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DIREITO À VIDA A dignidade da pessoa humana e a indemnização por dano-morte
Unidade Curricular: Direito das Pessoas e da Família
Professora: Margarida Lima Rego
Aluno: Carlos Alberto Batista Correia, aluno n.º 1452
UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
FACULDADE DE DIREITO 2009
1
ÍNDICE
Introdução............................................................................................................................ 2
I. Das pessoas ....................................................................................................................... 3
II. Direitos de Personalidade ............................................................................................... 6
2.1. Direito à Vida.............................................................................................................. 7
2.2. Violação do Direito à Vida.......................................................................................... 8
III. Dos danos não patrimoniais .......................................................................................... 9
3.1. Do sofrimento dos familiares....................................................................................... 9
3.2. Do sofrimento do próprio .......................................................................................... 11
3.3. Do dano-morte .......................................................................................................... 11
IV. Da indemnização pelo dano-morte...............................................................................13
4.1. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ............................................................ 17
Conclusão ............................................................................................................................20
Bibliografia .........................................................................................................................21
Anexo...................................................................................................................................23
2
Introdução A vida humana assume uma posição inigualável na Ordem Jurídica Portuguesa. É
inegável que todas as pessoas humanas merecem ser tratadas com igualdade perante o
Direito. O Princípio da igualdade dispõe que situações iguais devem ser alvo de
tratamento igual e situações distintas devem ser tratadas de forma distinta.
A vida humana é algo de igual importância para todas as pessoas, já que uma vida
humana vale tanto como ela própria e não por comparação com outras vidas humanas. No
decurso do presente trabalho procuramos apurar se os tribunais de 1ª Instância, da Relação
e o Supremo Tribunal de Justiça se têm pautado por critérios de equidade na apreciação de
casos de dano-morte e na fixação de indemnizações por este dano não patrimonial.
Procuraremos ainda perceber se dos Acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal
de Justiça resulta a aplicação de critérios distintos no juízo dos casos e em que medida
podemos estar perante uma violação do princípio da dignidade da pessoa humana.
3
I. Das pessoas
Reflexo da evolução do pensamento filosófico, o mundo como o conhecemos não
mais gira em torno de uma divindade. Com efeito desde a Idade Média o Homem tomou o
lugar central na História de tal forma que as sociedades existem para servir o Homem, e o
Direito para servir as sociedades humanas. O direito não rege a conduta da pessoa isolada,
mas as relações entre as pessoas. Assim podemos afirmar que o Direito existe porque o
Homem existe. No entanto, a pessoa humana não foi o primeiro objecto de relações
jurídicas, mas sim a propriedade e as trocas estabelecidas entre as pessoas, porquanto a
pessoa era algo de pressuposto sobre a qual não fazia sentido haver reflexão no mundo
jurídico.
A necessidade de reflexão sobre a pessoa humana foi despoletada com o surgir do
iluminismo, já que esta corrente político-filosófica alertou o mundo para a igualdade entre
todas as pessoas humanas num passado recente marcado pela diferença de tratamento
entre os seres humanos, como aconteceu com a escravatura. Apesar de tarde se ter
reconhecido a igualdade de todas as pessoas humanas perante a lei, o Direito reflecte um
elevado desenvolvimento no reconhecimento dos direitos fundamentais inerentes a toda a
pessoa humana. Para tal contribuíram, entre outros corpos legais, a Declaração Universal
dos Direitos do Homem (DUDH), de 1948, e a Convenção Europeia dos Direitos do
Homem (CEDH), de 1950, bem como a fiscalização e controlo pelos tribunais
internacionais, comunitários e nacionais da legalidade e respeito pelo princípio da
igualdade.
A pessoa pode ser vista de duas perspectivas, como ser humano e como
destinatário de normas, na medida em que é susceptível de ser titular de direitos e de
obrigações. Neste trabalho ocupar-nos-emos da pessoa na segunda perspectiva e nesta
somente das pessoas singulares – as ditas pessoas humanas.
1.1. A pessoa singular – sujeito titular de direitos e de obrigações A pessoa singular surge com a criação da vida, com a concepção biológica de um
ser humano. Até ao momento em que ainda não houve concepção, o Direito considera a
pessoa como concepturo (nascituro não concebido), i.e, a pessoa humana ainda não
concebida, e consiste numa figura jurídica que tem essencialmente relevância para efeitos
de sucessão e de doação. Inversamente, após a concepção e antes do nascimento, o Direito
4
considera a pessoa humana como nascituro, figura com relevância em várias situações
jurídicas, dependendo do seu nascimento completo e com vida.
O Direito refere-se ao nascimento das pessoas humanas no Título II, Capítulo I do
Código Civil sob a epígrafe «Pessoas singulares» e no qual consagra as regras legais
gerais relativas às pessoas humanas. Neste, o art. 66.º, n.º 1, faz depender a personalidade
jurídica da pessoa humana de dois requisitos cumulativos, do nascimento completo e com
vida. É com o nascimento com vida do nascituro que este adquire não só personalidade
jurídica, mas também adquire capacidade jurídica de gozo de direitos. Alguns autores
entendem que o nascituro não tem quaisquer direitos pelo facto de não ser autónomo
biologicamente em relação à mãe, no entanto a maioria da doutrina entende que o
nascituro desde o momento da sua concepção é um ser humano que, por mais embrionária
que seja a fase em que se encontra, já goza de certos direitos. A larga maioria da doutrina
refere que a tese pela qual se defende que o nascituro não possui direitos devido à sua
dependência da mãe carece de fundamento, porque também o recém-nascido com vida
continua numa situação de enorme fragilidade, talvez mais do que antes de nascer, e
depende da mãe para quase tudo1. Partilhamos desta última visão, já que igualmente
consideramos que ao nascituro na qualidade de ser humano é merecida toda a dignidade
que é reconhecida à pessoa humana, razão pela qual consideramos que é titular de certos
direitos. O nascituro não goza somente de uma protecção jurídica objectiva, porque se
assim fosse apenas seria visto como um objecto aos olhos do Direito. O nascituro não é
um objecto do Direito, porque é uma pessoa humana e disto depende a sua personalidade
jurídica. Assim consideramos que as pessoas singulares adquirem a personalidade jurídica
ainda antes do seu nascimento completo e com vida e não como dispõe o Código Civil no
seu art. 66, n.º 1, devendo entender-se que a referência à personalidade jurídica significa
que a mesma já existe, mas será retroactivamente desconsiderada se não houver
nascimento completo e com vida2.
Como vimos a Ordem Jurídica portuguesa, de acordo com a redacção do art. 66.º,
n.º 1 do CC, parece não considerar que a personalidade jurídica surja com o momento da
concepção, logo não considerando o nascituro como sujeito de direito. Contudo confere-
lhe protecção jurídica, reconhecendo que pode ser destinatário de doações3 ou de
1 Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, Coimbra, 2006, p. 105. 2 Idem, p. 109. 3 Cf. n.º 1 do art. 952.º do CC.
