direito achado rua apontamentos

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 305 Ano IX 24.08.2009 ISSN 1981-8469 Roberto Efrem Filho O “peso” dos movimentos sociais é maior que o das “leis” Jacques Alfonsin O direito achado na rua: positivismo de combate José Geraldo de Sousa Junior Pri ncípios de uma organização social da liberdade E mais: >> José Carlos Braga: Política cambial é homicida >> Artur Cesar Isaia: 100 anos depois: a mudança radical da Igreja gaúcha O direito achado na rua. Alguns apontamentos 

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305Ano IX

24.08.2009ISSN 1981-8469

Roberto Efrem Filho

O “peso” dos movimentos sociais émaior que o das “leis”

Jacques AlfonsinO direito achado na rua: positivismode combate

José Geraldo de Sousa JuniorPrincípios de uma organização social daliberdade E

>> José Carlos Política cambial é hom

>> Artur Cesar100 anos depois: a mu

radical da Igreja g

O direitoachado na ru

Algunsapontamento

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IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSNDiretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling ([email protected]). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (graznos.br). Redação: Márcia Junges MTB 9447 ([email protected]) e Patricia Fachin MTB 13062 ([email protected]). RevisAlves ([email protected]). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoiolhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráco: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: InácioGreyce Vargas ([email protected]) e Juliana Spitaliere. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio wwbr/ihu. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residênção. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@

Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: [email protected]. Fone: 51 3591.1122 – ramal 4do IHU: [email protected] - ramal 4121.

   E  x  p  e   d   i  e  n   t  e

 

Direito achado na rua

O direito moderno é normativamente inadequado e institucionalmente ineficiente, advertia

jurista português Castanheira Neves. Por isso, “esse direito tem de ser encontrado em outro luglá na rua onde vive e sofre o povo daquela inadequação e ineficiência, porque, afinal de contasdele a origem e causa de ser, tanto da lei como do Estado”, afirma Jacques Alfonsin, procuradorEstado do Rio Grande do Sul aposentado, em entrevista concedida à IHU On-Line e publicada needição. Trata-se de reconhecer no povo a “comunidade aberta dos intérpretes da Constituição”

Por sua vez, José Geraldo de Sousa Junior, reitor da Universidade de Brasília – UNB -, um dteóricos mais respeitados do assim chamado direito achado na rua, atesta que, quando a “constitção diz que ‘o elenco de direitos descrito dela não exclui outros direitos que derivem da naturedo regime ou dos princípios que a constituição adota’, abre uma pauta muito larga, que tanto ponto de vista teórico quanto do político, nós pensemos o direito como relações legitimadas”. seja, trata-se de “pensar o direito como relação, e não como um banco de enunciados legislativé criar as condições para que as lutas por reconhecimento encontrem espaço politizado adequapara que se manifestem”.

Participam também do debate sobre o direito achado na rua, Roberto Efrem Filho, professorUniversidade Federal de Pernambuco – UFPE, José Carlos Moreira da Silva Filho e Lenio Strecprofessores do PPG em Direito da Unisinos. Para Streck, “não há mais como falar em direito achana rua, direito alternativo ou pluralismo jurídico. A Constituição é muito mais avançada que ququer uma destas bandeiras”. Segundo ele, “hoje a luta é concretizar a Constituição e não buscalternativas a ela”.

Outros importantes temas são tratados nesta edição. José Carlos Braga, economista e profesdo Instituto de Economia da Unicamp, analisa a atual política cambial e seu impacto no projedesenvolvimentista brasileiro. Tendo presente o centenário da criação da Arquidiocese de Por

Alegre, Artur Cesar Isaia, professor da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC -, reflesobre duas figuras centrais: João Becker e Vicente Scherer, arcebispos de Porto Alegre.

Uma entrevista com Marcelo Fernando da Costa, professor de História da Alimentação e CultuGastronômica Internacional, da Unisinos, descreve a história dos alimentos que caracterizamreligiões monoteístas da humanidade e que serão apresentados e consumidos na próxima ediçãoevento Religiões no Mundo. Um perfil do filósofo francês Paul Valadier, que esteve recentemenna Unisinos, a convite do IHU, é outro destaque desta edição.

A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana!

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6 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 30

O direito achado na rua: positivismo de combate

Jacques Alfonsin entende que o direito achado na rua gera efeitos particularmentefavoráveis ao povo pobre do Brasil, diferente daqueles que a lei prevê como direi-

tos desse mesmo povo, mas que jamais são respeitados na medida das urgênciashumanas que ele padece

Por GrazIela wolfart 

U

m dos principais nomes lembrados no Brasil quando o assunto é o direito achado na rua,o advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado, JacquesTávora Alfonsin, fala à IHU On-Line, por e-mail, sobre as pessoas que têm se aproximadodeste movimento. “Conscientes dessa injustiça e dessa impropriedade manifesta, essesjuristas encontram grande aceitação das suas ideias e da sua prática entre pessoas do

povo pobre, movimentos, ONGs, estudantes, e até uma parte signicativa de professoras/es, juízas/es, promotoras/es e advogadas/os. Aí reside o diferencial que caracteriza novas posturas hermenêu-ticas da lei, como o direito achado na rua, o ‘positivismo de combate’, o ‘direito alternativo’ e outrasdenominações que se tem ouvido sobre um mesmo e saudável fenômeno. O de a dignidade humanae a cidadania, por um lado, e o Estado democrático de direito, por outro, deixem de se submeter àclausura formal dos seus postulados, e passem a ser realidade vivida materialmente por todo o povo”.E Alfonsin deixa clara a sua posição quando lembra que “o direito de manifestação e opinião aquiexercidos não foram dados de mão beijada pela lei. Até pelo contrário. Foram conquistas do povo narua, que ao mesmo custaram sacrifícios os mais dolorosos perpetrados por gente, à época, instituída eapoiada por ela! Assim, se o olhar que for lançado à história reconhecer os fatos concretos que deramorigem a tais conquistas, o presente jurídico das relações do Poder Público com as pessoas deixará deidenticá-las como súditas de uma nobreza encastelada em cortes, mas sim como cidadãs, capazes

de construir democracia, não só representativa, mas também participativa”.Jacques Alfonsin é mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. Atualmente, é

membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e colabora periodicamente com artigos para as“Notícias do dia” do sítio do IHU. Conra a entrevista.

IHU On-Line - O que podemos enten-der por direito achado na rua? Qualsua origem?Jacques Alfonsin - Precisar, com se-gurança, o que esse direito seja, nãome julgo capaz, tais as nuances teóri-

co-práticas que a sua interpretação eaplicação têm alcançado, mesmo sobas duras críticas que sofrem, ele e oseu contemporâneo “alternativo”. Oque posso esclarecer, por mera apro-ximação do seu posicionamento inter-pretativo da realidade e do ordena-mento jurídico, é que esse direito seconstitui e gera efeitos particularmen-te favoráveis ao povo pobre do Brasil,diferente daqueles que a lei prevêcomo direitos desse mesmo povo, mas

que jamais são respeitados na medi-da das urgências humanas que ele pa-dece. Trata-se de um direito plural,no sentido de que, sem ignorar e atéaproveitar “brechas” de interpreta-ção e aplicação do direito como pre-

visto nas leis do Estado, em favor dedireitos humanos não valorizados de-vidamente, também cria e dá ecáciaa formas de convivência social, compoder sancionatório paralelo às que omesmo Estado prevê em suas leis.

Para ele, o “devido processo legal”,tão enfatizado pelo Poder estatal, so-mente merece respeito e acatamentona medida em que não se constitua,como a história vem testemunhando,num m em si mesmo, servindo de

barreira formal e material ao devprocesso social, de modo a fazerregulação um obstáculo à emancição, como Boaventura de Sousa Stos1 insiste de forma convincente, seus estudos e na sua prática. Sobr

sua origem, talvez seja útil esclareduas coisas.

A primeira, de que o povo, partlarmente o pobre e oprimido, sem

1 Boaventura de Sousa Santos (1940): é tor em sociologia do direito pela Universidde Yale e professor catedrático da Faculdde Economia da Universidade de Coimbrum dos principais intelectuais da área deências sociais, com mérito internacionalmreconhecido, tendo ganho especial popudade no Brasil, principalmente, depois departicipado nas três edições do Fórum SoMundial em Porto Alegre. (Nota da IHU Line)

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SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305

teve, historicamente, formas outrasde defender sua vida e dignidade, foradas regras impostas por poderes ar-mados e reconhecidos institucional-mente como legais. Aqui no nosso país,servem de exemplo as aldeias indíge-nas, nas quais a propriedade privada,um dos direitos mais protegidos pelasnossas leis, era e ainda é, em muitasdelas, totalmente alheia ao seu modode vida. Os antigos quilombos dos ne-gros fugidos da escravidão, igualmen-te, constituíram-se em formas visíveisde um direito existente, válido e e-caz, a favor da liberdade, completa-mente estranho e até oposto ao direi-to vigente no Estado. Embora muitosemelhante ao último, até o direitocanônico tem poder sancionatório, ti-

picamente jurídico, sobre multidões,paralelamente ao Direito estatal.A segunda, bem mais recente, pode

ser localizada nas lições de um juristaprofessor de direito da UNB, RobertoLyra Filho,2 já falecido. Defendia elee, hoje, muitos dos seus seguidores,um “humanismo dialético, mais próxi-mo da prática, da vida jurídica real,do que a teoria legalista (não confun-damos a legalidade com o legalismoque é a sua transformação em fetiche,desconhecendo tudo o que ca fora do

bitolamento legislativo e canonizandocomo jurídico tudo o que ali se põe,ainda que não seja o Direito autênti-co, mas o soco do autoritarismo). Porisso mesmo dei à exposição sistemáti-ca do meu humanismo dialético, numcompêndio alternativo de Introduçãoà Ciência do Direito, o título de Direi-to achado na rua, que aplica ao nossocampo de estudos o epigrama nº 3 deMarx (...): “Kant e Fichte buscavamo país distante,/ pelo gosto de andar

2 Roberto Lyra Filho (1926-1986) foi um ju-rista e escritor brasileiro. No início de suacarreira jurídica se destacou por estudos dog-máticos, área que foi perdendo importânciaem seu pensamento, progressivamente maisligado à Filosoa e à Sociologia Jurídica, cam-po em que é um dos expoentes brasileiros dopensamento jurídico de esquerda. Fundou aNova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), cujoboletim era a Revista Direito & Avesso. Neladefendia que o direito não se reduzia à norma,nem a norma à sanção. Contestava o monismojurídico, o monopólio da legitimidade do direi-to pelo Estado que, a seu ver, estava na práxishistórica, na abolição da sociedade de classese nos direitos humanos (sem se prender às de-clarações ociais). (Nota da IHU On-Line)

lá no mundo da lua,/ mas eu tento sóver, sem viés deformante,/ o que pudeencontrar bem no meio da rua.” 3 

Não é fácil contestar essa ironia,quando se avaliam os efeitos materiaisdas previsões que a lei do Estado faz,particularmente no que concerne àsgarantias devidas aos direitos sociaisdo povo, como alimentação, habita-ção, saúde, educação, por exemplo.Cada vez que o povo pobre “se desa-perta”, portanto, satisfazendo por suaprópria iniciativa, essas necessidadesvitais que, embora previstas na leicomo direitos humanos, ele nunca os

alcança garantidos, quase sempre éjulgado como violador da lei ou crimi-noso. É um tal paradoxo, justamente,que o direito achado na rua denuncia eprova exercendo um direito “terreno”,que o estatal não reconhece, sempre

que o examina desde a lua dos seusdogmas e preconceitos ideológicos.

