ed. da Direco Geral da Administrao Autrquica, Lisboa, 1991.

(14) Relatrio do Cdigo de 1836, in Cdigo Administrativo Portugus, Lisboa, Imprensa Nacional, 1836. Sobre este ponto ver desenvolvidamente A. PEDRO MANIQUE, Mouzinho da Silveira..., pp. 103 e segs.

Ttulo I Histria da Autonomia Local em Portugal 19

crtica centralizao administrativa introduzida por Mouzinho da Silveira pode examinar-se atravs de uma representao da Cmara Municipal de Lisboa reclamando a observncia do art. 133. da Carta Constitucional e que motivou uma Portaria datada de 22 de Maio de 1834. Defendia a Cmara Municipal que o art. 133. da Carta ao dispor que em todas as cidades e vilas, ora existentes e nas mais que para o futuro se criarem, haver Cmaras s quais compete o governo econmico e municipal das mesmas cidades e vilas institua o poder municipal e que tal poder fora usurpado pelo art. 28., 11., do Decreto n. 23 que exigia a sano do Provedor para se fazerem posturas e a confirmao do Prefeito para serem executadas e plos arts. 26. e 29. que, ao atriburem ao Provedor a execuo de todas as deliberaes, tomava impossvel que as Cmaras pudessem com independncia desempenhar cabalmente as suas funes (15).

Na sequncia dessas crticas so publicados, logo em 1835, dois diplomas que vo constituir as bases do Cdigo Administrativo de 1836 de tendncia claramente descentralizadora. So esses diplomas a Carta de Lei de 25 de Abril de 1835 e o Decreto de 18 de Julho do mesmo ano que a regulamentava (16).

Por fora destes diplomas o territrio do continente era dividido em distritos administrativos, estes subdividiam-se em concelhos, que, por sua vez, se compunham de uma ou mais freguesias (art. 1. do Decreto). Acabavam assim as provncias e as comarcas e, com elas, os Prefeitos e Subprefeitos. Quanto aos magistrados administrativos passavam a ser no distrito, o Governador Civil, no concelho, o Administrador do Concelho (que substitua o Provedor) e, na freguesia, o Comissrio de Parquia (art. 5. do Decreto). Quanto aos corpos administrativos havia agora a Junta Geral de Distrito, a Cmara Municipal e a Junta de Parquia. De salientar, como novidade importante, o facto de se abrir uma brecha no princpio, que continuava a ser afirmado, da separao entre as funes de deliberar e executar. Estabelecia, com efeito, o art. 28. do Decreto:

Aos corpos administrativos eleitos s compete deliberar e fiscalizar.

(15) Coleco de Decretos e Regulamentos mandados publicar por Sua Majestade Imperial o Regente do Reino desde a sua entrada em Lisboa at instalao das Cmaras Lgislativas, Terceira Srie, Lisboa, Imprensa Nacional, 1840, p. 125.

(16) Coleco de Legislao promulgada em 1835, 1 caderno, Lisboa, 1835, p. 29 e p. 5 (2. Semestre), respectivamente.

20 Parte I Perspectiva Histrica da Autonomia Local

A execuo sempre confiada ao magistrado administrativo e responsvel da respectiva deciso. Mas logo de seguida dizia o mesmo artigo:

Exceptuam-se as deliberaes tomadas pelas Cmaras Municipais cuja execuo fica pertencendo ao seu Presidente. Desta forma o Presidente da Cmara assumia uma especial importncia.

b) A reforma territorial dos municpios de 1836

Ainda, no que toca administrao municipal, de referir a reorganizao da diviso administrativa concelhia que precede a publicao do Cdigo de 1836. Quanto a esta matria o art. 3. do Decreto de 18 de Julho de 1835, que temos estado a referir, apenas determinava que o nmero de concelhos e sua extenso ser oportunamente regulado, segundo o exigir a comodidade dos povos e o bem do servio. O impulso para a nova diviso administrativa dado por um Decreto de 17 de Maio de 1836 que determinava a convocao extraordinria das Juntas Gerais de Distrito para, num prazo curto (17), formar um projecto de diviso dos concelhos e julgados do seu distrito, segundo instrues que acompanhavam cpia do referido Decreto remetidas aos governos civis.

Como critrio para a diviso concelhia prescrevia o art. 3. das Instrues que cada concelho deveria ter nmero suficiente de cidados hbeis para os cargos electivos e bastantes meios de sustentar os encargos municipais; porm, deveriam ter-se em conta tambm as distncias, as comunicaes e hbitos dos moradores. O impulso decisivo para a elaborao do novo mapa concelhio do pas foi dado, contudo, j depois da Revoluo de Setembro (18) por Portaria datada do dia 29 desse mesmo ms que nomeou uma comisso com a finalidade de propor sem perda de tempo um projecto para a diviso administrativa do Reino tendo para esse fim em ateno os trabalhos feitos pelas Juntas Gerais

(17) Coleco de Leis e outros Documentos Officiaes publicados desde o 1 de Janeiro at 9 de Deembro de 836, Quinta Srie, Lisboa, 1836, p. 145. As Juntas Gerais deveriam reunir e deliberar entre o dia 6 e 22 de Junho de 1836. Este prazo foi alargado at 30 de Junho em vista das queixas das Juntas Gerais pela exiguidade do prazo (Decreto de 15 de Junho de 1836). Mesmo assim a tarefa no foi levada a cabo.

(18) A Revoluo de Setembro, de carcter progressista, ocorreu em 10 de Setembro e reps em vigor a Constituio de 1822.

21 Ttulo I Histria da Autonomia Local em Portugal

de Distrito. Subscrevia tal portaria Manuel da Silva Manuel). Em 6 de Novembro de 1836 publicado o decreto que estabelece a nova diviso concelhia e que tomou por base os trabalhos das Juntas Gerais e o parecer da Comisso acima referida. ] art. 1. do Decreto o territrio do continente continuava a conter 17 distritos administrativos, mas o nmero de concelhos era reduzido a 351 suprimindo-se mais de 400 (19). Esta diviso era ainda provisria e as Juntas Gerais de Distrito deveriam remeter a consulta sobre os melhoramentos que se podero fazer nas divises administrativas do territrio. A diviso concelhia que como matriz este Decreto nunca sendo demais salientar pois a importncia, vrias vezes reafirmada ao longo do sc. xix afastou o nosso pas, neste ponto, dos pases europeus mais prximos como, p. ex., a Espanha, a Frana, a Itli;

que tm proporcionalmente um nmero muito superior d( dimenso muito desigual (2]). Houve, em Portugal, a combinar populao e territrio de forma que a popui excessiva, tomando difcil o expediente judicial e admini

celho, nem diminuta, fornecendo um nmero insuficier

(19) FAUSTO J. A. DE FIGUEIREDO, A reforma concelhia de

1836, in O Direito, ano 82, 1950, pp. 257 e segs. O Decreto de (

1836 encontra-se publicado mas sem o mapa que diz fazer parte Coileco de Leis e outros Documentos Oficiaes publicados desde 10 de Deembro de 1836, 6. Srie, Lisboa, 1837, pp. 112113.

(20) Ver, p. ex. Relatrio que acompanha o Cdigo Administr tambm J. F. HENRIQUES NOGUEIRA, O Municpio no Sculo XIX, Tomo II, Lisboa, 1979, pp. 13 e segs. (edio da INCM organizada Leal da Silva). Este autor defendia, em 1856, a existncia de concelh dimenso (pp. 68 e segs.). O municpio, dizia, deveria ser independi (p. 71). Propunha uma diviso administrativa por municpios, fre (pp. 97 e segs.), devendo os municpios ser em nmero de 100 (pp. l ar, entretanto, a viso romntica da vida municipal que percorre a Nogueira (ver, p. ex., pp. 106 e segs.).

(21) Teremos ocasio de fazer referncia s tentativas feitas . deste sculo para diminuir o nmero de municpios na Frana e na Al( co fortemente crtica sobre a reforma territorial foi sustentada por SEI As contrafaces do Municipalismo Portugus, in O Direito, an( reproduzido no vol. li (1919-1943) da Antologia de Estudos Juncos P Pginas, Lisboa, 1968, pp. 229 e segs.

22 Parte I Perspectiva Histrica da Autonomia Local

activos para as eleies e para o servio dos cargos pblicos; quanto extenso territorial havia a preocupao de evitar as grandes distncias que causavam grave incmodo aos povos (art. 12.). Outra preocupao era a de que o concelho dispusesse de meios econmicos suficientes para o cumprimento das suas tarefas.