5
sucessões4, o que a meu ver parece ser uma contradição, já que confere a uma pessoa
humana em fase embrionária a faculdade de por exemplo poder ser donatário num contrato
de doação e depois faz depender a personalidade jurídica do nascimento completo e com
vida. A meu ver, e como consideram alguns autores5, o nascituro adquire personalidade
jurídica desde o momento da sua concepção, já que a pessoa humana é considerada para o
direito como uma pessoa em relação com outras pessoas. Ora como já anteriormente
referi, o direito surge em sociedade para reger as relações entre as pessoas, razão pela qual
se atribui a cada pessoa personalidade jurídica e capacidade de gozo de direitos resultantes
das relações que cada individuo é susceptível de tecer com os demais, então o nascituro
também ele próprio possui personalidade jurídica, porquanto estabelece relações quer com
a mãe, quer com o mundo exterior, quando, por exemplo, é parte num contrato de doação,
ainda que por intermédio dos progenitores, estabelecendo-se uma expectativa jurídica, que
em princípio culminará num direito subjectivo quando o nascituro, pelo seu nascimento
completo e com vida, adquira capacidade de gozo.
O nascituro além dos direitos acima referidos possui ainda outros direitos inerentes
à sua qualidade de pessoa humana, designadamente os direitos de personalidade, como por
exemplo o direito à vida e à integridade física6. No entanto, poder-se-á colocar a questão
de saber como a lei se compatibiliza com as situações em que o nascituro nasce sem vida.
Nestas situações a lei consagra que os direitos reconhecidos ao nascituro dependem do seu
nascimento completo e com vida7. Isto significa que os direitos de personalidade
reconhecidos ao nascituro extinguem-se com a extinção da personalidade e com esta
também se extinguem retroactivamente os direitos patrimoniais que o nascituro possa ter
adquirido.
No tocante à pessoa humana já nascida com vida, a mesma possui um estatuto
jurídico que se vai alterando com o decurso do tempo, dependendo da sua idade e estado
de saúde física e psíquica. A pessoa humana adquire capacidade jurídica de gozo
(genérica) que estava dependente do seu nascimento com vida e ainda capacidade jurídica
4 Cf. n.º 1 do art. 2033.º quanto à sucessão legal, e n.º 2 quanto à sucessão testamentária, ambos do CC. 5 Pedro Pais de Vasconcelos, Op. cit., p. 108. 6 Quanto ao direito à vida do nascituro o Código Penal no seu art. 140.º pune, para além das excepções legais, quem cometer o crime de aborto, consagrando o diploma molduras penais diferentes consoante haja ou não consentimento da mulher grávida. Ainda que não seja objecto deste trabalho, julgo necessário o reparo de que talvez a norma penal não devesse considerar de forma distinta a morte de pessoa já nascida e a morte de pessoa não nascida, ou a nascer ou ainda logo após o nascimento. Contudo este olhar sobre a lei levar-nos-ia a questões que como já referi não são o âmbito deste trabalho. Serve somente a alusão para referir que mesmo em fase embrionária a lei confere direitos ao nascituro, neste caso o direito a nascer com vida. 7 Cf. n.º 2 do art. 66.º do CC.
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de exercício, que, em regra, atingem a sua plenitude com a maioridade ou emancipação da
pessoa8.
II. Direitos de Personalidade
Em breves traços vimos como o direito considera a vida humana desde a sua
concepção e como lhe reconhece personalidade jurídica. Este desiderato conduz-nos ao
princípio da dignidade da pessoa humana, donde emanam vários corolários para o nosso
sistema jurídico, como, por exemplo, a proibição da tortura, a proibição da escravatura e a
proibição de pena de morte, i.e., o reconhecimento do direito à integridade física e o
direito à vida.
Para efeitos do presente trabalho debrucemo-nos somente no direito à vida, como
espaço de liberdade concedido à pessoa humana para regular a sua vida e nela tomar as
decisões que se lhe aprouver, desde que em respeito pelos direitos dos demais sujeitos, e
não se ver privado da sua vida. O direito à vida consiste num direito de personalidade
absoluto, mas não tão absoluto a ponto de ao seu titular ser legítimo atentar contra a sua
própria vida.
O Código Civil consagra os direitos de personalidade nos artigos 70.º e seguintes,
onde começa por estabelecer uma tutela geral dos direitos de personalidade referindo que
«A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua
personalidade física ou moral»9. Esta disposição não confere por si só um direito geral,
mas somente uma protecção geral ao conjunto de bens da personalidade, onde se insere o
direito à vida. Por conseguinte, não podemos extrair deste preceito legal um direito
subjectivo, porque seria demasiado indefinido, afastando-se a possibilidade de aplicação
do regime próprio dos direitos subjectivos10. Todavia o artigo 70.º do Código Civil
permite que pela sua tutela surjam vários direitos, os direitos subjectivos de personalidade,
onde já destacámos o direito à vida, que adiante analisaremos.
Com a vida cessa igualmente a personalidade jurídica, contudo alguns direitos do
falecido subsistem, designadamente direitos de personalidade11.
8 Cf. arts. 130.º a 133.º do CC. 9 Cf. n.º 1 do art. 70.º do CC. 10 Neste sentido, vide António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2007, p. 101. 11 Cf. n.º 1 do art. 71.º do CC.
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2.1. Direito à Vida
O direito à vida é um direito de personalidade que não está regulado em especial no
Código Civil, i.e., não encontra neste articulado legal um regime próprio. No entanto,
encontramo-lo consagrado no artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa (CRP)
que declara que «a vida humana é inviolável» e que «em caso algum haverá pena de
morte»12.
O direito à vida não é discutido na sua acepção típica, já que a ninguém é licito
ofender a vida de outrem, salvo as excepções legais devidamente consagradas na lei penal.
Os casos onde a discussão sobre o direito à vida apresenta maior dificuldade de consenso
resultam, em regra, de situações limite da vida das pessoas, como é o caso da eutanásia e
do suicídio, ou do auxílio ou incitamento a este, e ainda os casos de interrupção voluntária
da gravidez. Das situações referidas o suicídio consiste no único caso em que, embora não
sendo lícito, não é punível, o que não é difícil de compreender, porquanto daí não adviria
prevenção nem redenção prováveis. Muito provavelmente o sujeito, sabendo que seria
punido, poderia atentar novamente contra a sua vida.