IHU On-Line - Por que o direito acha-do na rua rejeita as concepções mo-nistas do Direito?Jacques Alfonsin - Porque aquelasconcepções eram pretensiosas demais,como se a lei fosse a única fonte dedireito, e o Estado o único ente capaz

3 LYRA. Doreodó Araujo (org.) Desordem e processo (Porto Alegre: Sergio Fabris, 1986, p.312). (Nota do entrevistado)

de garantir-lhe efeitos. Isso ainda vcomo verdade indiscutível para graparte, senão a maioria, dos jurisEm todo o caso, ca difícil negar aqueles mesmos efeitos desmentiesse dogma, pela histórica incapacde que a lei e o Estado demonstrare demonstram em cumprir o que lhemais indispensável promover, ou sea justiça. A lei não é onisciente nconsegue abranger, com poder sannatório, todo o comportamento huno. Suas lacunas têm sido preenchipelos seus intérpretes (juízes de mparticular) de acordo com o que se tdenominado de “espírito do sistemBasta um juízo minimamente isesobre a realidade social, todavia, pse concluir que isso não está da

certo. A sua interpretação e aplicapelo Poder Público mal tangencia, exemplo, medidas preventivas ou pressivas das perversas consequênque, entre outras, os movimentosbolsas de valores, a corrupção políe a devastação ambiental, para lbrar apenas as mais visíveis, provocsobre toda a humanidade. Questantigas como aborto e eutanásia,retamente ligadas à vida das peas, questões outras, mais moderncomo a da engenharia genética e a

clones, ainda são objeto de dúvidaangústias humanas para as quais odenamento jurídico como um todoEstado encarregado da sua aplicaenfrentam enormes diculdades dar resposta convincente e ecient

No que concerne à disciplinaeconomia, então, com tudo o que etem de poder para gerar injustiçacial, não há nem necessidade deacentuar a anemia dos poderes queria indispensável e lícito contar parsua regulação. Por tudo isso, ainda

preende ver-se repetido outro dogforte daquele monismo, presente conitos administrativos e, ou, jciais, segundo o qual, “o que não eno processo não está no mundo”, asse advertindo as chamadas “part(autores e réus) de que as suas verse provas são mais importantes do os fatos efetivamente em causa. Tvez sejam males desse tipo que leram um jurista português, Castanh

“É um tal paradoxo,

 justamente, que o

direito achado na rua

denuncia e prova

exercendo um direito

‘terreno’, que o estatal

não reconhece, sempre

que o examina desde a

lua dos seus dogmas epreconceitos

ideológicos”

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8 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 30

Neves,4 a advertir que o direito mo-derno é normativamente inadequado einstitucionalmente ineciente. Outranão é a razão, por isso mesmo, de queesse direito tem de ser encontrado emoutro lugar, lá na rua onde vive e sofreo povo daquela inadequação e ineci-ência, porque, anal de contas, é delea origem e causa de ser, tanto da leicomo do Estado.

IHU On-Line - O que faz com que ju-ristas e outros operadores jurídicos,intérpretes do Direito Constitucio-nal, voltem às ruas para ter contatocom o povo pobre? Qual o diferencialque faz aumentar o número de adep-tos do direito alternativo?Jacques Alfonsin - Há uma inspiração

axiológica nesse tipo de conduta pro-ssional que, a meu ver, encontra fun-damento numa justicada indignaçãoética diante da injustiça social que osistema capitalista gera e reproduzsobre o povo, inclusive com apoio degrande parte da mídia e de intérpretesda lei. A dominação ideológica positi-vista, normativa e liberal, de cunhomarcadamente privatista e patrimo-nialista, é dotada de um tal poder dedominação, que o mundo todo do di-reito ca sujeito, aí, apenas aos que

já têm, contra os que não têm (“or-dem econômica”?), aos que já podemcontra os que não podem (“ordem po-lítica”?), os que já são cidadãos comseus direitos garantidos, contra os queainda não são (“ordem social”?). Comose observa, essa realidade testemunhao completo fracasso das três principaisordens constitucionais, sobre o povopobre do país, sem acesso ao ser, aopoder e ao ter. Assim, os chamados di-reitos adquiridos, por mais que o seuexercício gere injustiça, impedem aaquisição dos novos, coisa que ocor-

4 António Castanheira Neves (1929) é umlósofo do direito português, professor jubi-lado da Faculdade de Direito da Universidadede Coimbra. Para Castanheira Neves, o direitodeve ser entendido através da ideia de pro-blema jurídico, de que são principal exemploos casos judiciais. Os problemas têm de serresolvidos no sistema jurídico, o que já incluiuma relação necessária com a moral. O autorarma que o direito não é um dado, não é algoprévio, mas a totalidade das soluções dos pro-blemas jurídicos. Estes, sim, são o ponto departida necessário. (Nota da IHU On-Line)

re, de modo visível, na dominação daterra.

Conscientes dessa injustiça e des-sa impropriedade manifesta, essesjuristas encontram grande aceitaçãodas suas ideias e da sua prática, entrepessoas do povo pobre, movimentos,ONGs, estudantes, e até uma partesignicativa de professoras/es, juízas/es, promotoras/es e advogadas/os. Aíreside o diferencial que caracterizanovas posturas hermenêuticas da lei,como o direito achado na rua, o “posi-tivismo de combate”, o “direito alter-nativo” e outras denominações que setem ouvido, sobre um mesmo e sau-dável fenômeno. O de a dignidade hu-mana e a cidadania, por um lado, e oEstado democrático de direito, por ou-

tro, deixem de se submeter à clausuraformal dos seus postulados, e passema ser realidade vivida materialmentepor todo o povo.

Aí se conta com outro apoio sólido.Uma reinterpretação moderna que ateologia da libertação fez do chamado“direito natural” e dos direitos huma-nos trouxe um grande número de cris-tãos leigos para trabalhar com as CEBS(comunidades eclesiais de base), estu-dando e trabalhando sob a inspiraçãodo evangelho, formas novas de denun-ciar injustiças e ilegalidades, reivindi-cando direitos sociais violados. Gentemuito pobre, como índios, catadoresde material, miseráveis desemprega-dos, quilombolas, boias frias, mora-dores de rua, essa multidão até hojehistoricamente desprezada e abando-nada passou a tomar consciência deque é digna, titula direitos, deve serrespeitada, amar e ser amada.

IHU On-Line - O direito achado na ruapode ser capaz de mudar a imagem

de “medo” que se tinha do juiz?Jacques Alfonsin - Esse é, sem vida, um dos seus maiores méritSabendo-se que a distância entrpoder da autoridade e o abuso da agante prepotência é muito curta, alguns/mas juízes/as e promotorascensuram seus colegas quando edistância é vencida cumprindo aquinconveniente trajeto. Três casos centes comprovam esse fato. Seguo Estadão, edição de 23 de junho2007, um juiz de Vara do TrabalhoCascavel, no dia 13 do mesmo mapoiado no poder de polícia que te“cancelou uma audiência (...) apepor ter constatado que as sandáliasdedo vestiam os pés de uma das ptes.” Segundo sua decisão, isso “é

compatível com a dignidade do PoJudiciário.” A repercussão foi mnegativa e as muitas críticas conrias àquela atitude logo se zerouvir. Até o presidente da Anama(Associação Nacional dos Magistrada Justiça do Trabalho), colega daqle juiz, traduziu bem a indignação o incidente provocou: “Não se pconsiderar que a roupa do trabador, muitas vezes a única que posatenta contra a dignidade da Justipois assim se está dizendo que os m

humildes não são dignos da atençãojuiz e que apenas os bem vestidomerecem.”

Em Ponta Porã, por ocasião de ouaudiência realizada em julho passauma juíza federal exigiu de um adgado, não só que a tratasse por exlência, como se levantasse cada que ela entrasse na sala onde juricionava. O curioso, mesmo desconsirada a grosseria da sua atitude, é a referida juíza provou desconheceprópria lei. O Estatuto da Ordem Advogados do Brasil permite, em art. 7º que a/o advogada/o ingrelivremente nessas salas de audiêncem outras dependências dos tribune repartições públicas, podendo só “permanecer sentado ou em pcomo delas “retirar-se”, “independtemente de licença” (inciso VII). Pinciso XII do mesmo artigo, a/o adgada/o também pode “falar, sentou em pé, em juízo, tribunal ou órde deliberação coletiva da Adminis

“A lei não é onisciente

nem consegue abranger,

com poder sancionatório,

todo o comportamento

humano”

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SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305

ção Pública ou do Poder Legislativo.”Por denúncia de violação dos direi-

tos humanos das/os agricultores sem-terra, feitas pelo MST contra ações pro-postas pelo Ministério Público Estadualdo Rio Grande do Sul, no ano passado,liminarmente acolhidas por quatro juí-zes/as de diferentes comarcas do Esta-do, até a Associação dos Juízes para ademocracia, vendo os vídeos relaciona-dos com o abuso de poder que vitimouas/os sem-terra, reagiu, publicando emum dos seus boletins, o seguinte: “Asimagens divulgadas chocam pela bruta-lidade: bombas jogadas em meio a fa-mílias com crianças, balas de borrachadisparadas à altura das cabeças e es-pancamentos. É contra essas medidasde cunho autoritário e ditatorial que

vimos a público manifestar nosso apoioao MST. Democracia não pode ser umapalavra vazia. Dissolver o MST, torná-lo ilegal, processar e criminalizar suasações e seus militantes políticos para‘quebrar sua espinha dorsal’ signica,sem meias palavras: cassar os direitosdemocráticos dos trabalhadores ruraissem-terra.”

Grande parte do povo, felizmente,toma conhecimento disso e já sabeque juiz/as são servidores/as públi-cos/as muito importantes, mas não

deixam, de ser servidoras/es. Merece-dora de respeito, isso toda a pessoa é,nenhuma outra tendo mais obrigaçãode cumprir esse dever que não aquelaque está encarregada de, justamente,garantir que uma tal regra não seja le-tra morta.

IHU On-Line - Como o direito achadona rua tem sido estudado e discutidonas faculdades de direito?Jacques Alfonsin - Como toda a ideiade mudança, enfrentando bastante

oposição, às vezes, até, debochadae humilhante. As adesões, mesmo as-sim, são crescentes, pelo reconheci-mento dos estudantes, de modo par-ticular, do método teórico-prático desua ação, marcadamente favorável aopovo pobre, divulgado com um conte-údo profundamente humanístico, ago-ra apoiado pelo chamado NEP (Núcleode Estudos para a Paz e os DireitosHumanos) e a “nova escola jurídica”(NAIR), aquela que prossegue defen-

dendo as ideias do Dr. Roberto LyraFilho, desde Brasília. O atual reitor daUNB, José Geraldo de Sousa Junior,5 éum dos principais inspiradores e incen-tivadores dessa moderna fundamenta-ção ética, jurídico-social, de conce-ber o direito. Os cursos de extensãoe à distância que a UNB promove, apropósito, sustentam um novo méto-do pedagógico, em tudo semelhanteao que aconselhava Paulo Freire,6 no

5 José Geraldo de Sousa Junior possui gra-

duação em Ciências Jurídicas e Sociais pelaAssociação de Ensino Unicado do Distrito Fe-deral, mestrado em Direito pela Universidadede Brasília e doutorado em Direito (Direito, Es-tado e Constituição) pela Faculdade de Direitoda UnB. Atualmente é membro de associaçãocorporativa da Ordem dos Advogados do Brasil,professor e reitor da Universidade de Brasília.Conra, nesta edição, uma entrevista exclusi-va com ele. (Nota da IHU On-Line)6 Paulo Freire (1921-1997): educador bra-sileiro. Como diretor do Serviço de ExtensãoCultural da Universidade de Recife, obteve su-cesso em programas de alfabetização, depoisadotados pelo governo federal (1963). Esteveexilado entre 1964 e 1971 e fundou o Institu-to de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi

qual o direito é estudado, não a pade códigos e de doutrinas, mas sipartir da dura realidade fática soda pelo povo. Depois desse trabalhque tudo chega nas salas de aula e bibliotecas, nas pesquisas de Internem relação dialético-crítica com o reito legal”, valorizando suas virtudé verdade, mas sem deixar de quesnar os mais notáveis defeitos gerapor grande número de quantas/os tpoder de interpretar a aplicar as le

IHU On-Line - O direito e a justhoje se encontram mais na lei mais na rua?Jacques Alfonsin - Segundo o atualnistro presidente do Supremo TribuFederal, Gilmar Mendes, somente

lei, o que, com o respeito que se deve, me parece um pronunciameextremamente infeliz, para dizemínimo. Ele nem seria presidentea lei que hoje garante o seu cargo tivesse sido conquistada com o sanque o povo teve de derramar nas rpara defender a democracia e o Estde direito. Uma armação daquele trevela a antiga concepção de podque já deveria ter sido ultrapassada espécie vertical, piramidal, tfeito de dominação e não de servi

um tipo de “direito de propriedasobre a lei, como se essa somente desse ser reconhecida como respeitquando pronunciada por um tribuAliás, o fato de os Tribunais, até hoadmitirem ser chamados de “Cortparece um sintoma grave dessa doça. Bem ao contrário do que armDr. Gilmar, não são poucos os jurisque reconhecem no povo a “comdade aberta dos intérpretes da Cotituição”, coisa que, por sinal, eacontecendo agora mesmo, na med

em que a pergunta me é formuladavremente, eu a respondo livremee as/os leitoras/es acolhem, ou nlivremente, a minha crítica.

