diogo ramada curto. a restauração de 1640 nomes e pessoas - diogo ramada curto

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Diogo Ramada Curto Instituto Universitário Europeu Península. Revista de Estudos Ibéricos | n.º 0 | 2003: 321-336 A Restauração de 1640: nomes e pessoas Tal como a antropologia cultural e a história da arte ou das ideias, a história da literatura ofe- rece vastos recursos para reconstituir os sentidos atribuídos pelos agentes às suas próprias acções 1 . Concorrendo para uma história global, as análises de discursos e de textos literários, longe de cor- responderem a um qualquer tipo de nível ou de estrutura, sugerem novas maneiras de explicar os processos sociais e põem em causa o alcance de relações de causalidade baseadas num reduzido número de factores. Contudo, este enriquecimento dos nexos explicativos não supõe qualquer tipo de transparência entre realidades sociais e discursos literários; pelo contrário, aponta para uma diversificação dos sentidos, das linguagens e dos vocabulários inerentes à natureza problemática e criativa de cada género literário e, até, de cada discurso. Do conjunto de estratégias de investiga- ção destinadas a conferir unidade a um território feito de uma multiplicidade de sentidos, há que optar: por um momento preciso que dê coerência a um conjunto de textos, pela escolha de um único género, pelo tratamento de um conjunto limitado de topoi ou pela figura do autor. No con- creto de cada análise, será possível descobrir as dificuldades em estabelecer fronteiras e dar uni- dade aos diversos exercícios de contextualização. A literatura da Restauração de 1640 constitui um fértil campo de estudo, precisamente porque oferece a possibilidade de isolar uma unidade coerente. Claro que os critérios encontrados pela historiografia para determinar essa coerência têm oscilado ao sabor de pontos de vista disciplina- res. Ideias políticas, jurídicas e históricas, formas de consciência e de sensibilidade nacional, inte- resses de justificação relacionados com a diplomacia, ideologias de acentuado carácter religioso ou 1. Dos muitos caminhos abertos pelo Prof. José Adriano Freitas de Carvalho, inspiro-me na análise de obras, sobretudo impressas, no contexto peninsular de fins do século XVI e primeira metade de Seiscentos, bem como na sua capacidade para pensar as relações entre a literatura e a política. Nesta homenagem, tenho particularmente presente o seu pioneiro trabalho, elaborado entre 1969 e 1971, intitulado «Pauperismo e sensibilidade social em Espanha nos fins do século XVI», sep. da Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Série de Filologia, vol. I (1974), 51 p.

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Tal como a antropologia cultural e a história da arte ou das ideias, a história da literatura oferecevastos recursos para reconstituir os sentidos atribuídos pelos agentes às suas próprias acções1.Concorrendo para uma história global, as análises de discursos e de textos literários, longe de corresponderema um qualquer tipo de nível ou de estrutura, sugerem novas maneiras de explicar osprocessos sociais e põem em causa o alcance de relações de causalidade baseadas num reduzidonúmero de factores. Contudo, este enriquecimento dos nexos explicativos não supõe qualquer tipode transparência entre realidades sociais e discursos literários; pelo contrário, aponta para umadiversificação dos sentidos, das linguagens e dos vocabulários inerentes à natureza problemática ecriativa de cada género literário e, até, de cada discurso. Do conjunto de estratégias de investigaçãodestinadas a conferir unidade a um território feito de uma multiplicidade de sentidos, há queoptar: por um momento preciso que dê coerência a um conjunto de textos, pela escolha de umúnico género, pelo tratamento de um conjunto limitado de topoi ou pela figura do autor. No concretode cada análise, será possível descobrir as dificuldades em estabelecer fronteiras e dar unidadeaos diversos exercícios de contextualização.

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  • Diogo Ramada CurtoInstituto Universitrio Europeu

    Pennsula. Revista de Estudos Ibricos | n. 0 | 2003: 321-336

    A Restaurao de 1640: nomes e pessoas

    Tal como a antropologia cultural e a histria da arte ou das ideias, a histria da literatura ofe-rece vastos recursos para reconstituir os sentidos atribudos pelos agentes s suas prprias aces1.Concorrendo para uma histria global, as anlises de discursos e de textos literrios, longe de cor-responderem a um qualquer tipo de nvel ou de estrutura, sugerem novas maneiras de explicar osprocessos sociais e pem em causa o alcance de relaes de causalidade baseadas num reduzidonmero de factores. Contudo, este enriquecimento dos nexos explicativos no supe qualquer tipode transparncia entre realidades sociais e discursos literrios; pelo contrrio, aponta para umadiversificao dos sentidos, das linguagens e dos vocabulrios inerentes natureza problemtica ecriativa de cada gnero literrio e, at, de cada discurso. Do conjunto de estratgias de investiga-o destinadas a conferir unidade a um territrio feito de uma multiplicidade de sentidos, h queoptar: por um momento preciso que d coerncia a um conjunto de textos, pela escolha de umnico gnero, pelo tratamento de um conjunto limitado de topoi ou pela figura do autor. No con-creto de cada anlise, ser possvel descobrir as dificuldades em estabelecer fronteiras e dar uni-dade aos diversos exerccios de contextualizao.

    A literatura da Restaurao de 1640 constitui um frtil campo de estudo, precisamente porqueoferece a possibilidade de isolar uma unidade coerente. Claro que os critrios encontrados pelahistoriografia para determinar essa coerncia tm oscilado ao sabor de pontos de vista disciplina-res. Ideias polticas, jurdicas e histricas, formas de conscincia e de sensibilidade nacional, inte-resses de justificao relacionados com a diplomacia, ideologias de acentuado carcter religioso ou

    1. Dos muitos caminhos abertos pelo Prof. Jos Adriano Freitas de Carvalho, inspiro-me na anlise de obras, sobretudoimpressas, no contexto peninsular de fins do sculo XVI e primeira metade de Seiscentos, bem como na sua capacidadepara pensar as relaes entre a literatura e a poltica. Nesta homenagem, tenho particularmente presente o seu pioneirotrabalho, elaborado entre 1969 e 1971, intitulado Pauperismo e sensibilidade social em Espanha nos fins do sculo XVI,sep. da Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Srie de Filologia, vol. I (1974), 51 p.