A leitura que devemos retirar do articulado da CRP deve ser mais profunda, porque
não só a norma constitucional consagra o direito à vida, como fá-lo no primeiro artigo
relativo aos direitos, liberdades e garantias pessoais, assumindo assim uma posição
cimeira relativamente aos restantes direitos fundamentais elencados na CRP. Com esta
disposição o legislador constituinte quis dar a conhecer que num Estado de Direito
Democrático o direito à vida adquire uma posição de supremacia face aos demais direitos,
e assim confere uma elevada dignidade à pessoa humana, porquanto todos os restantes
direitos, sejam eles direitos, liberdades e garantias ou somente direitos fundamentais
devem ceder perante a inviolabilidade da vida humana.
Também o Código Penal reconhece a mais elevada importância à vida humana,
porquanto considera a ofensa a esta como um crime de extrema gravidade e como tal
punindo-o com a mais pesada pena, em moldura abstracta, no primeiro artigo e seguintes
da Parte Especial do seu articulado13.
A mesma importância à preservação da vida humana é conferida por vários
diplomas ao nível supraestadual, como é o caso, entre outros, da DUDH14, da CEDH, bem
como da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
12 Cf. n.ºs 1 e 2 do referido artigo. 13 Cf. art. 131.º do CP. 14 Cf. art. 3.º da DUDH; art. 2.º da CEDH e art. 2.º da CDFUE, de 12 de Fevereiro de 2000.
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Não obstante o grau de protecção conferida ao direito à vida humana, situações há
que podem violar este direito, o que pode resultar de uma actuação dolosa ou negligente e
ilícita ou lícita. Em regra as actuações dolosas e negligentes são ilícitas, sendo esta
ilicitude e a medida da culpa que determinam a necessidade de se punir ao nível penal e
que faz o agente incorrer na obrigação de indemnizar. Há, no entanto, casos em que a
conduta dolosa não acarreta sanção penal, nem responsabilidade civil, pelo facto de a
conduta não ser ilícita, como, por exemplo, a actuação em legítima defesa. Por
conseguinte, cingir-nos-emos às situações sobre as quais é possível um juízo de ilicitude e
de culpa para a partir daí extrairmos os efeitos jurídicos da violação do direito à vida.
2.2. Violação do Direito à Vida As violações do Direito à vida são em princípio ilícitas, salvo quando se provar que
o agente da violação actuou no exercício de um direito ou no cumprimento de um dever. O
juízo de ilicitude, além de apurar a existência de um destes dois requisitos, tem igualmente
de ponderar os direitos em conflito no caso concreto. Isto significa que o exercício de um
direito só poderá prevalecer sobre o Direito à vida de outrem em circunstâncias
verdadeiramente excepcionais, como, por exemplo, no exercício do direito à legítima
defesa própria ou de terceiros. Também o cumprimento de um dever só em casos muito
excepcionais poderá prevalecer sobre o Direito à vida de outrem, como, por exemplo,
quando um elemento policial dispara sobre um sujeito, provocando-lhe a morte, em
legítima defesa de terceiro cuja vida também estava em perigo. Por conseguinte,
constatamos que o juízo de ilicitude consiste numa ponderação das circunstâncias,
designadamente a actuação do lesante, a actuação do lesado e a necessidade de conduta
lesiva. Apenas quando a lesão for necessária para afastar o perigo para a vida de outrem é
que ela pode ter lugar.
Na apreciação de uma conduta lesante é igualmente necessário um juízo de culpa,
que releva nos casos em que a ilicitude não é afastada, em que é essencial verificar se
existem causas de exclusão da culpa e, em caso contrário, graduar a culpa, i.e., apurar a
medida da culpa do lesante no caso concreto.
Estabelecido o juízo sobre a conduta do lesante e apurando-se que a mesma foi
ilícita e culposa, a título de dolo ou mera culpa, haverá lugar à responsabilidade civil por
factos ilícitos15, tendo o lesante obrigação de indemnizar consoante o consagrado nos
artigos 495.º e 496.º do CC que analisaremos de seguida.
15 Cf. n.º 1 do art. 483.º do CC.
9
III. Dos danos não patrimoniais O Código Civil na Secção V, Capitulo I, e Título I do Livro II, alude à obrigação
de indemnização em caso de morte ou lesão corporal no artigo 495.º e à obrigação de
indemnizar pelos danos não patrimoniais no artigo 496.º.
Enquanto que a indemnização consagrada no âmbito do artigo 495.º CC é relativa
aos danos patrimoniais relacionados com a lesão que provocou a morte ou a ofensa
corporal, a indemnização consagrada no âmbito do artigo 496.º CC é restrita aos danos não
patrimoniais sofridos pela vítima e aos seus herdeiros, nestes se considerando as pessoas
das suas relações jurídicas familiares16. Como pretendemos unicamente tratar da violação
do Direito à vida e das repercussões não patrimoniais de semelhante violação deter-nos-
emos pelo art. 496.º CC.
Os danos não patrimoniais – danos morais – consistem em danos que pese embora
possam ter uma lesão física, como nos casos de amputação do membro de alguém em
consequência de um acidente, não são danos no património da pessoa, i.e., no seu acervo
de bens físicos com expressão económica e de que o seu titular pode livremente dispor.
Pelo contrário quanto aos direitos eminentemente pessoais o seu titular não é livre de
dispor deles, já que em certas circunstâncias até mesmo a simples limitação voluntária ao
exercício de direitos de personalidade configura um acto nulo17.
Como os danos morais não pertencem unicamente ao de cuius, mas prevêem-se
igualmente danos morais para os seus herdeiros, importa identificar quem segundo a lei é
susceptível de ser indemnizado e a que título.
3.1. Do sofrimento dos familiares A morte de uma pessoa é um acontecimento normalmente sentido pelas pessoas
das relações mais próximas do falecido, e indiscutivelmente é um momento de enorme
dor, apenas verdadeiramente compreendido por quem já a sentiu, sendo tanto mais forte
quanto maior for a angústia de ver alguém falecer que ainda não havia atingido o apogeu
da vida, sobretudo se a morte resultar de uma atitude negligente ou de um acto cruel de
outrem.
Segundo esta linha de pensamento, o legislador considerou que, aparte outros
danos, também algumas pessoas das relações jurídicas familiares do de cuius devem ser 16 Por relações jurídicas familiares queremos referirmos ao casamento, ao parentesco, à afinidade e à adopção (cf. art. 1576.º do CC). 17 Cf. n.º 1, art. 81 do CC.
10
indemnizadas pelos danos morais sofridos pela morte do seu ente querido. Assim a 2.ª
parte do n.º 3 do artigo 496.º CC dispõe que em caso de morte podem ser atendidos os
danos sofridos pelas pessoas referidas no número anterior, a saber: o cônjuge não separado
judicialmente de pessoas e bens e os filhos e outros descendentes, os pais ou outros
ascendentes, como, por exemplo, os avós, bem como os irmãos ou descendência destes. A
lei consagra a estas pessoas o direito à indemnização pelos danos morais sofridos, melhor
dito pelo sofrimento tido com a privação de alguém próximo.