O direito de manifestação e opinaqui exercidos não foram dadosmão beijada pela lei. Até pelo conrio. Foram conquistas do povo na r

também professor da Unicamp (1979) e setário de Educação da prefeitura de São P(1989-1993). Conra a edição número 22IHU On-Line, de 11-06-2007, intitulada PFreire. Pedagogo da esperança. (Nota daOn-Line)

“Ao humanismo dialético

pregado pelo Dr. Roberto

Lyra Filho, acima

lembrado, somam-se,hoje, vários outros

paradigmas

interpretativos da lei e

do direito, inuenciando

novas maneiras de

considerar os fatos que

lhe deram origem e

vigência, para que o

legalismo não sepulte, de

vez, a legalidade, como

aquele jurista

denunciou”

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10 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO

que ao mesmo custaram sacrifícios osmais dolorosos perpetrados por gente,à época, instituída e apoiada por ela!Assim, se o olhar que for lançado àhistória reconhecer os fatos concretosque deram origem a tais conquistas, opresente jurídico das relações do Po-der Público com as pessoas deixará deidenticá-las como súditas de uma no-breza encastelada em cortes, mas simcomo cidadãs, capazes de construirdemocracia, não só representativa,mas também participativa. As relaçõessociais, aquelas que geram conito einjustiça entre essas mesmas pessoas,não escamotearão origens viciadas deopressão que possam se fantasiar ide-ológica e juridicamente de direito. Olugar social da fala do poder jurídico

não será ocupado, com exclusividade,pelas instituições de direito, antes deouvir quem desse é o verdadeiro titu-lar. Para tanto, é urgente que a lingua-gem da lei, sua interpretação e apli-cação, abandone o seu dizer pedantee incompreensível, que, muitas vezes,disfarça, cinicamente, fantasiado de“o único e soberano direito ocial”,obediência servil à preservação da in-justiça.

IHU On-Line - Quais são os novos pa-

radigmas de concepção das garantiasmateriais que devem sustentar os di-reitos humanos das/os pobres defen-didos pelo direito achado na rua?Jacques Alfonsin - Ao humanismo dia-lético pregado pelo Dr. Roberto Lyra Fi-lho, acima lembrado, somam-se, hoje,vários outros paradigmas interpretati-vos da lei e do direito, inuenciandonovas maneiras de considerar os fatosque lhe deram origem e vigência, paraque o legalismo não sepulte, de vez,a legalidade, como aquele jurista de-

nunciou. Doutrinas garantistas, subs-tancialistas estão passando em revistao positivismo normativista que, talvez,ainda conte com a maioria dos intér-pretes da realidade, da lei e do direi-to. As obrigações públicas do Estadodemocrático de direito são cobradascom mais rigor e até a tão traída fun-ção social da propriedade começa ater algum efeito prático contra quema infringe. Não conheço, como deve-ria, todas essas novas concepções te-

órico-práticas, que estão descobrindoas vias concretas de, especialmente osdireitos sociais, alcançarem respeito egarantia concretamente. Talvez bastelembrar que elas estejam alcançandoo “acesso ao mundo da vida”, inclusiveno terreno processual, que tenta darsolução aos conitos humanos, paraque esse seja auxiliado pela “herme-nêutica, naturalmente incompatívelcom o pensamento dogmático”, comoensinou um velho professor de direitoaqui da Unisinos que, lamentavelmen-te, também já nos deixou.7 Do víciode se atribuir a pecha de ideológicosapenas aos outros, como ele lembrou,com base em Terry Eagleton8 (“os par-tidários do socialismo são ideológicos,mas os do capitalismo, não”) 9 o direi-to achado na rua parece se defendermuito bem como o NEP e a Nova Es-cola jurídica fazem hoje. O primeiro,em sua página na Internet, deixa claroque “diversica os papéis e as respon-

sabilidades do direito por meio da in-tegração compreensiva de seus deter-minantes sociais. A prática jurídica écontextualizada, obtendo-se com issouma aplicação e inteligibilidade maisseguras.”

IHU On-Line – Qual deve ser o pa-7 SILVA, Ovidio Araujo Baptista da. Processo eideologia. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 1(Nota do entrevistado)8 Terry Eagleton (1943) é um lósofo e críticoliterário britânico identicado com o marxis-mo. (Nota da IHU On-Line)9 Idem, p. 16. (Nota do entrevistado)

pel do povo e dos políticos para qo direito achado na rua cresça edesenvolva com mais força na socdade?Jacques Alfonsin - Apesar de vivermnuma sociedade sujeita a uma ecomia consagradora de desigualdaextremamente injustas, há sinais ros de que grande parte do povo jáorganizou e tem força de pressão aante em favor dos seus direitos, a pto de empoderar formas de defenum direito contrário, ou no mínparalelo ao “direto ocial”, não ctaminado por sanções que preservaquelas desigualdades, em nomeigualdade, sustentem opressões, nome da liberdade e, principalmenreduza toda a relação humana à p

priedade. Políticos e representanseus, junto à administração públicao Judiciário, se quiserem ser éesse mesmo povo, precisam recupeo sentido etimológico do mandato receberam dele. Essa palavra vemlatim e signica mão dada. Que emão nunca o abandone, de modo tparticular hoje, bem no meio da ronde ele se encontra e sofre.

leIa maIs...

>> Jacques Alfonsin já concedeu outrasentrevistas à IHU On-Line. O material esdisponível na nossa página eletrônica (www.ihunisinos.br)

Entrevistas:

* “O povo gaúcho merece mais do que ‘transp

rência’”. Publicada nas Notícias do Dia, de 108-2009, e disponível no link http://www.ihunisinos.br/index.php?option=com_noticias&mid=18&task=detalhe&id=24733;* Estado é incapaz de remediar a justiça socia

Publicada na edição número 266, de 28-07-200e disponível no link http://www.ihuonline.uninos.br/index.php?option=com_tema_capa&Ite

d=23&task=detalhe&id=1189;

Alguns artigos:

* Do direito alternativo até aquele que a próp

Constituição Federal encontra na rua. Publicanas Notícias do Dia, de 15-07-2009, e dispovel no link http://www.ihu.unisinos.br/indephp?option=com_noticias&Itemid=18&task=dethe&id=23899;* Uma dura crítica da Anistia Internacional a

carrascos das/os Agricultoras/es Sem-Terra. Pblicado nas Notícias do Dia, de 21-06-2009,disponível no link http://www.ihu.unisinos.bindex.php?option=com_noticias&Itemid=18&ta=detalhe&id=23286.

“Políticos e

representantes seus,

 junto à administração

pública e ao Judiciário,se quiserem ser féis a

esse mesmo povo,

precisam recuperar

o sentido etimológico

do mandato que

receberam dele”

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SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305

Na opinião de José Geraldo de Sousa Junior, a repercussão do direito achado narua é ampla e não apenas técnica, teórica e do ponto de vista do conhecimento dodireito, mas, também, política e social e de suas formas de realização

Por GrazIela wolfart, Greyce VarGas e JulIana sPItalIere

P

odemos considerar que o principal mentor do movimento pelo direito achado na rua tenhasido o professor Roberto Lyra Filho, já falecido. No entanto um exemplar aluno seu encar-regou-se de tocar em frente o projeto iniciado pelo mestre. E, hoje, é o grande nome noBrasil quando o assunto é o direito achado na rua: José Geraldo de Sousa Junior. Ao gentil-

mente aceitar conceder a entrevista que segue à IHU On-Line, por telefone, o professorJosé Geraldo, atual reitor da Universidade de Brasília, arma que “pensar o direito como relação, enão como um banco de enunciados legislativos, é criar as condições para que as lutas por reconhe-cimento encontrem espaço politizado adequado para que se manifestem”. Para ele, “muitas vezes,sob a forma de legalidade, a plenitude da realização subjetiva dos direitos humanos ca limitada,portanto, lutar pelo reconhecimento é conseguir a resposta fundamentadora para que as demandasestabelecidas se integrem ao mundo alargado do direito, que é mais amplo que a legislação”.

José Geraldo de Sousa Junior possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação deEnsino Unicado do Distrito Federal, mestrado em Direito pela Universidade de Brasília e doutorado emDireito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB. Atualmente é membro de as-sociação corporativa da Ordem dos Advogados do Brasil, professor e reitor da Universidade de Brasília.Conra a entrevista.

Princípios de uma organização social da liberdade

IHU On-Line – Qual a origem do direi-to achado na rua?José Geraldo de Sousa Junior - A ori-gem surge com um grau de curiosida-de, pois combina a metáfora com aindicação de uma certa disposição po-lítica e teórica. É preciso recordar queos anos 1970 foram de crítica jurídica.Na Europa, houve movimentos de usoalternativo do direito, como “Critiquede Droit”, na França, que notabilizou

personalidades como Michel Miaille eAntoine Jeammaud; tivemos o criti-cismo nos Estados Unidos; e o movi-mento do direito alternativo no Brasil.Na UnB um professor que fazia partedesta reexão crítica, Roberto LyraFilho, lançou um manifesto em 1978,mesmo ano em que Granoble e o gru-po Critique de Droit também lança-vam seu manifesto. Lyra Filho falavado direito sem dogmas, buscando umaleitura mais problematizada. Este é o

horizonte de crítica que coincidia como que muitos hoje chamam de pós-mo-dernidade, que é a mudança de para-digmas no campo do conhecimento.Em seu trabalho na UnB, sobretudocom os alunos de pós-graduação, en-tre os quais eu me incluía, ele lançouuma revista que se chamou “Direito eAvesso”. Lyra queria aplicar no cam-po do direito a extensão da metáfo-ra e procurar o direito na rua. Desta

origem do direito achado na rua estáem causa o movimento de crítica jurí-dica que procurava construir uma baseepistemológica para a formulação deuma nova construção de sentido emque o direito, segundo Lyra Filho, fos-se entendido como a enunciação dosprincípios de uma legítima organiza-ção social da liberdade. Esta era suadenição de Direito.