Pode afirmar-se, pois, que a diviso municipal do territrio obedeceu a critrios de eficincia administrativa e no preocupao de delimitar comunidades naturais ligadas plos laos de vizinhana para as erigir em municpios. Em 26 de Junho de 1867, chegou a ser publicado um Cdigo Administrativo (lei de administrao civil de Martens Ferro) que suprimia 104 concelhos e criava a parquia civil agrupando vrias freguesias. Este Cdigo foi suspenso depois de uma revolta popular de Janeiro de 1868 (a Janeirinha) que deps o Ministrio de que fazia parte Martens Ferro.

c) O Cdigo Administrativo de 1836: sua importncia

O ano de 1836 no terminaria sem ser publicado, em 31 de Dezembro, o primeiro Cdigo Administrativo (22) portugus. Merece particular ateno o relatrio que acompanha o Cdigo assinado por Manuel da Silva Passos (Passos Manuel). Nele criticava-se o Decreto n. 23 de Mouzinho da Silveira, pois embora tivesse introduzido o sistema administrativo no foi calculado de modo que pudesse ser bem acolhido por uma nao ciosa das suas liberdades municipais tendo buscado o legislador de 1832 inspirao em instituies viciosas de alm dos Pirinus. Mais concretamente, era criticada a faculdade ilimitada concedida Coroa de escolher os seus agentes administrativos e dava-se conta da reaco negativa que a aplicao do Decreto provocou plos excessos e abusos cometidos plos Provedores dos concelhos. Mais adiante, e noutro plano, o relatrio menciona elogiosamente a Carta de Lei de 25 de Abril de 1835 que reformou o sistema administrativo segundo os

(22) Deve dizer-se que a expresso Cdigo Administrativo enganadora, pois este Cdigo, como os que se lhe seguiram, respeitam essencialmente matria de administrao local. Sobre os sucessivos cdigos administrativos, cfr. M. CAETANO, A Codificao Administrativa em Portugal (Um sculo de experincia: 1836-1935), in RFDUL, ano II, 1934, pp. 324 e segs., e MAGALHES COLAO, Lies de Direito Administrativo, Lisboa, 1924, pp. 46 e segs.

Titulo I Histria da Autonomia Local em Portugal

princpios mais liberais e o Decreto de 18 de Julho do mesmo ano que desenvolveu tais princpios. J na parte final do relatrio faz-se uma referncia reduo do nmero de municpios (reduo dos crculos municipais) operada pelo Decreto de 6 de Novembro de 1836. Para Passos Manuel a operao da supresso e mutilao dos concelhos era dolorosa mas indispensvel, pois dela dependia a consolidao do sistema administrativo.

Entrando na parte dispositiva do Cdigo verificamos que o art. 1. dispunha que o territrio do continente e ilhas era dividido em distritos subdividido em concelhos, compondo-se estes de uma ou mais freguesias. Em cada uma destas divises havia um rgo deliberativo eleito plos respectivos habitantes (art. 7.).

Dispunha o art. 21. que esse rgo era, no concelho, a Cmara Municipal composta de um nmero de vereadores que dependia de nmero de fogos que tivesse (art. 22.). Votantes e elegveis nas eleies municipais eram os cidados portugueses maiores de 25 anos com domi clio no concelho e que tivessem, no mnimo, uma renda anual de cen mil ris proveniente de bens de raiz, indstria, emprego ou comrcio (arts. 25. e 26.). A eleio das Cmaras Municipais era feita anual mente e o Presidente da Cmara seria eleito plos vereadores plurali dade dos votos (arts. 33. e 23.) cabendo-lhe a execuo das deliberaces camarrias (art. 203.).

O leque das atribuies camarrias era amplo (art. 82.) abrangend o poder de consultar e deliberar sobre todas as necessidades do munic pio ( 1. do art. 82.) (23). O 3. do mesmo artigo conferia s Cmaras Municipais poder tributrio para ocorrer aos encargos do concelh No que toca tutela, ela era atribuda Junta Geral de Distrito (art. 77. 8.), ao Conselho de Distrito (arts. 82., 29.. e 171., 11.) e s Cortes (art. 82., 26., in fine). As matrias sujeitas a tutela eram limi tadas e estavam definidas no Cdigo.

Em cada concelho, havia um magistrado administrativo, represen tante do Governo, por este escolhido, mas de entre uma lista de cinc elementos sados de eleio directa ocorrida na mesma ocasio da ele co da Cmara (art. 114.). Esta forma especial de escolha do Admini

(23) No utilizada aqui a expresso interesses locais ou interesses peculiares 1 e 2 do art. 238. e ao explicitar no Tt. VIII (Poder Local) da Parte III (Organizao do Poder Poltico), os seus elementos caracterizadores. E mesmo nesta parte que a Constituio mais detalhada e expressiva (508). No garante, porm, a cada autarquia um direito de recurso para o Tribunal Constitucional contra violaes da respectiva autonomia, ao contrrio do que sucede na Lei Fundamental de Bonn (actual art. 93., l, n. 4-b)).

(507) Na doutrina alem fala-se, a este propsito, de uma institutionnelle Rechtssubjektsgarantie (cfr., entre outros, K. STERN, Die Verfassungsgarantie der kommunalen Seibstverwaitung, in Handbuch..., p. 205; B. WIDERA, Zur verfassungsrechtlichen Gewahrleistung gemeindiicher Planungshoheit, Berlim, 1985, p. 26).

(508) Na doutrina alem fala-se de uma objecktive Rechtsinstitutionsgarantie der kommunalen Seibstverwaitung (cfr., entre outros, os autores, obras e locais citados na nota anterior).

238

Parte II A Autonomia Local

Importa salientar ainda, no que toca garantia constitucional da autonomia no s os preceitos relativos reserva legislativa da Assembleia da Repblica sobre matrias que dizem directamente respeito administrao local, com especial destaque para o relativo ao estatuto

das autarquias locais como aquele que limita o poder de reviso constitucional.

b) A reserva legislativa da Assembleia da Repblica em matria de autonomia local

Nos termos da Constituio da Repblica Portuguesa, o Governo dispe de amplos poderes legislativos (art. 201.) podendo, em regra legislar concorrentemente com o rgo legislativo por excelncia isto e a Assembleia da Repblica (509). No entanto, a CRP reservou para a Assembleia da Repblica (AR) a disciplina sobre certas matrias subtraindo-as disponibilidade legislativa do Governo, tendo em conta a particular importncia de que as mesmas se revestem. Entre elas contam-se algumas directamente respeitantes s autarquias locais.

Deve ter-se presente, entretanto, que, para certas matrias, a reserva de competncia legislativa da AR absoluta (as do art. 167. da CRP) e para outras a reserva de competncia apenas relativa (as do art. 168 ) Quanto a estas ltimas, a competncia legislativa cabe Assembleia da Republica, salvo autorizao ao Governo, tendo esta de constar de uma lei de autorizao que defina o objecto, o sentido, a extenso e a durao da mesma (art. 168., n. 2).

matria da competncia exclusiva da AR (reserva absoluta) o regime de criao, extino e modificao territorial das autarquias locais (al. n) do art. 167.). A reserva de lei abrange, pois, apenas o regime e no a medida concreta de criao, extino ou modificao territorial. Assim se compreende que as regies autnomas tenham, nos termos da al. j) do n. 1 do art. 229 da CRP, o poder de criar e extinguir autarquias locais, bem como modificar a respectiva rea nos termos da lei ( r). E de ter em conta, no entanto, o disposto no art. 249. da CRP,

(509) J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 4. ed, Coimbra 1986 pp. 571 e 649.

(510) Vamos encontrar este mesmo preceito reproduzido na al. f) do n 1 do art. 32. do Estatuto Poltico-Administrativo da Regio Autnoma dos Aores (na redac-

Ttulo II A Autonomia Local na Constituio de 1976 239

o qual exige que a criao de municpios, bem como a alterao da respectiva rea seja efectuada por lei, sob prvia consulta dos rgos das autarquias abrangidas. Do debate havido na Comisso Eventual de Reviso Constitucional resulta que houve a preocupao de atribuir Assembleia da Repblica (e s Assembleia da Repblica) a competncia para, atravs de lei (lei e no resoluo da AR como pretendia antes Jorge Miranda com base no facto de o respectivo diploma no possuir contedo normativo) criar ou extinguir municpios, bem como alterar a respectiva rea (5n).