Embora alguns autores entendam que o direito à indemnização dependerá da ordem
estabelecida no n.º 2 do art. 496.º CC, isso não parece fazer muito sentido, porque por
exemplo um irmão pode sofrer muito mais com a morte do seu irmão do que por exemplo
um neto do seu avô. Não somos de considerar, aliás somos mesmo de desconsiderar a
posição que defenda a possibilidade de accionamento da indemnização consoante a ordem
estabelecida naquele n.º 2, já que como referimos a dor sentida por ter perdido alguém não
consiste em algo que o direito possa predeterminar e graduar em função do grau de
parentesco. Quer isto dizer que cada uma das pessoas aí referidas tem a possibilidade de,
independentemente das demais, accionar o pedido de indemnização pelos danos morais
sofridos em consequência da morte de um seu parente com o qual mantenham a relação
estabelecida no n.º 2 do supracitado artigo. Por conseguinte, as pessoas ali referidas têm
um direito próprio a serem indemnizadas pelo dano sofrido.
Questão diversa, embora relacionada com o anteriormente exposto, consiste em
saber se o elenco de pessoas referido naquele n.º 2 é taxativo, ou pelo contrário é apenas
enunciativo, permitindo a inserção de outras pessoas. Em bom rigor, do elemento literal da
norma parece não haver lugar a que outras pessoas para além das já referidas possam
accionar o pedido de indemnização civil por sofrimento próprio com a morte de alguém
próximo. Ora a teleologia da norma tem que ver com conceder às pessoas das relações
jurídicas familiares próximas do falecido um direito subjectivo de indemnização civil para
serem compensadas pelo mal suportado, logo não parece descabido que alguém do
relacionamento muito próximo do de cuius, como por exemplo o companheiro de união de
facto em comum de habitação há pelo menos dois anos não possa igualmente ter direito ao
pedido de indemnização civil. Somos de considerar que nas situações de união de facto
agora descritas haja lugar a um interpretação extensiva do n.º 2 do artigo 496.º CC quando
este se refere ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens, já que mediante
esta disposição é de admitir que o cônjuge apenas separado judicialmente de bens possa
pedir a indemnização pelo sofrimento obtido com a morte do outro cônjuge. Se assim é,
11
então na prática não se vê qualquer distinção entre os cônjuges casados com separação de
bens e os companheiros unidos de facto com um mínimo de comunhão de habitação.
Assim defendemos a interpretação extensiva do n.º 2 do artigo 496.º CC aos casos de
união de facto.
Somos de ir mais além e considerar que haverá lugar à analogia nas situações de
união de facto entre pessoas no mesmo sexo nas condições de comunhão já referidas,
porquanto a CRP reconhece o direito a todos de constituir família18, e esta segundo
entendemos não é o mesmo que casar, mas sim constituir um núcleo coeso com
intrincadas relações de afectuosidade interdependentes.
3.2. Do sofrimento do próprio Os danos não patrimoniais sofridos pelo lesado antes da sua morte conferem-lhe o
direito de indemnização civil conforme o consagrado na 2.ª parte do n.º 3 do artigo 496.º
CC, mas para tal a vítima tem de ter sofrido antes da sua morte, sendo que a causa que
levou ao sofrimento levou igualmente à morte.
Nesta situação não há relevante dissidência na doutrina, contudo alguns autores
levantam questões relacionadas com a hereditariedade do direito a indemnização, já que na
generalidade das situações mais graves em que o falecido padece antes da sua morte a
indemnização não é accionada de imediato pelo próprio, por não se encontrar capacitado
para tal. Assim, na impossibilidade de exercer o seu direito este é transmitido, as mais das
vezes, por herança, já que sendo um direito que integrava o património do falecido é
objecto de sucessão, desde que o falecido não tenha renunciado ao direito.
Do exposto resulta que não haverá lugar à indemnização por danos não
patrimoniais nas situações em que a morte ocorre no momento da lesão e de forma que
não é possível determinar um período de tempo em que se possa com plausível certeza
afirmar que o de cuius sofreu antes de morrer.
3.3. Do dano-morte A lesão da vida humana, como já vimos, conduz ao sofrimento dos familiares e em
algumas situações ao sofrimento do próprio. Na verdade nem só os familiares sofrem com
a morte de um ente, mas também os amigos com maior ou menor intensidade consoante
sejam mais ou menos chegados. Contudo, quanto a estes o direito não lhes reconhece
relevância jurídica no seu sofrimento.
18 Cf. n.º 1, art. 36.º da CRP.
12
A morte de uma pessoa é um acontecimento que não passa despercebido na
sociedade. Não que seja conhecida de toda a sociedade, mas apenas que quem dela
conhece nutre respeito pela pessoa falecida. Somos de considerar que nestas ocasiões, a
sociedade reconhece a dignidade da pessoa humana, ainda que na sua última condição, a
de cadáver. Assim não podemos aceitar que o momento em que a morte, porque
provocada, ocupa o lugar da vida não deva ser objecto de ponderação pelo Direito, i.e.,
parece-nos inconcebível que o legislador não tenha pensado uma previsão e uma
estatuição legais para a violação da vida humana.
A este respeito a doutrina não é uníssona, já que alguns autores19 entendem que o
artigo 496.º CC não prevê no seu articulado as situações de indemnização pelo dano-
morte, mas somente as indemnizações decorrentes do sofrimento do próprio e dos
familiares. Outros autores consideram haver previsão legal do dano-morte no articulado
deste artigo, porém divergem quanto à constituição do direito, designadamente se o direito
à indemnização se constitui na esfera jurídica do falecido e é transmitido por via
sucessória às pessoas enunciadas no n.º 2 daquele artigo ou, pelo contrário, estas adquirem
um direito próprio com a morte do de cuius20.
Os argumentos esgrimidos na doutrina, quanto a saber se há um direito próprio dos
familiares a serem indemnizados pela morte do falecido ou se adquirem esse direito por
transmissão sucessória, vão no sentido de aceitar ou não a possibilidade de o falecido
adquirir um direito à indemnização pela sua morte. A maioria refuta por completo a
possibilidade de o falecido adquirir o direito e transmiti-lo, porque não será de aceitar
como plausível que o direito se tenha constituído.
Da ponderação que encetamos, somos de considerar que o direito à indemnização
em função do dano-morte, e contrariamente ao sofrimento obtido pelo falecido ainda em
vida, não poderá em caso algum constituir-se na sua esfera jurídica e depois ser
transmitido por via sucessória aos seus herdeiros. Em termos pragmáticos, não é possível
que o direito de alguém à indemnização pela sua morte se constitua em vida, porque ainda
não há direito e nem em morte porque cessa a personalidade jurídica do próprio21.