IHU On-Line – O senhor pode falar um

pouco sobre a experiência do cua distância de capacitação de atopopulares no direito, que iniciou198?José Geraldo de Sousa Junior - Tbalhei com o professor Roberto LFilho na revista “Direito e Avessochegamos a editar três números. era presidente do Conselho Editoda revista e eu, diretor. Com sua mte, pensei que, ao invés de dar co

nuidade à revista, que era muito idticada com a construção editoriaLyra Filho, o melhor era trabalharum outro projeto que realizasse o programa. Como professor da Upropus à universidade, no ano de 19quando a instituição começou a reuma planta epistemológica e repsar seu projeto político e pedagógcom a redemocratização, de criarprograma de capacitação jurídicaassessorias populares de movimen

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12 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO

sociais por meio da educação à distân-cia. Buscamos uma construção inter-disciplinar que envolvesse o diálogo àluz dessas premissas, do direito comoliberdade e a dimensão emancipatóriado direito, e chamamos o programa de“O direito achado na rua”. Lançamos,

então, um curso a distância pela UnB epelo seu Centro de Educação a Distân-cia, elaborado no espaço do Núcleo deEstudos para Paz e Direitos Humanos,que permitiu o diálogo entre as váriasáreas, inclusive as jurídicas. Esse cur-so de capacitação recebeu várias edi-ções e foi reeditado inúmeras vezes,ganhando uma atenção muito grande,não só das assessorias jurídicas dosmovimentos sociais mas, surpreenden-temente, dos estudantes de direitodas escolas brasileiras, que encontra-ram na proposta uma espécie de alter-nativa crítica ao estudo formal do di-reito nos manuais tradicionais. Não sóesses estudantes, mas também muitosprofessores, pediram à UnB a continui-dade desse projeto. Editamos o volu-me “O direito achado na rua” váriasvezes e também começamos uma sérieque passou a dar nome à continuida-de do projeto, esta também chamada“O direito achado na rua”. A partir de1993 tomou forma o primeiro volume,

com o título de “Introdução crítica aodireito”; em seguida, editou-se o se-gundo volume com o título de “Intro-dução crítica ao direito do trabalho”,um diálogo com os juízes trabalhistasque, no nal de década de 1990, emsuas entidades, faziam uma discussãoda crise do direito, do sistema sócio-econômico, do juiz e da lei. Eles se co-locavam na perspectiva de enfrentara síntese dessas crises em dois prin-cipais movimentos, um que procuravarever os fundamentos da função social

do magistrado e outro que procuravapensar aquilo que eles chamavam delimitação da base legalista da forma-ção jurídica dos operadores do direito.No começo dos anos 2000 lançamos umterceiro volume com o título de “Intro-dução crítica ao direito agrário”. Tra-ta-se de um debate sobre a condiçãoda apropriação da terra, as diculda-des de se pensar uma forma solidáriade uso social da terra e a função socialda propriedade. Discutimos o começo

de um processo de criminalização dosmovimentos sociais que defendem areforma agrária, falando dos defen-sores de direitos humanos, sobretudoaqueles que, na questão da terra, so-frem mais diretamente as consequên-cias dessa atitude de criminalização,

com o assassinato de advogados delideranças. O quarto volume acaboude ser lançado com o título de “Intro-dução crítica ao direito da saúde”. Naesteira das grandes formulações domodelo de constituição participativa,elaborado em 1988, a ideia é da exis-tência de um sistema único de saúde,o SUS,1 que incorporava o princípio dauniversalização do acesso e do contro-le social com a ativação dos mecanis-mos de cidadania participativa que aconstituição prevê. Este volume servede elemento de capacitação, sobretu-

do de juízes e membros do MinistérioPúblico e também de conselheiros dosconselhos de saúde e de estudiosos, deum chamado direito sanitário, que sedesenvolveu a partir dessa premissa. O

volume continua com a mesma carac-terística, preparado pela editora daUnB, e tem a incorporação de parcei-ros como a Fiocruz e a OPAS (Organiza-ção Pan-Americana da Saúde). Além domaterial teórico, também elaboramosvídeos. O primeiro vídeo “O direitoachado na rua”, que faz a abordagem

1 Sobre o Sistema Único de Saúde, conra a re-vista IHU On-Line número 260, de 02-06-2008,intitulada SUS: 20 anos de curas e batalhas,disponível no link http://www.ihuonline.uni-sinos.br//index.php?id_edicao=288 (Nota daIHU On-Line)

audiovisual do mesmo tema, foi pmiado em festival de cinema.

IHU On-Line – O “direito achadorua” é academicamente reconhedo? De que forma ele é tratado cursos de direito?

José Geraldo de Sousa Junior - SNa faculdade de direito da UnB, oreito achado na rua é uma linhapesquisa da pós-graduação e intea plataforma Lattes de grupos de pquisa. Enquanto linha de pesquisachama “O direito achado na rua pluralismo jurídico”, já que a concção se apoia na ideia de que no mesespaço social podem vigorar difertes ordens jurídicas em concorrêncem cooperação, aludindo a bases fdantes diferentes. O direito achadorua é de referência internacional, pcomo é uma experiência de universide, serve de fundamento para a elaração de inúmeras teses, dissertaçe monograas. Seus autores circunos congressos. A graduação da fadade de direito também tem servde base para o desenvolvimentoconteúdo de cadeiras que têm contdo variável. Uma experiência foi cuma coluna num jornal da cidadeBrasília chamada “O direito achado

rua” que respondia questões de leres. Isto se fazia dentro de uma dimsão emancipatória, não se trabalha resposta que fosse deduzida dos digos e da legislação, mas que imcasse abrir horizontes tanto polítiquanto teóricos para novas demanjurídicas. Um exemplo disso sãoquestionamentos: “A união estável tre homem e mulher, que não é derda do casamento, produz direitos? tratar de homossexuais?”. A legislatem limites, pois a própria consti

ção formalmente se refere a home mulher. Porém os estudantes busvam referências no direito compare nas lutas dos movimentos sociaienunciavam uma possibilidade jurídcom base nesse arranjo político eórico. Da criação desta coluna em jornal surgiu um livro sobre a prátjurídica da UnB, em que os professoreetem sobre as condições da prátjurídica, uma das categorias do derno currículo jurídico, ao lado

“São as lutas por

reconhecimentos de

normas que podem ser

tanto mais fortalecidas

quanto mais a nossa

sociedade se eduque,

por exemplo, para os

direitos humanos”

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SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305

matérias fundamentais e prossionais,que vê a prática como uma dimensãodo conhecimento. O livro conta tam-bém com artigos dos alunos publicadosno jornal. Existia na sala de aula umadisciplina de produção de textos quepermitia que alunos, de diferentes ní-

veis do curso, trabalhassem qualquerquestão que fosse apresentada por lei-tores do jornal ou de temas que sur-gissem nos balcões de atendimento dafaculdade de direito. O direito achadona rua teve um papel requalicador daestrutura e do desempenho do currí-culo acadêmico em direção ao ensinojurídico com outro perl, outra cons-trução político-pedagógica e com umaoutra perspectiva de desempenho doestudante e da relação pedagógica.

IHU On-Line – Qual o impacto do di-reito achado na rua para o Direito,em si?José Geraldo de Sousa Junior - O im-pacto é quanto ele interpela o conhe-cimento do direito e sua aplicação.Não é por acaso que hoje esse impactochega a setores inesperados. Há pou-co tempo o presidente do STF, GilmarMendes, fez uma armação, que de-pois foi retomada como artigo da re-vista Veja, sob o fundamento de que

o direito é achado na lei e não na rua.A revista fazia crítica à abordagem doque se chamava o movimento do “di-reito achado na rua”. Isto enseja umadimensão de impacto e de repercus-são que vai além da sala de aula e queinterpela a própria atitude política daaplicação do direito. O direito deixade ser, sob esse ângulo, apenas umaquestão para os acadêmicos e para osespecialistas e se torna objeto de in-teresse no âmbito do senso comum dasua realização. Tal como nesse caso,

frequentemente temos assistido mo-bilizações em que essa perspectiva seespalha. Um exemplo: em Minas Ge-rais, dentro de uma política de acessoà justiça, uma prefeitura municipalcriou um programa de assessoria ju-rídica à cidadania e deu a esse pro-grama o título de “Direito achado narua”. Mais tarde isto se espalhou paraoutros programas. Assim se trabalhacrítica jurídica, diretriz para aplica-ção jurídica por meio dos operadoresde direito, magistrados e advogados,

e também, base para políticas públi-cas de realização de direitos humanos.A repercussão é ampla e não apenastécnica, teórica e do ponto de vista doconhecimento do direito, mas, tam-bém, política e social e de suas formasde realização.

IHU On-Line – Como o senhor achaque o Direito deve ser trabalhado naconjuntura atual brasileira?José Geraldo de Sousa Junior - Dentroda dimensão, cada vez mais forte, deque os direitos são relações. Quando aconstituição diz que “o elenco de di-reitos descrito dela não exclui outrosdireitos que derivem da natureza do

regime ou dos princípios que a consti-

tuição adota”, abre uma pauta muitolarga, que tanto do ponto de vista te-órico quanto do político, nós pensemoso direito como relações legitimadas. Épreciso trabalhar as estratégias de re-conhecimento. São as lutas por reco-nhecimentos de normas que podem sertanto mais fortalecidas quanto mais anossa sociedade se eduque, por exem-plo, para os direitos humanos. O res-peito aos direitos humanos é um dosprincípios que a constituição adota.Muitas vezes, sob a forma de legalida-

de, a plenitude da realização subjva dos direitos humanos ca limitaportanto, lutar pelo reconhecimentconseguir a resposta fundamentadpara que as demandas estabelecidaintegrem ao mundo alargado do dito, que é mais amplo que a legislaç

O direito de morar, que hoje já econsagrado na legislação, durante mto tempo foi discurso reinvidicativo comunidades excluídas das perifedas cidades lançadas nas favelas e palatas. Esse discurso pela mediados direitos humanos foi transformem pauta para o alargamento do renhecimento de direitos. E a teoria jdica, que é inspirada no direito achna rua, permite identicar as fontanto teóricas quanto jurisprudencique sustentam esses direitos. Pensa

direito como relação, e não como banco de enunciados legislativoscriar as condições para que as lutas reconhecimento encontrem espaço litizado adequado para que se manitem. Isto, sobretudo, em um contede uma sociedade ainda muito desigem que há diculdades para discernsentido legitimado dessas lutas. Eu mmo estou vivenciando, na UnB, a tendecorrente do fato da nossa construde uma ideia de legitimação juríd

fruto da luta por reconhecimento movimentos negros e indígenas, conseguiram formular uma política blica de ações armativas, incluindpolítica de cotas. Infelizmente semhá os que dizem que isto é ilegal. partido apresentou uma arguiçãodescumprimento de preceito funmental para desconstituir a nossa lítica de cotas, armando que no Brnão há racismo, país que há pouco tpo mantinha a escravidão e que aimantém o tipo penal do plágio da re

ção de alguém à condição análoga aescravo. É muito importante, portanpoder trabalhar na linha da luta reconhecimento, do caráter relaciodos direitos, e ter a consciência de os direitos não são quantidades estão estocadas em um repertório.direitos são cotidianamente constdos. Então, é preciso educação juríde capacidade de tradução de demdas legítimas que venham baseadas direitos humanos, para positivá-lossentido de sua aplicação. E posit

“Com o discurso de que

a ação em defesa da

reforma agrária se faz

por ocupação se politiza

uma prática que é

constitutiva de direito.

Usar o discurso da

invasão é criminalizaresta prática, retirá-la do

reconhecimento e

desqualifcar o seu

agente”

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14 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO

não é somente legalizar, mas é o que ajurisprudência realiza.