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    messinico, e culturas polticas difusas associadas a imaginrios populares tm funcionado comocritrios principais de anlise de uma srie de discursos impressos, manuscritos e fundados norecurso a representaes simblicas de carcter ritual. O trabalho analtico desse mesmo corpus,de fronteiras nem sempre fceis de traar em boa medida, tributrio de uma diviso por autorese gneros , tem tambm sido feito em funo de um conjunto de instncias de formao educa-tiva dos autores, de mecenato, de censura, de produo tipogrfica e comrcio de impressos, oude circulao de notcias manuscritas. Porm, nas tentativas destinadas a pensar as tipologias uti-lizadas na prpria poca para integrar um conjunto diversificado de prticas de escrita e de dis-cursos de carcter, mais ou menos, literrio as quais se encontram tanto nas anlises do Hospi-tal das Letras de D. Francisco Manuel, como no Discurso politico de Jernimo Freire Serro queser possvel recuperar, no seu conjunto, o sentido da literatura da Restaurao.

    Menos investigadas tm sido as relaes concretas entre a retrica e a literatura com excep-o da parentica, da poesia e da prpria tratadstica retrica , bem como as relaes possveisde estabelecer entre os diferentes tipos de engrenagens polmicas e a literatura da Restaurao. E,no entanto, muitos so os textos que permitem pensar tais relaes no que retrica diz respeito;menos, porventura, no que respeita s engrenagens polmicas por falta de um investimento maisintenso na produo de impressos por parte dos crculos que se mantiveram fiis a Filipe IV deEspanha e que pretenderam equiparar a Restaurao a uma usurpao. Por exemplo, o autor doDiscurso historico, e politico sobre o suesso de sabado 1. de Dez. do ao de 640 escreveu: A diui-so, fabrica e ordem narratiua, das Historias monarchicas, Bellicas, ou Heroicas, sejo gregas, lati-nas, ou italianas, e particularmente as modernas, se ajusto com tantas leis, e to rigurosos pre-eitos, que mais paree que seus autores se armo p. embaraar o desuelo com que trato depreuenirse por satisfao dos que as ho de ler; e nunca se consegue o total intento, sendo os opo-brios de hum descontentadio tais, que deslustro o aplauso de muitos bem intencionados. Parao attinado, para o florido, e para o bem fabricado, remetto os curiosos ao nosso Joo de Barrosgloria da nao Portuguesa na escritura. Ao Padre Mafeo na latinidade e ao Guichardino no polidoToscano, e aos inumeraueis Gregos e Latinos nos seculos passados, que de qualquer delles puderaeu transplantar aquij o methodo, com os arremedos que me ensinara meu juizo, que limitado jar-dineiro sera o que uendo hum quadro no jardim alheo, no possa imitalo no seu terreno, mascomo escreui, sem atteno ao ordinario intento dos escritores, que he lograr o aplauso e estima-o entre os homens, por premio daquellas rigurosas obseruaoins que dissemos e so o fiz paraparticular e abreuiada memoria do suesso2.

    Os artifcios da retrica so, ento, concebidos como um modo de satisfazer a expectativa doleitor, e como uma espcie de cincia dos efeitos literrios cujos modelos gregos, latinos ou tos-canos se afiguram de fcil reproduo. Contudo, esta referncia concreta retrica literria temum carcter de denncia de uma situao feita na defesa da memria de todos os que participa-ram nos sucessos da Restaurao. O que equivale a dizer que o recurso retrica parecia impe-dir ou ofuscar o mais importante, a saber, a nomeao de todos os que tinham cometido feitosilustres e a quem era reservada fama, glria e um lugar parte na memria e na histria. A con-traposio entre a retrica e a nomeao dos heris, muito em especial dos que foram capazes deactos de bravura militar, liga-se ao tpico clssico de oposio entre as armas e as letras. Mas, neste

    2. Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Manuscrito n. 122 [edio do Archivo bibliographico da Biblioteca daUniversidade de Coimbra, vols. II-III, n. 9 (1902-1903), 142 itlico nosso].

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    momento, o aspecto que mais importa pr em evidncia consiste precisamente em compreendero trabalho de escrita como modo de nomeao daqueles a quem so deuidos tantos aplausos pelladeliberao com que entraro nesta empresa, como aos que no meijo do belico furor desfizeroualerosamente esquadris armados, sendo nesta a uida to arriscada, como no mais apretado con-flito. E pella gloria que deste lhes resultar para sempre, sero respeitados por honra de sua patria,e admirao dos estrangeiros3.

    Porm, a nomeao supe diferentes hierarquizaes e excluses. Ora, sobre estas que oautor annimo do referido Discurso reflecte, traduzindo uma preocupao partilhada por outrosautores. Assim, depois de narrar os acontecimentos que levaram ao assalto do Pao da Ribeira, defenestrao de Miguel de Vasconcelos e tomada da cidade de Lisboa, por parte da facoconsiderada generosa e ilustre, conclui: E finalmente todos os mais, que estauo en differentessitios, sendo consortes desta faco illustre aos quais como aos aqui escritos, por acordo matema-tico, mais que historico constituo, e considero em figura esfirica, e ircular, e pode ser me deemotiuo a esfera, Timbre del Rej dom Manoel de gloriosa memoria Portuguesa, para que tenhotodos (como em mesa redonda) seu asento igual, e sem differena, que eu no acertarej a dar pre-edenias, pois tratto de fazer memoria de todos sem queixa de nenhum delles. O mesmo digo deoutras pessoas particulares e homens nobres e de confiana que se acharo conuocados p. o caso,de que ha listas em mos de algus curiosos; que como no circulo no ha prinipio, nem fim asitambem os considero igualmente referidos nesta breue narrao, sendo que cada hum meree cro-nicas particulares, como he justo que esperem huns, e outros de quem com maijores aertos ascomponha, do que eu posso em to breue tempo; conhecerei c tudo que ser grande escritor oque aertar a dizer tanto como a cada hum dos ualerosos coraoins que se deliberaro a estaempresa, se lhes deue, e leuo mereido c se auerem achado nella. E quando algus aqui se novirem escritos entre os demais, saibo deerto que tem seu assento no dourado liuro da mais glo-riosa fama, donde com letras inmortais uiuero honrados, e gloriosos; e esse ser seu condignopremio, que no consiste em serem nomeados neste discurso, como tenho por aueriguado que osero em outros de maijor importania nas coronicas que se escreuerem deste suceso. Mas consi-dero que huns e outros emprendero mais ualeroso feito, que quantos as historias conto, e aempresa mais atreuida que pode considerarsse, ou de que aja memoria entre os homes; valor emeffeito em que do Mundo as Naoins amigas tem que admirar pera sempre, as enemigas que temer,e todos que duuidar; quando no ouuerem exprimentado o esforo Portuguez com tanta rezofamoso4.