Outras matrias particularmente sensveis cobertas por uma reserva absoluta de lei so a da eleio (al. j)) e a do estatuto (al. ) dos titulares dos rgos das autarquias locais (ambas as alneas do art. 167. da CRP) (512). Ainda sujeita a uma reserva absoluta da AR est a disciplina reguladora das consultas directas aos eleitores a nvel local (al. o) do art. 167.).

Abrangidas por uma reserva legislativa da Assembleia da Repblica, mas agora apenas relativa (art. 168.), esto ainda outras matrias que tocam directamente as autarquias locais. o caso do regime geral de elaborao e organizao dos oramentos das autarquias locais (al. p) do art. 168.) (513) e ainda do estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das respectivas finanas (al. s) do art. 168.). Embora sem uma meno explcita das autarquias locais deve entender-se tambm que a matria das bases do regime e mbito da funo pblica (al. v) do art. 168.) diz respeito igualmente s autarquias locais.

Subjacente a todas estas disposies est, ao lado de outras, a ideia de uma melhor garantia da autonomia local. Entende-se que a Assembleia da Repblica, como rgo legislativo supremo, deve regular aquelas matrias que constituem o travejamento da administrao autnoma

co da Lei n. 9/87, de 26 de Maro), e na al. h do n. l do art. 29. do Estatuto Poltico-Administrativo da Regio Autnoma da Madeira (Lei n. 13/91, de 5 de Junho).

(511) Cfr. Dirio da Assembleia da Repblica (DAR), II Srie, Sup. ao n. 50, de 6 de Fevereiro de 1982, pp. 1062 (12) a (15).

(512) A reserva contida nestas alneas abrange tambm a eleio dos titulares dos rgos de soberania e das regies autnomas (al. ff) e o estatuto dos titulares dos rgos de soberania (al. g)). A matria do estatuto dos titulares dos rgos das regies autnomas cabe aos respectivos estatutos poltico-administrativos.

(513) Esta reserva abrange de igua modo os oramentos do Estado e das regies autnomas.

240 Parte II A Autonomia Local

local. Doutro modo, elas ficariam disposio do Governo enquanto rgo legislativo, sendo grande o risco de atravs do Governo-legislador se manifestar o Governo-administrador, este com natural vocao para submeter a administrao local a uma regulamentao limitativa da autonomia. Risco que aumentaria em momentos de crise ou de conflito entre a administrao central e a local autnoma.

Matria especialmente delicada por motivo da determinao do seu contedo a do estatuto das autarquias locais, pelo que vai merecer particular ateno.

c) O estatuto das autarquias locais

O que deve entender-se por estatuto das autarquias locais?

Na redaco primitiva da CRP de 1976 havia um preceito que reservava para a Assembleia da Repblica, sob a forma de reserva relativa (514) a matria da organizao das autarquias locais (al. h) do art. 167.). J nessa altura se defendia que o termo organizao devia ser interpretado em termos amplos por forma a abranger no s o regime dos rgos autrquicos, mas tambm as atribuies das autarquias e a competncia dos seus rgos, isto , todo o estatuto das autarquias locais (515).

Aps a 1. Reviso Constitucional (1982), o estatuto das autarquias locais passou a ser expressamente matria de reserva legislativa da AR (reserva relativa) e do debate havido na Comisso Eventual para a Reviso Constitucional (CERC) resultou que a incluso na reserva legislativa da AR do estatuto das autarquias locais teve como finalidade substituir a alnea referente organizao das autarquias locais (516).

Este facto permite-nos estabelecer uma ligao entre estatuto e organizao das autarquias locais e afirmar que esta est includa naquele. E permite-nos tambm afirmar que por estatuto se quer dizer algo mais do que mera organizao (517).

(514) No texto de ento no havia a figura da reserva absoluta.

(515) J. J. GOMES CANOtiLHO VITAL MOREIRA, Constituio..., 1978, p. 334.

(516) Cfr. DAR, II Srie, Supl. ao n. 44, de 27 de Janeiro de 1982, p. 904 (4).

(517) NO debate ocorrido durante a 1. Reviso Constitucional houve quem recordasse que o estatuto poderia corresponder pela sua extenso a um Cdigo Administrativo (cfr. DAR, Srie, 2. Supl. ao n. 39, de 15 de Janeiro de 1982, p. 852 (66)).

Ttulo II A Autonomia Local na Constituio de 1976

241

Em nenhum lugar da Constituio encontramos, porm, uma noo de estatuto, embora este termo aparea em vrios lugares, com sentidos diferentes. Com efeito, fala-se, no prprio texto constitucional, do estatuto dos titulares dos rgos de soberania e do poder local (...) (al. l) do art. 167.), do estatuto dos magistrados (al. q) do art. 168.), do estatuto das empresas pblicas (al. x) do art. 168.), do estatuto nico dos juizes dos tribunais judiciais (art. 217., n. 1), do estatuto prprio do Ministrio Pblico (art. 221., n. 2), dos estatutos poltico-administrativos das regies autnomas (arts. 6., n. 2, e 228., n. 1), do estatuto de Macau (art. 292.). A palavra estatuto aparece ainda na CRP em epgrafe, falando-se ento de estatuto dos titulares de cargos polticos (art. 120.), de estatuto e eleio do Presidente da Repblica (Cap. I do Til. II da Parte III _arts. 123. a 135.) e de estatuto e eleio da Assembleia da Repblica (Cap. I do Tt. III da Parte III

arts. 150. a 163.).

O termo estatuto aparece, pois, na CRP, ora aplicada a pessoas individuais que exercem determinadas funes, ora a pessoas colectivas e mesmo a rgos (518). Em todos os casos parece existir, porm, um denominador comum que consiste no facto de, com o estatuto, se pretender definir o status, a posio jurdica (os direitos e deveres essenciais) dos respectivos destinatrios (categorias de pessoas individuais, pessoas colectivas ou rgos).

No de estranhar, porm, que seja o estatuto das pessoas colectivas pblicas (nomeadamente das regies autnomas) aquele que mais nos pode aproximar do que deve entender-se por estatuto das autarquias locais, como pessoas colectivas pblicas territoriais que tambm so. Ora, se compulsarmos, p. ex., o Estatuto da Regio Autnoma dos Aores (Lei n. 39/80, de 5 de Agosto, revisto pela Lei n. 9/87, de 26 de Maro) ou o da Madeira (Lei n. 13/91, de 5 de Junho) verificamos que se trata de diplomas que contm, para alm de alguns princpios gerais relativos caracterizao poltico-administrativa das respectivas Regies, regras relativas aos rgos regionais, respectiva composio, estatuto dos seus membros, poderes (competncias) e funcionamento, para alm de regras relativas s relaes entre os rgos de soberania e

(518) rgos unipessoais, como o Presidente da Repblica e rgos colegiais, como a Assembleia da Repblica.

242 Parte II A Autonomia Local

os rgos regionais, regime econmico e financeiro, finanas e bens da regio. Ou seja, o estatuto define, dentro do quadro constitucional, as regras essenciais respeitantes autonomia regional. Ele constitui, neste sentido, a lei fundamental da respectiva regio.

Convm referir, no entanto, que num aspecto importante o estatuto de uma regio autnoma se afasta do estatuto das autarquias locais. Enquanto aquele expresso de uma certa autonomia estatutria (a elaborao do projecto de Estatuto cabe Assembleia Regional respectiva, bem como a iniciativa da sua alterao), o das autarquias locais ditado pelo poder legislativo no se podendo falar aqui de uma autonomia ou poder estatutrio. O Prof. Afonso Queir escreve a este propsito, e em sede de fontes de direito administrativo, que hoje os entes pblicos menores, nomeadamente as autarquias locais, no possuem autonomia estatutria, no se podendo falar neste ponto, por isso, de estatutos como fonte de direito administrativo. O estatuto dos entes menores contendo nomeadamente a sua organizao, a competncia dos seus rgos, a definio dos seus fins e meios para os atingir fixado por lei ou regulamentos gerais (519)

Estamos agora em melhores condies para compreender o que deve entender-se por estatuto das autarquias locais. Este cumpre hoje em relao s autarquias a funo que os estatutos cumpririam se houvesse autonomia estatutria. O estatuto a carta uniforme aplicada a todas as autarquias locais (520).