Autores há que, em prol da constituição do direito no falecido, defendem que tal
constituição é possível, porque depois do acto lesivo da vida e antes de ocorrer a morte
19 Quanto a esse entendimento vide Oliveira Ascenção, «Direito das Sucessões», in Delfim Maya de Lucena, Danos Não Patrimoniais, O Dano da Morte, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 38-40. O Professor refere que a morte não pode ser um facto aquisitivo de um direito, desde logo porque se extinguiu a personalidade jurídica. 20 Num e noutro sentido vide Leite Campos, «A Indemnização do Dano da Morte», et Antunes Varela, «Direito das Obrigações em Geral», in Delfim Maya de Lucena, Op. Cit, pp. 49-53. 21 Cf. n.º 1, art. 68.º do CC.
13
existe uma fracção temporal em que há lugar à constituição do direito à indemnização no
de cuius. Somos de discordar por completo desta opinião, já que entendemos que mesmo
por atómicas fracções de tempo tal constituição do direito não é possível, porque segundo
o estado da arte médica depois do último suspiro de vida apenas há a morte. A questão
ainda se poderia colocar para as situações em que há morte cerebral e o corpo mantém as
funções por se encontrar ligado à máquina de suporte de vida. Todavia, mesmo nestas
situações a medicina identifica a morte cerebral com a morte física da pessoa, logo
jurídica.
O elemento literal do n.º 2 do art. 496.º CC ao utilizar a expressão «cabe» reforça a
ideia de que o legislador pretendeu afastar uma ideia de sucessão, porque de contrário
utilizaria uma expressão que implicasse uma transferência do direito, pelo que reforçando
o que atrás se disse existe um direito próprio das pessoas enunciadas naquele n.º 2 e não a
transmissão de um direito do falecido.
IV. Da indemnização pelo dano-morte
A ideia subjacente à obrigação de indemnizar tem que ver com a necessidade de
reparar um dano, de forma a reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido o
acto lesivo, sendo que para tal é necessário que os danos sofridos pelo lesado resultem da
lesão, exigindo-se assim um nexo de causalidade entre a conduta lesiva e a produção do
dano22.
A lesão que culmina com a morte de outrem é, por razões óbvias, de tal forma
irreversível que o Código Civil no art. 566.º prevê que nos casos em que haja
impossibilidade da reconstituição da situação tal qual se não tivesse ocorrido a lesão há
lugar à indemnização em dinheiro. Problema será o de determinar o montante que os seus
herdeiros têm direito pela violação do Direito à vida. Se nos casos de lesão de danos
patrimoniais nunca se afiguram problemas de maior no cálculo da indemnização, o mesmo
não acontecia nos casos de lesão de danos não patrimoniais, já que não existia valor
económico atribuído à vida, à integridade física ou à integridade psíquica. Com efeito,
actualmente vigora no nosso ordenamento jurídico a Portaria n.º 377/2008, de 26 de
22 Cf. arts. 562.º e 563.º do CC.
14
Maio23, que fixa os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos
lesados por acidente automóvel de proposta que o diploma designa «razoável» para
indemnização do dano corporal. Esta norma legal prevê na alínea a) do seu art. 2.º a
indemnização pela violação do direito à vida nos termos do art. 496.º CC e no seu art. 5.º
consagra a «Proposta razoável para danos não patrimoniais em caso de morte» no qual
refere que as indemnizações por violação do direito à vida são calculadas no quadro
constante do anexo II daquela Portaria. Antes de nos debruçarmos nas quantias que o
legislador considera «Proposta razoável»¸ pretendemos fixar um pressuposto: o de que a
violação do direito à vida deve ser alvo das mais pesadas consequências jurídicas, quer ao
nível penal, quer ao nível civil – indemnizatório. Não podemos conceber que, num mundo
que gira em torno do Homem e do valor natural da pessoa humana e no qual as sociedades
ocidentais se alicerçam, se renegue à pesada punição da violação do direito à vida de
outrem. No nosso ordenamento jurídico, quem viola a vida de outrem é sancionado nos
casos de crime com a mais elevada sanção penal da nossa ordem jurídica. Mas há
situações em que mesmo com ofensa à vida de outrem podemos não estar na presença de
crime, como por exemplo quando um inimputável em razão da idade comete um facto
qualificado na lei como crime24 – que pode ser o homicídio – e admitamos que até foi por
negligência. Neste caso o direito penal de pouco serve, porque em razão da
inimputabilidade o menor pode enfrentar sanções legais menos pesadas, até porque pode
nem haver necessidade de prevenção especial ou reeducação do menor face ao direito,
porque o acto cometido tem desvalor no resultado, mas não na acção.
É nossa convicção que os casos de obrigação de indemnização têm, tal como as
sanções penais, uma componente punitiva do lesante pelo dano produzido. Entendemos
que o direito à indemnização pelo dano-morte não visa apenas compensar o dano
provocado, mas também, e por ventura principalmente, sancionar o comportamento lesivo,
já que a primeira parte do n.º 3 do art. 496.º CC em conjugação com o art. 494.º CC
permite fixar o montante da indemnização não apenas segundo a gravidade do dano
provocado, mas igualmente exige a ponderação, entre outras, do grau de culpabilidade do
agente, podendo reduzir o montante indemnizatório. Afigura-se-nos que esta disposição
legal tem alguma natureza sancionatória perante o comportamento do lesante, porque se
assim não fosse não nivelaria a indemnização pelo seu grau de culpa.
23 O diploma veio fixar os critérios e valores de indemnização para a proposta razoável de indemnização de dano corporal prevista no Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que transpôs a Directiva Comunitária 2005/14/CE, de 11 de Maio (cf. Jornal Oficial n.º L 149 de 11/06/2005, pp. 14 a 21). 24 Vide Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro, que aprova a Lei Tutelar Educativa.
15
Para que o tribunal fixe o montante da indemnização é necessário que tenha
ocorrido um dano não patrimonial, que o lesante tenha agido com dolo ou negligência e de
forma ilícita e ainda que exista um nexo de causalidade entre o acto lesivo e os danos
provocados25. Feito este percurso, o tribunal procurará fixar equitativamente o montante
da indemnização26.
Já dissemos que é pelo n.º 3 do art. 496.º CC que o juiz fixa equitativamente o
montante da indemnização a pagar, mas ainda não verificamos o alcance prático desta
disposição.
