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DIPLOMACIA E DEFESA NOS BRICS: UMA BREVE ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA DE DEFESA NO BRASIL E NA RÚSSIA NO SÉCULO XXI (2001 2015) Pérsio Glória de Paula 1 RESUMO O presente artigo pretende realizar uma breve analise da relação entre os desenvolvimentos da política externa e da política de defesa no Brasil e na Rússia, nos primeiros quinze anos do século XXI. O objetivo é identificar similaridades e diferenças nos posicionamentos e nas motivações por trás delas, assim como a relação com a construção de um novo ordenamento internacional. Dentro desses parâmetros, será abordada a inserção internacional dos dois países e seus respectivos momentos históricos, objetivos e interesses. Serão abordas as políticas externas de ambos em suas perspectivas teóricas e históricas. O processo metodológico principal para o desenvolvimento do trabalho será a análise da bibliografia existente e a verificação historiográfica. Também serão utilizados marcos teóricos para a identificação de paradigmas na política externa e de diretrizes para a política de defesa, o que permitirá a elaboração de uma breve comparação entre a construção dos processos de diplomacia e de defesa nos dois atores selecionados. Palavras-chaves: Brasil; Rússia; Política Externa; Política de Defesa; Diplomacia e Defesa. 1 Pérsio Glória de Paula - Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança (PPGEST) do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

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DIPLOMACIA E DEFESA NOS BRICS: UMA BREVE ANÁLISE DA RELAÇÃO

ENTRE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA DE DEFESA NO BRASIL E NA

RÚSSIA NO SÉCULO XXI (2001 – 2015)

Pérsio Glória de Paula1

RESUMO

O presente artigo pretende realizar uma breve analise da relação entre os

desenvolvimentos da política externa e da política de defesa no Brasil e na Rússia, nos

primeiros quinze anos do século XXI. O objetivo é identificar similaridades e diferenças

nos posicionamentos e nas motivações por trás delas, assim como a relação com a

construção de um novo ordenamento internacional. Dentro desses parâmetros, será

abordada a inserção internacional dos dois países e seus respectivos momentos históricos,

objetivos e interesses. Serão abordas as políticas externas de ambos em suas perspectivas

teóricas e históricas. O processo metodológico principal para o desenvolvimento do

trabalho será a análise da bibliografia existente e a verificação historiográfica. Também

serão utilizados marcos teóricos para a identificação de paradigmas na política externa e

de diretrizes para a política de defesa, o que permitirá a elaboração de uma breve

comparação entre a construção dos processos de diplomacia e de defesa nos dois atores

selecionados.

Palavras-chaves: Brasil; Rússia; Política Externa; Política de Defesa;

Diplomacia e Defesa.

1 Pérsio Glória de Paula - Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança

(PPGEST) do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense. E-mail:

[email protected]

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DIPLOMACY AND DEFENSE IN THE BRICS: A BRIEF ANALYSIS OF THE

RELATIONSHIP BETWEEN FOREIGN POLICY AND DEFENSE POLICY IN

BRAZIL AND IN RUSSIA IN THE 21ST CENTURY (2001 - 2015)

Pérsio Glória de Paula

ABSTRACT

This article intends to make a brief analysis of the relationship between foreign policy

and defense policy developments in Brazil and Russia in the first fifteen years of the 21st

century. The objective is to identify similarities and differences in the positions and

motivations behind them, as well as their relationship with the construction of a new

international order. Within these parameters, the international insertion of the two

countries and their respective historical moments, objectives and interests will be studied.

For this, it will be addressed the external policies of both countries in their theoretical and

historical perspectives. The main methodological process for the development of this

work will be the analysis of the existing bibliography and the historiographic verification.

It will use theoretical frameworks for the identification of paradigms in foreign policy

and guidelines for defense policy, which will allow the development of a brief comparison

between the construction of the diplomacy and defense processes in the two selected

actors.

Keywords: Brazil; Russia; Foreign Policy; Defense Policy; Diplomacy and Defense.

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1

Introdução

As relações internacionais são elemento fundamental da prática política dos

Estados modernos. Elas se inserem e abrangem a interseção entre a High Politics e a Low

Politics, e entre o Hard Power e o Soft Power, já que somam questões relevantes à áreas

como a defesa nacional e como o comércio exterior. Nesse sentido, a política externa tem

um papel fundamental, não só na manutenção das relações com outros Estados, mas

também na articulação de seus interesses econômicos, que estão cada vez mais

internacionalizados devido à globalização, e de suas necessidades estratégicas. A política

externa serve como ferramenta para os interesses nacionais dos Estados e se torna

indissociável de uma política de defesa, que também é uma necessidade resultante das

relações entre Estados, que nem sempre são pacíficas.

Com essa concepção, aqui será elaborada uma breve análise comparativa da

evolução associada da política externa e de defesa no Brasil e na Rússia. O objetivo é

expor algumas diferenças e similaridades que servirão de referencial para o entendimento

da estratégia dos dois países no cenário internacional contemporâneo. Também serão

expostas as vantagens e vulnerabilidades das escolhas feitas e dos meios utilizados pelos

dois países, além da razão pela qual certas decisões foram tomadas.

O trabalho consistirá de três etapas, desconsiderando a introdução e a conclusão.

A primeira etapa é o contexto histórico, que é a perspectiva sistêmica da década de 90 e

como ela influenciou o policy making dos países abordados. A segunda é relativa a

política externa e de defesa brasileira no século XXI, onde serão analisadas questões

como a cooperação sul-sul, a expansão de parcerias internacionais de geometria variável.