    Neste sentido, a literatura da Restaurao mais do que um veculo para a transmisso de ideiaspolticas, jurdicas, histricas e outras, ou o resultado de convenes retricas, alvo de uma denn-cia por parte do autor annimo do citado Discurso, assumindo certo um carcter quase tpico exerceu uma funo de nomeao daqueles que por suas aces eram merecedores de fama e deglria. Esta constatao poder ser relacionada com a figura da Fama, nomeadamente como ela pensada nos livros de emblemas. Mas, neste momento, o mais importante pensar de que modoum corpus de textos que pretende restaurar uma ordem poltica participa de uma lgica da escritaem que a nomeao, a integrao numa lista de nomes, e a petio tendo em vista a obteno deuma merc constituem preocupaes constantes. Uma historiografia aberta aos ensinamentos da

    3. Idem, 127. 4. Idem, pp. 127, 141.

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    antropologia tem procurado explorar essa mesma lgica, no suposto de assim conseguir reconsti-tuir a persistncia de comportamentos polticos com caractersticas arcaizantes. Claro que, no que nomeao individual diz respeito, poder-se- sempre objectar que estamos em presena dadefesa de interesses pessoais, logo, da representao de valores de um individualismo nascente,geralmente associados a um processo de construo da modernidade. Contudo, tambm so bemconhecidos os limites revelados pelas anlises do individualismo, geralmente fundadas em dicoto-mias de arcasmo e modernidade. Assim, em lugar de procurar conotar de imediato tal lgica deescrita e os comportamentos polticos que lhe andam associados, melhor ser tentar reconstituir oseu funcionamento, tendo em conta as linguagens das virtudes e dos interesses em que muitasvezes se traduzem. Com efeito, a necessidade de o prncipe virtuoso saber escolher os seus con-selheiros; a legitimidade de nomeao dos melhores por suas aces e merecimento, baseada noconfronto das carreiras, na distribuio de mercs e no vocabulrio da justia distributiva; a orde-nao dos nomes e das histrias de vida, segundo um critrio genealgico; o controlo judicial porresidncia e o inqurito judicial por audio e confronto de testemunhas, ou seja, a inquisitio; areferncia e descrio dos sistemas polticos baseada na qualificao de personagens influentes ena deteco das suas ligaes todos estes so aspectos que fazem parte da referida lgica danomeao.

    Se muitas das polmicas que caracterizam a Restaurao incidem sobre a nomeao de perso-nagens, o nacionalismo ou esprito autonomista que muitos estudos procuraram atribuir litera-tura relativa a 1640 , em parte, determinado pelos interesses, maquinaes e ambiguidades dasoligarquias, como sugeriu Jorge de Sena5, e, em parte, associado s mediaes concretas de indi-vduos. Um dos raros panfletos de resposta aos manifestos publicados em defesa de D. Joo IVderiva precisamente da referida lgica da nomeao6. Para o autor deste discurso impresso numcastelhano pejado de portuguesismos, talvez em Madrid, entre 1641 e 1642, mas que porventuranunca chegou a ser publicado , os sediciosos tinham publicado dois manifestos nos quais sepone la boca licensioamente en las personas de Diego Suarez, y de su suegro Miguel de Bascon-celos (que mataron por quitar el que estimaron mayor embarao de su traicion). Logo de seguida,os autores dos manifestos favorveis a D. Joo IV, Agostinho Manuel de Vasconcelos e AntnioPais Viegas, so julgados como baixos: o primeiro por ser conocido por bufoneria, y por sus viciosdestinado a destierro por sus proprios padres; o segundo considerado explicitamente de tanobscuro nombre que solo se le conoce por patria los Manjones, una aldea de doze vezinos todosmecanicos, y de su ascendencia una abuela esclava7. Esta desqualificao dos inimigos obedeceaos critrios da pardia, a cargo de bufes, da representao do mal e dos vcios no mbito dalinguagem das virtudes, e da folclorizao ou atribuio de caractersticas baixas e populares a umdeterminado personagem. desqualificao concreta dos autores que procuravam defender acausa do reino de Portugal, segue-se a constatao que los de mayor talento non quisieron auto-rizar materia indigna de pluma Christiana8. Por todas estas razes, que se prendem fundamental-

    5. Jorge de Sena, Autonomia sob os Filipes, in Idem, Amor e outros verbetes, Lisboa, Edies 70, 1992, 150-151.6. Despues que los sediciosos del Reyno de Portugal (s.l.,n.d.), impresso de 18 fls., includo na miscelnea da Biblio-

    teca Nacional de Madrid, Manuscrito 6157. 7. Ibidem, fl. 1v. Sobre D. Agostinho Manuel de Vasconcelos, cf. Antnio de OLIVEIRA, Para a histria do embargo

    publicao da obra de D. Agostinho Manuel de Vasconcelos, Vida y acciones del rey Don Juan el Segundo, in Idem, Movi-mentos Sociais e Poder em Portugal no sculo XVII, Coimbra, Instituto de Histria Econmica e Social, Faculdade de Letras,2002, 143-157.

    8. Despues que los sediciosos del Reyno de Portugal, fl. 1v.

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    mente com o estatuto social e o comportamento dos nomeados, os apoiantes de D. Joo IV soconsiderados gente sediciosa, traydora y rebelde9.