IHU On-Line – Quais as principais di-ferenças entre o Direito e o direitoachado na rua?José Geraldo de Sousa Junior - Uma

delas, que já citei anteriormente, é otrabalho de assessoramento jurídico,que a partir da linha teórica do direitoachado na rua e com o aporte da capa-citação dos operadores de direito, se fazem função da luta pelo reconhecimentodo direito de moradia em face do direitode propriedade. São inúmeras as formu-lações que elaboramos, como em asses-soramento a movimentos populares eem assessoramento na linha da atuaçãodos advogados trabalhistas e dos advo-gados desses movimentos para a defesa

jurídica da modicação do sentido deentendimento, em termos de construirdiscursos que pudessem assimilar o senti-do emancipatório das demandas sociais.Um exemplo em um campo próximo éa questão da terra: ocupar ou invadir?Com o discurso de que a ação em defesada reforma agrária se faz por ocupaçãose politiza uma prática que é constituti-va de direito. Usar o discurso da invasãoé criminalizar esta prática, retirá-la doreconhecimento e desqualicar o seuagente. A construção de sentido na le-gitimação de discursos é também outraestratégia que temos trabalhado e quecaracteriza o “direito achado na rua” eseu programa. Sempre que nos defronta-mos com estas situações limites, como,por exemplo, a criminalização dos movi-mentos sociais e dos defensores de direi-tos humanos, são formas pelas quais nósatuamos e que, de alguma maneira, fa-zem parte desta plataforma de atuaçãodo “direito achado na rua” e de outrosmodos de considerar o direito.

 IHU On-Line – O que o direito achadona rua nos ensina?José Geraldo de Sousa Junior - O direi-to achado na rua tem suscitado inúmerasteses e dissertações. Temos hoje, no âm-bito da reforma de ensino do direito, umenunciado de premissas que modicaramsuas diretrizes curriculares. Se tomar-mos algumas das fundamentações que, apartir dos anos 1990, estão presentes nocampo do ensino do direito, veremos quemuito do que foi a base da teoria crítica

do direito achado na rua está claramen-te inscrita nesta fundamentação. O textoclássico de Roberto Lyra Filho, “Direitoque se ensina errado”, diz que o direitose ensina errado pela inadequada apre-ensão do objeto de conhecimento, poisquem só vê o direito como lei não vê as

manifestações jurídicas que se realizamna sociedade e que interpela a próprialegislação existente. Daí deriva o que elechamava de “defeito da pedagogia”, que“não ensina bem quem aprende mal oobjeto de conhecimento”. A partir daí odireito achado na rua teve uma inuên-cia muito grande na formulação dos prin-cipais trabalhos, que desde a portaria nº1886 do MEC, baliza a questão do ensinodo direito no país.

Plus

A recepção do direito achado na ruanão é só nacional, mas internacionaltambém. É com o direito achado narua”que podemos estabelecer um de-bate muito forte com um participantedo primeiro momento desta discussão,o professor Boaventura de Sousa San-tos, com sua ideia de interlegalidade,contextos espaciais e temporais, cons-truções de cartograas de cidades, ecomo ele apresentou desde seus estu-dos nas favelas brasileiras, a ideia depluralismo jurídico. Também há o diá-logo com os principais juristas que seengajam nesta dimensão crítica da te-oria jurídica, André-Jean Arnaud2 e Jo-aquim Herrera Flores.3 Joaquim GomesCanotilho, o principal constitucionalis-ta em língua portuguesa, ao discutir nasua obra Teoria da constituição e do di-reito constitucional, alude ao fato deque se coloca hoje uma exigência parao direito constitucional que é escaparao formalismo positivista em que ele se

aprisiona e se abrir a outros modos deconsideração da regra do direito quedialoguem com as teorias da socieda-de e da justiça. Ele menciona que umadas formas de diálogo que é preciso es-tabelecer é com o “direito achado narua” e menciona exatamente o projetodesenvolvido na UnB.

2 André-Jean Arnaud: professor na Universi-dade de Paris. (Nota da(Nota da IHU On-Line)3 Joaquín Herrera Flores: professor na Uni-versidad Pablo Olavide, de Sevilha, Espanha(Nota da IHU On-Line)

   P   a   r   t   I   c   I   P   e   d   o

   s   e   V   e   n   t   o   s   d   o   I   h   u .

   I   n   f   o   r   m   a   ç   õ   e   s   n   o

   e   n

   d   e   r   e   ç   o

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   I   n   o   s .   b   r

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SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305

Na visão de José Carlos Moreira da Silva Filho, a concepção de justiça que sustentao direito achado na rua é toda aquela que se revela sensível às concretas, diversas

e históricas manifestações de armação de direitos que tomam corpo nas dinâmi-cas reais e contraditórias das sociedades

Por GrazIela wolfart

E

m entrevista concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, o professor José Carlos Moreirada Silva Filho entende que o direito achado na rua “não identica o direito com a norma,pura e simplesmente, e muito menos com a lei. O direito é visto como um processo socialde lutas e conquistas de grupos organizados, em especial dos novos movimentos sociais, nabusca da emancipação de situações opressoras caracterizadas pela experiência da falta de

satisfação de necessidades fundamentais”. Ele destaca que “é muito fácil aprendermos e ensinarmos,

nas faculdades de Direito, que as leis e os direitos que elas abrigam são para todos, mas nem sempreé cômodo e conveniente perceber que, de fato, uma boa parte das pessoas em nosso país está alijadada esfera de concretização dos direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição Federal”.E dispara: “Creio que o poder judiciário brasileiro ainda tem um longo caminho a percorrer para agircom base na compreensão de que ele é um poder que tem de prestar contas à sociedade brasileira,e não apenas aos entendimentos dos seus próprios pares”.

Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, José Carlos Mo-reira da Silva Filho é mestre em Teoria e Filosoa do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente, é professor no Programade Pós-Graduação em Direito e na graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Uni-sinos, além de Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Conra a entrevista.

Um direito mais amplo e interdisciplinar

IHU On-Line - Que conceito de jus-tiça prevalece no direito achado narua? Quais são os seus princípios ju-rídicos?José Carlos Moreira da Silva Filho - O direito achado na rua não ignoraou despreza a lei e o Estado, tantoque muitas das lutas propostas e de-senvolvidas pelos movimentos sociaisdesembocam justamente no apelo aocumprimento das leis e princípios já

existentes. Basta perceber tambémque a própria Constituição de 1988foi, em grande parte, resultado damobilização de diferentes movimen-tos e grupos sociais. O que diferenciaa abordagem crítica do direito acha-do na rua da abordagem dogmáticado Direito é o fato de que aquela seapoia em um espectro de visão muitomais amplo e interdisciplinar do queesta, sendo por isso mesmo capaz deperceber as contradições, conitos e

processos existentes dentro de umasociedade desigual como a nossa, per-cebendo também que o Estado é umespaço de tensões e lutas acessíveis àpolítica e à participação, não somenteatravés do voto, e que o ordenamento

jurídico compõe um sistema de nor-mas a ser interpretado de acordo comas circunstâncias reais e concretas queenvolvem a aplicação da lei.

Direito alternativo

A expressão “Direito Alternativo”está mais próxima, em seu sentido nãopejorativo, ao movimento de juízesbrasileiros que, inspirados na magis-tratura democrática italiana do naldos anos 1960, teve grande repercus-

são no Estado do Rio Grande do Sem especial a partir da atuaçãoAmilton Bueno de Carvalho,1 Rui Ptanova,2 Marcos Scarpini e do saud

1 Amilton Bueno de Carvalho é desembador no Rio Grande do Sul, sendo juiz de reira. Foi um dos integrantes do grupo

nos anos 1980, tornou-se conhecido commovimento fundador do Direito AlternativBrasil. É palestrante respeitado no País Exterior, além de professor de Direito Pende Processo Penal. (Nota da IHU On-Line)2 Rui Portanova: bacharel em Direito PUCRS, foi nomeado Juiz de Direito em 1atuou nas comarcas de São Luiz Gonzaga,Vicente do Sul, Santo Augusto, Nova PNovo Hamburgo e Porto Alegre. Foi promoa Juiz do Tribunal de Alçada em maio de 1e a desembargador do Tribunal de Justiçamaio de 1998. É autor de, entre outros,tivações Ideológicas da Sentença (Porto gre: Livraria do Advogado, 2003). Conra entrevista concedida por ele na IHU On-número 253, de 07 de abril de 2008, inti

“Temos, pois, um claro problema de hermenêutic

em nossa cultura jurídica”

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16 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO

Márcio Puggina. A ideia básica do mo-vimento foi a de explorar as brechas econitos do próprio ordenamento jurí-dico, apoiando-se principalmente nosprincípios e valores protegidos, pararealizar uma interpretação da lei quefosse mais inclusiva em relação aos

grupos mais vitimados na sociedadebrasileira, excluídos do acesso à satis-fação de necessidades fundamentais.Este movimento teve um papel impor-tantíssimo na formação e fortaleci-mento de uma cultura crítica do direi-to no país. Não é demais lembrar quesaímos da ditadura apenas na segundametade dos anos 1980, e que questio-namentos, críticas ou qualquer formade pensamento mais elaborado eraalgo vetado e combatido pelos agen-tes do governo autoritário, ainda mais

no seio de uma das instituições histori-camente mais conservadoras e menosdemocráticas do país, que é o PoderJudiciário. Como estudante de Direitofui atingido em cheio por esta inquie-tude e por este exemplo, e se hojetemos um amplo espaço de atuaçãona interpretação e concretização doDireito Constitucional, muito se deveaos questionamentos e grupos pio-neiros que lograram quebrar a dura eopaca casca do enfoque exclusivamen-te dogmático do direito. Romper comeste viés simplista e rasteiro, contudo,segue sendo ainda uma tarefa urgentee inacabada, especialmente nos cur-sos de direito, que em grande parteainda se deixam seduzir pela cantilenapositivista.

O direito achado na rua, a par de re-presentar um compromisso ético coma eliminação da desigualdade intolerá-vel e com a armação de identidades,direitos e participações dos grupose movimentos sociais que partilham

experiências de exclusão no acesso àsatisfação de necessidades fundamen-tais, representa uma lupa de observa-ção, análise e reexão que percebeo fenômeno jurídico como algo bemmaior e complexo do que se pensa nosmeios mais conservadores e dogmáti-cos. A concepção de justiça que sus-

da “A sociedade não acredita que haja amorentre as pessoas homossexuais”, disponível nolink http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=968&id_edicao=281 (Nota da IHUOn-Line)

tenta o direito achado na rua é todaaquela que se revela sensível a esteolhar, e, em especial, às concretas,diversas e históricas manifestações dearmação de direitos que tomam cor-po nas dinâmicas reais e contraditóriasdas sociedades em questão.