S que o legislador no livre na definio do estatuto das autarquias locais (como estas no o seriam, alis, se gozassem de autonomia estatutria). Ele tem de respeitar sempre a arquitectura constitucional das autarquias locais. Tem de respeitar fundamentalmente a sua posio no ordenamento jurdico-constitucional e, por isso, o estatuto a concretizao, em termos de regras essenciais, da garantia institucional da autonomia local. Deve tocar as matrias que so essenciais para assegurar a autonomia, mas tambm s elas.

(519) A. QUEIR, Lies..., pp. 394 e segs.

(520) Rege assim, como refere A. Queir, o princpio da uniformidade (Lies..., p. 396), o que no impede, como natural, que a lei permita o estabelecimento de algumas especialidades de estrutura e organizao dentro do regime estatutrio geral, abrangendo aspectos no essenciais.

Ttulo II A Autonomia Local na Constituio de 1976 243

Essas regras essenciais _materialmente estatutrias _so desde logo, as que respeitam sua organizao, s suas atribuies e competncia dos respectivos rgos e ao seu funcionamento; pertencem tambm ao estatuto, por serem elemento da autonomia, as regras essenciais referentes ao poder regulamentar prprio, tutela, s finanas e ao pessoal prprio. So ainda do mbito do estatuto matrias que esto autonomizadas do preceito constitucional a ele referente (a j referida al. s) do n. l do art. 168.), mas que so decisivas para definir a sua posio jurdica (a sua autonomia) dentro do ordenamento jurdico, tais como as relativas ao regime de criao, extino e modificao territorial, s eleies dos rgos e referendo local e ao regime de elaborao e organizao dos oramentos (521). Neste sentido pode definir-se tambm estatuto das autarquias locais como o conjunto das regras que lhe determinam no essencial a condio e o regime jurdico (522). Pode mesmo imaginar-se um diploma contendo todas as matrias estatutrias das autarquias locais (523). No isso, contudo, o que sucede entre ns, estando as matrias do estatuto distribudas por vrios diplomas.

Estamos agora em condies de afirmar que a al. s) do n. 1 do art. 168. da CRP no inclui todas as matrias que formam o estatuto das autarquias locais mas apenas parte delas, mais concretamente as que respeitam sua organizao, abrangendo a composio dos respectivos rgos e seu funcionamento, atribuies e competncias, organizao dos servios e quadro de pessoal e tutela. A importncia de que se reveste o estatuto das autarquias locais justificava que ele constitusse uma matria

(521) Estas matrias esto autonomizadas ora porque a CRP instituiu em relao a elas uma reserva qualificada (reserva absoluta), ora porque esto ligadas regulao de matrias semelhantes de outros entes e rgos.

(522) G. CORNU, Vocabulaire Juridique, Paris, 1987, p. 759.

(523) Nesse sentido cfr. J. J. GOMES CANOTILHOVITAL MOREIRA, Constituio..., . vol., 2. ed., pp. 385/386, e 3. ed. revista, p. 888. Tratar-se-ia de um cdigo de poder local ou estatuto das autarquias locais. De notar, porm, que tal diploma teria de revestir a forma de Lei da Assembleia da Repblica pois conteria matrias de reserva absoluta desta como, p. ex., eleies autrquicas. De notar ainda que a expresso estatuto das autarquias locais no pode fazer-nos esquecer que o estatuto das freguesias no o mesmo que o dos municpios e que assim dentro de um mesmo diploma tenamos, pelo menos actualmente (enquanto as regies administrativas no forem criadas), o estatuto das freguesias e o estatuto dos municpios, com partes comuns certamente, mas tambm com partes especficas.

244

Parte II A Autonomia Local

da competncia exclusiva (sob a forma de reserva absoluta) da Assembleia da Repblica. Lida-se aqui no s com um princpio fundamental da Constituio (art. 6., n. 1), mas tambm com um limite material de reviso constitucional (art. 288., al. n)). No se entendeu, assim, em sede de reviso constitucional e, por isso, o Governo tambm pode legislar sobre ela desde que obtida a respectiva autorizao legislativa e foi o que sucedeu, em parte, entre ns.

O Governo na qualidade de rgo legislativo deu parcialmente cumprimento actual al. s) do n. 1 do art. 168. ao publicar, ao abrigo de uma lei de autorizao legislativa (Lei n. 19/83, de 6 de Setembro), os seguintes decretos-leis: Decreto-Lei n. 100/84, de 29 de Maro, tambm conhecido por Lei das Autarquias Locais que regula essencialmente a organizao das autarquias locais, bem como as suas atribuies e competncias dos respectivos rgos; o Decreto-Lei n. 98/84, de 29 de Maro (524), sobre as finanas locais (a al. s) inclui expressamente no estatuto das autarquias locais o regime financeiro destas); o Decreto-Lei n. 116/84, de 6 de Abril, respeitante organizao e funcionamento dos servios tcnico-administrativos das autarquias locais (matria intimamente ligada ao quadro de pessoal prprio institudo pelo n. l do art. 244. da CRP, aps a 1. reviso constitucional); e ainda o Decreto -Lei n. 77/84 de 8 de Maro, referente matria de investimentos pblicos com a finalidade de delimitar e coordenar actuaes (matria muito ligada s finanas locais). A Lei n. 19/83 autorizava ainda o Governo a rever o regime de tutela, mas nesta parte a autorizao no foi utilizada, tendo sido esta matria objecto, posteriormente, da Lei n. 87/89, de 9 de Setembro. Deste modo, os diplomas que concretizam o estatuto das autarquias locais nos termos da actual al. s) do n. l do art. 168. da CRP so essencialmente os agora referidos (525) merecendo ateno particular o Decreto-Lei n. 100/84 pelas dificuldades de interpretao que em matria de atribuies e competncias tem suscitado.

O principal problema o de saber se ele contm a matria prpria de estatuto relativa a atribuies das autarquias locais e competncias

(524) Este diploma foi, entretanto, substitudo pela Lei n. 1/87, de 6 de Janeiro.

(525) No se podendo esquecer ainda, apesar de anterior, o Decreto-Lei n. 701-B76, de 29 de Setembro, posteriormente alterado nomeadamente pela Lei n. 14B/85, de 10 de Julho, que regula a matria das eleies para as autarquias locais.

Ttulo II A Autonomia Local na Constituio de 1976 245

dos respectivos rgos ou se tal matria ficou _pelo menos, parcialmente _de fora, sendo necessrios outros diplomas ao abrigo da al. s), j mencionada, para a regular devidamente. Para esclarecer esta questo vejamos o que dispe este diploma.

No que toca a atribuies o Decreto-Lei n. 100/84 limita-se a prescrever no n. 1 do seu art. 2. que atribuio das autarquias locais o que diz respeito aos interesses prprios, comuns e especficos das populaes respectivas, enumerando a ttulo exemplificativo (designadamente) e de forma muito ampla algumas matrias como, p. ex., o desenvolvimento (al. b)), o abastecimento pblico (al. c)), a sade (al. e)), a educao e ensino (al. f)), a proteco infncia e terceira idade (al. g)), a cultura tempos livres e desporto (al. h)), a defesa e proteco do meio ambiente (...) (al. ) e a proteco civil (al. j)).

Acrescenta o n. 2 do mesmo art. 2. que o disposto no n. 1 concretiza-se no respeito pelo princpio da unidade do Estado e pelo regime legalmente definido de delimitao e coordenao de actuaes da administrao central e local em matria de investimentos pblicos. Lendo o Decreto-Lei n. 77/84, que o diploma para que remete este nmero, verificamos que respeita essencialmente a atribuies dos municpios (e s destes) em matria de investimentos pblicos (articulada com o sistema de planeamento art. 5.). Em concreto este diploma, na parte em que especialmente nos interessa aqui focar, define competncias (526) dos municpios em matria de investimentos (art. 8.) e em matria de planeamento e urbanismo (diversas alneas dos arts. 6. e 10.) sendo certo que, entretanto, o DecretoLei n. 69/90, de 2 de Maro, revogou expressamente as alneas dos arts. 6. e 10. que respeitavam ao planeamento municipal (planos directores) e ao urbanismo. extensa a lista de domnios em que cabe exclusivamente aos municpios fazer investimentos (art. 8.), implicando a maior parte deles a realizao de obras e equipamentos, mas o Decreto-Lei no garante, nem sequer define competncias ou atribuies para gerir os servios de que esses equipamentos so suporte. Numa

(526) Embora a doutrina portuguesa faa uma clara distino entre atribuies (das pessoas colectivas) e competncias (dos rgos) entendendo por atribuies os fins a prosseguir plos entes pblicos e por competncias os poderes dos rgos para os levar a cabo (cfr., por todos M. CAETANO, Manual..., Tomo I, pp. 211 e segs.) o legislador no segue, com rigor, essa distino e fala frequentemente em competncias num sentido amplo que abrange tambm as atribuies.