Nesse cenário será apresentado o descompasso da diplomacia com a defesa, já que houve

uma expansão na atuação diplomática civil que não foi acompanhada pelas parcerias e

cooperações na área de defesa, caracterizando o que Maria Regina de Lima (2010, p. 415)

classifica como um possível overstrecht do soft power brasileiro. A terceira etapa será

analise da política externa e de defesa da Rússia, abordando brevemente os momentos de

cooperação e crise com o ocidente, e como ela se utilizou de um alinhamento pragmático

e reversível nessa década para garantir o seu ressurgimento e soberania.

O processo metodológico principal deste trabalho será a análise da bibliografia

existente acerca da política externa e geopolítica dos dois países para realizar, então, uma

breve historiografia comparativa e analítica dos pontos de semelhança e diferenças, já que

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o aprofundamento e os pormenores de todos os detalhes não só desvirtuariam o propósito

do trabalho, mas também demandariam uma extensão muito maior em tópicos variados.

O principal ponto de referência será a junção das estratégias de inserção adotadas e o tipo

de postura e relação adotado para com os Estados Unidos, entendido nessa obra como

centro do polo de poder atlântico e principal ator, em termos de poder absoluto, no atual

ordenamento global.

O Sistema Internacional e o Fim da História

O sistema internacional, em menos de 30 anos após o fim da bipolaridade, já

apresenta sinais de que se aproxima de uma nova fase transição. O crescimento de atores

fora do círculo de poder atlântico, como os países emergentes na Eurásia, e a expansão

de novas redes e projetos de resistência ou alternatividade ao atual ordenamento, como a

União Econômica Eurasiana2 e o Belt and Road Initiative3, demonstram não só a

incapacidade da manutenção do protagonismo ocidental, mas também a insatisfação com

a homogeneização do domínio atlântico.

O Fim da História4, como apontado e celebrado por parte da elite política e

intelectual do ocidente, sobre uma suposta vitória teleológica da ideologia ocidental,

pautada no pensamento liberal e na prática democrática, sobre todas as demais, ainda não

se concretizou. Apesar de construída a crença de que os modelos ocidentais de convívio

político, com a democracia liberal, de relacionamento econômico, com a economia de

livre-mercado, de cultura de massas e de sociedades de consumo seriam naturalmente

aceitos, ainda existem resistências políticas e econômicas que demandam maior

participação, representatividade e autonomia.

A ideia de que haveria uma homogeneização mundial dos moldes ocidentais com

o fim da Guerra Fria foi bastante vívida na década passada e, de fato, ocasionou mudanças

em diversos países do globo. Essa perspectiva foi amplamente utilizada como palanque

político por partidos e movimentos ao redor do mundo, durante a década de 90, apoiados

nas indicações do Consenso de Washington.

As mudanças, no entanto, não foram só em âmbito político-econômico interno,

a política externa também foi amplamente afetada, assim como as diretrizes da defesa. É

2 A União Eurasiana é uma iniciativa de cooperação e integração regional promovida pela Rússia que conta hoje com cinco membros. 3 A Belt and Road Initiative (BRI) é uma estratégia de desenvolvimento proposta pelo governo chinês que enfoca a conectividade e cooperação entre os países da Eurásia através de rotas terrestres diretas para o transporte de mercadorias que permitirão a China

assumir um papel maior nos assuntos globais com uma rede comercial centrada na sua capacidade produção. 4 Como apresentado por Francis Fukuyama em O Fim da História e o Último Homem (1992).

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nesse contexto histórico que estão inseridos Brasil e Rússia. Dois Estados que, hoje,

ocupam lugares de destaque nos indicadores mundiais. Brasil e Rússia são,

respectivamente, a 9ª e a 12ª maiores economias5 do mundo em termos de Produto Interno

Bruto (PIB); possuem a 5ª e a 1ª maiores extensões territoriais6 do mundo e; a 6ª e 9ª

maiores populações7 do mundo.

Além disso, esses países são membros fundadores dos BRICS, acrônimo para o

grupo de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O

grupo, inicialmente BRIC, foi visionado pelo economista chefe do grupo financeiro

Goldman Sachs, Jim O’neill (2001, p. 4), em seu relatório sobre futuro da economia

global e seus principais atores. A ascensão desses novos atores, os ditos países

emergentes, no cenário internacional é para muitos o prenúncio do fim da primazia do

poder unipolar do Atlântico Norte, que, para alguns autores, teve seu ápice nos anos 90,

um período de reajuste dos ordenamentos globais. Ambos os países, Brasil e Rússia,

passaram por processos de transformação na década de 90, resultantes do colapso do

bloco oriental, que remodelou as relações econômicas, estratégicas e políticas no meio

internacional.

Desde o fim da União Soviética até a virada do milênio, a Rússia sofreu um

severo processo de sucateamento das instituições civis e militares, e uma forte

desestruturação das bases econômicas, resultado das diversas crises nos mercados

financeiros russos e mundiais somadas a transição do modelo de economia planificada

para o modelo de mercado (SEGRILLO, 2016, p. 354). A junção da desestabilização

política, fragmentação territorial e colapso econômico não só fez com que a Rússia

perdesse o status de Superpotência, passando a ser considerada um mero ator regional,

um duro golpe no prestigio internacional russo, mas também gerou uma paralisia na

capacidade de resposta da política externa russa, impedindo-a de tomar de posições mais

assertivas nas crises internacionais da década de 90, como a desintegração da Iugoslávia.