Se nos fixarmos na jurisprudência mais recente retratada no quadro em anexo ao
presente trabalho e nos Acórdãos referidos na bibliografia podemos constatar algumas
tendências nas decisões judiciais, mormente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Tendo
por base o referido quadro em anexo, verificamos que em casos raros o valor
indemnizatório pela perda da vida ultrapassa os 50 000,00 € nas instâncias a quo. Todavia,
nos casos em que os montantes são superiores (STJ - 07B3715, 18/12/2007; STJ -
08B2860, 25/092008) o STJ reduziu o montante da indemnização pelo dano-morte para 50
000,00 em ambos os casos. Estes não são casos únicos, já que, tomando outro Acórdão
(STJ – 08P1616, 21/05/2008) cuja situação tem que ver com o atropelamento do um
menor de sete anos de idade do qual resultou a morte, o STJ profere que «…constata-se
que o infeliz menor se insere nos padrões normais de uma criança da sua idade (alegre,
feliz e saudável) pelo que o ressarcimento do “dano morte” deve ser fixado, em abstracto
e no âmbito da habitualidade, em € 45.000,00.» reduzindo desta forma o montante da
indemnização em 10 000,00 €. Refere ainda o douto Acórdão que «Ao fixar-se em €
55.000,00 esse mesmo dano o Acórdão recorrido fez uma errada interpretação das
normas dos artigos 483º, 496º, nº3, 562º e 566º do Código Civil as quais deveriam ter sido
interpretadas no sentido de que, de acordo com a matéria de facto apurada e os “padrões
usuais” da jurisprudência, tal dano deveria ser valorado nos referidos € 45. 000,00.»27.
Esta afirmação não é única na jurisprudência. Vários outros Acórdãos tecem este tipo de
conclusões28, o que nos permite afirmar com alguma segurança que a fixação equitativa
pelos tribunais a quo do montante da indemnização tem sido mais suportada numa linha
de posição do STJ do que propriamente pela equidade do caso concreto. Contudo também
25 Cf. art. 483.º do CC. 26 Cf. n.º 3, art. 496.º do CC. 27 Vide ponto 20.º do Acórdão. 28 Ainda quanto a outros Acórdãos que declaram a existência de «padrões usuais» da jurisprudência vide STJ – 08P2860, 25/09/2009, no ponto XXVI do seu sumário e STJ – 08P1413, 27/11/2008, no ponto VII do seu sumário.
16
esta posição adoptada pelo STJ, e consequentemente pelos tribunais de 1.ª Instância e
pelos da Relação, tem por fundamento algumas das práticas estabelecidas ao nível das
apólices de seguro de vida e de responsabilidade civil das Seguradoras e dos Bancos. Após
consulta de algumas apólices de seguro, podemos constatar que as coberturas de seguro
para o caso de morte fixam-se, na esmagadora maioria das apólices, em valores que não
ultrapassam os 50 000,00 €29. Ainda quanto à fixação de valores de indemnização civil
estabelecidos para os casos de morte, a Portaria n.º 377/2008, a que já nos referimos,
procura uniformizar a atribuição de «Compensações devidas em caso de morte …», onde
no quadro C do seu anexo II, discrimina montantes indemnizatórios consoante a idade da
vítima, sendo o valor da indemnização a atribuir tanto menor quanto maior for a idade da
vítima30. Com isto não pretendemos afirmar que as decisões judiciais aos vários níveis se
balizam quer naqueles documentos das seguradoras, quer nesta recente Portaria, mas
provavelmente proporcionam uma posição muito cómoda e segura para fixarem valores
indemnizatórios nos casos de dano-morte. Apreciadas estas situações, não podemos com
total certeza afirmar que as práticas comerciais delineadas pelas Seguradoras tenham
influenciado as decisões judicias, já que não nos foi possível recolher dados concretos que
comprovem essa influência, mas somos de considerar que existe essa forte possibilidade,
tanto mais que antes de o mercado das Seguradoras se expandir os valores indemnizatórios
eram muito inferiores31 aos actuais. Assim consideramos que as práticas comerciais das
Seguradoras arrastaram consigo as decisões dos tribunais na fixação de indemnizações até
à actual prática e não o contrário, porque não só o tribunal não teria suporte para tal como
ainda hoje podemos verificar que existe alguma distinção na fixação equitativa das
indemnizações pelo dano-morte. Se nos debruçarmos sobre as decisões judiciais proferidas
constantes do quadro em anexo, podemos verificar que os Acórdãos que se reportam a
situações de homicídio doloso, em regra, fixam montantes indemnizatórios inferiores em
cerca de metade quando comparados com as situações de acidente de viação, onde
amiudadas vezes impera a negligência. Ora isto parece ser contrário ao consagrado no art.
494.º CC, onde que possibilita que se atenda, entre outras situações, ao grau de
culpabilidade do agente para fixação equitativa pelo tribunal do montante da
29 No que concerne às apólices de seguro vide na bibliografia as hiperligações estabelecidas para os sítios da Internet. 30 A referida Portaria estabelece que até aos 25 anos de idade a compensação a atribuir tem como máximo os 60 000,00€; entre os 25 e os 49 anos de idade a compensação tem o máximo de 50 000,00€; entre os 45 e os 70 anos de idade a compensação tem por máximo os 40 000,00 € e pela idade superior a 70 anos o montante indemnizatório nunca poderá exceder os 30 000,00€. 31 Cf. STJ de 13/05/1986 in STJ – 08P2860, 25/09/2008, onde se estabeleceu o valor indemnizatório de 150.000$00 pela morte de uma pessoa de 22 anos de idade.
17
indemnização. A leitura que se nos afigura possível daqueles doutos Acórdãos é de que
enquanto nos casos de homicídio ali retratados a indemnização terá de ser suportada em
primeira linha pelo lesante do bem vida, nos casos de acidente de viação as indemnizações
são em primeira linha asseguradas pelas companhias de seguro a coberto das respectivas
apólices, pelo que os tribunais permitem-se fixar indemnizações mais elevadas, o que tem
sustentabilidade no art. 494.º CC.
Apurados os padrões habituais da fixação da indemnização pelos tribunais,
debruçar-nos-emos na sua equidade face ao princípio da dignidade da pessoa humana.
4.1. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana O princípio da dignidade da pessoa humana consiste no elevar da pessoa a um fim
supremo do Estado e do Direito32. Isto significa que a pessoa humana não pode ser
instrumentalizada nem conduzida a outra dimensão aquém daquela que ocupa, a de valor
supremo que deve iluminar o mundo jurídico, sendo inclusive invocável como fonte
directa de direitos fundamentais.