IHU On-Line - Em que medida o lega-lismo pode ser visto como um instru-mento de injustiça social? José Carlos Moreira da Silva Filho - Oproblema não é a lei em si. RobertoLyra Filho já recomendava aos grupos emovimentos empenhados na busca demaior igualdade e armação de direi-tos que zessem um bom uso do “posi-tivismo de combate”. São inúmeras assituações nas quais a injustiça socialpoderia ser combatida ou diminuída

bastando a mera aplicação da lei, mui-tas vezes, no seu sentido mais literal.Imagine, por exemplo, se o Código de

Defesa do Consumidor, ou as normas eprincípios do Sistema Único de Saúde,ou ainda o Estatuto da Criança e doAdolescente fossem elmente cumpri-dos? O problema, como já deixa en-trever a sua pergunta, é o “ismo”. Olegalismo, a meu ver, padece de duas

grandes deciências: a primeira delasé que não consegue ver o direito queexiste e se forma fora do espaço dalei, seja antes de virar lei, indo alémdela ou até mesmo contra ela, o quecontraria, portanto, o enfoque maisamplo e adequado que sustenta o di-reito achado na rua. E, em segundolugar, o legalismo costuma apegar-se auma leitura pobre e tacanha do orde-namento jurídico, concentrando-se naliteralidade das regras mais especícase no desprezo aos princípios e normas

mais amplas, o que nos leva a umatal inversão hierárquica na aplicadas leis, priorizando-se as normasfraconstitucionais às constitucionTemos, pois, um claro problemahermenêutica em nossa cultura jurca. Esta é uma das razões de por

o curso de Pós-Graduação em Direda Unisinos, de cujo corpo docenteorgulho de fazer parte, tem como ude suas linhas de pesquisa prioritáo tema da hermenêutica jurídica asciada à concretização de direitos. Aé um parâmetro fundamental pararmação de uma sociedade mais le justa, é instrumento indispensádo que chamamos de Estado Decrático de Direito. Temos que entder que muito da injustiça social assola a sociedade brasileira vem

fato de que ainda são frágeis as nosinstituições democráticas, pois a mocracia que se concentra apenasâmbito político-partidário e deixa princípios nada democráticos a ecomia e a educação, por exemplo, é uma verdadeira democracia. O deve ser buscado é uma via de diále participação entre o Estado e os vimentos sociais organizados, mantdo-se uma tensão dialética constananal, tanto a democracia comprópria ideia de justiça devem semser vistas como algo inacabado e processo em curso.

IHU On-Line - A proposta do direachado na rua evidencia a desatlização de nossas leis ou a faltaconfança no poder judiciário?

José Carlos Moreira da Silva FilhCreio que ela evidencia os dois asptos. Diante da desatualização das ou de um texto legal insatisfatóriinadequado, especialmente na o

nião das pessoas que são os destinarios diretos desta lei, é preciso bustanto a via do debate, do protestda participação política que objvam a reforma do texto em si, cotambém o trabalho hermenêuticoconstrução judicial das interpretaçmais adequadas, capazes de compsar, muitas vezes, as falhas do telegal. Desde a Constituição de 198muito visível a abertura desse ahermenêutico na via judicial, daí pque muitos juristas, como o meu

“Muito da injustiça social

que assola a sociedade

brasileira vem do fato de

que ainda são frágeis as

nossas instituiçõesdemocráticas”

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SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305

lega Lenio Luiz Streck,3 por exemplo,armam ter sido o Poder Judiciárioalçado à condição de mediador entreos outros dois poderes do Estado, pas-sando a assumir um protagonismo quenão existia em tempos nos quais se

acreditava ser o juiz “a boca da lei”.Contudo, não se pode esquecer, comojá armei antes, que o Poder Judici-ário no Brasil é uma das instituiçõeshistoricamente mais conservadoras emenos democráticas do país, na qualpredomina o princípio da autoridadee o apego a rituais e a termos de di-fícil compreensão para a maior parteda população. É um poder ainda opa-co, que muitas vezes não fundamentaas razões dos seus entendimentos e osmeandros do funcionamento de seus

órgãos e agentes, permanecendo, viade regra, muito reticente a críticase a questionamentos feitos sobre si,que são logo apontados como amea-ças à sua independência. Creio que opoder judiciário brasileiro ainda temum longo caminho a percorrer paraagir com base na compreensão de queele é um poder que tem de prestarcontas à sociedade brasileira, e nãoapenas aos entendimentos dos seuspróprios pares.

IHU On-Line - Podemos dizer que aproposta do direito achado na ruaestá relacionada com a defesa dosdireitos humanos dos pobres? Sesim, podemos entender que a justiçaconvencional não atende às camadaseconomicamente desfavorecidas dapopulação?José Carlos Moreira da Silva Filho -Como já disse na resposta à primeirapergunta, a realidade da sociedadebrasileira está muito longe do ideal

assumido pelo direito moderno dosEstados Nacionais, qual seja, a de queo direito é para todos. Em um qua-dro como este não é de admirar quenasçam sistemas jurídicos paralelos,desvinculados da instituição estatal,ainda que com ela pretendam, emmuitos casos, dialogar. Ao reconhe-cimento deste fenômeno social cha-mamos de “pluralismo jurídico”. Em

3 Lenio Streck é professor no PPG em Direitoda Unisinos. Conra uma entrevista exclusivacom ele publicada nesta edição. (Nota da IHUOn-Line)

sua tese de doutorado, defendida naUniversidade de Yale, Boaventura deSousa Santos viveu durante meses emuma favela situada na cidade do Rio deJaneiro. Logo ele pôde perceber queno vácuo da não satisfação de direitos

básicos, inscritos na legislação e naausência da presença das instituiçõesestatais, a não ser para repressão eviolação de direitos, constituiu-se oespaço de um sistema jurídico para-lelo. Importante perceber que não setrata de defender pura e simplesmen-te a existência desses sistemas, massim de entender o fato e as razões deeles existirem. A ausência do Estadoe de políticas públicas mais integra-

doras e inclusivas estimula também aconstituição de sociedades criminosasque também oprimem e reprimem apopulação que vive nas favelas e nas

demais periferias do país, interme-diando esta violência com o atendi-mento de demandas que o Estado dei-xou desamparadas. A legitimidade dassociedades de tracantes, por exem-plo, é algo extremamente ambíguo enão deve ser visto com o olhar mani-queísta e infantil de um Bush Jr. e sua“sociedade do mal”. Por outro lado,também existem outros sistemas ju-rídicos paralelos que são a expressãoda legítima organização popular e quenão recorrem à violência e à opressão

sistemáticas exercidas sobre ingrantes do seu próprio grupo. Temaqui, por exemplo, os povos indígee os movimentos sociais organizadcomo o Movimento dos TrabalhadoRurais Sem Terra. Importante le

brar também que as exclusões são apenas relativas às questõesclasse. Na agenda dos direitos hunos, no Brasil, há muitos outros gpos cuja questão central não se limao tema da pobreza, embora por perpassem. São questões de gêneétnicas, ecológicas de opção sexuentre outras.

Quanto à armação de que a juça convencional não atende às cadas economicamente desfavorecida população, eu diria que em mu

situações ela atende sim, mas aipadece de problemas estruturais impedem que ela o faça de um mmais global e satisfatório. Dou coum bom sintoma disto o fato de as Defensorias Públicas no Brasil possuem pessoas e estrutura sucites para cumprir a sua missão pripal. Costumam ter mais sucesso demandas judiciais aqueles que dem pagar bons advogados. Além so, se formos olhar de um modo ada mais global, perceberemos que

problemas sociais do país não dizrespeito apenas à atuação do judário ou às ações do ministério púco, mas sim a questões diretamerelacionadas à política, ao sisteprodutivo, à educação e ao atual qdro de relações de força na sociedbrasileira. Devemos sempre nos lebrar que instituições como o Estado Mercado não são neutras, que o curso técnico do qual muitas das sdecisões se revestem apenas enco

a realização de escolhas sustentaem congurações morais e opçaxiológicas que estruturam imagirios e modelos de compreensão ciais que acabam por ser naturaldos. Daí porque, creio eu, a cande Caetano Veloso, intitulada “índio”, traz, no seu último versoarmação de que o que surpreenda todos não será o exótico, mas o “fato de poder ter sempre estoculto quando terá sido o óbvio”.

“A democracia que seconcentra apenas no

âmbito

político-partidário e

deixa sob princípios nada

democráticos a economia

e a educação, porexemplo, não é uma

verdadeira democracia”

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18 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO

Para o professor Roberto Efrem Filho, com o direito achado na rua, os movimentossociais puderam começar a ser reconhecidos, embora não sem a resistência dossetores conservadores do campo jurídico, como sujeitos coletivos de direito

Por GrazIela wolfart

“O direito achado na rua (...) constituiu um movimento teórico - inexoravelmentepolítico - de armação de um estilo especíco de fazer o direito, aquele con-duzido pelos movimentos sociais em meio às suas lutas por libertação”. É assimque o professor Roberto Efrem Filho dene o termo “direito achado na rua”,nosso tema de capa na edição desta semana. Na entrevista que concedeu, por

e-mail, à IHU On-Line, Efrem Filho lembra que “as teses do direito achado na rua servem às classes

subalternas e sujeitos oprimidos ao tempo em que são capazes de reconhecer tais sujeitos e de, comeles, encontrar caminhos para a formação de uma contra-hegemonia”. No entanto, “denitivamentenão se trata, nesse contexto, de qualquer hipótese de panacéia judicial”, alerta ele.

Roberto Efrem Filho é mestre em direito pela Universidade Federal de Pernambuco, professor subs-tituto da mesma instituição e assessor jurídico popular da Terra de Direitos, organização de DireitosHumanos. Conra a entrevista.

O “peso” dos movimentos sociais é maior que o das “leis”

IHU On-Line - O que podemos enten-der por direito achado na rua? Qualsua origem?Roberto Efrem Filho - O direito acha-

do na rua, assim como boa parte dasteses relativas ao “direito alternati-vo”, constituiu um movimento teórico- inexoravelmente político - de ar-mação de um estilo especíco de fa-zer o direito, aquele conduzido pelosmovimentos sociais em meio às suaslutas por libertação. Isso signica, emoutras palavras, que, com o direitoachado na rua, os movimentos sociaispuderam começar a ser reconhecidos,embora não sem a resistência dos seto-res conservadores do campo jurídico,

como sujeitos coletivos de direito. Háaí, portanto, no mínimo, dois avançosteóricos merecedores de destaque. Oprimeiro é o da revisão do conceito de“sujeito de direito”, costumeiramenteencarado pela tradição liberal de modoindividualista e correspondente àque-le modelo do “homem ideal” burguês,de origem europeia, branco, do gêne-ro masculino etc., de que fala Marx.Se o Movimento Negro é um sujeito dedireito, e não cada pessoa negra ape-

nas, o que se está a defender é queexistem direitos atinentes à organiza-ção popular e que só essa organizaçãopoderá acessar.

A legitimidade dosmovimentos sociais

O segundo é o reconhecimento dalegitimidade dos movimentos sociaisna criação de direitos e na feitura dahistória. Está aí a ideia de que os di-reitos não estão limitados ao monismoestatal, ou seja, ao monopólio estatalda criação do direito, e de que há,destarte, o que Antonio Carlos Wolk-mer1 chamou de “pluralismo jurídico”.

Numa das vertentes do pluralismo,discute-se acerca da legitimidade dos

1 Antonio Carlos Wolkmer: professor e advo-gado brasileiro. É um teórico do direito vin-culado aos estudos sobre Pluralismo Jurídico.Professor titular de História do Direito na Uni-versidade Federal de Santa Catarina, atua nagraduação e no curso de pós-graduação emdireito dessa instituição. Conferencista convi-dado em universidades do Brasil e do exterior,é considerado um dos iniciadores do debatesobre o Direito Alternativo no Brasil. (Nota daIHU On-Line)

movimentos sociais de armar (e, ptanto, criar) direitos, ainda que esdireitos não sejam, a priori, conhdos pelo Estado. É o direito à te

proposto pelo MST, por exemplo, oposição ao habitus estatal, que ramente reconhece o direito à ppriedade.

O direito achado na rua e todademais teses do direito alternareúnem diversas proposições, por zes com certas divergências internmas que, sem dúvida, estabeleceum marco histórico para a esquedo campo jurídico nacional. Nas dúltimas décadas, não houve memda esquerda desse campo, ainda q

com severas críticas e discordâncnão precisasse prestar contas ao dito achado na rua. A origem do dirachado na rua está ligada aos tralhos de Roberto Lyra Filho e de Nova Escola Jurídica. Possuiu, assao menos inicialmente, algumas inferências de pensamentos de carámarxista, dos quais suas teses fose afastando pouco a pouco. Enconse hoje numa fase “humanista” - cinuência também não foge a Lyra

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SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305

lho - mas, sobretudo, “pós-moderniza-da”, como se pode constatar a partirda leitura da tese de doutoramento deJose Geraldo de Sousa Júnior, talvez amaior referência no tema.