Apesar de aderir e cooperar com as agendas ocidentais e liberais, tanto em

âmbito econômico, quanto político, os interesses nacionais russos não foram atendidos

pelos novos parceiros ocidentais, e pior, mais e mais concessões eram demandadas para

se obter algum auxílio econômico contra a persistente crise russa (CONRADI, 2017,

5 Segundo dados do Banco Mundial referentes ao ano de 2016 para o valor de PIB nominal em dólares americanos. Disponível em http://databank.worldbank.org/data/download/GDP.pdf 6 Segundo dados do IBGE, desconsiderando a anexação da Criméia. Disponível em https://7a12.ibge.gov.br/vamos-conhecer-o-brasil/nosso-territorio/brasil-no-mundo.html 7 Segundo dados do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas para 2017, desconsiderando a Criméia.

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p.83). A era Yeltsin da década de 90 é marcada, então, por negociações assimétricas com

o ocidente, congelamento, ou imobilização, da política externa e desmantelamento da

antiga esfera soviética, sepultando de vez a imagem de superpotência.

Em parte, esse processo de imobilização deve-se muito também à Guerra na

Chechênia, que se mostrou como o ápice da instabilidade política nos Oblasts e nas

repúblicas integrantes da Federação Russa. Nesse período, a capacidade de enfrentar o

avanço da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e de outras organizações

e instituições internacionais no Leste Europeu e na antiga zona de influência e territorial

soviética, se tornara uma tarefa hercúlea e que se arrastaria por todo início do século XXI

(DUGIN, 2015, p. 136).

Por essa breve “hegemonia” estadunidense e pela disseminação da “ideologia do

Fim da História”, houve um forte movimento, tanto na Rússia, quanto nos países que

ainda não haviam abraçado os paradigmas liberais, para implementação de políticas que

permitissem a abertura econômica ao capital, produtos e empresas estrangeiras. Assim

como no Brasil, na Rússia foi construída a ideia de que a abertura econômica significava

a entrada no sistema internacional e era necessária para se criar credibilidade e respeito

frente aos países ocidentais, denominado por Cervo (2007) como a normalização do

Estado. Ou aceitava-se a globalização nos moldes ocidentais, ou não haveria globalização

alguma. Houve então a “liberalização à força”, que culminou na crise da moratória russa

em 1998. Ao longo da década, as bases econômicas no país não suportaram a saída brusca

e imediata do modelo planificado, muito menos a concorrência internacional, o que

impossibilitou que o país adquirisse liquidez para saldar as dívidas no prazo estipulado,

dívidas que, em grande parte, foram adquiridas justamente para promover o processo

liberalização.

Apesar dos ideais liberais ainda serem endossados pelas instituições

internacionais e países ocidentais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os

Estados Unidos (EUA), seus defensores na Rússia perderam a força do momento, o que

permitiu a ascensão de Vladimir Putin, então o primeiro-ministro recém apontado,

desconhecido do grande público, que assumiu quando Yeltsin renunciou à presidência

(CONRADI, 2017, p.117).

Após ganhar as eleições em março de 2000, Putin iniciou a introdução de um

modelo econômico-administrativo mais pragmático e voltado para a reestruturação da

soberania russa, o que alinhou a política externa com os interesses nacionais. Nessa

perspectiva, evitando o conflito direto, os novos paradigmas estratégicos russos

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permitiram um ressurgimento gradual, intercalando momentos de cooperação e

momentos de tensão com o ocidente, possibilitando que a Rússia se fortalecer, até que

pudesse reafirmar seus interesses nacionais, mesmo contra a potência unipolar.

A década de 90 no Brasil também foi turbulenta. A economia era a pauta

principal, o país ainda sofria com os efeitos das elevadas taxas de inflação herdadas da

década anterior e com uma substancial diminuição nos postos de trabalho, um dos efeitos

colaterais da abertura econômica que provocou a falência de diversas empresas que não

se adaptaram à concorrência internacional. Essas condições, associadas a entrada dos

grupos com raízes neoliberais no poder, fomentaram transformações consideráveis à

política externa, que se adaptou para garantir os objetivos econômicos do país e se ajustar

ao novo ordenamento mundial. Esse ajustamento teve como princípio a autonomia pela

participação, rompendo com o distanciamento em relação ao centro do sistema

internacional realizado durante o período militar (LAMPREIA, 1999, p 90.).

Esse novo paradigma possuía três pilares centrais de atuação: A integração

regional, que era considerada um “destino” no Brasil, especialmente em âmbito do

Mercosul, até então o segundo maior mercado e maior importador de bens

industrializados brasileiros; O multilateralismo, já que o país não possuía excedentes de

poder, era necessário assegurar a legitimidade dos pleitos e coerência das ações através

da concertação multilateral , que tinham custos de transação reduzidos e eram uma fonte

de legitimidade; e por último, a renovação de credenciais, que era a mudança para uma

postura cooperativa frente aos regimes internacionais, visando melhorar a imagem e

credibilidade do país que era considerado violador de direitos humanos, campeão de

desflorestamento e possível fabricante de armas nucleares. Esses pilares também

sustentaram os novos paradigmas econômicos, que necessitavam de amplo apoio

internacional, seja para garantir a entrada de investimentos estrangeiros ou para garantir

a inserção das “campeãs nacionais” no mercado internacional, implementadas durante o

governo FHC, na lógica de autonomia pela integração (VIGEVANI, 2003, p. 39).

