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capítulo 06 Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento * 169 Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento 06 * capítulo OBJECTIVOS DA APRENDIZAGEM Familiarizar os participantes com algumas das principais normas jurí- dicas internacionais relativas aos direitos individuais que deverão ser respeitadas no âmbito dos inquéritos e com a aplicação destas normas pelos órgãos internacionais de controlo; Sensibilizar os participantes para a importância de aplicar estas nor- mas jurídicas a fim de proteger uma vasta série de direitos humanos numa sociedade baseada no princípio do Estado de Direito; Desenvolver nos juízes, magistrados do Ministério Público e advoga- dos participantes a consciência do seu papel primordial na realização do Estado de Direito, e nomeadamente na garantia dos direitos individuais no âmbito dos inquéritos penais; Sensibilizar para o facto de que o respeito das normas que garantem um processo justo favorece, não apenas a protecção dos direitos humanos em sentido lato, mas também o investimento económico e a promoção da paz e segurança a nível nacional e internacional. QUESTÕES Estão já familiarizados com a jurisprudência e as normas jurídicas inter- nacionais relativas aos inquéritos penais? Fazem elas porventura já parte do sistema jurídico nacional do país onde trabalham? Se assim for, qual é o seu estatuto jurídico e alguma vez as aplicaram? À luz da vossa experiência, têm algumas preocupações particulares – ou experimentaram quaisquer dificuldades concretas – para garantir os direitos humanos de uma pessoa nas fases prévias ao julgamento? Em caso afirmativo, que preocupações ou problemas foram esses e como lhes deram resposta, tendo em conta o enquadramento jurídico no âmbito do qual trabalham?

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Page 1: Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao ... · direitos humanos de uma pessoa nas fases prévias ao julgamento? ... destes direitos são também essenciais na fase

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 169

Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento

06*capítulo

OBJECTIVOS DA APRENDIZAGEM • Familiarizar os participantes com algumas das principais normas jurí-dicas internacionais relativas aos direitos individuais que deverão serrespeitadas no âmbito dos inquéritos e com a aplicação destas normaspelos órgãos internacionais de controlo;

• Sensibilizar os participantes para a importância de aplicar estas nor-mas jurídicas a fim de proteger uma vasta série de direitos humanos numasociedade baseada no princípio do Estado de Direito;

• Desenvolver nos juízes, magistrados do Ministério Público e advoga-dos participantes a consciência do seu papel primordial na realização doEstado de Direito, e nomeadamente na garantia dos direitos individuaisno âmbito dos inquéritos penais;

• Sensibilizar para o facto de que o respeito das normas que garantemum processo justo favorece, não apenas a protecção dos direitos humanosem sentido lato, mas também o investimento económico e a promoçãoda paz e segurança a nível nacional e internacional.

QUESTÕES • Estão já familiarizados com a jurisprudência e as normas jurídicas inter-nacionais relativas aos inquéritos penais?

• Fazem elas porventura já parte do sistema jurídico nacional do paísonde trabalham?

• Se assim for, qual é o seu estatuto jurídico e alguma vez as aplicaram?

• À luz da vossa experiência, têm algumas preocupações particulares –ou experimentaram quaisquer dificuldades concretas – para garantir osdireitos humanos de uma pessoa nas fases prévias ao julgamento?

• Em caso afirmativo, que preocupações ou problemas foram esses e comolhes deram resposta, tendo em conta o enquadramento jurídico noâmbito do qual trabalham?

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1. Introdução

O presente capítulo examinará em primeiro lugaro abrangente princípio da igualdade perante a lei,que condiciona os procedimentos civis e penaisdesde o início, bem como o princípio da presunçãode inocência, que tem uma importância fundamentalno que diz respeito aos procedimentos penais.Estas questões são assim igualmente pertinentespara o Capítulo 7, mas não serão aí repetidas. Opresente capítulo analisará depois em concretoalguns dos direitos humanos aplicáveis no con-texto das investigações criminais, até ao início do julgamento, se for caso disso. Lembramos, contudo, que a questão da administração da jus-

tiça de jovens será abordada especificamente noCapítulo 10.

Sublinha-se que o presente capítulo não fornece uma listaexaustiva dos direitos a garantirnas fases prévias ao julgamento,incidindo apenas sobre alguns dos direitos huma-nos que são considerados de particular importânciaem conexão com os inquéritos penais1. Algunsdestes direitos são também essenciais na fase dejulgamento e voltarão a ser examinados no Capítulo7. A selecção das matérias a analisar no presentecapítulo e não no seguinte foi efectuada de umponto de vista prático, tendo em conta a sequên-

170 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

• Que questões gostariam de ver especificamente abordadas pelos mode-radores/formadores durante este curso?

INSTRUMENTOS JURÍDICOS Instrumentos Universais

PERTINENTES

• Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948;• Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1966;• Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis,

Desumanos ou Degradantes, de 1984;• Estatuto do Tribunal Penal Internacional, de 1998

* * *

• Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicaçãoda Lei, de 1979;

• Conjunto de Princípios para a Protecção de Todas as Pessoas Sujeitasa Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, de 1988;

• Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, de 1955;• Princípios Orientadores Relativos à Função dos Magistrados do Minis-

tério Público, de 1990;• Princípios Básicos Relativos à Função dos Advogados, de 1990;• Regras de Processo dos Tribunais Penais Internacionais para a ex-Jugos-

lávia e para o Ruanda

Instrumentos Regionais

• Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, de 1981• Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969• Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950

*1 Para uma importanterecolha das normas relati-vas a todas as fases dainvestigação e julgamento,vide Amnesty InternationalFair Trials Manual, Londres, 1998, 187 pp.

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cia dos factos que normalmente ocorrem no con-texto da investigação das actividades criminosase de um eventual julgamento ulterior para apurara culpa. Uma vez que os direitos gozados nas fasesprévias ao julgamento e no julgamento propriamentedito estão estreitamente relacionados, algumasobreposição é inevitável mas foi, tanto quantopossível, reduzida ao mínimo.

2. Protecção Efectiva do Direito a um Processo Justo: Um Desafio Global

Todas as pessoas têm direito a um processo justoem matéria civil e criminal, e uma eficaz protec-ção de todos os direitos humanos depende emgrande medida da possibilidade efectiva de acesso,em todos os momentos, a tribunais competentes,independentes e imparciais que possam adminis-trar a justiça equitativamente e o façam de facto.Se a isto acrescentarmos as funções dos magis-trados do Ministério Público e dos advogados, profissões que, cada uma delas na sua própriaárea de competência, são indispensáveis para tornarrealidade o direito a um processo justo, teremoso pilar judicial de uma sociedade democrática res-peitadora do princípio do Estado de Direito.

Contudo, um poder judicial independente e impar-cial capaz de assegurar uma tramitação processualequitativa não é apenas importante para os direitose interesses dos seres humanos, sendo tambémessencial para as demais pessoas jurídicas,incluindo entidades económicas, sejam pequenasou grandes empresas, que dependem frequente-mente dos tribunais, nomeadamente para dirimirlitígios de vários tipos. Por exemplo, as empresasnacionais e estrangeiras terão relutância em investirem países cujos tribunais não sejam considera-dos imparciais na administração da justiça. Paraalém disso, não existem dúvidas de que nos paísesonde as pessoas singulares ou colectivas lesadastêm liberdade de acesso aos tribunais para recla-mar os seus direitos, a tensão social pode ser

gerida mais facilmente e é menos provável queas pessoas se sintam tentadas a fazer justiça pelassuas próprias mãos. Contribuindo desta formapara aliviar tensões sociais, os tribunais promove-rão também o reforço da segurança, não apenasa nível nacional mas também internacional, umavez que as tensões internas têm muitas vezes umperigoso efeito de “bola de neve” além fronteiras.No entanto, consultando a jurisprudência dosórgãos internacionais de controlo, constatamosclaramente que o direito a um processo justo éfrequentemente violado em todas as partes domundo. De facto, a grande maioria dos casos exa-minados, por exemplo, pelo Comité dos Direitosdo Homem ao abrigo do Protocolo Facultativo dizemrespeito a alegadas violações de direitos antes oudurante o julgamento. Nas secções seguintes, umabreve análise dos aspectos mais relevantes da juris-prudência internacional acompanhará a descriçãodas normas jurídicas pertinentes.

3. Textos Jurídicos

Os textos jurídicos fundamentais relativos aodireito a um processo justo podem ser encontra-dos no artigo 14.º do Pacto Internacional sobre osDireitos Civis e Políticos, no artigo 7.º da CartaAfricana dos Direitos do Homem e dos Povos, noartigo 8.º da Convenção Americana sobre DireitosHumanos e no artigo 6.º da Convenção Europeiados Direitos do Homem. As disposições relevan-tes de cada um destes artigos serão analisadas nassecções pertinentes.

Outras normas a que será feita referência maisadiante estão contidas, nomeadamente, nos seguin-tes instrumentos das Nações Unidas: Convençãocontra a Tortura e Outras Penas ou TratamentosCruéis, Desumanos ou Degradantes; DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem; Código deConduta para os Funcionários Responsáveis pelaAplicação da Lei; Conjunto de Princípios para aProtecção de Todas as Pessoas Sujeitas a QualquerForma de Detenção ou Prisão; Regras Mínimas

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 171

*

*

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para o Tratamento dos Reclusos; Princípios Orien-tadores Relativos à Função dos Magistrados doMinistério Público e Princípios Básicos Relativosà Independência da Magistratura; Regras deProcesso dos Tribunais Penais Internacionais paraa ex-Jugoslávia e para o Ruanda; e Estatuto do Tri-bunal Penal Internacional.

4. Direito à Igualdade Perante a Lei e ao Igual Tratamento pela Lei

O direito à igualdade perante alei e ao igual tratamento pela lei ou, por outras palavras, oprincípio da não discriminação,condiciona a interpretação e apli-cação, não apenas das normasde direitos humanos stricto sensu,mas também do direito interna-cional humanitário2. De acordocom o artigo 26.º do Pacto Inter-nacional sobre os Direitos Civise Políticos, por exemplo, “todasas pessoas são iguais perante alei e têm direito, sem discrimi-nação, a igual protecção da lei”.Normas análogas encontram-seconsagradas no artigo 3.º da CartaAfricana dos Direitos do Homeme dos Povos e no artigo 24.º daConvenção Americana sobreDireitos Humanos. Para alémdisso, o artigo 20.º, n.º 1 do Estatuto do Tribunal PenalInternacional para o Ruanda eo artigo 21.º, n.º 1 do Estatutodo Tribunal Penal Internacionalpara a ex-Jugoslávia estabelecemque “todas as pessoas serão consideradas iguais perante”estes Tribunais.

Por outro lado, o princípio daigualdade ou a proibição da dis-criminação não significa quetodas as distinções são proibi-das e, a este respeito, o Comitédos Direitos do Homem tem considerado que otratamento diferenciado de pessoas ou grupos depessoas “deverá basear-se em critérios razoáveise objectivos”3. Porém, mais pormenores acerca dainterpretação do princípio da igualdade e proibi-ção da discriminação serão fornecidos no Capítulo13, infra.

O direito específico à igualdadeperante os tribunais é um dosprincípios fundamentais subja-centes ao direito a um processojusto, encontrando-se expressa-mente consagrado no artigo 14.º,n.º 1 do Pacto Internacional sobreos Direitos Civis e Políticos, deacordo com o qual “todos sãoiguais perante os tribunais dejustiça”4. Embora não seja men-cionado nos correspondentesartigos sobre um processo justoconstantes das convenções regio-nais, o direito à igualdade perante os tribunais estácompreendido no princípio geral da igualdadeprotegido por estes instrumentos.

O princípio da igualdade perante os tribunaisimplica, em primeiro lugar, que, independen-temente do sexo, raça, origem ou condição financeira de cada um, todas as pessoas que com-parecem perante um tribunal têm o direito de nãoserem objecto de discriminação, quer no âmbitodo processo quer na forma como a lei é aplicadaà pessoa em causa. Para além disso, quer os indiví-duos sejam suspeitos da prática de uma infracçãoleve quer de um crime grave, os direitos têm deser igualmente garantidos a todos. Em segundolugar, o princípio da igualdade implica que todasas pessoas deverão ter acesso aos tribunais, emcondições de igualdade.

172 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

3 Comunicação n.º694/1996, Waldman v.Canada (Parecer adoptadoa 3 de Novembro de1999), in documento dasNações Unidas GAOR,A/55/40 (vol. II), pp. 97-98,parágrafo 10.6.

4 Vide também o artigo 5.º,alínea a) da ConvençãoInternacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de DiscriminaçãoRacial, de 1966, que con-sagra “o direito de cadaum à igualdade perante alei, […] nomeadamente nogozo [do] direito de recor-rer aos tribunais ou aquaisquer outros órgãosde administração da jus-tiça”; o artigo 21.º, n.º 1 doEstatuto do Tribunal PenalInternacional para a ex--Jugoslávia, de acordocom o qual “todas as pes-soas serão consideradasiguais perante o TribunalInternacional”; o artigo20.º, n.º 1 do Estatuto doTribunal Penal Internacio-nal para o Ruanda; e oartigo 67.º, n.º 1 do Esta-tuto do Tribunal Penal Internacional.

*2 Vide, por exemplo, osartigos 1.º, 2.º e 7.º daDeclaração Universal dosDireitos do Homem; osartigos 2.º, n.º 1, 3.º, 4.º,n.º 1 e 26.º do Pacto Inter-nacional sobre os DireitosCivis e Políticos; o artigo2.º, n.º 2 do Pacto Interna-cional sobre os DireitosEconómicos, Sociais eCulturais; os artigos 2.º,3.º, 18.º, n.º 3 e 28.º daCarta Africana dos Direitos do Homem e dosPovos; os artigos 1.º, 24.ºe 27.º, n.º 1 da ConvençãoAmericana sobre DireitosHumanos; o artigo 14.º daConvenção Europeia dosDireitos do Homem; osartigos 2.º e 15.º da Con-venção sobre a Eliminaçãode Todas as Formas deDiscriminação contra asMulheres, de 1979; oartigo 2.º da Convençãosobre os Direitos daCriança, de 1989; e a Convenção Internacionalsobre a Eliminação deTodas as Formas de Discriminação Racial, de1966. Das quatro Conven-ções de Genebra de 1949,vide por exemplo os arti-gos 3.º e 27.º da Convençãode Genebra Relativa à Protecção das PessoasCivis em Tempo deGuerra; os artigos 9.º, n.º1 e 75.º, n.º 1 do ProtocoloAdicional às Convençõesde Genebra de 12 deAgosto de 1949 relativo àProtecção das Vítimas dosConflitos Armados Inter-nacionais (Protocolo I); eos artigos 2.º, n.º 1 e 4.º,n.º 1 do Protocolo Adicio-nal às Convenções deGenebra de 12 de Agosto de1949 relativo à Protecçãodas Vítimas dos ConflitosArmados Não Internacio-nais (Protocolo II).