246 Parte II A Autonomia Local

palavra, este diploma diz-nos, p. ex., que cabe aos municpios construir centros de sade e estabelecimentos escolares do ensino bsico, mas nada diz sobre as competncias dos municpios relativas aos servios de sade prestados a partir de tais centros ou relativas ao ensino prestado nos estabelecimentos escolares. Em resumo, este diploma completa de certo modo o Decreto-Lei n. 100/84 em matria de investimentos e _enquanto no foi revogado nessa parte _de planeamento urbanstico, no deixando de ser contudo um diploma fundamentalmente ligado a aspectos financeiros, assim, se explicando que, na sua gnese, esteja um preceito (o art. 10., n. 1) da Lei n. 1/79, de 2 de Janeiro, que foi a primeira Lei de Finanas Locais (cfr. prembulo do Decreto-Lei n. 77/84).

Vista a matria de atribuies regulada essencialmente no art. 2. do Decreto-Lei n. 100/84 que nos diz este diploma sobre competncias dos rgos das autarquias locais?

Se lermos os preceitos que a elas se referem (art. 15., relativo Assembleia de Freguesia; art. 27., relativo Junta de Freguesia;

art. 39., relativo Assembleia Municipal; art. 51., relativo Cmara Municipal) verificamos que so escassas e desgarradas as competncias referentes a tarefas de aco administrativa, ou seja, no encontramos l as competncias que os rgos municipais e mesmo paroquiais exercem regularmente no desenvolvimento da sua quotidiana actividade administrativa (Handiungskompetenzen). Vemos sim que grande parte dos preceitos se referem a assuntos internos (regimentos, eleio de vogais ou de vereadores a tempo inteiro), assuntos jurdicos e judiciais, finanas (p. ex., elaborao e aprovao de oramentos ou contas de gerncia), servios (dirigir os), relaes com outros rgos, etc. Ou seja, em vo procuraremos neste diploma, ou no Decreto-Lei n. 77/84, a regulao substantiva das tarefas administrativas com indicao das atribuies e competncias que lhes servem de suporte (527).

Ora, assim sendo, coloca-se o problema: pode dizer-se que a matria estatutria de atribuies e competncias est regulada nos diplomas referidos ou importa que, sempre que se regulem atribuies e competncias das autarquias locais, se utilize o processo legislativo qualificado que resulta da al. s) do n. 1 do art. 168 da CRP?

(527) Isto mesmo reconhecem J. J. GOMES CANOTILHOVITAL MOREIRA, Constituio..., 3. ed., p. 888.

Ttulo II A Autonomia Local na Constituio de 1976 247

Entendemos que a matria estatutria de atribuies das autarquias locais e competncias dos respectivos rgos consta j dos Decretos-Leis n. 100/84 e 77/84 e isto porque o estatuto no exige de nenhum modo que dele conste tudo o que respeita s atribuies e competncias das autarquias, mas apenas o essencial. E o essencial sobre atribuies est definido no art. 2. do Decreto-Lei n. 100/84 ao fixar uma clusula geral de atribuies, exemplificando alguns sectores onde ela se pode manifestar e remetendo ainda, em aspectos mais concretos, para o Decreto-Lei n. 77/84. certo que estes diplomas poderiam ir mais longe. Poderiam, como fazia o antigo Cdigo Administrativo (1940), e faz por exemplo a actual lei de regime local espanhola (528), indicar mais concretamente as matrias que constituam atribuies das autarquias locais. Poderiam, seguir um caminho paralelo ao do Estatuto Poltico-Administrativo da Regio Autnoma dos Aores que, depois de referir, em matria legislativa, uma clusula geral de competncia (interesse especfico) no art. 32, al. c), do Estatuto, indica logo a seguir, a ttulo exemplificativo, uma extensa lista de matrias consideradas de interesse especfico (art. 33.) (529). As leis estatutrias que temos estado a referir no seguiram esse caminho e ficaram por uma definio geral e abstracta. Porm tal definio , a nosso ver, suficiente pois nela cabem todas as atribuies das autarquias locais respeitantes aos interesses prprios das populaes respectivas. Alis, dificilmente uma lei estatutria poderia esgotar a matria das atribuies das autarquias locais e nomeadamente dos municpios. No se pode esquecer que estamos perante pessoas colectivas de fim mltiplo e no de fim nico, sendo certo que tais pessoas colectivas territoriais tm um domnio de actuao tendencialmente ilimitado. Acresce que a eventual enumerao de atribuies no significaria nem que s elas coubessem no mbito das atribuies

(528) Cfr., quanto aos municpios, o art. 25. da Lei 7/1985, de 2 de Abril. Este preceito deve ser conjugado com o art. 2. e o art. 5. da mesma lei. De todos eles resulta que o regime substantivo das funes e dos servios das autarquias locais (municpios e provncias) resulta nomeadamente da legislao do Estado e das Comunidades Autnomas segundo a distribuio constitucional de competncias.

(529) O mesmo sucede com o Estatuto Poltico-Administrativo da Regio Autnoma da Madeira aprovado pela Lei n. 13/91, de 5 de Junho (arts. 29., al. d), e 30.). No assim com o Estatuto Provisrio da Madeira que no fazia uma listagem das matrias de interesse especfico.

Parte II A Autonomia Local

248

das autarquias locais, nem sequer que essas mesmo coubessem necessariamente. Na verdade, feita a enumerao restaria ainda demonstrar que nelas se encontravam interesses prprios das autarquias locais (530).

Se no cabe no estatuto das autarquias locais uma indicao exaustiva das atribuies em concreto, muito menos cabe a indicao completa das competncias dos rgos. A regulao de uma matria em concreto implica uma larga soma de competncias conferidas aos rgos das autarquias locais. A exigncia do estatuto ca, porm, satisfeita com a enumerao de competncias que permitam aos rgos das autarquias locais adaptar-se s diversas tarefas cuja realizao lhes competir de acordo com a sua natureza de rgo deliberativo, executivo ou, se existir, consultivo.

Mas, sendo assim, onde devemos encontrar as normas que, em concreto, regulam as atribuies das autarquias locais e competncia dos seus rgos (531)?

Em nosso entender _importa acentuar isso _a resposta est na Constituio e dada pelo art. 239. ao prescrever que as atribuies das autarquias locais e a competncia dos seus rgos so estabelecidas por lei de acordo com o princpio da descentralizao administrativa. A palavra lei tem aqui o sentido de acto legislativo (art. 115., n. 1, da CRP) e no de lei da Assembleia da Repblica ou de decreto-lei autorizado exigido pelo estatuto das autarquias locais. Isto resulta, como se disse, do entendimento que deve ser dado expresso estatuto das autarquias locais e compreende-se ainda melhor se tivermos em conta que o campo da aco administrativa das autarquias locais deve ser o resultado normal do exerccio do poder legislativo em matria administrativa. Ser o legislador, no caso competente, que ao regular determinada matria (por exemplo sade, educao, meio ambiente, etc) dever conferir s autarquias locais as atribuies e competncias que correspondam aos interesses prprios existentes na matria a regular.

(530) Cfr., a este propsito, J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituio..., 3. ed. revista, pp. 853/854, sobre a enumerao de matrias de interesse especfico no Estatuto da Regio Autnoma dos Aores.

(531) J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituio..., 3. ed., p. 888, remetem fundamentalmente para o Cdigo Administrativo de 1940, nesta parte ainda em vigor.

Ttulo II A Autonomia Local na Constituio de 1976 249

Esse legislador poder ser a Assembleia da Repblica dados os seus largos poderes legislativos e em certos casos s ela, se a matria a regular for da sua competncia exclusiva (reserva absoluta), e poder ser o Governo, enquanto rgo legislativo, se a matria a regular se contiver dentro dos seus poderes legislativos (ou se receber autorizao para tal no caso de se tratar de matria de reserva relativa da Assembleia da Repblica) (532).

Afastamo-nos, deste modo, do pensamento daqueles que porventura defendam que toda a matria relativa a atribuies e competncias dos rgos das autarquias locais da competncia reservada da Assembleia da Repblica (reserva relativa) (533). Na base deste entendimento est a ideia _a nosso ver incorrecta _de que existe uma matria administrativa que cabe na noo de interesses prprios que deve ser regulada pela AR por fazer parte da essncia da autonomia local. No se compreenderia _afirma-se _que essa matria fosse colocada na disponibilidade legislativa normal do Governo.