No entanto, autores mais críticos, como Amado Cervo (2007, p. 82), expõem o

caráter subserviente da política externa do período, ao realizar um alinhamento ideológico

com o dito Consenso de Washington. Essa crítica se embasaria no abandono de programas

e setores estratégicos em prol da aproximação com os Estados Unidos e com o Ocidente

para a obtenção de ganhos econômicos. Essa política teria um caráter destrutivo, onde se

destruiria as estruturas históricas da economia, transferindo, assim, sua responsabilidade

e renda para o exterior, tendo o processo como exemplo a atuação do BNDES, que estava

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à frente do processo de privatização e oferecia financiamentos preferencialmente a

empresas estrangeiras (SILVA, 2016, p. 6).

Outro ponto seria a característica regressiva, que, entre os exemplos, estaria a

adesão e ratificação do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), pois essa teria sido

pouco valorizado pelas autoridades brasileiras e colocava o Brasil em uma situação

estratégica precária frente às potências nucleares. Esse período da política externa ganhou

o apelido pejorativo de “Diplomacia dos pés descalços”8.

Apesar da coerência das críticas, é preciso levar em consideração que muitos

avanços foram obtidos com o auxílio da política externa, em especial na esfera

econômica, reflexo do novo enfoque monetarista da administração pública brasileira,

como a estabilização da moeda e expansão dos segmentos beneficiados pelos programas

das “Campeãs Nacionais”, como apontado pelo próprio Cervo (2007, p 81):

Os impactos do Estado normal sobre a formação nacional são percebidos de

três maneiras, uma positiva e duas negativas. O choque da abertura despertou

empresários brasileiros do setor público e privado, acomodados que andava ao

abrigo de um protecionismo exacerbado a que havia conduzido o paradigma

anterior. O mercado interno, amplo e reservado, lhes bastava antes. Com a

abertura, para fazer face à inundação de produtos estrangeiros, foram forçados

a modernizar suas plantas e métodos. A resposta foi positiva, e, desse modo, o

choque da abertura contribuiu para elevar a produtividade sistêmica da

economia brasileira [...]. (CERVO, 2007, p. 81).

Dessa forma, assim como no caso da Rússia, é notável uma assimetria entre o

que era demandado e o que era oferecido nas negociações com o centro do sistema

unipolar. Com a troca de governo, na posse de Lula da Silva, em 2003, a política externa

brasileira mudaria, e, assim como as prioridades político-econômicas, o tipo de inserção

internacional também.

É nessa principal similaridade, a assimetria de forças em relação ao principal

polo de poder, que estão inseridas as entradas do Brasil e da Rússia no século XXI. Apesar

da miríade de fatores que fomentam a transição de governos e regimes, outro ponto de

junção é a mudança de paradigmas no começo do milênio. A transição do governo Lula

para uma autonomia pela diversificação (VIGEVANI, 2007, p. 283) em detrimento da

autonomia pela participação, e do governo Putin que deixou de lado o alinhamento

incondicional e, em um primeiro momento, adotou um pragmático ocidentalismo

moderado (DONALDSON et al, 2014, p. 363).

8 O termo foi cunhado devido ao episódio em que o chanceler brasileiro, Celso Laffer, teve que retirar os sapatos para inspeção, ao

chegar em um aeroporto nos Estados Unidos, devido ao acirramento da Guerra ao Terror

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É também nessa transição que os rumos das duas nações convergem para tirar

do papel a ideia de um bloco de emergentes, que teria maior capacidade de fixar seus

pleitos por transformações no sistema internacional. Esse bloco já era visionado desde

1996, segundo Amorim (2011), pelo ministro das relações exteriores russo, mas só tomou

forma após a virada do milênio com o acrônimo BRIC e a articulação oficial dos BRICS,

com a adesão da África do Sul em 2011 (AMORIM, 2011).

O Brasil no século XXI: Descompasso entre diplomacia e defesa?

A política externa brasileira no século XXI fica marcada por uma mudança

paradigmática, reflexo na mudança do papel estatal, que deixava de ser o Estado Normal

neoliberal e passava para o paradigma do Estado Logístico, mudando os rumos da

diplomacia brasileira, como apresentado por Cervo (2007, p. 66):

Existe, por outro, o efeito operacional. O paradigma inclui determinado modo

de proceder, no caso, de fazer política exterior ou de controlar as relações

internacionais. A análise paradigmática há de colher as determinações internas

e os condicionamentos externos, os fins da política, o peso da ideia de nação a

construir e da cosmovisão. Tomado como referencial, como se fosse uma

espécie de tabela de indicadores, o paradigma vigente permite avaliar o

desempenho dos dirigentes e da sociedade organizada. (CERVO, 2007, p. 66).

O efeito desse paradigma na política externa não foi um enfrentamento brusco

com o centro do sistema, o qual o Brasil ainda era dependente, mas sim com a busca por

novos parceiros na periferia, tais como Índia e China, assim como a oposição à Área de

Livre Comércio das Américas (ALCA), que seria um processo irreversível de

dependência para a economia e sociedade brasileira (SILVA, 2016, p. 7).