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Igualdade de acesso aos tribu-nais pelas mulheres: Outro aspectoessencial do direito à igualdadeé o imperativo de que as mulhe-res tenham igualdade de acessoaos tribunais a fim de poderemreclamar efectivamente os seusdireitos. Dois importantes casosilustram bem esta norma fundamental. No pri-meiro, em que uma mulher não pôde processarjudicialmente os inquilinos de dois edifícios deque era proprietária, o Comité dos Direitos doHomem constatou ter havido violação dos artigos3.º, 14.º, n.º 1 e 26.º do Pacto. De acordo com oCódigo Civil peruano, apenas o marido, e não amulher casada, tinha o direito de representar osbens do casal perante os tribunais, situação quecontraria as normas internacionais de direitoshumanos6. No segundo, em que as custas pro-cessuais proibitivas impediram uma mulher deter acesso ao tribunal a fim de requerer a sepa-ração judicial do seu marido, não existindo apoiojudiciário disponível para estes processos com-plexos, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homemconsiderou ter havido violação do artigo 6.º, n.º 1da Convenção Europeia7.

Embora o direito de acesso das mulheres aos tribu-nais seja examinado em maior detalhe no Capítulo

11, infra, estes exemplos demonstram a amplitudeda protecção conferida pelo princípio da igualdade.

O princípio da igualdade deverá ser garantido ao longo

das fases anteriores ao julgamento e da fase de julga-

mento, no sentido de que toda a pessoa suspeita ou

acusada tem o direito de não ser objecto de discrimi-

nação na forma como as investigações ou o julgamento

são conduzidos ou na forma como a lei lhe é aplicada.

O princípio da igualdade significa também que todos

os seres humanos deverão ter acesso aos tribunais em

condições de igualdade a fim de reclamar os seus direi-

tos. Em particular, as mulheres deverão ter acesso aos

tribunais em condições de igualdade com os homens,

para que possam efectivamente reclamar os seus direitos.

5. Direito à Presunção de Inocência: Garantia Genéricadesde a Suspeita até à Condenaçãoou Absolvição

O direito à presunção de inocência até que a culpafique provada é outro dos princípios que condi-

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 173

IGUALDADE DE ACESSO O princípio da igualdade esteve em destaque no casoAOS TRIBUNAIS: Oló Bahamonde examinado ao abrigo do artigo

O CASO OLÓ BAHAMONDE 14.º, n.º 1 do Pacto Internacional sobre os DireitosCivis e Políticos, no qual o autor se queixou deque tinha tentado sem êxito junto dos tribunaisnacionais obter reparação pela perseguição a que tinha alegadamentesido sujeito por parte das autoridades governamentais. O Comitéobservou a este respeito

"[…] que a noção de igualdade perante os tribunais abrange o próprio acesso

aos tribunais e que uma situação em que as tentativas do indivíduo para

submeter as suas queixas à apreciação dos órgãos judiciais competentes

são sistematicamente frustradas contraria as garantias previstas no artigo

14.º, n.º 1"5.

6 Comunicação n.º202/1986, G. Ato del Avel-lanal v. Peru (Pareceradoptado a 28 de Outubrode 1988), in documentodas Nações UnidasGAOR, A/44/40, pp. 198--199, parágrafos 10.1-12.

7 TEDH, Caso Airey c. Ireland, sentença de 9 deOutubro de 1979, Série A,N.º 32, pp. 11-16, parágrafos 20-28.

*

5 Comunicação n.º468/1991, A. N. Oló Baha-monde v. Equatorial Guinea(Parecer adoptado a 20 deOutubro de 1993), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/49/40(vol. II), p. 187, parágrafo 9.4.

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ciona o tratamento a que um arguido é sujeito aolongo das fases de inquérito, instrução e julga-mento, inclusivamente até ao último recurso. Oartigo 14.º, n.º 2 do Pacto Internacional sobre osDireitos Civis e Políticos estabelece que “qualquerpessoa acusada de infracção penal é de direito pre-sumida inocente até que a sua culpabilidade tenhasido legalmente estabelecida”. O artigo 7.º, n.º 1,alínea b) da Carta Africana dos Direitos do Homeme dos Povos, o artigo 8.º, n.º 2 da Convenção Ameri-cana sobre Direitos Humanos e o artigo 6.º, n.º2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homemgarantem também o direito à presunção de ino-cência, ao passo que o artigo 11.º, n.º 1 da DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem salvaguarda omesmo direito para toda a pessoa “acusada de umacto delituoso […] até que a sua culpabilidade fiquelegalmente provada no decurso de um processopúblico em que todas as garantias necessárias dedefesa lhe sejam asseguradas”. Mais recentemente,o princípio da presunção de inocência foi incluído,em particular, no artigo 20.º, n.º 3 do Estatuto doTribunal Penal Internacional para o Ruanda, noartigo 21.º, n.º 3 do Estatuto do Tribunal PenalInternacional para a ex-Jugoslávia e no artigo 66.º,n.º 1 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional.

* * *

Conforme assinalado pelo Comité dos Direitos do Homem no seu Comentário Geral n.º 13, o princípio da presunção de inocência significa que:

“o ónus de provar as acusações

recai sobre as autoridades de

acusação e o arguido tem o

benefício da dúvida. A culpa não se presume até

que a acusação seja provada para além de uma

dúvida razoável. Para além disso, a presunção de

inocência implica o direito da pessoa a ser tratada

de acordo com este princípio. É, pois, dever de

todas as autoridades públicas absterem-se de ante-

cipar o desfecho de um processo”8.

Comentários públicos negativos por parte das autoridades: No caso Gridin, as autoridades nãodemonstraram a contenção que o artigo 14.º, n.º

2 do Pacto Internacional exigea fim de preservar a presunçãode inocência do arguido. O autorhavia alegado, nomeadamente,que funcionários superiores responsáveis pela aplicação da lei tinham feitodeclarações públicas retratando-o como culpadode crimes de violação e homicídio e que essasdeclarações tinham sido divulgadas pelos meiosde comunicação social. O Comité constatou queo Supremo Tribunal se havia “referido à questão,mas não teve a mesma em conta ao apreciar orecurso do autor”9. Consequentemente, houve vio-lação do artigo 14.º, n.º 2 neste caso.

Juízes anónimos: O direito à pre-sunção de inocência garantidopelo artigo 14.º, n.º 2 do Pactofoi também violado no casoPolay Campos, em que a vítimafoi julgada por um tribunal especial de “juízessem rosto”, que eram anónimos e não constituíamum tribunal independente e imparcial10.

Alteração de local: O direito àpresunção de inocência con-forme garantido pelo artigo 14.º,n.º 2 do Pacto Internacional nãofoi violado num caso em que oautor se queixou de que a recusado juiz de julgamento em alterar o local da audiên-cia o privou do direito a um processo justo e dodireito à presunção de inocência. O Comité consta-tou que o pedido do autor tinha sido “examinadodetalhadamente pelo juiz no início do julgamento”e que o juiz havia declarado “que os receios do autortinham a ver com manifestações de hostilidade paracom a sua pessoa que eram bastante anteriores aojulgamento, tendo o autor sido o único, entre os cincoco-arguidos, a requerer a alteração do local da audiên-cia”11. O juiz ouviu então as exposições das partes,“considerou suficiente o facto de os jurados teremsido seleccionados de forma apropriada”, e depois“fez uso dos seus poderes discricionários e per-mitiu a continuação do julgamento” sem alterar olocal da audiência12. Nestas circunstâncias, o Comiténão considerou que a decisão de não alterar o localda audiência tenha violado o direito do autor a um

174 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

8 Comentário Geral n.º 13 (Artigo 14.º), inCompilação de ComentáriosGerais das Nações Unidas,p. 124, parágrafo 7.

9 Comunicação n.º770/1997, Gridin v. RussianFederation (Parecer adop-tado a 20 de Julho de2000), in documento dasNações Unidas GAOR,A/55/40 (vol. II), p. 176,parágrafo 8.3.

10 Comunicação n.º577/1994, R. Espinosa dePolay v. Peru (Pareceradoptado a 6 de Novembrode 1997), in documentodas Nações UnidasGAOR, A/53/40 (vol. II),p. 43, parágrafo 8.8.

11 Comunicação n.º591/1994, I. Chung v.Jamaica (Parecer adoptadoa 9 de Abril de 1998), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/53/40(vol. II), p. 61, parágrafo 8.3.

12 Ibid., loc. cit.

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processo justo ou o direito à pre-sunção de inocência. Defendeu, em particular, que“é necessário um elemento de discricionariedadena tomada de decisões como as que cabem ao juizem matéria de determinação do local da audiênciae, na ausência de quaisquer indícios de arbitra-riedade ou manifesta iniquidade da decisão”, nãoestava “em posição de se substituir ao juiz de jul-gamento nessa decisão”13.

* * *

“O direito de presunção de inocência, até que a sua culpa-bilidade seja estabelecida porum tribunal competente”, pre-visto no artigo 7.º, n.º 1, alíneab) da Carta Africana dos Direitosdo Homem e dos Povos, foi violado num caso em que líde-res do Governo da Nigéria tinham considerado osarguidos culpados de crimes durante diversas conferências de imprensa, bem como perante asNações Unidas. Todos os arguidos viriam a serulteriormente condenados e executados na sequên-cia de um julgamento perante um tribunal que

não era independente conforme exigido pelo artigo26.º da Carta14.

* * *

O direito à presunção de ino-cência consagrado no artigo 6.º,n.º 2 da Convenção Europeiados Direitos do Homem foi considerado “um dos elementos de um processopenal equitativo exigido pelo n.º 1” do mesmoartigo, tratando-se de um direito que, como outrosdireitos enunciados na Convenção, “deverá ser interpretado de forma a garantir direitos quesejam práticos e eficazes e não teóricos e ilusó-rios”15.

A presunção de inocência seráassim violada, por exemplo, “se uma decisão judi-cial relativa a uma pessoa acusada de uma infracçãopenal reflectir a convicção da sua culpa até que arespectiva culpabilidade fique provada nos termosda lei”, sendo suficiente “mesmo na ausência dequalquer conclusão formal, que determinado racio-cínio sugira que o tribunal considera o arguidoculpado”16.

13 Ibid.

15 TEDH, Caso Allenet deRibemont c. França, sen-tença de 10 de Fevereiro de 1995, Série A, N.º 308, p. 16, parágrafo 35; destaque nosso.

14 CADHP, InternationalPen and Others (on behalfof Ken Saro-Wiwa Jr. andCivil Liberties Organisation)v. Nigeria, Comunicaçõesnºs 137/94, 139/94, 154/96e 161/97, decisão adoptadaa 31 de Outubro de 1998,parágrafos 94-96 do textopublicado no seguinteendereço:http://www1.umn.edu/humanrts/africa/comca-ses/137-94_139-94_154-96_161-97.html.

16 Ibid., loc. cit.

COMENTÁRIOS PÚBLICOS A “presunção de inocência pode ser violada, não NEGATIVOS POR PARTE DAS apenas por um juiz ou tribunal, mas também por

AUTORIDADES: O CASO outras autoridades públicas”17. No caso Allenet de Ribemont, o quei-ALLENET DE RIBEMONT xoso tinha acabado de ser detido pela polícia quando foi realizada uma

conferência de imprensa implicando-o no homicídio de um Deputado fran-cês. Na conferência de imprensa, que em princípio deveria ter tido porobjecto o orçamento da polícia francesa para os anos seguintes, participa-ram o Ministro da Administração Interna, o Director do Departamentode Investigação Penal de Paris e o Chefe da Brigada Criminal. Nestaaltura, o arguido não tinha ainda sido acusado de qualquer crime. OTribunal Europeu constatou ter havido violação do artigo 6.º, n.º 2 nestecaso, observando que “alguns dos mais altos funcionários da políciafrancesa se referiram ao Sr. Allenet de Ribemont, sem qualquer qua-lificação ou reserva, como um dos instigadores de um homicídio e assimcúmplice no mesmo crime”. No parecer do Tribunal, isto “constituiuclaramente uma declaração da culpa do queixoso, o que, em primeirolugar, encorajou o público a considerá-lo culpado e, em segundo lugar,antecipou a avaliação dos factos pela autoridade judiciária competente”18.

17 Ibid., p. 16, parágrafo 36.

18 Ibid., p. 17, parágrafo 41.

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Avaliação dos prejuízos e imputa-ção da culpa: O Tribunal Europeutem considerado que o artigo6.º, n.º 2 “não confere a uma pessoa acusada deuma infracção penal o direito a ser reembolsadadas despesas processuais caso o processo contrasi instaurado seja arquivado”, mas que uma decisão recusando ordenar o reembolso ao ex--arguido das custas e despesas necessariamentesuportadas por ele, após o arquivamento do processo penal instaurado contra si “pode colo-car problemas face ao artigo 6.º, n.º 2 caso a fundamentação da decisão, que não pode ser dissociada das suas disposições operativas, repre-sente na substância uma determinação da culpa do ex-arguido sem que a culpabilidade domesmo tenha sido previamente provada de acordocom a lei e, em particular, sem que ele tenha tido a oportunidade de exercer os direitos dedefesa”19.

O Tribunal considerou assim terhavido violação do artigo 6.º, n.º2 da Convenção Europeia nocaso Minelli, em que a Câmarado Tribunal de Recurso doCantão de Zurique, ao avaliar os prejuízos oca-sionados por uma acusação particular, concluiuque, não fora a prescrição, o queixoso teria “muitoprovavelmente” sido condenado por difamaçãoem virtude de um artigo publicado que continhaacusações de fraude contra uma empresa em concreto20. No parecer do Tribunal Europeu, “a Câmara do Tribunal de Recurso demonstrou queestava convicta da culpa do” queixoso, o qual “nãotinha beneficiado das garantias consagradas no”artigo 6.º, nºs 1 e 3; as considerações da Câmaraeram pois “incompatíveis com o respeito da pre-sunção de inocência”21. Em nada ajudou a este respeito o facto de o Tribunal Federal ter “acres-centado certas nuances” à decisão anterior, umavez que estava “adstrito a clarificar as razões dessadecisão, sem alterar o respectivo significado ou âmbito”. Ao rejeitar o recurso do queixoso, oTribunal Federal confirmou a decisão da Câmaraem matéria de direito e, simultaneamente, “apro-vou o conteúdo material da decisão nos seus pontos essenciais”22.

O resultado foi contudo dife-rente no caso Leutscher, em queo queixoso tinha sido condenadoà revelia por diversas infracções fiscais mas, eminstância de recurso, a acusação foi consideradaprescrita pelo Tribunal. Em resposta ao pedido doqueixoso para reembolso das diversas custas edespesas, o Tribunal de Recurso observou, relati-vamente aos honorários do advogado, que nadano processo dava “qualquer motivo para duvidarque a condenação fora correcta”23. Contudo, oTribunal Europeu concluiu que estes factos nãoviolaram o artigo 6.º, n.º 2: o Tribunal de Recursotinha uma “ampla margem de discricionariedade”para decidir, com base na equidade, se as custas doqueixoso deveriam ser pagas pelos cofres públicose, ao fazê-lo, tinha “o direito de ter em conta a suspeita que ainda pendia sobre o queixoso emresultado do facto de a sua condenação ter sido anu-lada em sede de recurso apenas porque a acusaçãofoi considerada prescrita no momento em que ocaso chegou a julgamento”24. No parecer do tribunal,a declaração contestada não podia ser consideradauma nova determinação da culpa do queixoso25.