    Em contraste com a desqualificao dos inimigos, o panfleto defende de modo sistemtico oelevado estatuto social tanto de Diogo Soares, como de Miguel de Vasconcelos. Para isso, recorreao gnero da folha de servios ou de avaliao de uma carreira, para efeitos de concurso ou depetio para obteno de uma merc, donde no esto ausentes as referncias s provas atestadaspor vice-reis, governadores ou outros superiores, nem to pouco os servios de pais e antepassa-dos, prprios de um discurso mais genealgico. Seno, vejamos.

    Diogo Soares considerado como sendo da mais limpa e antiga nobreza do reino de Portugal,senhor do morgado de Santo Antnio do Tojal institudo havia mais de trezentos anos. O seu pai,Joo lvares Soares, obtivera o ttulo de comendador da Ordem de Cristo, pelos seus servios aolongo de vinte e sete anos no Estado da ndia. Aos feitos militares, nomeadamente no cerco deChaul que as crnicas referem, somava-se o desempenho como vedor da Fazenda, e a totalidadedos seus mritos terem sido reconhecidos por D. Lus de Atade, a ponto de este o ter escolhidocomo um dos seus homens quando, por ordem de D. Sebastio, partiu para a ndia como vice-rei.Aps o regresso ao reino, foi nomeado por Filipe II para o Conselho de Portugal em Madrid, masa seu pedido acabou por ser transferido para o Conselho da Fazenda em Lisboa cargo que exer-cio muchos aos con grande nbre, y autoridad10. Remontando ao av paterno, Cristvo Lagarto,de novo se atestavam os servios militares na ndia, o reconhecimento social que advinha da atri-buio de uma comenda, desta feita de Avis, e atravs da aluso ao casamento com Leonor Soa-res filha de um outro Joo lvares Soares, j comendador da Ordem de Cristo ficava atestadaa sua ligao directa ao servio do rei, uma vez que esta era irm de Andr Soares, secretrio deD. Joo III e de D. Catarina. Pelo lado de sua me, Paula da Silva, o seu av, Mateus Peres daSilva, fora igualmente comendador da Ordem de Cristo, e servira, primeiro, como secretrio doEstado da ndia no tempo de D. Sebastio, depois como feitor na Flandres e em Frana, tendo porltimo entrado no Conselho da Fazenda no tempo do cardeal D. Henrique e de Filipe II.

    A antiguidade do morgadio, os servios na ndia, a comear pelos feitos militares, a posse decomendas das ordens, em especial da de Cristo, uma especializao em matrias financeiras e noconselho da Fazenda, iniciada pelo seu av materno e que provavelmente deste passara a seu pai,constituem os aspectos principais de identificao de uma linhagem11. Quanto longa lista de ser-vios que caracterizam a carreira de Diogo Soares, a sua descrio inicia-se pelos servios noespecificados na Guerra, e logo pela sucesso no cargo do Conselho da Fazenda, deixado livrepor morte de seu pai. Assim, guerra, primeiro, e fazenda, depois, surgem como os dois principaismodos de servio ao rei. Mas na longa lista de vinte e dois anos de servios no Conselho daFazenda, desde 1609 a 1631, que comeam por se atestar os seus mritos12. Antes de mais, salienta--se que assistiu em todas as juntas feitas em presena de vice-reis e governadores, por expressomandado rgio. Assim aconteceu na carta rgia de 18 de Novembro de 1615, convocando-o para

    9. Ibidem, fl. 1v.10. Ibidem, fl. 2. 11. Sobre a identidade conferida por uma comenda, ver por todos Fernanda OLIVAL, As Ordens militares e o Estado

    moderno: honra, merc e venalidade em Portugal (1641-1789), Lisboa, Esthar Editora, 2001. 12. Podendo dizer-se que, no mbito das suas actividades no Conselho da Fazenda, so evidentes desde pelo menos

    1615 as suas decises relativas ao Estado da ndia e o seu envolvimento na construo de uma rede clientelar, cf. ArquivoHistrico Ultramarino, Conselho Ultramarino ndia, caixa 4 [antiga caixa 3, n. 39]; caixa 9 [antiga caixa 5, n. 151].

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    a junta que se ordenou durante o tempo do vice-rei D. Miguel de Castro, arcebispo de Lisboa;numa outra carta rgia de 25 de Outubro de 1617, relativa a uma junta para a reforma da Fazenda,sendo vice-rei o arcebispo D. Fr. Aleixo de Meneses; numa carta que o vice-rei marqus de Alen-quer lhe enviou, datada de 25 de Outubro de 1617, convidando-o para assistir a uma das muitasjuntas de maior confiana e segredo por ele convocadas, na qual se incluam referncias explci-tas confiana que tinha em Diogo Soares; o mesmo acontecendo no que respeita junta relativaao regimento dos Armazns e Casa da ndia, reunida na altura em que eram governadores os con-des D. Diogo de Castro e D. Diogo da Silva.

    Ao envolvimento de Diogo Soares em matrias da Casa da ndia materia de mayor impor-tancia de la hazienda de aquel Reyno , segue-se a referncia sua experincia, inteligncia epureza na organizao da Armada para socorro da ndia, qualidades reconhecidas pelo monarca.Tal aconteceu, em 1628, quando o monarca enviou a Lisboa o marqus de Castel-Rodrigo, com aassistncia de Diogo Soares, tendo ento sido avisado o arcebispo D. Afonso Furtado, governadordo reino, que no o desviasse para outras ocupaes. Nessa altura, apesar dos conselhos de Por-tugal (em Madrid) e de Estado (em Lisboa) terem prevenido o monarca acerca da impossibilidadede se preparar uma nica caravela para partir, Soares conseguiu preparar seis galees, com arti-lharia, munies, mantimentos e soldados, reunindo para isso mais de seiscentos mil ducados, semque para tal tivesse precisado de recorrer ao expediente da venda de padres de juros ou alie-nao de bens da Fazenda. Foi o prprio rei quem o reconheceu, por carta de 7 de Maro de 1629,considerando que se impunha agradecer ao mesmo ministro ter-se conseguido tal feito. Nasequncia da preparao deste socorro para a ndia, Soares tambm organizou o socorro de Per-nambuco que o rei ordenou a 29 de Maio de 1630, assistindo nisto primeiro ao marqus de Cas-tel-Rodrigo, e depois ao governador D. Diogo de Castro. Desta feita, conseguiu reunir mais de oito-centos mil ducados, como atestavam as cartas do prprio D. Diogo de Castro, datada de 7 de Maiode 1631, e de Tomas de Ybio Calderon, de 15 de Maio do mesmo ano.