Sobrevalorização do judiciário

Um dos problemas decorrentes dasmudanças citadas é o do nascimentode uma sobrevalorização do Judiciárioe do direito como um todo, diretamen-te relacionada a uma maior litigânciajurisdicional dos movimentos sociaiscom vistas à efetivação dos direitos jáconstitucionalizados em 1988. Existe,nesse cenário, uma linha bastante tê-nue entre acreditar no direito estatalcomo a panacéia das transformaçõessociais - o que se lê em trabalhos te-

óricos substancialistas, como o de Le-nio Streck - e acreditar que a disputatática de certas questões no Judiciáriopode servir conjunturalmente à con-quista de certos avanços democráticos- concepção coerente com a noçãogramsciana de disputa de hegemonia.Fico, certamente, com esta últimaconcepção. Enxergar o direito como“solução para os conitos sociais” éparte da crença legitimadora do pró-prio campo jurídico no espaço social.

As estruturas do campo jurídico e seusagentes cumprem um intrínseco papelde dominação simbólica e material,que toma maior ou menor relevânciaa depender das relações de poder for-madoras do bloco histórico. Em tem-pos de descrença no campo políticoou em tempos de disciplinamento, aimportância do Judiciário para a ma-nutenção das relações de dominaçãoaumenta. Noutras conjunturas, quan-do a dominância sofre menos media-ções sociais e a “violência” é mais

ecaz para as classes dominantes doque a “hegemonia” e o aparato simbó-lico, a importância do direito diminui.Numa ou noutra conjuntura, contudo,a estrutura do campo jurídico mantémcumplicidades com as estruturas doespaço social, ou seja, com o modo deprodução capitalista. Tais cumplicida-des, de modo algum correspondem àspanacéias ou ao m das desigualdades,senão a uma negação dos conitos so-ciais que passam a assumir feição de“direitos ainda não efetivados”.

O tema é complexo e sua discussãonão cabe numa entrevista, é verdade.Pretendo com essa referência, apenasdizer que as teses do direito achado narua servem às classes subalternas e su-jeitos oprimidos ao tempo em que sãocapazes de reconhecer tais sujeitos e

de, com eles, encontrar caminhos paraa formação de uma contra-hegemonia.Mas denitivamente não se trata, nes-se contexto, de qualquer hipótese depanacéia judicial. Se o direito achadona rua um dia reconheceu os movi-mentos sociais como sujeitos de direi-tos é porque, nas lutas históricas des-ses movimentos, está sua legitimidadepara a criação desses direitos. Umacontra-hegemonia no campo jurídico

não reivindicaria para si a legitimida-de de efetivação da democracia e dedesconstrução das desigualdades. Istoseja porque as estruturas do campo

jurídico alimentam-se dessa crença nopróprio campo como salvador demo-crático para perpetuar a hegemonia;seja porque tal crença usurpa dos mo-vimentos sociais e das classes popula-res a competência para a real trans-formação que não advém do direito,mas da luta e do fazer histórico.

IHU On-Line - Quem são os adeptosdo direito achado na rua no Brasil,hoje? O que os caracteriza?Roberto Efrem Filho - O legado do

direito achado na rua é de relevânevidente. Os sujeitos atualmente ornizados entre os setores progressisdo direito devem, sem dúvida, pasignicativa de seu acúmulo ao achna rua. É o que se dá, por exemcom a assessoria jurídica popular.

núcleos pertencentes à Rede Naciode Assessoria Jurídica Universitáa RENAJU, organizações não-govnamentais como a Terra de Diree a Themis, e inclusive alguns gruacadêmicos vinculados a Programde Pós-Graduação em Direitos Hunos e Sociologia Jurídica compõecom suas variáveis, a tradição teóiniciada pelo direito achado na rAcontece atualmente um interesste movimento conjuntural: os/as graduandos(as) partícipes dos núcl

de assessoria têm ocupado cada mais os Programas de Pós-Graduaem Direito, notadamente os da UFUFPB e UFPA, dada seja à históprogressista desses Programas, coocorre com o de Santa Catarina, sa existência neles de linhas especíem Direitos Humanos. É o que secom a UFPA e a UFPB, por exemOutros Programas, certamente conta da existência de núcleos desessoria fortes nas universidades, t

demonstrado maior aceitabilidcom relação aos sujeitos deles addos. É que tem sucedido com a UFIsto, claro, com o companheirismodocentes comprometidos com os tados setores progressistas, como caso de Luciano Oliveira, Gustavo Stos, Larissa Leal e Alexandre da Mapenas para citar alguns nomes.

IHU On-Line - Os movimentos e ganizações sociais têm demonstrforça para representar os reclam

de nossa sociedade?Roberto Efrem Filho - Os movimensociais brasileiros atravessam, denoutros problemas, um difícil e bastte peculiar processo de fragmentaçAs novas facetas simbólicas do mde produção capitalista - em que emos todos(as) imbuídos(as), inexovelmente, ainda que dele discordem- têm prendido os movimentos nudisputa interna e autofágica pela ctralidade da pauta. Isto signica os diversos movimentos termin

“O direito achado na ruae todas as demais teses

do direito alternativo

reúnem diversas

proposições (...) que,

sem dúvida,

estabeleceram ummarco histórico para a

esquerda do campo

 jurídico nacional”

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por ingressar numa concorrência paraprovar “quem mais sofre” com as de-sigualdades sociais, ou “quem é maisoprimido”, em razão de, enm, de-monstrar “quem merece mais recursosnanceiros ou quem deve mais rapida-mente ser alvo de políticas públicas”.

A alegada “escassez” de orçamento es-tatal para a efetivação dos chamadosDireitos Humanos Econômicos, Sociais,Culturais e Ambientais é parte fundan-te desse cruel processo de fragmen-tação. Em outras palavras, a “reservado possível econômico” - assim deno-minada por alguns constitucionalistas- faz-se fator de concorrência. A lógicaé mais ou menos a seguinte: se o Esta-do arma que os recursos nanceirospara políticas sociais são limitados,nem todos(as) se beneciarão de taisrecursos. É assim que o Movimento Ne-gro disputa nanciamento com o Movi-mento de Mulheres, que disputa como Movimento Camponês, que disputacom o Movimento Quilombola etc.

Certamente, tal concorrência nãoé consciente ou intencional, o que,como notaria Pierre Bourdieu,2 faz asrelações de dominação simbólica ain-da mais ecazes. Não é preciso queo Movimento de Mulheres, por exem-plo, intencione excluir o Movimento

Negro do acesso a recursos públicos.Para que a fragmentação se reprodu-za ecientemente, basta que o Movi-mento de Mulheres se perca em suas“especicidades” - sem notar que adesconstrução do machismo está im-bricada à desconstrução do racismo e,

2 Pierre Bourdieu (1930 - 2002) sociólogofrancês. De origem campesina, lósofo de for-mação, chegou a docente na École de Socio-logie du Collège de France, instituição que oconsagrou como um dos maiores intelectuaisde seu tempo. Desenvolveu, ao longo de suavida, mais de trezentos trabalhos abordando

a questão da dominação, e é, sem dúvida,um dos autores mais lidos, em todo mundo,nos campos da Antropologia e Sociologia, cujacontribuição alcança as mais variadas áreas doconhecimento humano, discutindo em sua obratemas como educação, cultura, literatura,arte, mídia, linguística e política. Seu primei-ro livro, Sociologia da Argélia (1958), discutea organização social da sociedade cabila, e emparticular, como o sistema colonial interferiuna sociedade cabila, em suas estruturas e des-culturação. Dirigiu, por muitos anos, a revista Actes de la recherche en sciences sociales epresidiu o CISIA (Comitê Internacional de Apoioaos Intelectuais Argelinos), sempre se posicio-nado clara e lucidamente contra o liberalismoe a globalização. (Nota da IHU On-Line)

inclusive, das desigualdades de classe.A concorrência pelo nanciamento oupela política pública constitui, portan-to, um dos fatores de impossibilidadede construção de uma pauta políticacomum que fortaleça as reivindica-ções dos movimentos sociais. Além

dessa determinação diretamente eco-nômica, uma outra, oriunda das rela-ções próprias à economia simbólica docampo político, perfaz-se. Não é rara aconcorrência no seio do Poder Legisla-tivo, pela pauta sustentável na lógicadas coalizões e da governabilidade. Éo que ocorre atualmente, apenas paracitar um exemplo, com o Projeto deLei do Estatuto da Igualdade Racial.

O Estatuto vem sendo cercado, des-de sua propositura, por diversos Parti-

dos Políticos conservadores. Primeiro,notadamente, por conta da propostada instituição nacional das Cotas So-ciorraciais, como política armativa

efetiva de combate ao racismo; segun-do, por causa do dispositivo que tratada demarcação de terras de rema-nescentes de quilombos. Atualmente,ocorre um jogo de poderes pelo o que“passará com o Estatuto”: ou as cotasou os direitos dos quilombolas. Issoporque as coalizões políticas do Go-verno Federal e a disputa com os Par-tidos de oposição parecem “impedir”que ambos os direitos sejam garanti-dos aos povos negros historicamente

oprimidos. Noutros termos, os DireHumanos advindos das legítimas ludos movimentos sociais, restam rifapor lobbies. Os movimentos socipor essas razões, encontram-se nuencruzilhada que, se não é culpa - porque o papel das estruturas soc

de dominação não pode ser negadconta com seu consentimento incociente e com a inexorável reprodudos vínculos hegemônicos com as cses subalternas e grupos oprimidNada disso quer dizer, entretanto, tais movimentos são sujeitos coletimenos legítimos para a armaçãodireitos. Pelo contrário, são eles osjeitos sociais capazes da organizapopular, sem a qual, por certo, nuhaverá rastro qualquer de democraou soberania popular.

IHU On-Line - Em que medida os mvimentos sociais e demais organições da sociedade civil podem mais peso do que as leis na horafazer justiça?Roberto Efrem Filho - A tradiçãorídica costuma neutralizar as leis enormas. O Ensino Jurídico pouconada diz das relações de poder ponsáveis pela legislação ser destnão daquela maneira. A norma res

assim, desprovida de história, o é sobremaneira contrário à concção de justiça comprometida comlibertação das classes e sujeitos omidos. A negação da história das ldos interesses sociais que as movemum dos instrumentos simbólicos avés dos quais a hegemonia se perffabricando consensos e naturalizarelações. A armação de direitos,vada a cabo pelos movimentos sociem razão da garantia da justiça é (jtamente) a antípoda da naturaliza

com a qual o campo jurídico legitsuas posições conservadoras. É na “tura da história”, citando Paulo Fre, que os direitos são conquistadodialeticamente, as identidades renhecidas. Acontece com os movimtos sociais que suas lutas por diresão o que os formam como sujeitoque conduz ao reconhecimento umoutro e, necessariamente, ao aureconhecimento, numa desconstrudaquilo que Marx chamou de “es

“Nas duas últimas

décadas, não houve

membro da esquerda

desse campo, ainda que,

com severas críticas e

discordâncias, não

precisasse prestar

contas ao direito achado

na rua”

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nhamento”. Enquanto a história dasleis e dos interesses que as movem nosé estranha, visto que diuturnamentenegada, a história dos movimentosé sua luta diária pela justiça e pelatransformação.