O direito à presunção de inocência até que a culpa

fique provada condiciona tanto a fase dos inquéritos

penais como a condução do julgamento; cabe às auto-

ridades de acusação provar, para além de uma dúvida

razoável, que o arguido é culpado da infracção. Decla-

rações públicas negativas proferidas por funcionários

podem comprometer a presunção de inocência.

6. Direitos Humanos no Âmbito dos Inquéritos Penais

Mesmo no decurso dos inquéritos penais, as pes-soas afectadas pelos mesmos continuam a gozaros seus direitos e liberdades fundamentais, emboracom algumas limitações inerentes à privação deliberdade para as pessoas afectadas por esta medida.Enquanto que alguns direitos, como a proibiçãoda tortura, são, como veremos mais adiante, váli-

176 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

19 TEDH, Caso Leutscher c.Países Baixos, sentença de26 de Março de 1996, Rela-tórios de 1996-II, p. 436,parágrafo 29.

20 TEDH, Caso Minelli c.Suíça, sentença de 25 deMarço de 1983, Série A, N.º 62, p. 18, parágrafo 38.

21 Ibid., loc. cit.

22 Ibid., p. 19, parágrafo 40.

23 Ibid., p. 436, parágrafo 31.

24 Ibid., p. 436, parágrafo 31.

25 Ibid., loc. cit.

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dos para todos e em todas as circunstâncias, odireito ao respeito pela vida privada e familiar pode,contudo, ficar cada vez mais comprometido, porexemplo através de formas sofisticadas de escuta.Alguns exemplos de jurisprudência internacionalilustrarão este problema. Deve recordar-se de novoque a presente secção não enuncia exaustivamentetodos os direitos garantidos no âmbito dos inqué-ritos penais, incidindo apenas sobre alguns dosdireitos fundamentais que deverão ser protegidosnesta importante fase.

6.1 DIREITO AO RESPEITO DA VIDA PRIVADA,

DO DOMICÍLIO E DA CORRESPONDÊNCIA

O direito ao respeito da vida privada, da família,do domicílio e da correspondência da pessoa égarantido, embora em termos diferentes, peloartigo 17.º do Pacto Internacional sobre os DireitosCivis e Políticos, pelo artigo 11.º da ConvençãoAmericana sobre Direitos Humanos e pelo artigo8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.Em certas circunstâncias, podem contudo esta-belecer-se restrições ao respectivo exercício. Oartigo 17.º, n.º 1 do Pacto Internacional estabeleceassim que “ninguém será objecto de intervençõesarbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na suafamília, no seu domicílio ou na sua correspon-dência, nem de atentados ilegais à sua honra e àsua reputação”; enquanto que o artigo 11.º daConvenção Americana tem uma redacção seme-lhante, começando contudo com as palavras “ninguém pode ser objecto de ingerências arbi-trária ou abusivas na […]”. Nos termos do artigo8.º da Convenção Europeia, “não pode haver inge-rência da autoridade pública no exercício” dodireito ao respeito da vida privada e familiar, dodomicílio e da correspondência

“[…] senão quando esta ingerência estiver prevista

na lei e constituir uma providência que, numa

sociedade democrática, seja necessária para a

segurança nacional, para a segurança pública,

para o bem-estar económico do país, a defesa da

ordem e a prevenção das infracções penais, a pro-

tecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos

direitos e das liberdades de terceiros”.

Os problemas associados ao direito à vida privadaserão examinados a propósito das escutas telefó-nicas, buscas e ingerências na correspondência, quesão medidas a que habitualmente se recorre nafase inicial do inquérito a fim de provar suspei-tas de envolvimento em actividades criminosas eque podem ou não conduzir a uma acusação formal.

6.1.1 ESCUTAS TELEFÓNICAS

Embora nem o Comité dos Direi-tos do Homem nem o TribunalInteramericano de DireitosHumanos se tenham ainda pronunciado sobre aquestão da intercepção de conversas telefónicaspara fins de investigação judicial de um crime,este problema tem estado em destaque em diver-sos casos examinados pelo Tribunal Europeu dosDireitos do Homem. O Tribunal Europeu tem considerado sempre que tais escutas telefónicasconstituem “uma ingerência da autoridade pública”no direito do queixoso ao respeito da sua corres-pondência e vida privada garantido pelo artigo 8.ºda Convenção Europeia, ingerência que, para serjustificada, deverá, como vimos mais acima, estar“prevista na lei”, prosseguir um ou mais dos finslegítimos referidos no artigo 8.º, n.º 2 e, por último,ser necessária “numa sociedade democrática” paraum ou mais desses fins legítimos26.

Sem examinar em detalhe ajurisprudência do Tribunal rela-tiva ao significado da expressão“prevista na lei”, é suficienteassinalar no presente contexto que a utilização deescutas telefónicas deverá ter por base a lei interna,a qual deve ser, não apenas “acessível”, mas também“previsível” quanto ao “significado e natureza dasmedidas aplicáveis”27. Por outras palavras, o artigo8.º, n.º 2 “não se limita reenviar para a lei internamas tem também a ver com a qualidade da lei,exigindo que esta seja compatível com o prin-cípio do Estado de Direito”28. Isto significa, em particular, “que a lei interna deverá conferir algumgrau de protecção jurídica contra as ingerênciasarbitrárias das autoridades públicas nos direitossalvaguardados pelo” artigo 8.º, n.º 1, uma vez

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 177

26 Vide, por exemplo,TEDH, Caso Huvig c.França, sentença de 24 deAbril de 1990, Série A, N.º176-B, p. 52, parágrafo 25.

27 Ibid., pp. 52-55, parágrafos 26-29; destaque nosso.

28 Ibid., p. 54, parágrafo29; destaque nosso.

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que, especialmente “quando opoder do executivo é exercido emsegredo, os riscos de arbitrarie-dade são evidentes”29. Embora “o requisito de previsibilidade não possa significar que o indiví-duo deva ter a possibilidade de prever o momentoem que as autoridades poderão interceptar as suascomunicações de forma a que possa adaptar a suaconduta em conformidade”, a lei deverá no entanto

“ser suficientemente clara nas

suas disposições de forma a dar aos cidadãos indi-

cações adequadas quanto às circunstâncias e

condições em que as autoridades públicas podem

recorrer a esta forma secreta e potencialmente

perigosa de ingerência no direito ao respeito pela

vida privada e pela correspondência”30.

A exigência de protecção jurí-dica implica, por outras palavras,que a lei interna deverá consagrar salvaguardasjurídicas adequadas contra os abusos e que, porexemplo, sempre que a lei confira um poder dis-cricionário às autoridades em causa, a mesma leideverá também “indicar a latitude dessa discri-cionariedade”31.

29 Vide, por exemplo,TEDH, Caso Malone c.Reino Unido, sentença de 2de Agosto de 1984, Série A,N.º 82, p. 32, parágrafo 67.

31 Ibid., parágrafo 68 a p. 33.

O CASO HUVIG No caso Huvig, os queixosos haviam sido sujeitosa escutas telefónicas durante cerca de dois diaspor ordem de um juiz no âmbito da investigaçãode alegados crimes de evasão fiscal e fraude con-tabilística. O Tribunal Europeu aceitou que asmedidas controvertidas estavam previstas nodireito francês, nomeadamente no Código de Processo Penal con-forme interpretado pelos tribunais franceses e, além disso, que a lei estavaacessível. Contudo, em termos de qualidade da lei, o Tribunal concluiuque “não indicava com razoável clareza o âmbito e a forma de exercí-cio dos poderes discricionários em causa atribuídos às autoridadespúblicas”; consequentemente, os queixosos “não beneficiaram do graumínimo de protecção a que os cidadãos têm direito num Estado deDireito de uma sociedade democrática”32. Por outras palavras, o sis-tema jurídico não previa “salvaguardas adequadas contra os diversosabusos possíveis” no sentido de que, por exemplo, “as categorias de pes-soas susceptíveis de terem os seus telefones colocados sob escuta porordem judicial e a natureza dos delitos que podiam dar origem a talordem” não estavam “definidas em lado algum”, nada obrigandoum juiz “a estabelecer um prazo limite para a duração das escutas tele-fónicas”33. Para além disso, a lei não especificava “as circunstânciasem que as gravações podiam ou tinham obrigatoriamente de ser apa-gadas ou os registos destruídos, em particular quando o juiz de instruçãoconsiderava dissipadas as suspeitas ou o arguido era absolvido em tri-bunal”34. Resultava assim que, uma vez que os queixosos não haviambeneficiado do grau mínimo de protecção exigido pelo princípio doEstado de Direito numa sociedade democrática, tinha havido violaçãodo artigo 8.º neste caso.

30 Ibid., loc. cit.

32 TEDH, Caso Huvig c.França, sentença de 24 deAbril de 1990, Série A, N.º 176-B, pp. 56-57, parágrafo 35.

33 Ibid., p. 56, parágrafo 34.

34 Ibid., loc. cit.

178 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

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O Tribunal Europeu encontroutambém violações do artigo 8.ºem outros casos semelhantes,como os casos Kruslin e Malone,cujas sentenças, como no casoHuvig, se fundamentaram nofacto de as práticas em questão

não cumprirem os requisitos impostos pela expres-são “prevista na lei” constante do artigo 8.º, n.º 2da Convenção35.

Embora seja sempre perigoso fazer extrapolaçõesa partir da jurisprudência europeia, parece razoávelconcluir que, também ao abrigo do Pacto Internacio-

O CASO LAMPERT Pode verificar-se pela leitura da sentença do maisrecente caso Lampert que, em 1991, a Françaintroduziu uma emenda ao Código de ProcessoPenal relativa à confidencialidade das mensagensde telecomunicação, consagrando “regras claras edetalhadas” e especificando “com suficiente clarezao âmbito e a forma de exercício dos poderes dis-cricionários em causa atribuídos às autoridadespúblicas”36. No entanto, o artigo 8.º foi também violado neste casodevido ao facto de o queixoso “não ter beneficiado da efectiva protecçãoda lei nacional, que não fazia qualquer distinção entre as pessoas cujostelefones estavam colocados sob escuta e as pessoas não sujeitas a talmedida”37.

Tinha sucedido neste caso que o queixoso fora acu-sado de disposição do produto de roubo agravadoapós algumas das suas conversas terem sido inter-ceptadas quando ligou a uma outra pessoa cujo telefone estava sob escuta. O advogado do queixosorecorreu de duas prorrogações da duração da escutatelefónica mas, na decisão sobre o recurso, o Tribunal de Cassationconsiderou, em particular, “que o requerente não tinha locus standi paraimpugnar a forma como a duração da escuta do telefone de um ter-ceiro foi prorrogada”38. O Tribunal Europeu aceitou que a ingerênciano direito do queixoso ao respeito da sua vida privada e correspondência“se destinou a apurar a verdade em relação a um processo penal e assima defender a ordem”39. Contudo, o facto de o Tribunal de Cassationter negado ao queixoso legitimidade processual para impugnar a pror-rogação da escuta telefónica podia, no parecer do Tribunal Europeu,“conduzir a decisões mediante as quais um enorme número de pes-soas seria privado da protecção da lei, nomeadamente todas as quemantivessem conversas numa linha telefónica que não a sua”; o que“na prática esvaziaria de conteúdo, em grande medida, os mecanis-mos de protecção”. Daqui decorria que o queixoso não tinha tido “àsua disposição o controlo efectivo que um Estado de Direito deverágarantir aos seus cidadãos e que teria permitido restringir a ingerên-cia em causa ao necessário numa sociedade democrática”40.

38 Ibid., p. 2235, parágrafos8-10 e p. 2236, parágrafo14; segundo destaquenosso.

39 Ibid., p. 2240, parágrafo 29.

40 Ibid., pp. 2241-2242,parágrafos 38-40.

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 179

36 TEDH, Caso Lampert c.França, sentença de 24 deAgosto de 1998, Relatóriosde 1998-V, p. 2240, pará-grafo 28. Este é um exemplo interessanteentre muitos que reflecteo impacto da jurisprudên-cia do Tribunal Europeudos Direitos do Homemna legislação interna.

37 Ibid., p. 2242, parágrafo 39.

35 TEDH, Caso Malone c.Reino Unido, sentença de 2de Agosto de 1984, Série A,N.º 82 e TEDH, Caso Krus-lin c. França, sentença de 24de Abril de 1990, Série A,N.º 176-A. No caso Klass eOutros, contudo, o Tribunalnão considerou ter havidoviolação do artigo 8.º: videTEDH, Caso Klass e Outros,sentença de 6 de Setembrode 1976, Série A, N.º 28.

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nal, bem como da Convenção Americana, o direitodas autoridades judiciais de recorrer à intercepçãode conversas telefónicas deverá ser interpretadoem termos relativamente restritivos em favor dodireito ao respeito da vida privada e que, nomínimo, tal ingerência no exercício deste direitodeverá estar claramente prevista no direito interno,ser imposta para um fim específico e legítimo eser acompanhada de salvaguardas e vias de recursoadequadas para as pessoas cujo telefone é colo-cado sob escuta.

6.1.2 BUSCAS

As normas internacionais de direitos humanosnão contêm disposições detalhadas acerca da lega-lidade das buscas mas, também a este respeito, ajurisprudência europeia poderá fornecer algumasorientações. Deve sublinhar-se, contudo, que ocaso seguinte não dizia respeito à emissão de ummandado de busca a executar pela polícia, mas àconcessão de um mandado a uma parte privadanum processo civil.

No caso Chappel, que não tinhaa ver com qualquer processopenal, mas antes com uma acçãode direitos de autor, o Tribunal Europeu foi cha-mado a examinar a compatibilidade com o artigo8.º da Convenção Europeia de uma busca nas ins-talações da empresa do queixoso destinada a obterprovas para defender os direitos de autor do reque-rente do mandado contra violações não autorizadas.O Governo aceitou ter havido ingerência no exer-cício do direito do queixoso ao respeito da suavida privada e domicílio, e o queixoso, por seuturno, concordou que a busca foi legítima ao abrigodo artigo 8.º, n.º 2 para protecção “dos direitos deterceiros”41. O Tribunal teve de determinar se amedida foi executada conforme previsto na lei ese era necessária numa sociedade democrática. Omandado de busca em causa era o chamado “man-dado Anton Piller”, que consiste num mandadojudicial interlocutório destinado a preservar elementos de prova na pendência do processo; éconcedido a requerimento de uma das partes semnotificação ou audição do réu.

O Tribunal aceitou neste casoque a busca se encontrava pre-vista na lei inglesa, a qual cumpria os requisitosda acessibilidade e da previsibilidade. Quanto àprimeira das condições, todos os textos jurídicose de jurisprudência pertinentes se encontravampublicados e por isso acessíveis e, relativamenteà segunda, “os termos e condições básicas para aconcessão deste mecanismo estavam, na alturaprópria, enunciados com precisão suficiente paraque se considerasse preenchido o requisito da previsibilidade”; isto era verdade embora pudes-sem existir “algumas variações” entre o conteúdode cada um dos mandados concretamente emi-tidos42.