A CRP logo no seu art. 1.º consagra que «Portugal é uma República soberana,
baseada, na dignidade da pessoa humana …». Desta disposição podemos concluir que a
pessoa humana em toda a sua dignidade ocupa um lugar central na nossa Ordem Jurídica,
porquanto a CRP faz dela a coesão da República Portuguesa e, por conseguinte, núcleo
atómico de todos os princípios e valores a que CRP alude. Por esta mesma razão, somos
de considerar que a CRP apenas se limita a constatar a existência e relevo do princípio da
dignidade da pessoa humana, não tendo sequer a faculdade de reconhecer da sua
existência, já que, inversamente, também poderia negar-lhe esse reconhecimento. Quer
isto dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana vale por si e não porque uma
norma lhe reconhece ou atribui esse valor. Qualquer disposição que lhe seja contrária é
inválida senão mesmo inconstitucional. Ora neste pressuposto detenhamo-nos no seguinte.
É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que a vida é o bem supremo e por
contraposição a morte é prejuízo supremo33. A morte de uma pessoa pode implicar a
indemnização do lesado, melhor dito dos familiares, já que é um direito que se ficciona
nas suas esferas jurídicas. São vários os Acórdãos que estabelecem esta linha de
32 Neste sentido vide Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional, vol. II, Almedina, Coimbra, 2005, p. 785. 33 Em todos os Acórdãos constantes da bibliografia do presente trabalho alude-se ao valor do bem vida e nos quais podemos encontrar referências à doutrina.
18
pensamento, defendendo que a compensação34 pela violação da vida apura-se por critérios
de equidade.
São vários os Acórdãos que se referem à necessidade de o tribunal fixar a
indemnização segundo a equidade, pelo que nestas circunstâncias deve o aplicador da
norma julgar o caso concreto com maior acuidade, para que assim se afaste a
arbitrariedade na apreciação de cada caso. A este respeito o Acórdão STJ – 08P2860, de
25/09/2008, refere no ponto XXVI que «No que respeita à determinação do direito à vida,
a jurisprudência, sem nunca ter caído na arbitrariedade, tem feito apelo à regra da
equidade …»35, contudo alguns doutos Acórdãos precedentes estabelecem critérios
distintos para fixação das indemnizações segundo a regra da equidade, a saber: o Acórdão
STJ – 06A1464, de 08/06/2006, refere que «Sendo a vida um valor absoluto, o seu valor
ficcionado não depende da idade, condição sócio-cultural ou estado de saúde da vítima.
Estes factores podem, apenas ser ponderados para apurar o “quantum” indemnizatório
do dano não patrimonial próprio da vítima, consistente no sofrimento e angústia …»36;
muito pelo contrário o Acórdão STJ – 06B2520, de 12/10/2006, profere no seu ponto 1.01
alusivo à indemnização pelo direito à vida que «Ainda que o bem da vida, por força do
princípio da igualdade … possa em abstracto ser valorado uniformemente, existem
factores concretos que devem determinar o estabelecimento de diferentes compensações
pecuniárias, desde logo atendendo aos juízos de equidade … A equidade é, pois, a
expressão da justiça no caso concreto. Os factores envolventes que … deverão ser
tomados em consideração serão, desde logo, a idade da vítima …»37. Do exposto resulta
que não só existe alguma arbitrariedade, muito para além da equidade e do que a norma
legal permite, como a própria jurisprudência não está atenta a esse facto. Note-se que
estamos em primeira ratio a tratar do princípio da dignidade da pessoa humana, logo não
pode haver lugar à arbitrariedade na apreciação do caso concreto, sob pena de um mesmo
caso ser apreciado segundo critérios completamente distintos dependendo de quem os
aprecia.
34 Já nos referimos que a compensação pela violação da vida tem uma natureza mais sancionatória do que compensatória, porque já não é possível compensar a vítima e porque a compensação aos familiares (pelo sofrimentos destes) pela morte do seu ente é um dano não patrimonial autónomo. Isto significa que consideramos que, por exemplo, quando o cônjuge sobrevivo é indemnizado pelo seu sofrimento e pela perda da vida do seu cônjuge não está a receber duas compensações pelo mesmo dano, já que considero que a morte compreende o sofrimento, mas está sim a receber uma indemnização compensatória e uma indemnização que serve de sanção ao comportamento ilícito do lesante. 35 Sublinhado nosso. 36 Idem. No mesmo sentido o Acórdão STJ – 06A1476, de 20/06/2006. 37 Id. No mesmo sentido o Acórdão STJ – 08P1413, de 27/11/2008.
19
Tomando ainda como referência o facto idade da vítima, o Acórdão STJ –
08P1413, de 27/11/2008, referindo-se a uma quantia de 50 000,00 € estabelece que «Não é
certamente a mesma coisa perder a vida aos 17 anos ou aos 40, 50 ou 60 anos, sendo
certo que têm sido fixadas indemnizações pela perda do direito à vida no montante acima
indicado em casos em que a morte deriva de lesão provocada por facto ilícito ocorre em
idade muito mais avançada que a vítima neste caso (17 anos) que estamos a tratar.». Com
esta linha de pensamento o STJ pretende concluir que na fixação da indemnização pela
perda da vida deve atender-se à idade da vítima, o que já aconteceu anteriormente. Ora isto
não nos é estranho já que no decurso deste trabalho nos reportamos a algumas situações
em que há distinção do valor da vida consoante a idade da vítima. Não nos é estranho, mas
surpreende-nos que assim seja, na medida em que a CRP consagra que «Todos os
cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei»38, consagrando no n.º 2
do art. 13.º uma série de circunstâncias pelas quais ninguém pode ter um tratamento
distinto perante a lei. Ora quando se considera haver lugar a uma indemnização
diferenciada devido à idade da vítima, estamos perante uma violação do princípio da
igualdade, já que embora o articulado não aluda à idade consideramo-lo apenas
enunciativo e que não se esgota nas circunstâncias ali previstas. Mais, considerar que a
vida de uma pessoa vale mais quando comparada com outras pessoas consoante tenha
mais ou menos anos de idade é estar a ferir o princípio da dignidade da pessoa humana,
porque este tem os seus alicerces na vida humana que vale só por si, já que como muito
bem referem alguns Acórdãos a vida é o bem supremo. O bem supremo não pode ser
instrumentalizado, o seu valor não pode ser aferido por outros valores ou princípios, nem
muito menos por uma condição biológica como a idade.
A dignidade da pessoa humana impede que se possa atribuir valor económico a
bens que não são disponíveis para o mercado económico, e os valores económicos de
referência na economia de mercado são estabelecidos para produtos comercializáveis e
não para bens e direitos eminentemente pessoais, como o é a vida de uma pessoa. Ainda
assim as companhias de seguros tendem a fixar valores de mercado para o bem jurídico
vida ou para a integridade física, o que apesar de não vincular o juiz do caso concreto a
fixar-se nesses valores deixar-lhe-á na prática uma posição cómoda para arbitrar a quantia
indemnizatória.