Posso dizer, respondendo dire-

tamente a pergunta, que o “peso”dos movimentos sociais é maior queo das “leis”, porque os movimentosnão negam ou neutralizam a história,constroem-na. Os Direitos Humanosnão estão na lei porque a lei é a lei,simplesmente. Se tais direitos estãonas leis - e nem sempre nelas estão- é por conta de uma história de lutassociais que se consubstanciou numadeterminada legislação. Contudo, épreciso evitar duas manifestações daingenuidade purista normalmente pre-sente em debates como este: a) a deque a positivação de direitos neces-sariamente constitui uma conquista eb) a de que os movimentos sociais sãoabsolutamente justos e livres de con-tradições.

Acerca da primeira delas, oriundado discurso liberal que mais ou me-nos inconscientemente nos forma,nota-se certo caráter “evolucionista”bastante funcional à manutenção dasrelações de dominação. Nela, vê-se,

equivocadamente, a história comouma linha reta, de começo, meio em: primeiro, há pessoas oprimidas,depois elas se reúnem, então lutame conquistam direitos reconhecidospela legislação, e, assim, acabamcom a opressão. Dá-se, no entanto,que a absorção pelo Estado do “dis-curso de justiça” armado pelos mo-vimentos sociais funda-se, não rara-mente, em “concessões de direitos”sob o objetivo de garantir a manu-tenção de relações de poder. O “di-

reito” na “lei”, por mais que pareçajusto, lá está envolto em negociaçõesmateriais e simbólicas que mantêmos sujeitos oprimidos esperançosospara com o Estado, ao tempo em quelegitimam o Estado como “democrá-tico”, ainda que as desigualdades eopressões se aprofundem. Isso nãosignica, porém, que eu esteja a des-considerar completamente as leis. Éporque a reforma agrária está na leique o Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra pode cobrar juntoao Estado brasileiro que seja ela efe-tivada. É porque ela está na lei e nãoé realizada que podemos demonstraro quanto o Estado parece indispos-to à sua concretização e como essemesmo Estado capitalista nos deve

justicativas. Se a “cobrança” pelaefetivação da lei inexoravelmente le-gitima o Estado e as casamatas que osustentam, também evidencia as con-tradições - não eternamente suportá-veis - desse Estado e do modo de pro-dução. Talvez, na atual conjuntura,a maior contribuição dos movimentossociais, em suas lutas pela armaçãode direitos, seja a de aprofundar ascontradições do mundo em que vive-mos, resistindo.

A segunda ingenuidade citada, qualseja, a de que os movimentos sociaissão absolutamente justos e livres decontradições, é tão repleta de ele-mentos hegemônicos como a primeira.Os movimentos - como todos(as) nós,inclusos numa realidade de domina-ção - são contraditórios e muitas ve-zes reproduzem, por exemplo, fatoresopressivos de discriminação presentesno espaço social. Não há de se falar,portanto, em qualquer “bom selva-gem”. Nem sempre a “justiça alter-

nativa”, aplicada por um movimentopopular, constitui uma decisão “justa”segundo os princípios que orientamos processos históricos de libertaçãodos sujeitos oprimidos. Reconhecer ascontradições existentes nos movimen-tos sociais é fundamental, sobretudo,para sua superação.

leIa maIs...

>> Roberto Efrem Filho já concedeu ou-tras entrevistas à IHU On-Line. O material estádisponível na nossa página eletrônica

Entrevista:* “A” verdade jurídica é um monopólio. A trans-

 ferência da política para o direito. Publicada naedição número 266, de 28-07-2008, e disponívelno link http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1186&id_edicao=294;* Veja criminaliza a política brasileira. Publicadana edição número 292, de 11-05-2009, e dispo-nível no link http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1606&id_edicao=320

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22 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO

Na opinião de Lenio Luiz Streck, professor no PPG em Direito da Unisinos, aConstituição incorporou em seu texto tudo aquilo que se queria nas décadas de1970 e 1980. Hoje a luta é concretizar a Constituição e não buscar alternativasa ela, defende ele

Por GrazIela wolfart

“N

esta quadra da história, não é mais possível colocar-se de forma ‘alternativa’buscando um direito que ‘esteja na rua’ ou, simplesmente, no cotidiano. Vive-mos sob a égide de uma Constituição democrática que, aliás, é prenhe em direi-tos fundamentais”. A contundente opinião é do professor Lenio Luiz Streck, doPPG em Direito da Unisinos. Ferrenho defensor da Constituição Federal, Streck

arma, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, que a “luta atual é criar condiçõespara que a legalidade tenha um terreno fértil para produzir seus frutos. Ser crítico hoje é concre-tizar a Constituição. Em outras palavras, não há mais como falar em direito achado na rua, direitoalternativo ou pluralismo jurídico. A Constituição é muito mais avançada que qualquer uma destasbandeiras”.

Lenio Luiz Streck possui mestrado e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Ca-tarina. Atualmente, além de professor da Unisinos, é colaborador da Unesa e visitante da Universidadede Coimbra; presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica; e membro da comissão per -manente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros. Tem experiência na área deDireito, com ênfase em Direito do Estado, atuando principalmente nos seguintes temas: direito, her-menêutica, constituição, jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Entre seus livros publicadoscitamos Hermenêutica Jurídica E(m) Crise (8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008) e Verdade

e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas - da possibilidade à necessidade de res-

 postas corretas em direito (3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2009). Seu site pessoal é http://www.leniostreck.com.br/. Conra a entrevista.

Uma análise sociológica do direito

IHU On-Line - O que podemos enten-der por direito achado na rua? Qualsua origem?Lenio Streck - Trata-se de um movi-mento e não uma teoria sobre ou dodireito. Seu criador foi o juslósofoRoberto Lyra Filho, jurista marxista,

que foi uma espécie de ícone das te-orias críticas do direito na década de1970.

IHU On-Line - Qual a fundamentaçãoflosófca do direito achado na rua?

Lenio Streck - Penso que a principalinuência losóca seja a do mate-rialismo dialético, temperado por al-gumas das teses das teorias críticasfrankfurtianas, enm, trata-se daqui-lo que, classicamente, era chamado

de pensamento de esquerda. De todomodo, embora o próprio Roberto Lyranão admitisse, também havia, mor-mente nos seguidores do direito acha-do na rua, uma pitada daquilo que, emteoria do direito, chamamos de “posi-tivismo fático” (por todos, Alf Ross1).

1 Alf Niels Christian Ross (1899-1979) foi umjurista e lósofo dinamarquês, além de pro-fessor de Direito Internacional. É conhecido

Anal, o corolário do movimento uma análise sociológica do direcom o que passavam a dependerativismo judicial, criando, assim, parentesco com o direito alternativ

IHU On-Line - Que novas perspevas hermenêuticas da realidade e

como um dos fundadores do realismo juríescandinavo. (Nota da IHU On-Line)

“Temos uma Constituição democrática

compromissória que estabelece as condições para

o resgate daquilo que venho chamando de promess

incumpridas da modernidade”

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SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305

lei são apontadas pelo direito alter-nativo?Lenio Streck - Você perguntou primei-ro sobre o direito achado na rua. Ago-ra, pergunta sobre direito alternativo.Advirto, desde logo, que os dois mo-vimentos tratam de coisas diferentes.

Mais do que isso, os dois movimentospossuem matrizes diversas, embora,como já dito, teleologicamente pos-sam apontar para a mesma direção,isto é, os fatos sociais é que deter-minam a normatividade. Na especi-cidade, o direito alternativo é ummovimento – portanto, também não setrata de uma teoria sobre ou do direi-to – político, surgido na Itália, nos anos1970. Mas note-se: na Itália havia porparte dos assim chamados “juízes al-ternativos”, um ferrenho compromissocom a Constituição, com o que usavamo direito alternativo como uma “ins-tância normativa” contra o direito in-fraconstitucional e, para isso, usavama Constituição como um instrumentode correção e ltragem. Já no Brasil,no contexto em que surge o alterna-tivismo, não tínhamos – propriamente– uma Constituição (lembro que vi-víamos sob a égide de um regime deexceção, ditatorial). O movimento dodireito alternativo se colocava, então,

como uma alternativa contra o statusquo. Era a sociedade contra o Estado.Por isso, em termos teóricos, era umamistura de marxistas, positivistas fáti-cos, jusnaturalistas de combate, todoscomungando de uma luta em comum:mesmo que o direito fosse autoritário,ainda assim se lutava contra a ditadurabuscando “brechas da lei”, buscandoatuar naquilo que se chamam de “la-cunas” para conquistar uma espéciede “legitimidade fática”. Achávamos– e nisso me incluo – que o direito era

um instrumento de dominação e da re-produção dos privilégios das camadasdominantes. Buscávamos, assim, tirar“leite de pedra”.

IHU On-Line - Em que medida o direi-to achado na rua pode ser visto comoum instrumento de erradicação dapobreza e de redução das desigual-dades?Lenio Streck - Considerando que hápontos comuns entre o direito acha-

do na rua e o direito alternativo, épossível responder que, nesta quadrada história, não é mais possível co-locar-se de forma “alternativa” bus-cando um direito que “esteja na rua”ou, simplesmente, no cotidiano. Vive-mos sob a égide de uma Constituição

democrática que, aliás, é prenhe emdireitos fundamentais. Para ser maissimples: a Constituição incorporou,em seu texto, tudo aquilo que que-ríamos nas décadas de 1970 e 1980.Hoje a luta é concretizar a Constitui-ção e não buscar alternativas a ela.Ou seja, para preservação das insti-tuições democráticas – conquistadas atão duras penas – não cabe hoje falarem uma “legalidade alternativa” ouem “pluralismo normativo”, como,por exemplo, coisas velhas como o

“direito da favela” de que falava Bo-aventura de Sousa Santos. Nossa lutaatual é criar condições para que a le-galidade tenha um terreno fértil paraproduzir seus frutos. Ser crítico hojeé concretizar a Constituição. Em ou-tras palavras, não há mais como fa-lar em direito achado na rua, direitoalternativo ou pluralismo jurídico. AConstituição é muito mais avançada

que qualquer uma destas bandeira

IHU On-Line - Quais os limites e traves do direito achado na rQuais são as principais críticas fea ele?Lenio Streck - A resposta a essa p

gunta está entrelaçada com a da pgunta anterior. Como disse, em nocontexto atual, não faz mais sentdefender bandeiras como o direachado na rua ou o direito alternvo. Isso pelo simples motivo de temos uma Constituição democrca compromissória que estabelas condições para o resgate daqque venho chamando de promesincumpridas da modernidade. Onossa batalha atual passa pela ccretização dessas medidas que forintroduzidas pela Constituição representa o grande marco da lelidade. Não pela construção de esços alternativos a ela. Pelo contrádefender um tal posicionamento penfraquecer as conquistas democrcas dos últimos anos, na medida que, ao m e ao cabo, tais postuacabam por apostar demasiadameno poder dos juízes. É por isso queúltima edição de minha obra Verde Consenso (Lumen Juris, 2009) p

curo demonstrar a possibilidade necessidade de respostas corretasdireito. Resposta correta entendaadequadas à Constituição.

 IHU On-Line – Como entra nesse bate a questão da democracia?Lenio Streck - Até 1988, aqueles militavam em alguma corrente crído direito apostavam numa espéde “democracia judicial” pela quabuscava fortalecer as posturas analistas acerca do direito. Em term

simples: na ausência de uma democcia “de direito”, apostávamos navacidade dos fatos, na infraestrutque determinasse a superestruturaportanto, queríamos que os juízes fossem a “boca da lei”. Com a vitóda democracia, não é necessário mfazer esse tipo de aposta. Aliás, sefosse fazer uma escolha, no atual mento, melhor mesmo é que os juísejam a “boca que pronuncia a Cotituição”.

“Nossa batalha atual

passa pela

concretização dessas

medidas que foram

introduzidas pela

Constituição querepresenta o grande

marco da legalidade.

Não pela construção

de espaços alternativos

a ela”