Como, igualmente, nos afastamos daqueles que porventura defendam que preciso distinguir entre as atribuies e competncias das autarquias locais respeitantes a matrias que constituem o ncleo essencial da autonomia e as atribuies e competncias relativas a matrias colocadas fora desse ncleo. Em relao s primeiras, e s a elas, existiria uma reserva legislativa da AR. Na verdade, tambm na base desta concepo est a ideia de que existe uma matria administrativa que constitui o ncleo essencial (e por isso intocvel) da autonomia (534), ideia que no

(532) E poder mesmo, se bem interpretamos, a Assembleia Regional dos Aores, mas neste caso quando for necessrio _e na medida em que o for _adaptar a regulao da matria aos interesses especficos da regio autnoma. Com efeito, dispe a al. c) ao n. 1 do art. 32., conjugada com a al. b) do art. 33. do Estatuto PolticoAdministrativo da Regio Autnoma dos Aores que a Assembleia Regional pode alterar as atribuies das autarquias locais ou a competncia dos respectivos rgos. Isto deve ser entendido no como um poder da Assembleia Regional para legislar directamente sobre atribuies e competncias mas para adaptar as mesmas regio autnoma. No sentido da inconstitucionalidade desta disposio cfr. JORGE MIRANDA, O Interesse Especfico das Regies Autnomas, in A Autonomia como fenmeno cultural e poltico Angra do

Herosmo, 1987, p. 115.

(533) o que parece depreender-se de J. J. GOMES CANOTILHOVITAL MOREIRA, Constituio..., 3. ed. revista, p. 886. Em sentido diferente, defendendo um conceito de estatuto que acompanhamos, cfr. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Distribuio..., p. 25.

(534) Esta concepo encontra inspirao na doutrina alem.

250 Parte II A Autonomia Local

defendemos. No se pode falar de matrias essenciais ou no essenciais, mas apenas da existncia ou no de interesses prprios das populaes das autarquias locais, nas mais diversas matrias de administrao pblica.

O essencial, em sede de autonomia local, no que toca a atribuies e competncias que sejam conferidas aos municpios (e outras autarquias locais) as atribuies e competncias respeitantes aos interesses prprios existentes nas matrias administrativas que o legislador regule, deixando-se ainda um espao livre (n. 1 do art. 2. do Decreto-Lei n. 100/84) para actuao das autarquias locais naqueles domnios no cobertos por legislao estadual e que toquem igualmente interesses das populaes respectivas. Deste modo, o legislador competente para regular uma determinada matria tem o dever constitucional de verificar, sempre, se nela existem interesses prprios das comunidades locais e, em caso afirmativo, tomar em considerao tais interesses, conferindo s autarquias locais as atribuies e competncias adequadas respectiva satisfao.

Daqui resulta tambm que se acompanhamos o pensamento de Srvulo Correia ao escrever que as atribuies das autarquias locais e competncias dos seus rgos vm hoje reguladas no Decreto-Lei n. 100/84, j no acompanhamos a ideia de que a lei para o qual remete o art. 239. da CRP so os referidos Decretos-Leis n. 100/84 e 77/84 (535). Este autor vai mesmo mais longe e parece identificar estatuto das autarquias locais e atribuies e organizao das autarquias locais bem como a competncia dos respectivos rgos, estabelecendo assim uma relao directa entre a al. s) do n. 1 do art. 168. e o art. 239. da CRP (536). Tal entendimento demasiado restritivo da ideia de estatuto afastando-se daquela que atrs expusemos.

Tambm inaceitvel a consequncia que o mesmo conceituado autor retira, em matria de atribuies, da sua concepo de estatuto. Este, uma vez definido pela forma indicada, garantiria s autarquias locais uma reserva de normao, no sentido de que s as autarquias locais poderiam regular de forma autnoma as matrias que estatutariamente (fundamentalmente o Decreto-Lei n. 100/84) lhes estariam reser-

(535) SRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual..., pp. 265/266.

(536) SRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual..., p. 273.

Ttulo II A Autonomia Local na Constituio de 1976 251

vadas (537). Tal reserva impor-se-ia constitucionalmente ao legislador que no poderia invadir esse domnio. Apenas admitida uma excep o: naquelas matrias em que esto em causa interesses que possuem uma dimenso nacional (como o caso, que expressamente aponta, dos loteamentos) seria de admitir uma interveno do legislador para regular a matria. Mas s neste caso, pois diz logo a seguir: Excludas, porm, as matrias que pelas razes expostas caream de disciplina normativa a nvel nacional embora com execuo relegada para os rgos autrquicos, e traado o quadro estatutrio das autarquias atravs de lei ou leis emitidas para dar cumprimento ao art. 239. da Constituio fica, em tudo aquilo que a lei remete para as atribuies das autarquias e para a competncia dos seus rgos, delimitado um espao garantido s comunidades locais (538).

A nosso ver, este entendimento parece esquecer que, nos nossos dias, as mais importantes matrias de administrao pblica (e que esto mencionadas a ttulo exemplificativo no art. 2. do Decreto-Lei n. 100/84 como constitudo atribuies das autarquias locais) tocam interesses nacionais e que, por isso, se torna necessria a interveno da lei a qual no deve, como sustenta Srvulo Correia, relegar aspectos de execuo para os rgos autrquicos mas antes, cumprindo exactamente o disposto no art. 2., conferir-lhes atribuies e competncias no que toca aos interesses que so prprios das populaes respectivas. , pois, um entendimento totalmente diferente. Na base da concepo de Srvulo Correia est afinal, e mais uma vez, a ideia de matrias que exclusivamente respeitam aos interesses prprios (539) das populaes das autarquias e que, por isso, apenas plos rgos destas devem ser reguladas no uso do poder regulamentar autnomo que a CRP lhes atribuiu no art. 244.

O entendimento que defendemos no exige pois, nem que se tenha de seguir um caminho legislativo formalmente qualificado (reserva legislativa da al. s) do n. 1 do art. 168. da CRP) para conferir toda e qualquer atribuio e competncia s autarquias locais ou, plos menos, aquelas consideradas essenciais, nem que se proba o legislador de mter-

(537)SRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual..., pp. 267 e 275.

(538)SRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual..., PP. 274275.

(539)SRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual..., p. 275.

252 Parte II A Autonomia Local

vir no espao reservado normao autnoma das autarquias locais pelas leis estatutrias, no entendimento que lhe d Srvulo Correia.

No primeiro caso (exigncia de diplomas legislativos qualificados), no s se iria ao arrepio da prtica legislativa no nosso pas em que normal o Governo conferir atribuies e competncias s autarquias locais quando, no exerccio dos seus amplos poderes legislativos, regula matrias administrativas, como poderia produzir-se o efeito perverso de o Governo, para evitar problemas de inconstitucionalidade, fugir a conferir atribuies e competncias s autarquias ao regular matria em que existissem interesses prprios destas (540). No segundo caso, o legislador quer fosse a Assembleia da Repblica, quer o Governo estaria excessivamente comprimido no seu campo de aco tendo de recorrer frequentemente invocao da existncia de interesses nacionais para evitar questes de inconstitucionalidade.

No parece, pois, que deva ser qualquer desses caminhos o indicado. O que deve exigir-se aos diversos rgos com poder legislativo que tenham em conta ao exercer a sua funo, os interesses prprios das autarquias na matria que objecto de legislao (541). Ou seja que respeitem o princpio constitucionalmente consagrado da descentralizao administrativa (art. 239.). Nos termos de tal princpio, o exerccio das tarefas administrativas deve caber de preferncia s autarquias que esto mais prximas dos cidados, salvo exigncias de uma realizao a nvel administrativo superior ditadas pela natureza da tarefa ou por razes de eficcia.

Est tambm afastada a regulao de atribuies e competncias por via regulamentar, mas isso por fora do princpio da autonomia que exige uma relao de no subordinao da administrao local administrao estadual ou regional e que, desse modo, seria posta em causa.

d) A autonomia das autarquias locais como limite material de reviso constitucional

A CRP no se contenta com dedicar largo espao matria da administrao local autrquica estabelecendo, em sede de princpios fun-

(540) Alm disso, teria de considerar-se inconstitucional a al. b) do art. 33. do Estatuto dos Aores, pois vedado s regies autnomas legislar sobre matrias reservadas Assembleia da Repblica.