Dessa forma, a busca pela autonomia se dá pela diversificação de parceiros e

oportunidades, ainda que a participação nos regimes não tenha sido deixada de lado, o

enfoque da política externa foi a redução da dependência e vulnerabilidade em relação ao

centro do sistema capitalista. A cooperação Sul-Sul entrou na agenda externa brasileira

como principal elemento de redução da assimetria com o Norte, gerando uma ampliação

nas relações diplomáticas e comerciais com países da África e da Ásia, em especial,

África do Sul e Índia, com o IBAS, e a China, que aumentava exponencialmente suas

importações e exportações do Brasil. (VIGEVANI, 2007, p. 282)

Somada a essa aproximação com o Sul global, a política externa também

resgatou os princípios do desenvolvimento, através da não indiferença, e ampliou os

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aspectos da integração regional. A integração regional, que no governo anterior era

estritamente econômica, ganha outras vertentes. Enfatizam-se as dimensões físicas,

sociais, produtivas e políticas. O Mercosul adquiriu um escopo político social antes

inexistente, assim como foram lançadas as bases para a criação da União das Nações Sul-

Americanas (UNASUL), fundada em 2008, um marco para a integração e cooperação

política no continente (SILVA, 2016, passim).

O país passa a adotar um multilateralismo da reciprocidade, em detrimento do

multilateralismo utópico, entre países centrais e emergentes. Cervo (2007, passim) aponta

o enfrentamento das dependências estruturais, em especial a financeira, a empresarial e a

tecnológica, visando fim de atenuá-las, como um dos objetivos de inserção do país em

âmbito de cooperação Sul-Sul.

Foi dentro dessa iniciativa que o Brasil participou de um dito revisionismo soft

das instituições internacionais, com o questionamento de tratados do regime internacional

e o pleito pela ampliação do Conselho de Segurança da ONU, assim como um leve

desalinhamento com as posturas dos Estados unidos, mas não à ponto de afetar as relações

entre os dois países (LIMA, 2010, p. 409). Um exemplo desse desalinhamento foi a

interferência bem-sucedida do Brasil, em conjunto com a Turquia, no Acordo Nuclear

com o Irã, evitando novas sanções aprofundamento das tensões (LIMA, 2010, p. 410).

Havia também a ideia de que reforçar a América do Sul como o polo de poder e

plataforma político-econômica de realização dos interesses brasileiros (CERVO, 2007,

passim). A América do Sul seria o pilar de sustentação de um polo geopolítico e regional,

que, associado ao multilateralismo da reciprocidade, se tornaria uma das bases para uma

multipolaridade benigna

Esse novo arranjo permitiu ao Brasil a intensificação das relações com parceiros

chaves. A convergência de interesses em processos semelhantes permitiu a reunião e a

concertação de outras potências emergentes e regionais para a formação de novos grupos

de diálogos. O mais notório é o BRICS, formulado em cima da visão de O’Neill (2001,

passim), que criou um ponto em comum a todos os singulares membros, a situação de

emergente. Naturalmente, por iniciativa destacada de Brasil e Rússia, que possuíam o

interesse em comum de reduzir as assimetrias em relação ao centro de poder ocidental, o

BRICS, não só tomou corpo, como tomou vida.

Hoje, a iniciativa financia projetos de infraestrutura, educação e modernização

produtiva nos países membros e em seus parceiros, servindo como uma espécie de

contraproposta ao ordenamento assimétrico e à globalização unipolar. Essa trajetória foi

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mantida durante o governo Dilma, apesar de uma visível diminuição da atuação brasileira

no cenário internacional, especialmente após o caso Snowden, em 2013, que já apontava

as vulnerabilidades defensivas do país, assim como a insatisfação e atuação dos Estados

Unidos contra a formação e fortalecimento do bloco de emergentes.

Contudo, se a política externa apresentou mudanças vigorosas e positivas,

devido aos novos paradigmas e à ampla capacidade do Soft Power brasileiro, a política

de defesa não usufruiu de policy shifts parecidos. Apesar do novo engajamento em

missões de paz, da institucionalização de um Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS),

na UNASUL, e da expansão na diversificação de parceiros para aquisição de

equipamentos militares, não se pode falar que houve uma busca ativa por uma autonomia

pela diversificação na política de defesa, como houve na política externa, apenas uma

expansão de meios. Essa situação de estagnação nos princípios atuantes da política de

defesa se dá em razão de diversos fatores, alguns dos quais são elucidados pela baixa

articulação entre o meio militar e as diretrizes diplomáticas, pela inserção histórica do

Brasil na esfera de defesa e segurança hemisférica estadunidense e pelo ainda baixo

interesse da sociedade civil nos assuntos de defesa. (LIMA, 2010, p. 414).

Em uma aproximação mais realista do cenário internacional, a dissociação das

políticas externas e de defesa pode ter graves efeitos na inserção externa do país, uma vez

que seria virtualmente impossível manter os ganhos do soft power sem uma sólida e

coerente base de hard power. Ou seja, o desalinhamento entre política externa e defesa

pode ter efeitos nocivos nos interesses e objetivos nacionais à longo prazo. O Brasil

estaria especialmente vulnerável à essa situação, já que a política de defesa não

acompanhou os ganhos na política externa, mesmo com as expansões dos meios, boa

parte das doutrinas, das perspectivas e dos cenários visionados nas Forças Armadas ainda

sofrem de grande influência e dependência dos equipamentos ocidentais, das doutrinas

da OTAN e da ideologia de defesa hemisférica.

Tais fatores caracterizam limitações na atuação da diplomacia de defesa, que fica

subordinada e restringida em sua atuação dentro do escopo aceito pelas diretrizes

ocidentais, o que acaba por ampliar a assimetria do país em relação aos países do centro

de poder unipolar, em descompasso com a política externa que visa, justamente, reduzir

tal assimetria. Maria Regina (2010, p. 415) alerta que tal situação gera a possibilidade de

retrocessos, já que o encapsulamento da política de defesa limitaria a política externa,

gerando um overstrecht do soft power, que não seria suficiente, por si só, para manter os

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avanços do aumento da influência brasileira no globo sem um aparato de hard power em

consonância. (LIMA, 2010, p. 415).