Se por um lado gostaríamos de defender que qualquer valor atribuído a título de
indemnização pelo dano-morte é atentatório da dignidade da pessoa humana, por outro não
38 Cf. n.º 1 do art. 13.º CRP.
20
permitir que haja lugar a essa indemnização parece-nos ainda mais atentatório. Assim
somos de considerar que a indemnização pelo dano-morte deve ser traçada segundo
critérios mais objectivos, e já que se ficciona um valor para a vida humana por que não
ficcionar um valor para qualquer vida humana, independentemente da idade, estado de
saúde, condição social, religião, de qualquer discriminação, e apenas valorado no grau de
culpa do agente.
Conclusão
Como já anteriormente referimos, entendemos que a indemnização não serve
apenas para reparação ou compensação do dano provocado, mas também como forma de
punição, razão pela qual suportamos a ideia de uma indemnização não a título
compensatório, mas a título sancionatório pela violação do direito à vida. Ao
considerarmos que a obrigação de indemnização surge ao nível sancionatório entendemos
que não deve haver distinção no montante a pagar, independentemente do que seja
invocado, porque não se trata de uma compensação, mas sim de uma sanção e de um
reconhecimento de que a vida humana vale por si só e não por imposição normativa, já
que somos de considerar que a norma para efeito da consagração do direito à vida apenas
constata existir o direito mas não tem a capacidade de o reconhecer. Conceder-se a
possibilidade de reconhecer a existência do direito à vida seria o mesmo que afirmar que a
norma poderia, inversamente, não reconhecer esse direito.
A vida humana é o bem supremo e não lhe pode ser reconhecido um maior ou
menor valor económico consoante os anos já vívidos. A ser ficcionado um valor deve o
mesmo valer para todos os estádios da vida, só podendo haver lugar à redução de um
cálculo indemnizatório devido à graduação da culpa do agente.
21
Bibliografia CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo
III, Pessoas, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2007. GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, Almedina,
Coimbra, 2005, p. 785. LUCENA, Delfim Maya de, Danos Não Patrimoniais, O Dano da Morte, Almedina,
Coimbra, 2006. VASCONCELOS, Pedro Pais de, Direito de Personalidade, Almedina, Coimbra, 2006. Jurisprudência: STJ 06A1464, 08/06/2006.
STJ 06A1476, 20/06/2006.
STJ 06B2520, 12/10/2006.
STJ 06P2775, 17/10/2006.
STJ 06A3021, 24/10/2006.
STJ 06P4594, 21/02/2007.
STJ 06B3261, 29/03/2007.
STJ 07B2737, 27/09/2007.
STJ 07B1359, 24/05/2007.
STJ 07B3715, 18/12/2007.
STJ 07P2075, 09/01/2008.
STJ 07A3014, 29/01/2008.
STJ 08B726, 08/05/2008.
STJ 08P1616, 21/05/2008.
STJ 08A1177, 05/06/2008.
STJ 08A1853, 10/07/2008.
STJ 08P2860, 25/09/2008.
STJ 07P1567, 20/11/2008.
STJ 08P1413, 27/11/2008.
STJ 07B4125, 12/02/2009.
STJ 08P3181, 05/022009.
22
Legislação:
Código Civil.
Código Penal.
Constituição da República Portuguesa.
Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Carta da Direitos Fundamentais da União Europeia.
Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro, que aprova a Lei Tutelar Educativa.
Directiva Comunitária 2005/14/CE, de 11 de Maio (Jornal Oficial n.º L 149 de
11/06/2005, pp. 14 a 21).
Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
Páginas da Internet:
http://www.bancopopular.pt/NR/rdonlyres/EE3E38A5-E2EE-42AC-AFEB-
160ED4588784/0/PropostadeSeguro_SolucoesAdesaoFacil.pdf
http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.doc? http://www.eurovida.pt/edPortal/eurovida/desenvArtigos.asp?a=701&cat=591 http://www.millenniumbcp.pt/site/conteudos/83/8302/protectvida/index.jhtml#8
http://www.barclays.pt/particulares/seguros/seguros_acidentespessoais_plus.htm?menuid=
1 http://particulares.allianz.pt/produtos/universalltotal/coberturas.html http://particulares.allianz.pt/produtos/motorall/coberturas.html http://www.bancobpi.pt/pagina.asp?s=1&a=145&p=103&f=2325&opt=f
http://www.tranquilidade.pt/CSTInter/cms.aspx?srv=500&hpmain_miid=3&tg=main&tgu
rl=%2fCSTInter%2fcms.aspx%3fsrv%3d1100%26stp%3d1%26miid%3d603
23
Anexo
Montante indemnizatório Processo Situação Idade
da vítima
Grau de Culpa do réu
1.ª Instância
Relação STJ
STJ 06A1464
08/06/2006
Acidente de
viação
43
100%
14963,94
49879,79
49879,79
STJ 06A1476
20/06/2006
Acidente de
viação
24
100%
27433,88
27433,88
27433,88
STJ 06B2520
12/10/2006
Acidente de
viação
40
100%
50000,00
50000,00
50000,00
STJ 06P2775
17/10/2006
Acidente de
viação
?
100%
50000,00
50000,00
50000,00
STJ 06A3021
24/10/2006
Acidente de
viação
21
100%
40000,00
40000,00
49879,79
STJ 07B3715
18/12/2007
Acidente de
viação
17 e 11
100%
60000, 00
x2
50000,00
x2
50000,00
x2
STJ 06P4594
21/02/2007
Homicídio doloso
qualificado
74
100%
20000,00
20000,00
20000,00
STJ 06B3261
29/03/2007
Acidente de
viação
31
100%
Erro no
enquadramento
Não altera
Não altera
STJ 07B2737
27/09/2007
Acidente de
viação
52
100% ?
50000,00
50000,00
STJ 07P2075
09/01/2007
Homicídio
doloso
21
100% 50000,00
?
25000,00
STJ 07A3014
29/01/2008
Acidente de
viação
21
60% 49500,00
50000,00
50000,00
24
STJ 08P1616
21/05/2008
Acidente de
viação
7
100%
33000,00
55000,00
45000,00
STJ 08A117
05/06/2008
Acidente de
viação
51
100%
40000,00
49879,79
49879,79
STJ 08A1853
10/07/2008
Acidente de
viação
67
100%
?
30000,00
50000,00
STJ 08B2860
25/092008
Acidente de
viação
43
100%
?
60000,00
50000,00
STJ 07P1567
20/11/2008
Ofensa à integridade
física agravada
pelo resultado (morte)
?
100%
(co-autoria)
?
?
35000,00 (totalidade dos danos morais)
STJ 08P3181
05/02/2009
Homicídio por
negligência grosseira
?
80%
?
30000,00
24000,00
STJ 07B4125
12/02/2009
Acidente de
viação
42
100%
50000,00
50000,00
50000,00