(541) Repare-se que no falmos, nem precismos de falar em interesses locais ou exclusivamente locais das autarquias.

Ttulo II A Autonomia Local na Constituio de 1976 253

damentais, a respectiva autonomia e explicitando os seus elementos constitutivos no Tt. VIII da Parte III. Vai mais longe ainda e estabelece na al. n) do art. 288. que as leis de reviso constitucional devero respeitar a autonomia das autarquias locais.

Esta ltima disposio exprime como que uma garantia absoluta da instituio autonomia das autarquias locais devendo ser entendida como uma afirmao da importncia que ela assume na estruturao do Estado de direito democrtico (art. 2. da CRP). Dela deve depreender-se que o Estado de direito que entre ns vigora, baseado na dignidade da pessoa humana e na soberania popular, no dispensa a autonomia local, sendo esta um elemento constitutivo do mesmo (542). A separao vertical dos poderes que a autonomia local exprime , consequentemente, indispensvel caracterizao do Estado republicano sado da Constituio de 1976.

No entanto, deve ter-se presente que o limite material de reviso constitucional no abrange necessariamente todas as categorias de autarquias locais e nem sequer a mais tradicional delas, o municpio. O limite material abrange apenas as autarquias locais em geral e, assim, se por virtude de alterao do actual art. 238., o municpio ou a freguesia deixassem de fazer parte do elenco das autarquias locais, a garantia que resulta da al. n) do art. 288. da CRP deixaria de cobrir as categorias suprimidas. De qualquer modo, e particularmente no que toca ao municpio, que a autarquia local de maior significado histrico e de maior importncia na nossa administrao local autnoma, no seria facilmente concebvel a sua eliminao das categorias de autarquias locais.

(542) Neste sentido, cfr. o que dissemos no n. 2 deste captulo.

PARTE III

A ADMINISTRAO LOCAL AUTARQUICAPARTE III

A ADMINISTRAO LOCAL AUTARQUICACAPTULO 1

REGIME GERAL DAS AUTARQUIAS LOCAIS

1. Introduo

O regime actual da administrao local autrquica resulta, fundamentalmente, do desenvolvimento legislativo dos preceitos constitucionais a ela respeitantes e dos contributos dados pela jurisprudncia e pela doutrina. esse regime que vai ser objecto de ateno abordando-se, em primeiro lugar, as autarquias locais em geral e focando depois, em captulos sucessivos, as especialidades prprias dos municpios e das freguesias, fazendo uma referncia breve s regies administrativas e a outras formas de organizao autrquica e terminando com uma aluso a algumas modificaes previsveis na nossa administrao local actual.

Existe, hoje, um aprecivel leque de importantes diplomas sobre a administrao local autrquica cuja leitura e interpretao indispensvel para conhecer este nvel de Administrao Pblica. Podemos avanar, desde j, que a maior parte deles envolve as duas categorias de autarquias locais existentes (municpios e freguesias), mas vrios outros dirigem-se exclusivamente aos municpios (p. ex., associaes de municpios e pessoal dirigente das autarquias locais) ou de forma predominante a estes (p. ex., finanas locais). Efectivamente, os municpios so a autarquia local por excelncia na expresso de um acrdo do TC (543) e isso revela-se claramente na legislao. Acresce ainda a existncia de um

(543) Ac. do TC n. 358/92, publicado no DR, 1 Srie-A, n. 21, de 26 de Janeiro de 1993, p. 301. Referindo-a tambm como a autarquia local mais importante, cfr. J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituio.--- 3. ed. revista, 1993, p,904.p.258 Parte III -A Administrao Local Autrquica

nmero muito vasto de outros diplomas, cuja enumerao no s seria praticamente impossvel de efectuar como sairia fora do mbito deste trabalho, que conferem atribuies e competncias, impem obrigaes e concedem faculdades s autarquias locais. Est aqui a regulamentao mais extensa da administrao local e convm referir que ela privilegia tambm, de forma clara, os municpios. Importantes domnios de actividade administrativa esto-lhes reservados e a justificao para tal pode encontrar-se, muitas vezes, no facto de eles possurem a dimenso mais adequada para a realizao dessas tarefas. No devemos perder de vista que a complexidade das tarefas administrativas requer meios financeiros, humanos e tcnicos que uma autarquia de pequena dimenso como , normalmente, a freguesia no est em condies de exercer devidamente.

No direito relativo administrao local autnoma necessrio ter ainda em conta a ratificao da Carta Europeia de Autonomia Local, aprovada no mbito do Conselho da Europa, em 15 de Outubro de 1985, e que est em vigor, no nosso pas, desde 1 de Abril de 1991, dado o disposto no n. 3 do art. 15. da Carta, que determina a entrada em vigor desta - para os Estados que, como o nosso, exprimiram posteriormente o seu consentimento - no primeiro dia do ms seguinte ao decurso do prazo de trs meses, aps a data do depsito do instrumento de ratificao. Efectivamente, este depsito por parte do Estado portugus ocorreu em 18 de Dezembro de 1990 (cfr. Aviso n. 13/91, publicado no DR,

1 Srie-A, de 1 de Fevereiro) (544).

2. Noo de autarquias locais

As autarquias locais so, nos termos do art. 237., n. 2, da CRP, pessoas colectivas territoriais dotadas de rgos representativos, que visam a prossecuo de interesses proprios das populaes respectivas. Trabalhando mais apuradamente este conceito Freitas do Amaral refere que elas so pessoas colectivas pblicas de populao e territrio, correspondentes aos agregados de residentes em certas circunscries do ter-

(544) Os diplomas relativos ratificao (Resoluo da Assembleia da Repblica n. 28/90 e Decreto do Presidente da Repblica n. 58/90, de 23 de Outubro, foram publicados no DR, de 23 de Outubro de 1990.ritrio nacional, e que asseguram a prossecuo dos interesses comuns resultantes da vizinhana, mediante rgos prprios, representativos dos respectivos habitantes (545). Esta definio tem a vantagem de pr em destaque os elementos da noo de autarquia que so a populao, o territrio, a prossecuo de interesses prprios e a existncia de rgos representativos.

A populao constituda pelos portugueses residentes no respectivo territrio. No , com efeito, a naturalidade que confere a qualidade de membro de uma autarquia a uma pessoa, com os direitos nomeadamente de natureza poltica da decorrentes, mas a nacionalidade e a residncia. Quanto nacionalidade de ter em conta, porm, o disposto no n.O 4 do art. 15.o da CRP, introduzido pela reviso de 1992, que permite a atribuio, por lei, de capacidade eleitoral activa e passiva para a eleio dos titulares de rgos das autarquias locais a estrangeiros residentes no territrio nacional, em condies de reciprocidade (546). Deste preceito, decorrente do Tratado da Unio Europeia, resulta que cidados estrangeiros, nomeadamente dos pases comunitrios, desde que residentes em Portugal, podem ser municipes ou fregueses (547) das autarquias onde residem, com o direito correspondente de participar na vida das mesmas (548). Este preceito, quando aplicado, dar direitos a um estrangeiro residente numa determinada autarquia que um cidado portugus dela natural, mas l no residente, no ter. Quanto residncia, ela deve ser habitual na rea da autarquia de modo a permitir a inscrio no recenseamento eleitoral que elaborado, no continente e nas Regies Autnomas, ao nvel da freguesia (arts. 10. e 1 1., n. 2, al. a), da Lei n. 69/78, de 3 de Novembro). A segunda residncia ou o local de tra-

(545) D. FREITAS Do AMARAL, CUrSO..., VOl. i, p. 415.

(546) O n. 3 do mesmo art. 15. da CRP permite tambm a atribuio, mediante conveno internacional, de direitos da mesma natureza aos cidados dos pases de lngua portuguesa. Voltaremos a este assunto a propsito de eleies autrquicas.

(547) No h para os membros das freguesias uma expresso consagrada equivalente de muncipes e a expresso paroquianos, que por vezes se usa, mais do mbito eclesistico. Sobre a distino entre meros habitantes e muncipes, cfr., no direito alemo, R. STOBER, Kommunalrecht, Heidelberg, 1987, pp. 56 e segs.