Ao determinar se a medida emcausa era “necessária” “numasociedade democrática”, o Tri-bunal observou ainda que o mandado foi acom-panhado “de salvaguardas calculadas para mantero seu impacto dentro de limites razoáveis”, istoé, (1) foi “concedido apenas por um período curto”;(2) “foram impostas restrições às horas a que os requerentes do mandado podia efectuar as buscas e ao número de pessoas que as efectuavam”;e ainda “quaisquer materiais apreendidos apenaspodiam ser utilizados para um fim específico”43.Para além disso, os requerentes do mandado ouo seu advogado tinham prestado uma série de garantias e “o queixoso tinha à sua disposi-ção várias vias de recurso no caso de considerarque o mandado havia sido executado de formaimprópria”44.

O Tribunal admitiu contudo queexistiram algumas “imperfei-ções no procedimento seguido” aquando da execução do mandado uma vez que, por exemplo,deveria ter sido confuso para o Sr. Chappel o factode as buscas dos requerentes do mandado e dapolícia terem sido efectuadas ao mesmo tempo;contudo não foram consideradas “tão graves que a execução do mandado” pudesse, “nas circunstâncias do caso, ser considerada despro-porcionada face ao fim legítimo prosseguido”45.Consequentemente, não houve neste caso viola-ção do artigo 8.º.

180 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

41 TEDH, Caso Chappel c.Reino Unido, sentença de30 de Março de 1989, SérieA, N.º 152-A, p. 21, parágrafo 51.

42 Ibid., parágrafo 56 a p. 24.

43 Ibid., p. 25, parágrafo 60.

44 Ibid., loc. cit.

45 Ibid., p. 27, parágrafo 66.

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6.1.3 INGERÊNCIA NA CORRESPONDÊNCIA

A ingerência das autoridadesnacionais na correspondênciapode constituir um problemapara as pessoas privadas de liber-dade e inúmeras queixas foramapresentadas ao Tribunal Euro-peu dos Direitos do Homem por este motivo. Oscasos em que foram apresentadas por presos con-denados pela prática de infracções penais serãoexaminados no Capítulo 8. No caso Pfeifer e Plankl,contudo, os queixosos trocaram correspondênciaentre si enquanto se encontravam presos preven-tivamente e, numa das cartas, o juiz de instruçãoriscou e tornou ilegíveis certas passagens que con-siderou conterem “piadas de natureza insultuosacontra os guardas prisionais”46. O Tribunal con-siderou que a eliminação das passagens em causaconstituiu uma ingerência injustificada na cor-respondência dos queixosos. Concordou com aComissão Europeia dos Direitos do Homem naconsideração de que “a carta continha sobretudocríticas às condições prisionais e em particular aocomportamento de certos guardas prisionais” eobservou que, embora “algumas das expressõesutilizadas fossem sem dúvida bastante fortes, […]faziam parte de uma carta privada que nos termosda legislação pertinente […] deveria ter sido lidaapenas pelo Sr. Pfeifer e pelo juiz de instrução”47.Referiu-se em seguida à sua sentença no caso Silvere Outros, em que tinha considerado “que não eranecessário numa sociedade democrática impedir atransmissão de missivas particulares destinadas ainsultar as autoridades ou contendo material deli-beradamente destinado a insultar as autoridades prisionais […]”; embora a eliminação das passagensno caso Pfeifer e Plankl constituísse “admissivel-mente uma ingerência menos grave”, era aindaassim “desproporcionada” nas circunstâncias docaso e violava o artigo 8.º da Convenção48.

O caso Schönenberg e Durmaz incidiu sobre a cor-respondência trocada entre um advogado e umpreso preventivo. O queixoso, motorista de táxi,foi detido em Genebra por crimes relacionadoscom tráfico de droga e subsequentemente trans-ferido para Zurique. Alguns dias mais tarde, a

mulher do Sr. Durmaz pediu aoSr. Schönenberg que assumissea defesa do seu marido. Nessemesmo dia, o Sr. Schönenbergenviou uma carta contendo umaanexo fechado para o gabinete do procurador distrital, conforme exigido pela legislação suíça,solicitando que a mesma fosse remetida ao desti-natário. Nessa carta, o Sr. Schönenberg informouo Sr. Durmaz de que tinha recebido instruções daesposa deste último para assumir a sua defesa eenviou-lhe formulários das procurações necessá-rias. Escreveu também, nomeadamente, que eraseu dever lembrar que o detido tinha o direito dese recusar a fazer quaisquer declarações e quequalquer coisa que dissesse podia ser utilizadacontra si49. O procurador distrital reteve esta cartacom anexo fechado e nunca informou o Sr. Durmaza respeito da mesma; na sequência de uma ordemrecebida, o gabinete do procurador decidiu depoisnão transmitir a carta ao Sr. Durmaz; em vez disso,foi nomeado um advogado de Zurique para orepresentar50.

O Tribunal aceitou que a fina-lidade da retenção desta cartafoi “a defesa da ordem e a prevenção do crime”e baseou-se a este respeito na sua jurisprudênciade acordo com a qual “a prossecução deste objec-tivo pode justificar medidas ou ingerências maisamplas no caso de um […] preso [condenado] do queno de uma pessoa em liberdade”; no parecer doTribunal “o mesmo raciocínio se pode aplicar auma pessoa, como o Sr. Durmaz, presa preventi-vamente e contra a qual havia sido instaurado uminquérito penal com vista à dedução de acusação,uma vez que num caso deste tipo existe frequen-temente o perigo de perturbação do inquérito”51.Contudo, o Tribunal acabou por concluir que aingerência contestada não era justificável como“necessária numa sociedade democrática”, rejei-tando os argumentos do Governo de que a cartadava ao Sr. Durmaz conselhos relativos a um processo penal pendente de natureza tal que comprometiam a sua adequada condução e quea carta não fora enviada por um advogado manda-tado pelo Sr. Durmaz. Observou a este respeitoque:

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 181

46 TEDH, Caso Pfeifer ePlankl c. Áustria, sentençade 25 de Fevereiro de 1992,Série A, N.º 227, p. 18,parágrafo 47.

47 Ibid., parágrafo 47 ap. 19.

48 Ibid., loc. cit e p. 19,parágrafo 48.

49 TEDH, Caso Schönen-berg e Durmaz, sentença de20 de Junho de 1988, SérieA, N.º 137, pp. 8-9, parágrafos 8-9.

50 Ibid., p. 9, parágrafos 10-11.

51 Ibid., p. 13, parágrafo 25.

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“O Sr. Schönenberg tentou

informar o segundo queixoso

do seu direito de se recusar a fazer qualquer decla-

ração, dizendo que o seu exercício lhe seria

vantajoso. […] Desta forma, recomendava ao Sr.

Durmaz a adopção de determinada táctica, legal

em si mesma uma vez que, segundo a jurispru-

dência do Tribunal Federal Suíço – cujo equivalente

pode ser encontrado em outros Estados Contratantes

– o arguido tem o direito de não prestar decla-

rações. […] O Sr. Schönenberg podia, e bem,

considerar ser seu dever, na pendência de uma

reunião com o Sr. Durmaz, informá-lo deste direito

e das eventuais consequências do seu exercício.

Na opinião do Tribunal, o aconselhamento pres-

tado nestes termos não era susceptível de criar um

perigo de conivência entre o remetente da carta

e o seu destinatário e não constituía uma ameaça

à normal condução do processo por parte das auto-

ridades de acusação”52.

O Tribunal atribuiu ainda “pouca importância” aoargumento do Governo de que o advogado emcausa não tinha sido mandatado pelo Sr. Durmaz,uma vez que o causídico “agiu na sequência deinstruções da Sra. Durmaz e tinha aliás dissoinformado o […] procurador distrital por telefone”.No parecer do Tribunal,

“estes diversos contactos cons-

tituíam etapas preliminares

com vista a permitir ao segundo queixoso beneficiar

da assistência de um advogado de defesa da sua

escolha e, assim, exercer o direito consagrado numa

outra disposição fundamental da Convenção, nomea-

damente o artigo 6.º. […] Nestas circunstâncias,

o facto de o Sr. Schönenberg não ter sido formal-

mente mandatado é pois de pouca importância”53.

Tinha consequentemente ocorrido uma violaçãodo artigo 8.º neste caso, que assim constitui umimportante aviso de que a relação entre a pessoasuspeita, indiciada ou acusada de uma infracçãopenal e o seu advogado, mesmo potencial, é umarelação privilegiada, que as autoridades nacionaisdeverão salvaguardar cuidadosamente. Contudo,esta questão será examinada em maior detalhe nasecção 6.4, infra.

As normas internacionais de direitos humanos impõem

que as ingerências no direito da pessoa à vida privada

no decorrer dos inquéritos penais sejam legais e pros-

sigam um fim legítimo em relação ao qual a medida

em causa deverá ser proporcional.

6.2 DIREITO DE SER TRATADO

COM HUMANIDADE E PROIBIÇÃO DA TORTURA

O tratamento dos presos e deti-dos será objecto de análise maisdetalhada no Capítulo 8 mas,dada a frequência do recurso àtortura e a outros maus tratoscontra as pessoas privadas deliberdade no contexto dos inqué-ritos penais, é indispensável salientar aqui que aproibição da tortura e das penas ou tratamentoscruéis ou desumanos é garantida por todos osprincipais tratados e pela Declaração Universaldos Direitos do Homem (artigo 7.º do Pacto Inter-nacional sobre os Direitos Civis e Políticos; artigo4.º da Carta Africana dos Direitos do Homem edos Povos; artigo 5.º, n.º 2 da Convenção Americanasobre Direitos Humanos; artigo 3.º da ConvençãoEuropeia dos Direitos do Homem, que não contém o termo “cruel”; e artigo 4.º da DeclaraçãoUniversal). Em alguns instrumentos jurídicos,esta proibição é reforçada, relativamente às pes-soas privadas de liberdade, pelo direito de ser tratado com humanidade e com respeito pela dignidade inerente à pessoa humana (artigo 10.º,n.º 1 do Pacto; artigo 5.º, n.º 2 da Convenção Americana). Dada a gravidade da tortura, que persiste em todas as partes do mundo, foram elaborados tratados destinados a promover efi-cazmente a abolição desta prática ilegal, sob osauspícios das Nações Unidas e de duas organi-zações regionais, nomeadamente a OEA e oConselho da Europa54.

Os direitos das pessoas no decurso do inquéritosão também objecto do artigo 55.º do Estatuto doTribunal Penal Internacional. O artigo 55.º, n.º 1,alínea b) estabelece assim que uma pessoa sobinvestigação não “poderá ser submetida a qual-quer forma de coacção, intimidação ou ameaça,

182 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

52 Ibid., pp. 13-14, parágrafo 28.

54 Vide a Convenção contra a Tortura e OutrasPenas ou TratamentosCruéis, Desumanos ouDegradantes, de 1984; aConvenção Interamericanapara Prevenir e Punir aTortura, de 1985; e a Con-venção Europeia para aPrevenção da Tortura edas Penas ou TratamentosDesumanos ou Degradan-tes, de 1987.

53 Ibid., p. 14, parágrafo 29.

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tortura ou outras formas de penas ou tratamen-tos cruéis, desumanos ou degradantes”.

No decurso dos inquéritospenais e dos processos judiciais,a proibição universal e inder-rogável da tortura e outras penasou tratamentos desumanos oudegradantes tem assim de serrespeitada em todos os momen-tos, sem excepção, mesmo nassituações mais extremas55. Istosignifica que as pessoas presas,detidas ou por qualquer outra razão nas mãos dapolícia ou das autoridades de acusação para finsde interrogatório a respeito de alegadas activida-des criminosas, quer como suspeitas quer comotestemunhas, têm o direito de serem sempre tra-tadas com humanidade e sem serem sujeitas aqualquer forma de violência física ou psicológica,coacção ou intimidação. Como será demonstradomais adiante, as normas internacionais de direi-tos humanos proíbem a utilização de qualquerconfissão obtida mediante coacção. Isto resultaexpressamente, e em particular, do artigo 1.º daConvenção contra a Tortura e Outras Penas ouTratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Foram também elaborados instrumentos jurídicosdestinados aos grupos profissionais que partici-pam nos inquéritos penais. O Código de Condutapara os Funcionários Responsáveis pela Aplicaçãoda Lei, de 1979, estabelece nomeadamente, no seuartigo 5.º, que “nenhum funcionário responsávelpela aplicação da lei pode infligir, instigar ou tolerarqualquer acto de tortura ou qualquer outra penaou tratamento cruel, desumano ou degradante”.Os Princípios Orientadores Relativos à Funçãodos Magistrados do Ministério Público contêm,em particular, a importante disposição que pas-samos a reproduzir:

“16. Caso os magistrados do Ministério Público

recebam contra suspeitos elementos de prova que

saibam ou tenham motivos razoáveis para supor

que foram obtidos através do recurso a métodos

ilícitos, que constituam uma grave violação dos

direitos humanos do suspeito, em especial se

envolverem tortura ou outras penas ou tratamentos

cruéis, desumanos ou degradantes, ou outros

abusos de direitos humanos, deverão recusar-se

a utilizar tais elementos de prova contra qualquer

pessoa que não seja aquela que recorreu a esses

métodos, ou informarão o Tribunal em confor-

midade, e deverão tomar todas as providências

necessárias para garantir que os responsáveis pela

utilização de tais métodos sejam levados a res-

ponder perante a justiça”.

Além disso, o artigo 54.º, n.º 1, alínea c) do Estatutodo Tribunal Penal Internacional estabelece queum dos deveres do Procurador em matéria deinquérito consiste em “respeitar plenamente osdireitos conferidos às pessoas pelo presenteEstatuto” o que abrange, entre outros, o direitoenunciado no artigo 55.º, n.º 1, alínea c) relativoà proibição da coacção e da tortura.

Sublinhe-se ainda que, conformedeclarado em particular no sétimoparágrafo preambular dos Prin-cípios Básicos Relativos à Independência da Magistratura,de 1985, “os juízes se pronunciam em última ins-tância sobre a vida, as liberdades, os direitos, osdeveres e os bens dos cidadãos”, sendo por issotambém seu dever estar particularmente alertapara qualquer sinal de maus tratos ou coacção de qualquer tipo que possam ter ocorrido nodecurso dos inquéritos penais e dos períodos deprivação de liberdade, e tomar as medidas neces-sárias quando confrontados com uma suspeita demaus tratos56.

Os juízes, magistrados do Ministério Público eadvogados deverão estar particularmente alertapara qualquer sinal de tortura, incluindo violaçãoe outras formas de abuso sexual e maus tratos,de mulheres e crianças em situação de reclusão.A tortura e os maus tratos destes grupos de pes-soas vulneráveis quando nas mãos da polícia edas autoridades prisionais é comum em muitospaíses e, para pôr fim a tais práticas proibidas, éindispensável que os operadores judiciários desem-penhem sempre um papel activo na respectivaprevenção, investigação e punição.