Esse processo de retrocesso já é visível com a diminuição da atuação brasileira

no cenário internacional. Uma tendência iniciada no segundo governo de Dilma Rousseff

e intensificada com a mudança brusca de governo em 2016 que abalou o funcionamento

institucional brasileiro.

Apesar de ainda não haver indicações claras de movimentação em relação a uma

mudança ou continuidade de paradigmas, há uma visível redução da atividade brasileira

no cenário internacional que coloca em risco o status e influência obtido nos anos

anteriores, pois a não-formulação de uma política externa implica em uma dupla

orfandade na inserção internacional, já que também não há embasamento para sustentar

essa inserção na política de defesa.

A Rússia no Século XXI: Fim da hibernação?

A posse de Putin como presidente interino no dia primeiro de janeiro de 2000

chocou não só os russos, mas também o mundo. A renúncia de Yeltsin não era uma ação

prevista, nem imaginada. O então presidente dos EUA, Bill Clinton, só foi informado

alguns dias antes do anúncio televisivo em que anunciava Putin como seu sucessor.

Yeltsin havia assegurado as autoridades americanas que Putin seria uma renovação

benéfica e necessária na conjuntura política do país e que também estaria compromissado

com o desenvolvimento da democracia e continuidade das reformas (CONRADI, 2017,

p. 110).

No entanto, para os Estados Unidos, Putin era uma figura misteriosa, não havia

informações sobre seu passado, além de que era um antigo oficial da KGB que ascendeu

rapidamente na carreira política. Começara em um cargo na prefeitura de São Petersburgo

e logo se tornou diretor da FSB, órgão de inteligência que sucedeu a KGB. Pouco depois,

foi apontado como primeiro-ministro, em 1998, pelo então presidente, Boris Yeltsin, que

já havia substituído os ocupantes desse cargo cinco vezes em menos de um ano

(CONRADI, 2017, p. 113).

Quando Putin assumiu a posição de Primeiro Ministro, em 1998, era um total

desconhecido do público russo e da comunidade internacional. Fato que mudaria com a

renovação do conflito na Chechênia, ainda 1998, onde Putin tomou proeminência pelo

manejo das questões segurança e integridade territorial, a oportunidade perfeita para se

destacar no cenário político. A resolução do conflito na Chechênia fez sua popularidade

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disparar, o que garantiu sua vitória nas eleições de março de 2000 (CONRADI, 2017, p.

114). O plano de Yeltsin de implantar um sucessor foi exitoso e, em primeira instância,

sua promessa aos Estados Unidos, de que ele continuaria com as posturas de reformas e

“normalização” de seu governo, também pareciam ser verdadeiras.

Analisar a política externa russa durante a Era Putin é também analisar as suas

necessidades internas e principalmente a relação com o ocidente, o principal vetor de

mudanças, influências e chamariz econômico na política russa da década de 90 e também

principal ameaça na percepção geopolítica russa. Por essa razão, a relação com o ocidente

é conturbada, já que há a alternância entre momentos de cooperação em situações de win-

win e posturas mais rígidas, quando existe a ameaça aos interesses e à soberania nacional

russa. Por isso, pode-se dizer que a postura da política externa russa no período é

pragmática, e aqui podemos dividi-la em quatro etapas, que serão brevemente explicadas,

em conjunto com a respectiva política de defesa e relação com o ocidente.

As quatro etapas são: O alinhamento pragmático, durante o período de Guerra

ao Terror; O afastamento, com as tensões geradas pelo alargamento da OTAN e União

Europeia; O reset e a sobrecarga, no período Obama-Medvedev, e; A postura desafiante

com a intervenção na Ucrânia. Com essa divisão também poderão ser abordas as questões

das políticas de defesa russa, que tem forte influência e consonância sobre a política

externa, como veremos adiante.

A primeira etapa, aqui chamada de alinhamento pragmático, ficou marcada pela

convergência de interesses sistêmicos e situacionais russos e estadunidenses nos campos

da defesa e segurança. Nos interesses sistêmicos, ambos os países tinham interesse na

expansão do regime de não-proliferação nuclear, assim como no controle de misseis

balísticos. As iniciativas de Putin nesses seguimentos resultaram na aproximação com os

Estados Unidos e geraram confiança no ocidente, de onde a Rússia necessitava de aporte

financeiro (DONALDSON et al, 2014, p. 365).

Em âmbito situacional, a Guerra ao Terror, começada após os atentados de 11

de setembro de 2001, funcionou como um imã para os dois países. Os Estados Unidos,

que buscava apoio para combater o terrorismo global e realizar a intervenção no

Afeganistão, pode contar com o auxílio russo que, além de se alinhar com os

posicionamentos americanos no Conselho de Segurança, facilitou a obtenção de uma base

na Ásia Central, essencial para as atividades militares no Afeganistão, assim como rotas

logísticas e de suprimentos para as tropas americanas através de seu território. (ZHEBIT,

2003, p. 161)

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Em troca, os russos receberam auxílio financeiro e o mais importante,

legitimidade para a continuação do conflito na Chechênia, que sofria críticas do ocidente

por violações dos Direitos Humanos. A guerra, que já estava em favor da Rússia, entrou

no rol das ações antiterroristas. (DONALDSON et al, 2014, p. 370). As operações na

Chechênia, no entanto, só foram oficialmente terminadas em 2009, com a rendição dos

grupos jihadistas. Essa convergência mostra também a relação intrínseca da política

externa com a política de defesa, que à época tinha como principal objetivo o

apaziguamento das províncias rebeldes no Cáucaso.