    Ao longo dos vinte e dois anos que serviu no Conselho da Fazenda, Diogo Soares comportou--se como um oficial ou ministro exemplar, tendo merecido a estima de todos os vice-reis e gover-nadores de Portugal: todos igualmente hizieron del la estimacion y confiana referida, en los nego-cios de mayor importancia, y secreto, de que dieron publicos testimonios13. Esta era, pelo menos,a opinio convicta do autor do discurso annimo que, seguindo a coerncia prpria de uma lgicada nomeao, elenca os diversos indivduos que tiveram a seu cargo o governo do reino, no pro-psito de demonstrar que, apesar das mudanas na forma de governo, estas em nada implicaramuma quebra na estima devida a Soares, cujas qualidades se mantiveram constantes ao longo dosanos: assim aconteceu desde os tempos em que o marqus de Castel-Rodrigo governou com ottulo de vice-rei, no governo do bispo D. Pedro de Castilho, do bispo de Braga que foi D. Fr.Aleixo de Meneses, do arcebispo de Lisboa, D. Miguel de Castro, e do marqus de Alenquer, notempo dos governadores Martim Afonso Mexia, bispo de Coimbra, D. Diogo de Castro, e D. Nunolvares de Portugal, este ltimo ao falecer foi substitudo por D. Diogo da Silva, e o bispo de Coim-bra foi substitudo pela mesma razo pelo arcebispo de Lisboa, D. Afonso Furtado de Mendona,tendo D. Diogo de Castro acabado por ficar sozinho e governado com o ttulo de vice-rei.

    Quando em 1631 foi de Portugal para Madrid, passando a ocupar as funes de secretrio deEstado do Conselho de Portugal, Diogo Soares culminava uma carreira exemplar de oficial ao ser-

    13. Despues que los sediciosos del Reyno de Portugal, fl. 3v.

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    vio ao rei. Trs aspectos principais contribuam para formar esta representao, sem dvida idea-lizada, do oficial exemplar. Antes de mais, a ideia da falta de interesse em angariar um novo of-cio, uma vez que o nico motivo que o tinha levado a Madrid consistira em se pretender retirardo seu cargo no Conselho da Fazenda, bem como o desinteresse privado manifestado no exerc-cio do mesmo, que serviu com abnegao. Depois, compatibilidade entre a merc do cargo quelhe foi atribuda pelo monarca e o reconhecimento das qualidades superiores encontradas em Soa-res, nomeadamente o ser verdadeiro, zeloso de servir o monarca e do bem pblico, e dispor deum conhecimento aprofundado das matrias financeiras, bem como de tudo o que respeitava aogoverno do reino. Por ltimo, o facto de se opor ao recurso a subornos, enganos e arbtrios,demonstrando apenas que os recursos financeiros da coroa, que os seus mulos apresentavamcomo incapaz de armar um nico navio, eram suficientes para a sua conservao, facto que otransformou em odioso a los poderosos que querian agotarle [referindo-se Fazenda real] en suprouecho, y ocutarle a lo publico14.

    Quanto a Miguel de Vasconcelos, ocupou o elevado cargo de secretrio de Estado do governoda senhora princesa Margarida de Mntua, do qual faziam parte o marqus de la Puebla, presi-dente do Conselho da Fazenda e superintendente de todas as coisas do governo, e Gaspar Ruizde Escaray, secretrio do Conselho da Guerra. Cunhado e ao mesmo tempo sogro de Diogo Soa-res, considerado pelo impresso annimo persona de notoria calidad y nobleza15. De facto, pelalinha paterna, a famlia dos Barbosas possua o solar do morgadio de Aborim, cujos vares, ttu-los e ricos-homens constavam do Livro de linhagens do conde D. Pedro. O seu tio, o jurista PedroBarbosa, era filho de lvaro Barbosa, senhor do solar de Aborim, estando a ligao ao rei ates-tada, por ter assistido durante anos no Conselho de Portugal junto de Filipe II, acabando os seusdias como chanceler-mor do reino. Pelo lado da sua me, Antnia de Vasconcelos, descendia dafamlia dos Vasconcelos e Brito. A origem desta famlia remontava ao sculo XIV, quando MartimMendes de Vasconcelos, do Couto de Serzedelo e morgado de Fonteboa, casara com D. Ins Mar-tins da casa de Alvarenga, tendo nessa unio de casas sucedido seu filho varo, Joo Mendes deVasconcelos. Trezentos anos depois, Miguel de Vasconcelos sucedeu no morgadio de Fonteboa esenhorio de Alvarenga e Serzedelo, como se poderia verificar no livro do infante D. Pedro e atra-vs de numerosas cartas de doao. Dos filhos segundos e terceiros do dito Martim Mendes deVasconcelos descendiam as casas dos condes de Penela, Figueir, Pedrgo e Castelo Melhor.Todas estas linhagens e parentelas podiam ser comprovadas pela leitura das genealogias do condeD. Pedro, nas quais se encontrava tambm referncia s ligaes entre esta famlia e a dos Soares.