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 183

56 Disposições contra atortura podem tambémser encontradas no artigo6.º do Conjunto de Princí-pios para a Protecção deTodas as Pessoas Sujeitasa Qualquer Forma deDetenção ou Prisão, de 1988.

55 Vide, por exemplo, oartigo 4.º, n.º 2 do PactoInternacional sobre osDireitos Civis e Políticos;o artigo 27.º, n.º 2 da Convenção Americanasobre Direitos Humanos;o artigo 15.º, n.º 2 da Convenção Europeia dosDireitos do Homem; oartigo 2.º, n.º 2 da Conven-ção contra a Tortura eOutras Penas ou Tratamen-tos Cruéis, Desumanos ouDegradantes; e o artigo 5.ºda Convenção Interameri-cana para Prevenir e Punira Tortura.

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A tortura e outras formas de maus tratos são proibidas

em todas as circunstâncias, incluindo no decurso dos inqué-

ritos penais, nunca podendo ser justificadas; é necessário

que tais actos sejam prevenidos, investigados e punidos.

Os juízes, magistrados do Ministério Público e advoga-

dos deverão estar particularmente alerta para qualquer

sinal de tortura ou maus tratos de mulheres e crian-

ças em situação de reclusão.

6.3 DIREITO DE SER INFORMADO

DAS ACUSAÇÕES NUMA LÍNGUA QUE COMPREENDA

O artigo 14.º, n.º 3, alínea a) doPacto Internacional sobre osDireitos Civis e Políticos esta-belece que, na determinação dequalquer acusação penal contrasi formulada, qualquer pessoatem o direito a “ser prontamenteinformada, numa língua que ela compreenda, demodo detalhado, acerca da natureza e dos moti-vos da acusação apresentada contra ela”. O artigo6.º, n.º 3, alínea a) da Convenção Europeia temuma redacção semelhante enquanto que, de acordocom o artigo 8.º, n.º 2, alínea b) da ConvençãoAmericana sobre Direitos Humanos, o arguidotem direito a uma “comunicação prévia e porme-norizada […] da acusação formulada”. A CartaAfricana dos Direitos do Homem e dos Povos nãocontém qualquer disposição que garanta expres-samente o direito da pessoa a ser informada dasacusações penais formuladas contra si. Contudo,a Comissão Africana dos Direitos do Homem edos Povos considera que as pessoas detidas “serãoprontamente informadas das acusações dirigidascontra si”57. Relativamente à pessoa capturada, o Princípio 10 do Conjunto de Princípios para aProtecção de Todas as Pessoas Sujeitas a QualquerForma de Detenção ou Prisão estabelece que“deverá ser informada, no momento da captura,dos motivos desta e será prontamente informadade quaisquer acusações formuladas contra si”.

O direito da pessoa a ser informada das acusaçõesnuma língua que compreenda implica, natural-

mente, que as autoridades nacionais deverão pro-videnciar uma adequada interpretação e traduçãoa fim de cumprir esta exigência, que é funda-mental para que o suspeito se possa defender adequadamente. Este direito mais geral de asse-gurar interpretação no decurso do inquérito estáexpressamente consagrado no Princípio 14 doConjunto de Princípios para a Protecção de Todasas Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detençãoou Prisão, segundo o qual:

“A pessoa que não compreenda ou não fale suficien-

temente bem a língua utilizada pelas autoridades

responsáveis pela sua captura, detenção ou prisão

tem o direito de receber sem demora, numa lín-

gua que compreenda, a informação mencionada

nos princípios 10, 11, n.º 2, 12, n.º 1 e 13 e de bene-

ficiar da assistência, se necessário gratuita, de um

intérprete no âmbito do processo judicial subse-

quente à sua captura”.

O dever de informar o suspeito dos seus direitosem geral no âmbito do inquérito “numa línguaque o suspeito fale e compreenda” está tambémincluído, por exemplo, no artigo 42.º (A) das Regrasde Processo e Prova dos Tribunais Penais para oRuanda e para a ex-Jugoslávia que garantem aindao direito do suspeito “de ter a assistência jurídicagratuita de um intérprete” se “não compreenderou não falar a língua a utilizar no interrogatório”.

* * *

De acordo com o Comité dosDireitos do Homem, o direito àinformação previsto no artigo14.º, n.º 3, alínea a) “aplica-se atodos os casos de acusação penal, mesmo de pes-soas que não se encontrem detidas”, e o termo“prontamente exige que a informação seja forne-cida da maneira descrita logo que a acusação sejaformulada pela autoridade competente”58. O Comitéesclareceu a este respeito que:

“este direito nascerá sempre que, no decurso de

um inquérito, um tribunal ou autoridade de acusa-

ção decida tomar medidas processuais contra uma

pessoa suspeita de um crime ou publicamente a

184 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

57 CADHP, Media RightsAgenda (on behalf of Niran Malaolu) v. Nigeria,Comunicação n.º 224/98,adoptada durante a 28.ªsessão, 23 de Outubro – 6de Novembro de 2000, parágrafo 43 do texto dadecisão conforme publicada em:http://www1.umn.edu/humanrts/africa/comcases/224-98.html.

58 Comentário Geral n.º 13(Artigo 14.º), in Compila-ção de Comentários Geraisdas Nações Unidas, p. 124,parágrafo 8; destaquenosso.

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designe como tal. As exigên-

cias específicas da alínea a)

do n.º 3 podem ser cumpridas mediante a comu-

nicação da acusação oralmente ou por escrito,

desde que a informação indique tanto a lei como

os alegados factos em que se baseia”59.

Na opinião do Comité, isto signi-fica também que a “informaçãodetalhada a respeito das acu-sações apresentadas contra oarguido não deve ser fornecidaimediatamente após a detenção,mas com o início dos actos pre-liminares de inquérito ou com amarcação de qualquer outraaudiência que dê origem a umasuspeita clara e oficial contra oarguido”60. O dever de informaro arguido, previsto no artigo 14.º, n.º 3, alínea a) do Pacto, é assim também “mais preciso do que para as pessoas detidas nos termos” do artigo 9.º, n.º 2 do Pacto e, desde que o detido seja pronta-mente apresentado a um juiz conforme exigidopelo artigo 9.º, n.º 3, “os detalhes da natureza e causa da acusação não têm necessariamente de lhe ser comunicados no momento da deten-ção”61. Num caso anterior, o Comité consideroucontudo que “a exigência de pronta informação[…] se aplica apenas quando o indivíduo é formal-mente acusado de uma infracção penal” e que,consequentemente, não se “aplica aos presos preventivos na pendência do resultado das inves-tigações policiais”, situação abrangida pelo artigo9.º, n.º 2 do Pacto62.

Resta saber, porém, se a argumentação utilizadaneste último caso é compatível com as posiçõesassumidas pelo Comité no seu Comentário Geralou nos casos anteriormente referidos.

Aplicando o princípio da pronta informação, oComité concluiu que o artigo 14.º, n.º 3, alínea a)

não tinha sido violado num casoem que o autor se queixou de terpermanecido detido durante seissemanas antes de ser acusadoda prática de uma infracção pelaqual veio depois a ser condenado. O Comité con-cluiu simplesmente que os elementos que tinhaperante si revelavam que o autor tinha sido “infor-mado das razões da sua detenção e das acusaçõescontra si formuladas até ao início da audiênciapreliminar”63.

O artigo 14.º, n.º 3, alínea a) foicontudo violado num caso emque a vítima não tinha sidoinformada das acusações apre-sentadas contra si antes do julgamento in camera por um tribunal militar quea condenou a 30 anos de prisão e 15 anos de medi-das especiais de segurança; para além disso, nuncatinha tido a possibilidade de contactar o advogadonomeado para o defender64.

Os julgamentos à revelia colo-cam problemas particulares.Sem proibir completamente taisprocedimentos ao abrigo doartigo 14.º, o Comité tem vindoa considerar que os mesmos “são em algumas cir-cunstâncias (por exemplo, quando o arguido,embora informado do procedimento com sufi-ciente antecedência, renuncia a exercer o seudireito a estar presente) admissíveis no inte-resse de uma adequada administração da justiça”;no entanto, esta questão exige precauções espe-ciais e “o efectivo exercício dos direitos previstosno artigo 14.º pressupõe que se tomem as provi-dências necessárias para informar antecipadamenteo arguido do procedimento instaurado contra si”conforme estipulado pelo artigo 14.º,n.º 3, alíneaa), embora devam também existir “certos limitesaos esforços que se podem razoavelmente espe-rar das autoridades responsáveis para estabelecercontacto com o arguido”65.

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 185

59 Ibid., loc. cit.; destaquenosso.

60 Comunicação n.º561/1993, D. Williams v.Jamaica (Parecer adoptadoa 8 de Abril de 1997), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/52/40(vol. II), p. 151, parágrafo 9.2; destaquenosso.

61 Comunicação n.º702/1996, C. McLawrencev. Jamaica (Parecer adop-tado a 18 de Julho de1997), in documento dasNações Unidas GAOR,A/52/40 (vol. II), p. 232,parágrafo 5.9.

62 Comunicação n.º253/1987, P. Kelly v.Jamaica (Parecer adoptadoa 8 de Abril de 1991), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/46/40,p. 247, parágrafo 5.8; destaque nosso.

63 Comunicação n.º561/1993, D. Williams v.Jamaica (Parecer adoptadoa 8 de Abril de 1997), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/52/40(vol. II), p. 151, parágrafo 9.2.

64 Comunicação n.ºR.14/63, R. S. Antonaccio v.Uruguay (Parecer adop-tado a 28 de Outubro de1981), in documento dasNações Unidas GAOR,A/37/40, p. 120, parágrafo20 comparado com p. 119,parágrafo 16.2.

65 Comunicação n.º16/1977, D. MonguyaMbenge v. Zaire (Pareceradoptado a 25 de Marçode 1983), in documentodas Nações UnidasGAOR, A/38/40, p. 138,parágrafos 14.1-14.2.

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* * *

O artigo 8.º, n.º 2, alínea b) daConvenção Americana sobreDireitos Humanos foi violadono caso Castillo Petruzzi et al, emque “os arguidos não foram notificados com sufi-ciente antecedência, e em detalhe, das acusaçõesapresentadas contra eles”; na verdade, a pronún-cia apenas foi apresentada a 2 de Janeiro de 1994e os advogados só puderam consultar o processoa 6 de Janeiro “durante muito pouco tempo”,tendo a sentença sido proferida no dia seguinte68.

* * *

Ao abrigo do disposto no artigo6.º, n.º 3, alínea a) da ConvençãoEuropeia dos Direitos do Homem,o Tribunal Europeu considerou ser suficiente, pararespeitar as exigências desta norma, que aos queixo-sos tivesse sido entregue uma “folha acusatória”,respectivamente dez horas e uma hora e um quartoapós a detenção; estas folhas acusatórias continhaminformação acerca da acusação (ruptura da paz)bem como a data e o local da prática da infracção69.

Contudo, o artigo 6.º, n.º 3, alínea a) foi violado num casoem que o queixoso, que era deorigem estrangeira, tinha informado as autorida-des italianas das suas dificuldades em compreendera notificação judicial que lhe havia sido entregue,solicitando-lhes que lhe enviassem a informa-ção na sua língua materna ou numa das línguasoficiais das Nações Unidas. A sua carta não obtevequalquer resposta e as autoridades continua-ram a redigir os documentos em italiano. OTribunal observou que “as autoridades judiciá-rias italianas deveriam ter tomado providências para satisfazer [o pedido do queixoso] a fim de garantir a observância das exigências do [artigo 6.º, n.º 3, alínea a)] a menos que estives-sem em posição de provar que o queixoso tinhana verdade conhecimentos suficientes de ita-liano que lhe permitissem compreender, a partirda notificação, o objectivo da comunicação que o informava das acusações apresentadas contrasi”70.

Toda a pessoa acusada de uma infracção penal deverá

ser informada prontamente e numa língua que

O CASO MBENGE No caso Mbenge, as autoridades nacionais nãofizeram todo o possível para cumprir a sua obriga-ção de localizar um arguido, não tendo o EstadoParte contestado “a alegação do autor de que tinha sabido dos jul-gamentos apenas através da imprensa e depois de os mesmos teremterminado”. Embora as duas sentenças em causa mencionassem“explicitamente as citações que tinham sido emitidas pelo secretáriodo tribunal”, não havia “qualquer indicação […] de quaisquer pro-vidências que tivessem de facto sido tomadas pelo Estado Parte paratransmitir tais citações ao autor, cuja morada na Bélgica [estava] cor-rectamente indicada” numa das sentenças e “era portanto conhecidapelas autoridades judiciárias”66. Na verdade, o facto de, de acordo coma sentença do segundo julgamento, a citação apenas ter sido emitidatrês dias antes do início da audiência perante o tribunal, confirmou aconclusão do Comité de que “o Estado Parte não fez esforços suficien-tes para informar o autor a respeito do processo judicial pendente, a fimde lhe permitir a preparação da defesa”. Tinha consequentemente vio-lado o artigo 14.º, n.º 3, alíneas a), b), d) e e) do Pacto67.

68 TIADH, Caso CastilloPetruzzi et al. c. Peru, sentença de 30 de Maio de 1999, Série C, N.º 52, p. 202, parágrafos 141-142lidos em conjunto com p. 201, parágrafo 138.

69 TEDH, Caso Steel eOutros c. Reino Unido, sen-tença de 23 de Setembro de1998, Relatórios de 1998-VII, p. 2741 parágrafo 85.

70 TEDH, Caso Brozicek c.Itália, sentença de 19 deDezembro de 1989, Série A,N.º 176, p. 18, parágrafo 41.

66 Ibid., parágrafo 14.2.

67 Ibid., loc. cit.

186 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

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compreenda das acusações apresentadas contra si, com

detalhes quanto à base jurídica e factual da acusação.

Esta informação deverá ser fornecida com suficiente

antecedência relativamente ao julgamento para que o

arguido possa preparar adequadamente a sua defesa.

6.4 DIREITO À ASSISTÊNCIA JURÍDICA

O direito a beneficiar prontamente de assistênciajurídica após a captura e detenção é essencial pormuitas razões, tanto a fim de garantir o direito auma defesa eficaz como para proteger a integridadefísica e mental da pessoa privada de liberdade.Enquanto que todos os tratados de direitos huma-nos pertinentes garantem o direito do arguido a umdefensor da sua escolha (artigo 14.º, n.º 3, alínead) do Pacto Internacional, artigo 7.º, n.º 1, alíneac) da Carta Africana e artigo 6.º, n.º 3, alínea c) daConvenção Europeia), o artigo 8.º, n.º 2, alínea d)da Convenção Americana sobre Direitos Huma-nos estabelece ainda que, durante o processo penal,todo o arguido tem o direito “de comunicar livremente e em particular com o seu defensor”(destaque nosso). O Pacto Internacional, a CartaAfricana e a Convenção Europeia não contêm qualquer semelhante protecção expressa da con-fidencialidade da relação entre advogado e cliente.