No entanto, o estabelecimento desses canais de cooperação era limitado aos

assuntos de interesse mútuo e, quando necessário, os Estados Unidos e seus aliados

ocidentais não hesitavam em agir unilateralmente, como foi o caso de 2003 na invasão do

Iraque e a contínua expansão da União Europeia e OTAN no espaço pós-soviético. (Dugin

2015, p.75)

Com a erosão do alinhamento, que agora ameaçava as necessidades estratégicas

e de segurança da Rússia, a política externa sofre uma mudança em razão das

necessidades da defesa. A segunda etapa, que começa com a invasão do Iraque pelos

Estados Unidos, em 2003, entendida como uma ação unilateral, já que foi vetada pelo

Conselho de Segurança. Apesar disso, essa etapa teve seus principais fatores de

afastamento relacionados com a expansão da OTAN e da União Europeia, com o apoio

ocidental às revoluções coloridas nas antigas repúblicas soviéticas, e, em especial, com a

proposta americana de construir uma rede de escudos antimísseis na Polônia

(DONALDSON & NOGEE & NADKARNI, 2014, p. 381).

É nesse período, que se estende até 2008, que a Rússia busca ativamente a

diversificação de parcerias para contrapor uma crescente atuação unilateral americana,

assim como, há a quebra no alinhamento e paralisia da política externa orientada pelos

ocidentalistas na Rússia. O resultado é o aprofundamento de relações com países da Ásia

e América do Sul, em especial a China, a Índia e o Brasil, sendo comparável ao

pensamento brasileiro de autonomia pela diversificação. Foi por essa mudança de

posicionamento que a Rússia, junto ao Brasil, tomou a iniciativa para propor as

negociações entre os países emergentes que futuramente formariam os BRICS

(AMORIM, 2011). A diversificação representava para Rússia, não só uma redução da

dependência em relação ao ocidente, mas também uma forma de se obter apoio para frear

futuras investidas unilaterais estadunidenses que ameaçassem os interesses estratégicos

russos.

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A terceira etapa é marcada por um reajustamento das relações entre Estados

Unidos e Rússia, assim como aprofundamento da diversificação. Com a posse de

Medvedev em 2008, havia a expectativa de retomada da ocidentalização da política

externa, por conta das fortes conexões do novo presidente com grupos econômicos

ligados ao ocidente. As tensões com a Guerra da Geórgia, que estourou apenas 8 meses

após a posse de Medvedev, pareciam indicar o contrário. A guerra, que durou somente

cinco dias, foi a primeira demonstração de força fora do território russo desde o fim da

União Soviética, provava que a política de defesa russa estava sendo levada à sério, e que

o espaço pós-soviético era uma necessidade estratégica que valia o custo de uma

intervenção militar. Uma linha na areia que servia de aviso ao avanço ocidental. A

intervenção, no entanto, teve efeitos negativos nas relações com ocidente, o que gerou o

antagonismo do governo Bush e congelou o aprofundamento das parcerias com a União

Europeia (DONALDSON & NOGEE & NADKARNI, 2014, p. 397).

Apesar da estabilização econômica no período anterior, ainda existia um forte

interesse de admissão na Organização Mundial do Comércio por parte de segmentos da

economia russa, assim como havia uma dependência macroeconômica nos mercados

europeus, principais importadores de produtos russos. É nesse âmbito que acontece o

reset, com a posse de Obama, em 2009, nos Estados Unidos. Mais uma vez, a

convergência de interesses permitiu a aproximação dos dois países.

Essa política ficou marcada como o Reset, pois o ministro das Relações

Exteriores russo, Sergei Lavrov foi presenteado, pela então secretária de

Estado, Hillary Clinton, com um botão escrito Reset, para que ele apertasse,

simbolizando um reinicio nas relações russo-americanas contemporâneas. Um

fato curioso, é que a tradução em russo no botão, na verdade, significava

sobrecarregar, o que gerou um certo desconforto com o ministro russo que

prontamente apontou o erro (PAULA, 2016, p. 60)

O Reset foi recebido, inicialmente, com desconfiança pelo governo russo e com

falta de apoio pelo senado americano. Basicamente, ainda se propagava a imagem da

Rússia como uma ameaça à ordem hegemônica, agressora e expansionista dentro dos

círculos midiáticos ocidentais. Contudo, uma nova Guerra Fria não soava de forma

interessante, nem para os Estados Unidos e nem para a Rússia, naquele momento. A crise

internacional e interna, somada as custosas operações no Afeganistão e no Iraque,

dissuadiram a administração Obama de perseguir políticas que desencadeassem uma nova

corrida armamentista e, consequentemente, mais gastos militares e erosão do apoio

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político dos aliados europeus, que já não viam com bons olhos as políticas bélicas do

governo anterior. (DONALDSON & NOGEE & NADKARNI, 2014, p. 399)

Para a Rússia, a confrontação com o ocidente significaria uma possível

desestabilização macroeconômica interna, podendo resultar em uma grave crise, já que

ainda dependia da exportação dos recursos energéticos para manter seu crescimento e

modernização. Assim, a Rússia dependia do ocidente para efetuar a modernização de sua

economia e consequentemente de suas capacidades tecnológicas (DONALDSON &

NOGEE & NADKARNI, 2014, p. 400).