    A insistente referncia antiguidade da nobreza, s linhagens, morgadios de trezentos anos,casas e solares, na caracterizao de Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos, precede em impor-tncia e extenso a descrio dos seus ofcios, enquadrados por instituies da monarquia ou con-selhos rgios. Tal como se diz a propsito de Miguel de Vasconcelos, invalidando qualquer tipode acusao de arrivismo: arrimado a este patrimonio tan honrado vivia; desta fortuna no fue faltola promocion a este oficio [de secretrio de Estado], a que ningun de los antecessores subio demas alto escalon16. Quanto aos servios propriamente ditos de ambos, enquanto secretrios deEstado dos conselhos de Portugal em Madrid e de Estado em Lisboa, que comearam a exercer

    14. Ibidem, fl. 4. 15. Ibidem, fl. 4.16. Ibidem, fl. 4v.

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    respectivamente em 1631 e 1634, o impresso annimo salienta o facto de terem correspondido aum tempo de grandes adversidades. Isto , ao chegarem aos seus respectivos ministrios, con-frontaram-se com uma situao em que as conquistas se encontravam tomadas por armas inimi-gas, desbaratadas as armadas e esgotado o Patrimnio ou Fazenda reais. Curiosamente, um brevesumrio das suas aces e medidas enrgicas diz unicamente respeito s matrias de guerra efazenda, com particular nfase na conservao das conquistas, excluindo portanto as matrias dejustia com as quais se costuma identificar uma cultura letrada de magistrados, cujos contornos soainda pouco conhecidos. Assim, no seu tempo e por sua iniciativa, foram enviados socorros aoBrasil e ndia, prepararam-se galees, armas e munies, mobilizaram-se soldados, conseguiu-seum aumento das receitas fiscais e recuperaram-se bens do patrimnio real que se encontravamocultados e que tanta falta faziam s necessidades do reino. Mais importante ainda, no perodo emque serviram, no se perdeu conquista alguma, pelo contrrio, estava tudo preparado para recu-perar as que tinham sido perdidas.

    Para refutar as acusaes de ambio pessoal feitas pelos apoiantes de D. Joo IV a Diogo Soa-res e Miguel de Vasconcelos, o autor do impresso annimo considera que as mercs que recebe-ram do monarca no tiveram nada de excepcional, sobretudo quando comparadas com os seusantecessores nos mesmos cargos. Interessante ser reparar o modo como se reconstitui o elenco denomes que serviram tais cargos: a comear por Duarte Galvo, o primeiro a exercer este ministriode secretrio do Conselho, quando este se separou do ofcio de escrivo da Puridade, no tempo deD. Joo II; seguindo-se-lhe, em tempos de D. Manuel, Antnio Carneiro, fundador de uma casa tograndiosa e que recusou o ttulo de conde por aspirar a mais, conforme se comprova numa cartaque escreveu a D. Joo III; Andr Soares, tio av de Diogo Soares, secretrio de D. Joo III e durantea regncia de D. Catarina, deixou uma casa de vinte mil ducados que veio a herdar Francisco Soa-res, primo de Diogo Soares; Pedro de Alcova Carneiro, tambm secretrio de D. Joo III e de D.Sebastio, foi igualmente vedor da Fazenda, considerada a maior presidncia, tendo sido duas vezesgovernador e ficado a par do senhor arquiduque Alberto, quando este serviu como vice-rei, tendomorrido conde da Idanha, senhor de grandes comendas, e fundador de duas das maiores casas doreino; na mesma altura, tambm Manuel Quaresma serviu como secretrio de Estado, tendo sidofeito depois do Conselho de Estado, vedor da Fazenda, alcanando grandes rendas para a sua casae, em reconhecimento dos seus servios, a sua filha recebeu o ttulo de conde de Vilaflor; Miguelde Moura entrou para o mesmo cargo no reinado de D. Sebastio, foi do Conselho de Estado, cola-teral do vice-rei senhor arquiduque Alberto, um dos governadores do reino, e o seu poder foi detal ordem que fez secretrio de Estado ao seu criado Lopo Soares, o qual por ter falecido sem dei-xar filhos herdeiros o passou a seu irmo, Cristvo Soares, que por sua vez obteve a sucesso domesmo para um dos seus filhos, tendo deixado casa de seis mil ducados de renda; Nuno lvaresPereira foi o primeiro secretrio do Conselho de Portugal junto do rei, teve voto nele, deixou casade oito mil ducados de renda, tendo-lhe sucedido no ofcio seu filho, Pedro lvares Pereira, o qualchegou a membro do Conselho, obtendo o senhorio e jurisdio de Serra Leoa e do lugar de Muge,com o reguengo de Torres Vedras, ao falecer deixou dez mil ducados de renda a sua casa, e obtevedecreto para ttulo nobilirquico; Fernando de Matos sucedeu-lhe no cargo, vindo a obter o lugareclesistico no Conselho, com muitas rendas da Igreja, comendas e despachos para os seus sobri-nhos e criados, como aconteceu com o seu sobrinho Francisco de Lucena, o qual obteve a suces-so no cargo mau grado as dificuldades pessoais e de procedimentos, enquanto no recebeu outrolugar, como veio a suceder com a obteno do cargo de secretrio das mercs no Conselho deEstado em Portugal; Martim Afonso de Mexia teve igualmente uma secretaria do Conselho, tendo

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    sido promovido a bispo sucessivamente de Leiria, Lamego, e Coimbra, vindo a ser um dos gover-nadores do reino. Ora, em comparao com as mercs, promoes e formas de enriquecimentorecebidas por todos os que ocuparam o cargo de secretrio do Conselho, Diogo Soares e Miguelde Vasconcelos nada receberam. Soares, por exemplo, com trinta e dois anos de servio, no che-gava a alcanar os quatro mil ducados de renda17.

    Impossvel seria tambm atribuir a Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos el manejo publico ydomestico de los negocios de Portugal, que lhes teria sido entregue por Filipe IV ou pelo seuvalido, o conde-duque de Olivares18. Pensar que tal poderia ter acontecido, como faziam os mani-festos de Agostinho Manuel de Vasconcelos e Pais Viegas que se pretendia refutar, equivaleria aexcluir da esfera de influncia e do processo de tomada de decises outros nomes relevantes. Aestes ltimos pertenciam a princesa Margarida de Mntua, persona de la Casa Real dotada de taninsignes virtudes, y superior entendimiento19, o j referido marqus de la Puebla que tinha a super-intendncia de todos os negcios, alm do j mencionado Gaspar Ruiz Escaray, secretrio daGuerra. Neste sentido, pretendia tornar-se claro que Miguel de Vasconcelos no decidia de formaisolada. Quanto ao Conselho de Portugal em Madrid, a resoluo dos negcios era sempre prece-dida por consulta do mesmo ou por junta de ministros, onde Diogo Soares no podia decidir poisno tinha direito a voto. E, mesmo reconhecendo que Miguel de Vasconcelos tivera comisso espe-cial para preparar as armadas, era preciso aceitar a brevidade com que preparou o seu despacho,as munies, abastecimentos, a fbrica de plvora, a importao de armas e a construo degalees e galeras; tudo isto foi aplaudido pelo povo, mas valeu-lhe a inveja dos que pretendiamapropriar-se de todos aqueles aprestos, custa da Fazenda real; a ponto de, quando o mataram,el primero acontecimiento fue a despojar los almacenes de Castilla, donde solamente de tabacohallaron grande copia que alli estava en deposito20.