Contudo, a Regra 93 das Regras Mínimas dasNações Unidas para o Tratamento dos Reclusosestabelece o seguinte:

“Para efeitos de defesa, o preso preventivo deverá

ter a possibilidade de requerer a prestação de assis-

tência jurídica gratuita, caso tal assistência esteja

disponível, e de receber visitas do seu advogado

com vista à sua defesa, bem como de preparar e

transmitir-lhe instruções confidenciais. Para estes

efeitos ser-lhe-á fornecido, se assim o desejar,

material de escrita. As entrevistas entre o recluso

e o seu advogado podem decorrer à vista, mas

não em condições de serem ouvidas, por um fun-

cionário da polícia ou do estabelecimento.”

O Princípio 18 do Conjunto de Princípios para aProtecção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer

Forma de Detenção ou Prisão fornece mais deta-lhes a este respeito:

“1. A pessoa detida ou presa tem o direito de

comunicar com o seu advogado e de o consultar.

2. A pessoa detida ou presa deve dispor do tempo e

dos meios necessários para consultar o seu advogado.

3. O direito da pessoa detida ou presa de ser

visitada pelo seu advogado, de o consultar e de

comunicar com ele, sem demora nem censura e

em regime de absoluta confidencialidade, não

pode ser objecto de suspensão ou restrição, salvo

em circunstâncias excepcionais especificadas por

lei ou por regulamentos adoptados nos termos

da lei, quando uma autoridade judiciária ou outra

autoridade o considerem indispensável para

manter a segurança e a boa ordem.

4. As entrevistas entre a pessoa detida ou presa

e o seu advogado podem decorrer à vista, mas

não em condições de serem ouvidas, por um fun-

cionário responsável pela aplicação da lei.

5. As comunicações entre uma pessoa detida ou presa

e o seu advogado mencionadas no presente princí-

pio não podem ser admitidas como prova contra a

pessoa detida ou presa salvo se estiverem relacio-

nadas com uma infracção contínua ou premeditada”.

De acordo com o Princípio 15do Conjunto de Princípios, “acomunicação da pessoa detidaou presa com o mundo exterior, e em particularcom a sua família ou com o seu advogado, nãopode ser negada por mais do que alguns dias”. Opróprio Comité dos Direitos do Homem declarou,no seu Comentário Geral n.º 20 sobre o artigo 7.º,que “devem […] ser adoptadas medidas contra adetenção em regime de incomunicabilidade”71.

O direito à assistência jurídica, incluindo à assis-tência jurídica gratuita caso o suspeito não disponha de recursos económicos suficientes, é também garantido pela Regra 42 (A) (i) das Regrasde Processo e Prova dos Tribunais Penais para oRuanda e para a ex-Jugoslávia. Para além disso, a

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 187

71 Compilação de Comen-tários Gerais das NaçõesUnidas, p. 140, parágrafo 11.

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Regra 67 (A) das Regras de Detenção do Tribunalpara a ex-Jugoslávia estabelece que “cada detidotem o direito de comunicar plenamente e semrestrições com o seu defensor, com a assistênciade um intérprete se necessário” e, ainda, que “todaessa correspondência e comunicações serão con-fidenciais”. Por último, a Regra 67 (D) destasRegras de Detenção estipula que as entrevistas“com o defensor e os intérpretes serão realizadasà vista do pessoal da unidade de detenção, massem a possibilidade de serem por ele ouvidas,directa ou indirectamente”. A Regra 65 das Regrasde Detenção do Tribunal para o Ruanda consagradisposições análogas.

* * *

O direito de acesso a assistênciajurídica deverá estar efectiva-mente disponível e, quando istonão acontece, o Comité dosDireitos do Homem tem con-cluído ter havido violação doartigo 14.º, n.º 372. Esta normafoi também obviamente violadanum caso em que a pessoa emquestão não teve acesso a qual-quer assistência jurídica duranteos primeiros dez meses de deten-ção e, para além disso, nãoesteve presente no seu julgamento73. Contudo,como em muitos outros casos examinados peloComité dos Direitos do Homem, este foi um casoextremo, uma vez que dizia respeito à situação depessoas detidas à sombra de uma ditadura.

* * *

Na sua Resolução sobre o Direito ao Recurso e aum Processo Justo, a Comissão Africana dosDireitos do Homem e dos Povos reforçou o direitode defesa consagrado no artigo 7.º, n.º 1, alínea c)da Carta Africana, considerando que os indivíduostêm em particular o direito, na determinação dasacusações contra si apresentadas, de “comunicarcom confiança com um advogado da sua escolha”.Este direito foi violado no caso Media Rights Agenda,instaurado em nome do Sr. Niran Malaolu, pes-

soa a quem foi negado o acessoa um advogado, bem como apossibilidade de ser represen-tado por um advogado da suaescolha74.

* * *

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem observou que “a Convenção Europeia não garanteexpressamente o direito da pessoa acusada de umainfracção penal a comunicar com um defensor semrestrições”; mas fez em vez disso referência, nomea-damente, ao artigo 93 das Regras Mínimas parao Tratamento dos Reclusos adoptadas pelo Comitéde Ministros do Conselho da Europa através daresolução (73) 5, que tem a seguinte redacção:

“Um preso preventivo terá o

direito, logo que seja detido,

a escolher o seu patrono judi-

ciário, ou terá a possibilidade de requerer

assistência jurídica gratuita, caso tal assistência

esteja disponível, e a receber visitas do seu advo-

gado com vista à sua defesa, bem como a preparar

e transmitir-lhe instruções confidenciais. A seu

pedido, ser-lhe-ão concedidas todas as facilidades

necessárias para este fim. Em particular, benefi-

ciará da assistência gratuita de um intérprete para

todos os contactos essenciais com a administração

e para a sua defesa. As entrevistas entre o preso

e o seu advogado poderão decorrer à vista, mas

sem a possibilidade de serem ouvidas, directa ou

indirectamente, por um funcionário da polícia ou

da instituição”75.

O Tribunal declarou ainda que“considera que o direito do arguidoa comunicar com o seu defensor sem ser ouvidopor um terceiro faz parte dos requisitos básicosde um processo justo numa sociedade democrá-tica e decorre” do artigo 6.º, n.º 3, alínea c) daConvenção. “Se um advogado não tivesse a pos-sibilidade de consultar o seu cliente e de receberdele instruções confidenciais sem tal vigilância,a sua assistência perderia muita da sua utilidade,quando a Convenção se destina a garantir direi-tos que sejam práticos e efectivos”76.

188 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

72 Vide, entre muitosoutros casos, a Comunica-ção N.º R.2/8, B. WeismannLanza and A. Lanza Perdomo v. Uruguay (Pare-cer adoptado a 3 de Abrilde 1980), in documentodas Nações UnidasGAOR, A/35/40, p. 118,parágrafo 16; e Comunica-ção N.º R.1/6, M. A. MillánSequeira v. Uruguay(Parecer adoptado a 29 de Julho de 1980), p. 131,parágrafo 16.

73 Comunicação N.ºR.7/28, I. Weinberger v.Uruguay (Parecer adop-tado a 29 de Outubro de1980), in documento dasNações Unidas GAOR,A/36/40, p. 119, parágrafo 16.

74 CADHP, Media RightsAgenda (on behalf of NiranMalaolu) v. Nigeria, Comu-nicação n.º 224/98, decisãoadoptada durante a 28.ªsessão, 23 de Outubro – 6de Novembro de 2000,parágrafos 55-56 do textoda decisão conformepublicada em:http://www1.umn.edu/humanrts/africa/comca-ses/224-98.html.

76 Ibid., parágrafo 48 a p. 16.

75 TEDH, Caso S. c. Suíça,sentença de 28 de Novem-bro de 1991, Série A, N.º220, p. 15, parágrafo 48;destaque nosso.

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Como podemos constatar, a jurisprudência dosórgãos internacionais de controlo prova que asregras sobre um processo justo consagradas nostratados internacionais de direitos humanos, emborapareçam principalmente destinadas a assegurar aequidade do processo judicial em si mesmo, podemtambém aplicar-se às fases de investigação crimi-nal anteriores ao julgamento, pelo menos na medidanecessária para assegurar um ulterior julgamentojusto perante um tribunal independente e imparcial.

Isto decorre nomeadamente da jurisprudência doComité dos Direitos do Homem relativa ao direitode acesso a um advogado previsto no artigo 14.º doPacto, que será examinado com maior detalhe noCapítulo 7. Para além disso, no que diz respeito aoartigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos doHomem, o Tribunal Europeu considera em particu-lar que o artigo 6.º, n.º 3 “pode ser relevante antes deo processo seguir para julgamento caso e na medida

em que a equidade do julgamentopossa ficar seriamente compro-metida pelo incumprimento inicial das suas disposições”78.Quanto ao artigo 6.º, n.º 3, alínea c), que versasobre o direito de se defender a si próprio ou atra-vés da assistência de um defensor da sua escolha,a respectiva aplicação “no decorrer do inquéritopreliminar depende das características particularesdos procedimentos em causa e das circunstânciasdo caso”79. No caso Murray, o Tribunal Europeuexplicou a sua posição nos seguintes termos:

“63. A legislação nacional pode retirar consequên-

cias da atitude de um arguido nas fases iniciais

do interrogatório policial que são decisivas para as

perspectivas de defesa em quaisquer procedimentos

penais ulteriores. Em tais circunstâncias, o artigo

6.º exige normalmente que o arguido possa bene-

ficiar da assistência de um advogado logo nas fases

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 189

O CASO S. CONTRA SUÍÇA No caso S. c. Suíça, o autor queixou-se de viola-ção do artigo 6.º, n.º 3, alínea c) uma vez que as autoridades suíçastinham vigiado as suas reuniões com o advogado e apenas autorizaramo advogado a consultar uma parte do processo. Os factos indiciavamtambém que algumas das cartas dirigidas pelo queixoso ao seu advo-gado tinham sido interceptadas e que, numa ocasião, o polícia quevigiava a reunião tinha mesmo tirado notas. O Governo alegouperante o Tribunal que a vigilância se justificava por razões de “con-luio”, uma vez que havia o perigo de os dois advogados dos co-arguidoscoordenarem a sua estratégia de defesa.

O Tribunal concluiu, contudo, que o direito do queixoso a comunicarcom o seu advogado, previsto no artigo 6.º, n.º 3, alínea c), foi violadouma vez que “não obstante a gravidade das acusações deduzidas contra o queixoso”, a possibilidade de conluio não podia “justificar arestrição em causa e não [tinha sido] aduzida qualquer outra razãosuficientemente forte para a mesma ter acontecido”. No parecer doTribunal, não havia “nada de extraordinário no facto de os advogadosde defesa colaborarem entre si a fim de coordenar a sua estratégia dedefesa”, e nem “a deontologia profissional” do defensor oficioso “nema legalidade da sua conduta foram em qualquer momento postas emquestão neste caso”. Para além disso, “a restrição em causa durou maisde sete meses”77.

78 TEDH, Caso John Murrayc. Reino Unido, sentença de8 de Fevereiro de 1996,Relatórios de 1996-I, p. 54,parágrafo 62.

79 Ibid., loc. cit.

77 Ibid., parágrafo 49.

Page 22: Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao ... · direitos humanos de uma pessoa nas fases prévias ao julgamento? ... destes direitos são também essenciais na fase

iniciais de interrogatório poli-

cial. Contudo, este direito, que

não se encontra expressamente previsto na

Convenção, pode ser sujeito a restrições com justa

causa. Há que determinar, em cada caso, se a res-

trição, à luz de todo o processo, privou ou não o

arguido de um julgamento justo”80.

Após a privação de liberdade, a pessoa tem direito de

acesso sem demora a um advogado e de poder reunir

com o advogado em privado. O pronto acesso a um

advogado na fase inicial do inquérito pode ser funda-

mental para evitar prejuízos duradouros nos direitos

de defesa.

ACESSO IMEDIATO No caso Murray, foi recusado ao queixoso o acessoA UM ADVOGADO: a um advogado durante as primeiras 48 horas de

O CASO MURRAY detenção, medida decidida ao abrigo da Secção 15da Lei da Irlanda do Norte de 1987 (Disposições deEmergência) “com base no facto de a polícia ter motivos razoáveis parasupor que o exercício do direito de acesso interferiria nomeadamentena recolha de informação sobre a prática de actos de terrorismo ou torna-ria mais difícil a prevenção de tais actos”81. O queixoso foi advertidode que, nos termos do Decreto de 1988 sobre Prova em matéria Penal(Irlanda do Norte), se optasse por guardar silêncio poderiam ser feitas inferências em corroboração dos elementos de prova apresentadoscontra si. O Tribunal Europeu considerou que o regime previsto no ditoDecreto:

“[…] é tal que se torna fundamental para os direitos da defesa que o arguido

tenha acesso a um advogado nas fases iniciais de interrogatório policial.

Observa […] que, nos termos do Decreto, no início do interrogatório poli-

cial o arguido é confrontado com um dilema fundamental relativamente

à sua defesa. Se optar por não prestar declarações, podem ser feitas infe-

rências negativas contra a sua pessoa em conformidade com o previsto

no Decreto. Por outro lado, se o arguido optar por romper o silêncio no

decurso do interrogatório, corre o risco de prejudicar a sua defesa sem afas-

tar necessariamente a possibilidade de inferências desfavoráveis”82.

Concluiu depois que, “nestas condições, o conceito de equidade con-sagrado no artigo 6.º exige que o arguido beneficie da assistência deum advogado logo nas fases iniciais de interrogatório policial”, e que“a negação de acesso a um advogado durante as primeiras 48 horasde interrogatório policial, numa situação em que os direitos de defesapodem bem ficar irremediavelmente prejudicados, é – qualquer queseja a justificação para tal negação – incompatível com os direitos doarguido previstos no artigo 6.º”83.

81 Ibid., p. 55, parágrafo 64.

82 Ibid., parágrafo 66.

83 Ibid., loc. cit.

80 Ibid., pp. 54-55, parágrafo 63.

190 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

Page 23: Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao ... · direitos humanos de uma pessoa nas fases prévias ao julgamento? ... destes direitos são também essenciais na fase

6.5 DIREITO DE NÃO SER FORÇADO

A TESTEMUNHAR CONTRA SI MESMO/DIREITO

DE GUARDAR SILÊNCIO

O artigo 14.º, n.º 3, alínea g) doPacto Internacional garante odireito de toda a pessoa “a não ser forçada a teste-munhar contra si própria ou a confessar-se culpada”,e o artigo 8.º, n.º 2, alínea g) da Convenção Ameri-cana consagra o direito de toda a pessoa “de não serobrigada a depor contra si mesma, nem a declarar--se culpada”, norma que é reforçada pelo dispostono artigo 8.º, n.º 3, de acordo com o qual “a con-fissão do acusado só é válida se feita sem coacçãode nenhuma natureza”. A Carta Africana e a Con-venção Europeia não contêm preceitos análogos.A protecção efectiva deste direito é particularmenteimportante no âmbito dos inquéritos preliminares,quando pode haver uma maior tentação de exercerpressão sobre as pessoas suspeitas a fim de quese confessem culpadas. Deve salientar-se que oPrincípio 16 dos Princípios Orientadores Relativosà Função dos Magistrados do Ministério Públicoestabelece também que os magistrados do Minis-tério Público recusar-se-ão a utilizar provas quetenham sido obtidas através de métodos ilícitos84.