A última etapa do período analisado é referente ao retorno das tensões entre a

Rússia e o ocidente e também ao aprofundamento das relações com a China e os parceiros

asiáticos. Na política de defesa, vemos o aumento exponencial das atividades russas, com

as intervenções na Ucrânia e na Síria marcando o fim das limitações de atuação impostas

pela subordinação à assimetria com o ocidente. Essa etapa pode ser chamada de

enfrentamento, pois a Rússia busca ativamente seus interesses estratégicos, abandonando

as limitações regionais e atuando simultaneamente em diferentes partes do globo, como

no Leste Europeu e no Oriente Médio.

O desenvolvimento dessa situação se dá, mais uma vez, pelo antagonismo entre

os interesses estratégicos russos e os avanços ocidentais. Novamente, as necessidades

geoestratégicas se sobressaem frente a perspectiva diplomático-econômica, já que há uma

nova ameaça à estabilidade geopolítica russa, dessa vez contra antigos aliados no Oriente

Médio, com a Primavera Árabe na Líbia e na Síria, e contra uma zona de influência

histórica russa, a Ucrânia.

A deterioração das relações começa na Líbia. Apesar da aprovação russa à

resolução que permitia a intervenção na Líbia, por parte da OTAN, para proteção

humanitária, a atuação direta da OTAN contra Gaddafi e apoio aos rebeldes foram ações

consideradas ilegais e traiçoeiras pelos russos. Esse acontecimento, somado à uma série

de descontentamentos russos, em especial, os relativos às tentativas de aproximação com

a Europa, culminaram em uma postura mais assertiva quando a primavera árabe chegou

na Síria, vetando propostas similares as elaboradas para a Líbia no Conselho de

Segurança. Medvedev, que conseguiu seu principal objetivo, a adesão à OMC, abdicou

de concorrer à uma reeleição em favor de Putin, que mais uma vez, atuava para impedir

o avanço ocidental no campo geoestratégico (DUGIN, 2015, passim).

A assertividade russa chegou ao seu ápice durante o golpe na Ucrânia, que depôs

o presidente Yanukovytch, semanas antes de assinar a entrada do país à União Eurasiana,

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uma das principais inciativas regionais da Rússia. Em seu lugar, assumia um governo

provisório formado por políticos ligados as oligarquias econômicas que desejavam a

adesão à União Europeia. A entrada da Ucrânia na União Europeia era um fator

problemático para Rússia, já que existe um alto grau de integração entre a economia dos

dois países, no entanto, o fator mais preocupante estava relacionado a base de Sevastopol,

sede da Frota do Mar Negro russa, na Criméia. A Rússia possuía permissão para utilização

da base somente até meados de 2014. Havia não somente o temor da não renovação da

licença para estadia da marinha russa em Sevastopol, mas também, a possibilidade de o

governo provisório aderir à OTAN, o que garantiria o acesso da base às forças navais

americanas. Essa seria uma humilhação definitiva para Rússia, que utilizava a base desde

o reinado de Catarina, a Grande. (CONRADI, 2017, p. 263)

A estratégia de Putin, ao intervir na Ucrânia, não necessariamente visava o

conflito, mas sim, o congelamento dos movimentos ucranianos em direção ao ocidente,

almejando excluir permanentemente a possibilidade de uma adesão ucraniana à OTAN

ou à UE, além de garantir a autonomia para o Leste do país, que possui laços econômicos

estreitos com a Rússia. Para Putin, a derrota nesses objetivos significaria uma perda

pragmática irreparável para a estratégia e situação geopolítica da Rússia, o que afetaria

diretamente a soberania russa no futuro. A vitória, por outro lado, significaria um duro

golpe na influência estadunidense na Europa e no seu posicionamento global, mais que

tudo, seria a marca do início da transição da ordem unipolar para uma ordem pós-

americana (LO, 2015, p. 178).

Conclusões

É observável uma primazia da política de defesa sobre a política externa apesar de

existir uma forte articulação entre as duas esferas. Ao contrário do caso brasileiro, a

autonomia russa se dá cada vez mais pela sua capacidade em alternar o uso do soft power

e do hard power. Apesar de haver um enfraquecimento do alcance do soft power pela

militarização da diplomacia, ele ainda continua sendo uma ferramenta importante na

formulação estratégica russa, que cada vez mais se orienta para parceiros não-ocidentais.

Apesar das diferenças situacionais e regionais da inserção da Rússia e do Brasil

no cenário internacional, é possível vislumbrar uma aproximação nos interesses

sistêmicos dos dois países: Os interesses de afirmação de suas esferas de influência em

nível regional e o de redução das assimetrias com o centro do sistema.

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As políticas externas dos dois países, nesse sentido, buscam “objetivos gerais”

semelhantes através de meios e convergências diferentes. A concertação entre os países

ganhou força devido à essa similaridade de objetivos, resultando na formação do BRICS

e no apoio mútuo aos pleitos e posturas nos fóruns multilaterais.

A deficiência brasileira em transmitir os avanços na política externa para sua

política de defesa tem gerado um esgotamento das capacidades de avanço em sua agenda

externa, além da possibilidade de retrocesso. Enquanto a plena utilização e primazia da

política de defesa e do hard power pela Rússia têm garantido a manutenção de seus

interesses geopolíticos, além de demonstrar a retomada do status de Grande Potência,

com atuação de alcance global.

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