    Os arbtrios de Diogo Soares estavam fundados nos conhecimentos e notcias certas que tinhada Fazenda real. Por isso, o nome de arbitrista que os autores dos manifestos lhe atribuem e queto odioso se afigura no se lhe pode aplicar. Alis, justifica o impresso annimo, teriam sido osmesmos conhecimentos, aliados ao facto de se tratar de um fiel ministro, que contriburam paralhe valer a graa do conde-duque de Olivares. De igual modo, os actos de Diogo Soares e Miguelde Vasconcelos nunca podiam ser capazes de influenciar ou torcer malignamente as decises dorei, no se conhecendo ordens rgias que tivessem sido alteradas por sua causa; igualmente, noprocuraram de nenhuma forma extinguir a nobreza do reino, pelo contrrio, foi no tempo destesdois secretrios que esta gozou das maiores honras e mercs; e era igualmente impossvel atribuir--lhes qualquer tipo de tirania. A este ltimo respeito, ser de reparar na seguinte mxima: Arte esdel mentiroso acusar con generalidad, que afrentar y no atreuerse a particularizar por no serconuencido. La verdad es que no hallareis en todo Portugal sujeto, por mas obstinado que le tengael odio, y mas de marmol la embidia, que con justicia se quexe de tirania, injuria, agrauio que des-tos ministros aya recebido21.

    17. Ibidem, fls. 5-6.18. Ibidem, fl. 6v.19. Ibidem, fl. 6v.20. Ibidem, fl. 7v. 21. Ibidem, fl. 8.

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    Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos tambm no foram os causadores da controvrsia entrea Coroa e o Colector, uma vez que competia tanto ao rei como aos tribunais seculares intervir paratemperar e moderar a fora com que os vassalos dos reis eram oprimidos pela ameaa de censu-ras eclesisticas. De facto, no foi por sua influncia que desembargadores e conselheiros despre-zaram as censuras e atropelaram a jurisdio eclesistica e os ministros apostlicos. Mais, nuncaSoares ou Vaconcelos dilataram causa alguma de capelas possudas pelas igrejas. S num casomuito particular, devidamente identificado com a explicitao dos nomes, envolvendo a sucessodo morgadio de Lus Figueiredo em que concorriam Heitor de Sela e o convento de S. Lus da vilade Pinhel, que Diogo Soares interveio; mas, neste caso, tratava-se de um morgadio profano eno de uma capela, sendo o pleito tratado em jurisdio secular, sem nunca ter estado envolvidoo Colector. Assim, nunca os referidos secretrios entraram na disputa do Colector com a Coroa,que compreendia precisamente capelas e vnculos de aniversrios, nem nunca infringiram a esferado sagrado. Pelo contrrio, para o autor annimo do impresso, o que parecia grave era que aque-les que os acusavam tivessem eles prprios quebrtado la Fe, y Religion de la Iglesia de Portugal,y de la universal, y con manos sacrilegas robar los bienes de los Prelados, y rentas Eclesiasticassin licencia Apostolica para embiarlas a Herejes Olandeses, y por mano de Tristan de Mendoa22.

    Para refutar que a justia comutativa e distributiva se tivesse tornado venal por influncia dosmesmos Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos, so vrios os argumentos utilizados. Primeiro,defende-se que se trata de um direito dos monarcas, autorizado por lei divina e natural, no se lheopondo nem o mais escrupoloso dos telogos, e praticado em todo o mundo. [] Y en la CuriaRomana , y en el Reyno de Portugal no es nueuo, porque siempre los seores Reyes han conce-dido licencias de renunciar oficios que incluyen permission de venta; y si el premiar seruicios deun vassallo es causa justa para concederle licencia de vender oficio publico, mas justificada serla de una necessidad publica, a que es preciso el socorro por este medio23. Em segundo lugar,que se tratou sempre de um expediente utilizado pelo monarca em situaes de aperto pblico.Por isso, no se podia dizer que Filipe IV tivesse transformado todos os ofcios pblicos em venais,como davam a entender os manifestos dos sediciosos, uma vez que desse processo no constavaoficio alguno de justicia, ni administracion de jurisdicion contenciosa, con lo qual no se cerr lapuerta al objecto de la justicia destributiva, ni al premio de los seruicios y meritos (como repre-sentais) pues siempre qued desocupada la mayor parte de los oficios para destribuirse gratuita-mente entre los benemeritos, y aquellos pocos que se dieron por causa del donatiuo pecuniariofue concurriendo meritos personales que tambien se premiaron por esta via24. Alis, este expe-diente de se recorrer venda pblica de ofcios para socorrer s necessidades pblicas foi sempreto frequente, e pouco grave para o povo, que um presidente da Cmara Municipal de Lisboasuplicara a sua magestade que usasse dele, tendo o rei preferido vender o que poderia dar libe-ralmente precisamente para acudir a uma necessidade urgente. Destes donativos resultou a fbricados galees, feitos em Lisboa e no Porto, bem como a preparao das galeras e artilharia. Ora precisamente em torno deste ltimo caso que o autor elabora um terceiro nvel de argumentaovisando refutar as acusaes contra Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos.