O direito de não ser obrigado a incriminar-se a sipróprio nem a confessar-se culpado está tambémconsagrado no artigo 55.º, n.º 1, alínea a) do Estatutodo Tribunal Penal Internacional e nos artigos 20.º,n.º 4, alínea g) e 21.º, n.º 4, alínea g) dos Estatutosdos Tribunais Penais Internacionais para o Ruandae para a ex-Jugoslávia, respectivamente.

* * *

O artigo 14.º, n.º 3, alínea g) doPacto foi violado em diversasocasiões, nomeadamente numcaso em que o autor foi “forçadoatravés de tortura a confessar--se culpado”. A pessoa tinha, naverdade, sido mantida em regimede incomunicabilidade por trêsmeses, período durante o qual foi“sujeita a maus tratos extremose obrigada a assinar uma confissão”85. Embora situa-

ções graves deste género sejam claramente incompa-tíveis com a proibição da auto-incriminação forçada,existem, como veremos mais adiante, outras cir-cunstâncias em que pode ser mais difícil avaliara legalidade da pressão a que o arguido foi sujeito.

* * *

Do direito de não ser obrigado a testemunhar contra si próprio decorre o direito de guardar silên-cio, embora os quatro tratados de direitos humanosexaminados no presente Manual não prevejamexpressamente este direito, quer durante o interro-gatório policial quer durante os procedimentos dejulgamento. Contudo, a Regra 42 (A) (iii) das Regrasde Processo e Prova do Tribunal Penal Internacionalpara o Ruanda e do Tribunal Penal Internacionalpara a ex-Jugoslávia refere expressamente tal direito,assim como o artigo 55.º, n.º 2, alínea b) do Estatutodo Tribunal Penal Internacional. Para além disso,o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem decla-rou inequivocamente que:

“não pode haver dúvidas de

que o direito de guardar silên-

cio durante o interrogatório

policial e a imunidade contra

a auto-incriminação constituem normas interna-

cionais geralmente reconhecidas que estão no cerne

da noção de um processo equitativo consagrada

no artigo 6.º. […] Conferindo ao arguido protecção

contra pressões indevidas por parte das autoridades,

estas imunidades contribuem para prevenir erros

judiciários e para garantir os fins do artigo 6.º”86.

É, contudo, demasiado cedo para saber se a inter-pretação dada pelo Tribunal Europeu ao direitoao silêncio, acima explicada, será partilhada peloComité dos Direitos do Homem e/ou por outrosórgãos regionais de controlo.

* * *

Estatuto do Tribunal Penal Internacional: Destaca--se a este respeito que o artigo 55.º, n.º 2, alíneab) do Estatuto do Tribunal Penal Internacio-nal estabelece que o suspeito será informado,antes do interrogatório, de que tem o direito “a

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 191

84 Vide texto completo doPrincípio 16 na secção6.2, supra.

86 TEDH, Caso John Murray c. Reino Unido, sen-tença de 8 de Fevereiro de1996, Relatórios de 1996-I,p. 49, parágrafo 45; destaque nosso.

85 Comunicação n.º139/1983, H. Conteris v.Uruguay (Parecer adop-tado a 17 de Julho de1985), in documento dasNações Unidas GAOR,A/40/40, p. 202, pará-grafo 10 lido em conjuntocom p. 201, parágrafo 9.2.Para um outro caso deauto-incriminação forçada,vide a Comunicação n.º159/1983, R. Cariboni v.Uruguay (Parecer adop-tado a 27 de Outubro de1987), in documento dasNações Unidas GAOR,A/43/40, parágrafo 10 a p. 190.

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Neste caso concreto, o queixoso foi detido ao abrigo da Lei de 1989 sobre a Prevenção do Terro-rismo (Disposições Temporárias) e advertido pelopolícia, nos termos do Decreto de 1988 sobre Prova em matéria Penal (Irlanda do Norte), de que, embora não fosse obri-gado a prestar quaisquer declarações a menos que o desejasse fazer,o tribunal poderia considerar que o seu silêncio corroborava quaisquerprovas relevantes apresentadas contra si; foi ulteriormente advertido pordiversas vezes. O queixoso foi detido quando descia as escadas de umacasa onde alegados terroristas do IRA foram encontrados juntamentecom a sua vítima. Durante o seu julgamento pelo crime de conspira-ção com vista à prática de homicídio, o queixoso guardou silêncio masfoi de novo advertido de que o tribunal, ao decidir sobre a sua culpa,poderia ter em conta, “na medida que considere adequada”, a sua“recusa em fornecer provas ou em responder a quaisquer perguntas”87.O queixoso foi considerado culpado de auxílio e cumplicidade na prisãoilegal do homem contra o qual existia conspiração com vista ao homi-cídio, mas absolvido das restantes acusações.

O Tribunal Europeu absteve-se neste caso de proceder a “uma análiseabstracta do conteúdo do” direito de guardar silêncio e da imunidadecontra a auto-incriminação e, em particular, do que constitui nesteâmbito uma “pressão indevida”, porque o que estava em causa era:

“o facto de saber se tais imunidades são absolutas no sentido de que o exercí-

cio por um arguido do seu direito ao silêncio não pode em circunstância

alguma ser utilizado contra ele em julgamento ou, em alternativa, se o facto

de a pessoa ser antecipadamente informada de que, em certas condições,

o seu silêncio pode ser utilizado nesse sentido deve sempre ser considerado

uma pressão indevida”88.

Embora fosse “evidente” para o Tribunal “que é incompatível com asimunidades consideradas basear uma condenação exclusiva ou prin-cipalmente no silêncio do arguido ou na sua recusa em responder aquestões ou fornecer provas”, era “igualmente óbvio que estas imu-nidades não podem e não devem impedir que o silêncio do arguido,em situações que exigem claramente uma explicação da sua parte, sejatido em conta na avaliação da prova apresentada pela acusação”. Daquiresulta que “onde quer que se encontre o ponto de equilíbrio entre estesdois extremos”, a questão de saber se o direito ao silêncio “é absolutodeverá ter resposta negativa”89. Resulta também que “não pode dizer--se […] que a decisão do arguido de guardar silêncio ao longo do processo penal não tenha necessariamente quaisquer implicaçõesquando o tribunal de julgamento tenta apreciar as provas apresen-tadas contra ele”. Concordando com o Governo visado, o Tribunal observou ainda que “as normas internacionais estabelecidas nestaárea, embora prevejam o direito ao silêncio e a imunidade contra aauto-incriminação, são omissas neste ponto”90. Isto significa ainda quea questão de saber se

87 Ibid., p. 38, parágrafo 20.

88 Ibid., p. 49, parágrafo 46.

89 Ibid., parágrafo 47.

90 Ibid., loc. cit.

O DIREITO DE GUARDAR

SILÊNCIO É ABSOLUTO?PARECER DO TRIBUNAL

EUROPEU DOS DIREITOS

DO HOMEM

192 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

Page 25: Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao ... · direitos humanos de uma pessoa nas fases prévias ao julgamento? ... destes direitos são também essenciais na fase

guardar silêncio, sem que tal seja tido em conside-ração para efeitos de determinação da sua culpaou inocência” (destaque nosso). Embora as dis-posições do Estatuto não possam ser vistas comointerpretação autêntica dos tratados de direitoshumanos analisados no presente Manual, oEstatuto constitui um instrumento normativo comconsiderável importância jurídica. Esta importantematéria coloca as seguintes questões:

• Pode a sentença do Tribunal Europeu nocaso Murray ser considerada compatível como artigo 55.º, n.º 2, alínea b) do Estatuto doTribunal Penal Internacional?

• A confiança depositada no papel desempe-nhado pelas “ingerências de senso comum”oferece garantias suficientes contra possíveiserros judiciários?

• É esta noção suficientemente clara para terlugar na avaliação da prova em processos penais?

• E se, por exemplo, o suspeito se recusou afalar por medo de represálias por parte dosco-arguidos ou de outras pessoas?

Um suspeito não pode, em momento algum e em

quaisquer circunstâncias, ser obrigado a incriminar-

-se a si próprio ou a confessar-se culpado; o suspeito

tem o direito de se manter em silêncio em todos os

momentos.

6.6 DEVER DE MANTER REGISTOS

DOS INTERROGATÓRIOS

É fundamental, para prevenir e se necessário provar a ocorrência de tratamentos proibidos pelas normas internacionais de direitos huma-nos, e consequentemente também para os procedimentos judiciais subsequentes, que sejam mantidos registos dos interrogatórios e que tanto as autoridades de acusação como a defesa tenham acesso a tais registos. Sobre estaquestão, o Comité dos Direitos do Homem declarou no seu Comentário Geral n.º 20, sobreo artigo 7.º do Pacto Internacional, que “a data,hora e local de todos os interrogatórios deve ficar registada, juntamente com os nomes de todasas pessoas presentes e esta informação deverátambém ficar disponível para efeitos de procedi-

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 193

“[…] as inferências negativas a partir do silêncio do

arguido violam ou não o artigo 6.º é uma questão

que deve ser determinada à luz de todas as cir-

cunstâncias do caso, tendo particularmente em

conta as situações em que podem ser feitas infe-

rências, a importância que lhes é atribuída pelos tribunais nacionais na

sua apreciação da prova e o grau de pressão inerente à situação”91.

O Tribunal Europeu analisou cuidadosamente os poderes do juiz nacional de julgamento e concluiu que ele apenas podia fazer as “infe-rências de senso comum que […] considere adequadas, à luz das provas apresentadas contra o arguido”. Para além disso, o juiz de jul-gamento tinha “poderes discricionários para determinar se, com basenos factos de um caso concreto, deveriam ser feitas algumas inferências”e, finalmente, o exercício dos poderes discricionários estava “sujeito arevisão pelos tribunais de recurso”92. Nas circunstâncias deste caso concreto, o Tribunal Europeu acabou por negar que “as inferênciasrazoáveis retiradas do comportamento do queixoso tivessem tidocomo consequência a inversão do ónus da prova da acusação para adefesa de forma a violar o princípio da presunção de inocência”93.

91 Ibid., pp. 49-50, parágrafo 47.

92 Ibid., parágrafo 51 a p. 51.

93 Ibid., loc. cit.; destaque nosso.

O DIREITO DE GUARDAR

SILÊNCIO É ABSOLUTO?PARECER DO TRIBUNAL

EUROPEU DOS DIREITOS

DO HOMEM

(CONT.)

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mentos judiciais ou adminis-trativos”94.

O Princípio 23 do Conjunto de Princípios para aProtecção de Todas as Pessoas Sujeitas a QualquerForma de Detenção ou Prisão aborda o dever deregisto nos seguintes termos:

“1. A duração de qualquer interrogatório a que

seja sujeita a pessoa detida ou presa e dos

intervalos entre os interrogatórios, bem como a

identidade dos funcionários que os conduziram

e de outros indivíduos presentes, deverão ser

registadas e autenticadas nos termos prescritos

pela lei.

2. A pessoa detida ou presa, ou o seu advogado

quando previsto por lei, deverá ter acesso às

informações mencionadas no n.º 1 do presente

princípio”.

A Regra 43 das Regras de Processo e Prova dosTribunais Penais Internacionais para o Ruanda epara a ex-Jugoslávia estabelece que os interroga-tórios dos suspeitos “serão gravados em suporteáudio ou vídeo”, em conformidade com um pro-cedimento especial nela enunciado. Ao suspeitoserá entregue uma cópia da transcrição da grava-ção (Regra 43 (iv)).

Deverão ser sempre mantidos registos detalhados dos

interrogatórios, que deverão ser disponibilizados ao sus-

peito e seu advogado.

6.7 DIREITO AO TEMPO E AOS MEIOS

ADEQUADOS PARA A PREPARAÇÃO DA DEFESA

O artigo 14.º, n.º 3, alínea b) do Pacto Internacionalsobre os Direitos Civis e Políticos estabelece quetoda a pessoa tem direito, na determinação dequalquer acusação penal contra si apresentada, “adispor do tempo e das facilidades necessárias paraa preparação da defesa e a comunicar com umadvogado da sua escolha”. O artigo 8.º, n.º 2, alíneac) da Convenção Americana sobre Direitos Huma-

nos garante a concessão ao arguido “do tempo edos meios adequados para a preparação da suadefesa”, enquanto que o artigo 6.º, n.º 3, alínea b)da Convenção Europeia dos Direitos do Homem fala“do tempo e dos meios necessários para a prepa-ração da sua defesa”. O artigo 7.º, n.º 1, alínea c)da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos garante, em termos gerais, “o direito de defesa, incluindo o de ser assistido por umdefensor de sua escolha”. Os artigos 20.º e 21.º,respectivamente, dos Estatutos dos Tribunais PenaisInternacionais para o Ruanda e para a ex-Jugosláviasão largamente inspirados no artigo 14.º do PactoInternacional e ambos estabelecem que o acusadoterá direito a “dispor do tempo e dos meios neces-sários à preparação da sua defesa e a contactarcom o defensor de sua escolha” (artigos 20.º, n.º4, alínea b) e 21.º, n.º 4, alínea b)). Dado que estedireito será analisado em maior detalhe no Capítulo7, apenas examinaremos aqui um pequeno númerode exemplos de jurisprudência internacional, quedizem mais particularmente respeito à falta detempo e de meios para preparar a defesa nas fasesiniciais do processo.

* * *

Conforme salientado pelo Comitédos Direitos do Homem, “odireito de um arguido a dispordo tempo e dos meios adequa-dos à preparação da sua defesaé um elemento importante dagarantia de um processo justoe um corolário do princípio daigualdade de armas”95. NoComentário Geral N.º 13, sobre o artigo 14.º doPacto, o Comité explicou também que o significadode “tempo necessário depende das circunstânciasde cada caso, mas que a noção de facilidades deverácompreender o acesso a documentos e outros elementos de prova de que o arguido necessite para preparar a sua defesa, bem como a oportu-nidade de nomear um advogado e de com elecomunicar. Caso o arguido não deseje defender--se a si próprio pessoalmente ou solicitar que outra pessoa ou associação da sua escolha o faça,deverá ter a possibilidade de recorrer a um advo-

194 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

95 Comunicação n.º349/1989, C. Wright v.Jamaica (Parecer adoptadoa 27 de Julho de 1992), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/47/40,p. 315, parágrafo 8.4; e linguagem semelhante na Comunicação n.º702/1996, C. McLawrencev. Jamaica (Parecer adop-tado a 18 de Julho de1997), in documento dasNações Unidas GAOR,A/52/40, p. 232, parágrafo 5.10.

94 Compilação de Comen-tários Gerais das NaçõesUnidas, p. 140, parágrafo 11.

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gado”96. Esta disposição tam-bém “exige que o advogadocomunique com o arguido emcondições que assegurem ple-namente a confidencialidade das comunicações”,e os advogados “deverão poder aconselhar e repre-sentar os seus clientes em conformidade com asnormas estabelecidas da sua profissão e quandoo julguem necessário, sem quaisquer restrições,influências, pressões ou interferências indevidasde qualquer parte”97.