(548) certo que os muncipes tambm tm deveres como os de pagar impostos locais, mas estes deveres estendem-se tambm a no muncipes desde que tenham, p. ex., bens no territrio municipal, estando sujeitos, nesse caso, ao pagamento da contribuio autrquica.p.260 Parte II A Administrao Local Autrquica

balho no conferem dreito de pertena a uma autarquia. Tambm um cidado portugus residente no estrangeiro (ou no territrio de Macau) pode a inscrever-se no recenseamento eleitoral de acordo com a Lei n. 69/78 mas no ficar, por esse facto, a pertencer a uma autarquia do continente ou das regies autnomas, ainda que seja a da sua naturalidade (549).

O territrio de uma autarquia local constitudo por uma poro do territrio nacional devidamente delimitada (circunscrio administrativa), permitindo definir a populao respectiva e dentro do qual os rgos representativos exercem os poderes que lhe so atribudos.

A prossecuo de interesses comuns elemento indispensvel do conceito de autarquia local. A populao e o territrio so elementos necessrios mas no fazem uma autarqua. Esta s torna consistncia quando a populao assente num determinado territrio assume como tarefa comum a satisfao de interesses prprios decorrentes da vida em comunidade. No dizemos interesses prprios resultantes da viznhana porque entendemos que de vizinhos s poderemos falar, com propriedade, a propsito das freguesias (e mesmo, dentro destas, tendo em considerao apenas os respectivos lugares ou ruas), no se adequando essa expresso aos moradores dos municpios, dada a dimenso que eles possuem. Mas podemos falar de autarquas, sejam municpios ou freguesias, como de comunidades locais com problemas e aspiraoes comuns que ligam os respectivos habitantes (550). O sentimento de pertena a essa comunidade fundamenta a autarqua, enquanto a ausncia dele dssolve-a e pode dar lugar constituio de outra ou outras.

Finalmente a existncia de rgos representativos da populao respectiva que completa a noo de autarquia local. Sem rgos representativos no teramos j uma autarqua mas apenas, desde que reunidos os restantes elementos, uma autarquia em gestao. Esta s nasce quando pode exprimir a sua voz atravs de orgos que o representem. A organizao democrtica do Estado exige, quanto a este aspecto, que,

(549) Embora possa ser eleito para os respectivos rgos, como veremos ao tratar o tema da capacidade eleitoral passiva.

(550) A noo de habitante , no entanto, mais ampla que a de membro de uma autarquia, pois no formam a populao desta os habitantes de segunda residncia, nem os estrangeiros (a no ser nos casos previstos no art. 15. da CRP).

Captulo 1 Regime Geral das Autarquias Locais p.261

pelo menos, um desses rgos (assembleia dotada de poderes deliberativos) resulte de eleio por sufrgio universal, directo e secreto dos cidados residentes (art. 241., n. 2, da CRP) e, apenas em casos de excepo, se admite a existncia de rgos nomeados ( o que sucede, p. ex., com as comisses instaladoras de novos municpios e freguesas e com as comisses administrativas subsequentes dissoluo de rgos executivos previstas no art. 13. da Lei n. 87/89, de 9 de Setembro, relativa tutela administrativa das autarquias locais).

3. Criao, modificao e extino das autarquias locais

O direito de autonomia das autarquias locais no garante o direito existncia de cada uma delas como tivemos o cuidado de referir ao tratarmos da garantia constitucional da autonomia local (551).

Assim, nada impede a criao de novas autarquias locais nem a modificao e extino das actualmente existentes. O que est impedido a alterao do actual mapa territorial das autarquias locais sem observncia de algumas regras constitucionalmente estabelecidas. Desde logo, o regime relativo a esta matria da exclusiva competncia da AR, sob a forma de reserva absoluta (art. 167., al. n), da CRP). Por outro lado, a criao, modificao ou extino em concreto das autarquias locais, no que toca aos arquiplagos dos Aores e da Madeira, da competncia das respectivas regies autnomas, embora com respeito, como bvio, pelo regime legal estabelecido pela AR (art. 229., n. 1, al. j), da CRP).

O regime legal actualmente vigente no consta de uma lei apenas, existindo uma lei recente sobre o regime jurdico da criao de freguesias (Lei n. 8/93, de 5 de Maro) e uma lei quadro da criao de municpios (Lei n. 142/85, de 18 de Novembro). Uma lei mais antiga, parcialmente revogada no que toca ao regime jurdico das freguesias, determina, por sua vez, as regras para a elevao de povoaes a vilas e a de vilas a cidades (Lei n. 11/82, de 2 de Junho). De referir ainda uma lei quadro das regies administrativas (Lei n. 56/91, de 13 de Agosto) regulando, para alm de outras matrias, o regime relativo instituio concreta das regies, distinguindo entre a criao destas, que ser feita

(551) Cfr. Cap. iii da Parte ii.

P.262simultaneamente por lei da AR (art 12.) e a instituio em concreto de cada uma delas feita igualmente por lei da AR.

Faremos referncia a estes diplomas nos lugares prprios.

4. A democracia local: eleio dos orgos e referendo local

a) Eleio dos rgos

A eleio dos rgos das autarquias locais foi sempre uma reIvindicao fundamental em matria de autonomia local. Considera-se que a democracia exige eleies no s a nvel nacional como a nvel local, constituindo este a base e a escola da democracia.

certo que a eleio dos rgos no , do ponto de vista estritamente jurdico, o nico processo de garantir a no dependncia dos rgos das autarquias locais perante a administrao estadual (552). Porm, a eleio , num Estado de estrutura democrtica, ou seja, baseado na soberania popular, o processo prprio para o preenchimento dos rgos das autarquias locais. Mais do que isso o nico processo legtimo, podendo dizer-se que no h autonomia (ou descentralizao territorial) verdadeira sem eleio dos rgos das autarquias locais pelos respectivos residentes (553). J. Baptista Machado escreve a este propsito que a descentralzao pressupe a eleio dos rgos e que tal eleio a trave-Mestra da descentralizao (-554) e para Freitas do Amaral a escolha dos rgos das autarquias locais atravs de eleies livres , inclusiv, um elemento de uma noo rigorosa de autarquia local (555).

O princpio da eleio dos rgos est plenamente consagrado no s na CRP (arts. 116., n. 1, 237., n. 2, e 241., n.os 1 e 2), como na lei ordinria, sendo aqui fundamental ainda um diploma de 1976, o Decreto-

(552) Nesse sentido aponta muito claramente Ch. EiSENMANN, Problmes dorganisation de lAdministraton, in Cours de Droit Administratif, Tomo 1, Paris, 1982, pp. 275 e segs., para quem o mesmo objectivo poderia ser atingido, p. ex., atravs de sorteio. Cfr., tambm, A. GONALVES PEREIRA, Contribuio para uma Teoria Geral do Direito Municipal, dssertao, polic., Faculdade de Direito, Lisboa, 1959, p. 145.

(553) Cfr. J.-C. NEMERY, De La Libert des Communes dans lAmnagement du Territoire, Paris, 1981, p. 25, que fala a este propsito da legitimit como elemento da descentralizao e que invoca nomeadamente o ensinamento de M. Hauriou.

(554) J. BAPTISTA MACHADO, Participao..., p. 28.

(555) D. FREITAS Do AMARAL, Curso.--- vol. 1, Coimbra, 1986, p. 419.

Captulo I Regime Geral das Autarquias Locais P.263

-Lei n.o 701-B/76, de 29 de Setembro, com as alteraes que lhe foram introduzdas principalmente pela Lei n. 14-BI85, de 10 de Julho (a que prestaremos ateno de seguida), e em termos tais que permitem afirmar que, neste momento, a autonomia local no sofre praticamente qualquer entorse. De referir, no entanto, e no que toca matria de candidaturas a importante restrio, feita a favor dos partidos polticos, do poder de apresentar candidaturas eleio dos rgos municipais pelo art. 22.O do Decreto-Lei n. 701-A/76, de 29 de Setembro. j o mesmo no sucede para a eleio da Assembleia de Freguesia, permitindo o art. 5. desta mesma lei a apresentao de candidaturas por grupos de cidados (556).

Em matria de eleies para as autarquias locais valem princpios fundamentais do nosso direito eleitoral que constam desde logo dos arts. 48.O, 49 ,O e 50. da CRP e que se traduzem na directriz geral de que todos os cidados portugueses (557) maiores de 18 anos, devidamente recenseados, tm capacidade eleitoral para eleger e ser eleitos, constituindo o exerccio do voto um direito e um dever.

Capacidade eleitoral activa (eleitores). Podem votar - e assim gozam de capacidade eleitoral activa nas eleies autrquicas - os cida