Num caso em que o autor alegou não ter tido otempo e os meios adequados para a preparaçãoda sua defesa, o Comité constatou que ele tinhana verdade sido “representado em tribunal pelomesmo advogado que o representara no interro-gatório preliminar” e também que “nem o autornem o advogado solicitaram alguma vez ao Tribunala concessão de mais tempo para a preparação da

defesa”; consequentemente, nãohouve violação do artigo 14.º, n.º3, alínea b)98. Caso a defesa con-sidere não ter disposto do tempoe dos meios necessários para sepreparar, é assim importante que solicite o adia-mento do acto processual.

O Comité tem contudo vindo a salientar que “em casos emque possa vir a ser pronunciadauma sentença de morte, é vitalque ao arguido e seu defensorseja concedido o tempo necessário para se prepararem para o julgamento” e que “esta exi-gência se aplica a todas as fases do processo judicial”; mais uma vez, contudo, “a determina-ção do que constitui tempo necessário supõe aavaliação das circunstâncias concretas de cadacaso”99.

O CASO WRIGHT No caso Wright, o autor alegou que não lhe tinhasido concedido o tempo necessário para a prepa-ração da sua defesa; “que o advogado nomeadopara o caso foi instruído no próprio dia de início dojulgamento” e que, portanto, “teve menos de umdia para preparar o caso”100. O Comité admitiu que“havia uma considerável pressão para iniciar o jul-gamento na data prevista” devido à chegada deuma testemunha dos Estados Unidos e que fora“incontestado” que, conforme alegado pelo autor,o advogado foi nomeado “na manhã do próprio dia em que o julga-mento devia começar” pelo que “teve menos de um dia para preparar”a defesa do autor; contudo, era “igualmente incontestado que nenhumadiamento do julgamento foi requerido pelo” advogado do autor101.Consequentemente, o Comité não considerou “que a inadequada pre-paração da defesa possa ser imputada às autoridades judiciais doEstado Parte”, acrescentando que “se o advogado tivesse sentido quenão estavam devidamente preparados, cabia à defesa requerer oadiamento do julgamento”102. Daqui resultou não ter havido violaçãodo artigo 14.º, n.º 3, alínea b) neste caso. O queixoso foi consideradoculpado de homicídio e condenado à morte.

capítulo 06 • Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Inquérito ao Julgamento* 195

96 Compilação de Comentá-rios Gerais das Nações Uni-das, p. 124, parágrafo 9;destaque nosso.

97 Ibid., loc. cit; destaquenosso.

98 Comunicação n.º528/1993, M. Steadman v.Jamaica (Parecer adoptadoa 2 de Abril de 1997), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/52/40(vol. II), p. 26, parágrafo 10.2.

99 Comunicação n.º349/1989, C. Wright v.Jamaica (Parecer adoptadoa 27 de Julho de 1992), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/47/40,p. 315, parágrafo 8.4; destaque nosso.

100 Ibid., p. 311, parágrafo 3.4.

101 Ibid., pp. 315-316,parágrafo 8.4.

102 Ibid., loc. cit; destaquenosso. Para uma argu-mentação semelhantenum caso de pena demorte, vide também aComunicação n.º 702/1996, C. McLawrence v.Jamaica (Parecer adoptadoa 18 de Julho de 1997), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/52/40, p. 232, parágrafo 5.10.

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Tendo em conta o desfecho do caso Wright, podeperguntar-se se, em casos de pena de morte ou emcasos em que uma pesada pena de prisão possa serimposta ao arguido no final do processo, é justo atribuir à defesa todo o ónus do cumprimento dodisposto no artigo 14.º, n.º 3, alínea b). No interesseda justiça, poderá o juiz em causa ter o dever de zelarpara que ao arguido sejam assegurados o tempoe os meios necessários à preparação da sua defesa?

No caso Smith, a defesa solicitou de facto umabreve interrupção. O que julga que o Comité teriadecidido se o advogado de defesa não tivesse reque-rido tal interrupção?

Prisão em regime de incomunicabilidade: o artigo14.º, n.º 3, alínea b) foi também violado no caso

Marais, que foi impedido decomunicar com o seu advogadoe de preparar a sua defesa,excepto durante dois dias nodecorrer do próprio julgamento.Embora o advogado tivesse obtido“uma licença do Magistrado Exa-minador para se reunir com oseu cliente, foi repetidamenteimpedido de o fazer”, estandoo cliente detido em regime de incomunicabilidade107.Tanto o artigo 14.º, n.º 3, alínea b) como o artigo14.º, n.º 3, alínea d) foram violados no caso Yasseene Thomas, em que Yasseen não contou com patro-cínio judiciário durante os primeiros quatro dias do julgamento, na sequência do qual lhe foiimposta a pena de morte108.

196 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

107 Comunicação n.º49/1979, D. Marais, Jr. v.Madagascar (Pareceradoptado a 24 de Marçode 1983), in documentodas Nações UnidasGAOR, A/38/40, p. 148,parágrafo 17.3 e p. 149,parágrafo 19.

108 Comunicação n.º676/1996, A. S. Yasseenand N. Thomas v. Guyana(Parecer adoptado a 30 deMarço de 1998), in docu-mento das Nações UnidasGAOR, A/53/40 (vol. II),p. 161, parágrafo 7.8.

O CASO SMITH No caso Smith, referente a uma questão de penade morte, o Comité concluiu que o artigo 14.º, n.º3, alínea b) tinha de facto sido violado. Neste caso,o autor queixou-se também de que o seu jul-gamento foi injusto e que não dispôs do temponecessário à preparação da sua defesa, uma vez queapenas pôde consultar o seu advogado no dia doinício do julgamento e que, em resultado deste facto, não puderam serchamadas a depor uma série de testemunhas fundamentais. Deacordo com o Comité, era “incontestado que a defesa foi preparadano primeiro dia do julgamento”; um dos defensores oficiosos do autorpediu a outro advogado para o substituir, tendo-se um outro retiradoda defesa no dia anterior ao início do julgamento. O advogado quede facto defendeu o autor compareceu em tribunal às 10:00 para a aber-tura do julgamento e solicitou a sua interrupção até às 14:00 “paralhe permitir garantir assistência profissional e reunir com o seu cliente,uma vez que as autoridades prisionais não lhe tinham permitidovisitá-lo a horas tardias na noite anterior”103. O pedido foi deferido eo advogado, consequentemente “só dispôs de quatro horas para pro-curar um assistente e comunicar com o autor, o que apenas pôde fazerde forma superficial”104. Isto, concluiu o Comité, foi “insuficiente parapreparar adequadamente a defesa num caso de pena de morte” e existiaainda “a indicação de que o facto afectou a possibilidade do advogadode determinar que testemunhas deviam ser convocadas”105. Conse-quentemente, tais factos constituíram uma violação do artigo 14.º, n.º3, alínea b) do Pacto106.

103 Comunicação n.º282/1988, L. Smith v.Jamaica (Parecer adoptadoa 31 de Março de 1993), indocumento das NaçõesUnidas A/48/40 (vol. II),p. 35, parágrafo 10.4.

104 Ibid., loc. cit.

105 Ibid.

106 Ibid.

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Em numerosos casos instaura-dos contra o Uruguai na décadade 70 e inícios da década de 80,esta disposição em particular foi violada, entre outras, e oscasos tinham em comum o factode os autores terem sido deti-dos e presos por suspeita deenvolvimento em activida-des subversivas ou terroristas, mantidos em regime de inco-municabilidade durante longosperíodos, sujeitos a tortura ououtros maus tratos e subsequen-temente julgados e condenadospor tribunais militares109. Oartigo 14.º, n.º 3, alínea b) foi também violado no caso Wight,instaurado contra Madagáscar,que foi “mantido em regime deincomunicabilidade sem acesso a advogado” por umperíodo de dez meses “enquanto as acusaçõespenais dirigidas contra si estavam a ser investiga-das e determinadas”110. Para além disso, no casoPeñarrieta et al., o Comité concluiu que o artigo14.º, n.º 3, alínea b) tinha sido violado uma vez queos autores não tiveram acesso a advogado “duranteos 44 primeiros dias de detenção”, isto é, enquantoforam mantidos em regime de incomunicabilidadeapós a captura111.

A detenção em regime de inco-municabilidade durante semanasou mesmo meses constitui umaviolação particularmente grave de vários direitoshumanos, entre os quais o direito à preparaçãoda defesa. Contudo, mesmo períodos curtos dedetenção em regime de incomunicabilidade podemter consequências graves sobre os direitos da pessoa detida, nomeadamente sobre o seu direitode defesa e, conforme declarado pelo Comité dosDireitos do Homem, deverão ser “também adop-tadas medidas contra a detenção em regime deincomunicabilidade”112.

Acesso a documentos: Relativamente ao acesso adocumentos pelo arguido e/ou seu advogado, oComité indicou que o artigo 14.º, n.º 3, alínea b)

“não prevê expressamente odireito da pessoa acusada a quelhe sejam fornecidas cópias detodos os documentos pertinen-tes de uma investigação penal, mas estabelece quea pessoa tem direito a dispor do tempo e das faci-lidades necessárias para a preparação da defesa e acomunicar com um advogado da sua escolha”. Numcaso o autor teve a possibilidade, durante quasedois meses antes da audiência de julgamento, deexaminar “os documentos pertinentes para o seucaso na esquadra de polícia”, “pessoalmente ouatravés do seu advogado”, mas optou por “não ofazer, solicitando que lhe fossem enviadas cópias detodos os documentos”. O artigo 14.º, n.º 3, alíneab) do Pacto não tinha, por conseguinte, sido vio-lado neste caso113.

Para além disso, de acordo coma jurisprudência do Comité, “odireito a um processo justo nãoimplica que o arguido que nãocompreenda a língua utilizadapelo Tribunal tenha o direito aque lhe seja fornecida a tra-dução de todos os documentos pertinentes de um inquéritopenal, desde que os documentos pertinentes sejampostos à disposição do seu advogado”114. Num casoem que um cidadão britânico julgado na Noruegafoi representado por um advogado norueguês dasua própria escolha, que teve acesso a todo o processo e contou ainda com a assistência de umintérprete nas suas reuniões com o autor, não houveviolação do direito a um processo justo consagradono artigo 14.º, n.º 2 nem do direito aos meios neces-sários à preparação da defesa previsto no artigo14.º, n.º 3, alínea b). Um factor adicional neste casofoi o facto de o advogado, se considerasse não tertido tempo suficiente para se familiarizar com oprocesso, ter a possibilidade de solicitar um adia-mento da audiência, o que não fez115.

* * *

O artigo 8.º, n.º 2, alínea c) da Convenção Ame-ricana sobre Direitos Humanos foi violado no casoCastillo Petruzzi et al. na medida em que “as con-

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109 Vide, por exemplo, aComunicação n.º R.13/56,L. Celiberti de Casariego v.Uruguay (Parecer adop-tado a 29 de Julho de1981), in documento dasNações Unidas GAOR,A/36/40, p. 188, parágrafo11; Comunicação n.º 43/79,A. D. Caldas v. Uruguay(Parecer adoptado a 21 deJulho de 1983), in docu-mento das Nações UnidasGAOR, A/38/40, p. 196,parágrafo 14; e Comunica-ção n.º R.17/70, M. CubasSimones v. Uruguay (Pare-cer adoptado a 1 de Abrilde 1982), in documentodas Nações UnidasGAOR, A/37/40, pp. 177-178, parágrafo 12.

110 Comunicação n.º115/1982, J. Wight v. Mada-gascar (Parecer adoptadoa 1 de Abril de 1985), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/40/40,p. 178, parágrafo 17.

111 Comunicação n.º176/1984, L. Peñarrieta etal. v. Bolivia (Parecer adop-tado a 2 de Novembro de1987), in documento dasNações Unidas GAOR, A/ 43/40, p. 207, parágrafo 16.

112 Comentário Geral n.º 20,sobre o artigo 7.º, Compi-lação de ComentáriosGerais das Nações Unidas,p. 140, parágrafo 11.

113 Comunicação n.º158/1983, O. F. v. Norway(decisão adoptada a 26 deOutubro de 1984), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/40/40,p. 211, parágrafo 5.5.

114 Comunicação n.º526/1993, M. and B. Hill v.Spain (Parecer adoptado a2 de Abril de 1997), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/52/40(vol. II), p. 18, parágrafo14.1; destaque nosso.

115 Comunicação n.º451/1991, B. S. Harvard v.Norway (Parecer adoptadoa 15 de Julho de 1994), indocumento das NaçõesUnidas GAOR, A/49/40(vol. II), p. 154, parágrafo 9.5.

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dições em que os advogados dedefesa tiveram de trabalhar eramglobalmente inadequadas parauma defesa conveniente, dado não terem tidoacesso ao processo até à véspera do dia em quefoi proferida a sentença em primeira instância”.No parecer do Tribunal Interamericano de DireitosHumanos, “a consequência foi que a presença eparticipação dos advogados de defesa consti-tuíram meras formalidades” e, por conseguinte,dificilmente se podia dizer que “as vítimas tive-ram meios de defesa adequados”116.

Um arguido deverá sempre dispor do tempo e dos meios

necessários à preparação da sua defesa, incluindo o acesso

efectivo aos documentos e outros elementos de prova essen-

ciais à defesa.

A detenção em regime de incomunicabilidade interfere no

direito à garantia de uma defesa eficaz e deverá ser proibida.

7. Observações Finais

Sem ser exaustivo, o presente capítulo descreveualguns dos direitos humanos fundamentais que

deverão ser garantidos no âmbito da investigaçãode actividades criminosas. Aqui se incluem umasérie de direitos essenciais à preservação, não apenas da integridade física e mental do suspeito,mas também do seu direito a beneficiar de umadefesa eficaz ao longo destes procedimentos preliminares e ulteriormente durante o própriojulgamento. Para que estes direitos se possamefectivamente realizar, todos os operadores judi-ciários, isto é, tanto os juízes como os magistradosdo Ministério Público e os advogados, têm umpapel fundamental a desempenhar. A polícia e asautoridades de acusação têm, nos termos do direitointernacional, o dever profissional de protegerestes direitos, assim como os juízes nacionais,que deverão estar constantemente alerta para qual-quer sinal de que direitos tão importantes comoo direito à proibição da tortura, o direito de acessoefectivo a um advogado, o direito de não ser obri-gado a testemunhar contra si próprio e o direitoà preparação de uma defesa eficaz, não foram respeitados. Acrescentem-se a estes os direitosessenciais à igualdade perante a lei e à presunçãode inocência e poder-se-á concluir que as normasinternacionais de direitos humanos constituemuma importante base para a criação de um sis-tema judicial assente no respeito do princípio doEstado de Direito e dos direitos individuais, como fim último de administrar a justiça de formajusta e eficaz.

198 *Direitos Humanos na Administração da Justiça • Série de Formação Profissional n.º 09

*

116 TIADH, Caso CastilloPetruzzi et al. c. Peru, sen-tença de 30 de Maio de1999, Série C, N.º 52, p. 202, parágrafo 141.