    A venda de ofcios tendo em vista a fbrica dos galees foi da responsabilidade da Junta do

    22. Ibidem, fl. 9v. 23. Ibidem, fl. 10.24. Ibidem, fl. 10.

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    Despacho de Portugal, composta por gravssimos ministros que assistiam o monarca com as suasconsultas. Por isso, a sua autoria no podia ser atribuda a Diogo Soares. Este ter actuado, ape-nas, como secretrio do Conselho de Portugal em Madrid, em conjunto com Miguel de Vasconce-los, secretrio do Conselho de Estado em Portugal. De qualquer modo, s teriam sido escolhidaspara comprar os referidos ofcios pessoas de tal qualidade que no se hallar prouision en sujetoa cujos meritos no fuesse deuida la mercd sin el donatiuo25. Teria sido mesmo o cuidado postopor Vasconcelos na eleio dos compradores de ofcios que lhe teria valido a prpria morte. Istoporque, ao ter recusado aceitar o donativo que D. Gasto Coutinho oferecia pelo cargo de gover-nador de Angola e o que oferecia D. Agostinho Manuel de Vasconcelos pelo cargo de cronista mor,devido desproporo e defeitos notrios de cada um, fez com que o primeiro o tivesse assassi-nado a 1 de Dezembro e que o segundo o injuriasse com palavras, j depois de morto. A mesmarecusa em aceitar o donativo para a compra de ofcio de contador mor por parte do Doutor Ant-nio de Sousa de Macedo explicava a adeso deste causa da Restaurao, incluindo a sua nomea-o como secretrio da embaixada enviada a Londres e a publicao, nesta mesma cidade, de ummanifesto da sua autoria. Neste ltimo caso, tratava-se de uma situao pessoal ainda mais grave,uma vez que Sousa de Macedo tinha sido considerado incapaz para o cargo pretendido, depois dej se ter introduzido nele e na administrao do sal por sucesso de seu pai, sobre quem pesavamcondenaes por falsidades e roubos no exerccio dos mesmos. A desqualificao pessoal e fami-liar de Antnio de Sousa de Macedo e de seu pai envolve, ainda, uma crtica claramente xenof-bica ao casamento que este ltimo teria negociado para seu filho: demas que la calidad es tal quetuuo por gran dicha hallar una hija de un Olandes que casasse con el dicho Antonio de Sosa26.

    Na tentativa de desvalorizao de todas as grandes ideias reduzindo-as a meros conflitos e manifestao de interesses pessoais, o autor do panfleto annimo considera que nunca se fez sen-tir o direito dos trs estados se fazerem representar junto do rei, alertando-o para os problemas aresolver. Ou seja, nunca ter havido uma denncia dos trs estados relativamente actuao deDiogo Soares e Miguel de Vasconcelos. Em substituio de captulos legtimos apresentados emcortes, existira apenas um papel, incluindo cerca de trezentos captulos, assinado por Joo Salgadode Arajo, abade de Pra, no qual se alegavam por testemunhas trs ou quatro pessoas, as quaiseram, no fundo, os seus verdadeiros inspiradores. O rei, longe de ter recusado inquirir acerca detais captulos e apesar do seu autor enquanto clrigo no ter direito a manifestar-se, aceitou-os eordenou uma devassa ou visita. Esta foi conduzida por um juiz de grande autoridade, tendo sidoouvidas todas as testemunhas indicadas, e consultados todos os papis das secretarias referidosnos captulos. De todo este processo, no foi dado conta nem a Soares, nem a Vasconcelos. E, umavez terminada a devassa, grandes ministros da monarquia concluram que os captulos eram todosfalsos e que juridicamente no havia culpa contra os referidos ministros.

    Por sua vez, as missivas trocadas entre Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos, que circularamsob a forma de manuscrito logo aps a Restaurao, e que tambm so citadas pelos manifestosde Antnio Pais Viegas e D. Agostinho Manuel de Vasconcelos, so denunciadas como forjadas,ou seja, como cartas fingidas tendo em vista denegrir os seus supostos autores. Por exemplo,nunca Diogo Soares ter escrito a Miguel de Vasconcelos que o rei mobilizou toda a nobreza paraa campanha da Catalunha com o propsito de desterr-la da sua ptria e de a poder destruir. Pelo

    25. Ibidem, fl. 10v.26. Ibidem, fl. 11.

  • Diogo Ramada Curto332

    contrrio, o que o rei sempre pretendeu foi honrar toda a nobreza da sua monarquia, e foi ela pr-pria que se ofereceu a acompanh-lo Catalunha. Tambm se afigurava uma mera inveno que,entre ambos os secretrios, tivesse sido trocada qualquer tipo de informao por carta, tendo emvista descobrir em Lisboa testemunhas falsas que jurassem que certo personagem, que j se encon-trava preso por suas ordens, tivesse querido envenenar o rei, Olivares e o prprio Diogo Soares.Segundo o autor annimo, todas estas cartas falsas, meramente inventadas, destinadas a denegrira reputao de Soares e Vasconcelos, deviam-se ao facto de os seus inimigos, reboluiendo convuestras perfidas manos, y benenosos coraones todos sus papeles y cartas (en que personas detan estrecha correspondencia suelen descubrir lo intimo del pensamiento), no acharem cosacontra el servuicio del Rey y de la patria, ni que ofendiesse la justicia, y derecho de partes, ni queos diesse motiuo a sospecha contra la limpieza y fidelidad en sus oficios27.

    Impossvel seria tambm aceitar o que as cartas fingidas diziam a respeito das intenes de Soa-res e Vasconcelos de destrurem a nobreza. Nunca teria havido tal propsito, considerado tantomais uma generalidade malvola e astuciosa. Por isso, era necessrio verificar que a nobreza quese queixava de ser perseguida era em nmero muito escasso, no chegando a quarenta o nmerodos conjurados envolvidos na traicion que vuestro manifiesto defiende28. Deste nmero, excep-tuava-se la mayor y mas sana parte de la nobleza29. E, no entanto, o importante era notar quetanto Soares como Vasconcelos tinham sempre procurado beneficiar a todos, nobres e plebeus.Diogo Soares, por exemplo, conseguira valiosas mercs para o duque de Bragana, na altura doseu casamento e tambm noutras ocasies; e fora por seu intermdio que no s o rei, mas tam-bm Olivares o tinham conseguido retirar do esquecimento; alis, tudo isto fora reconhecido peloprprio duque, ao escrever que nunca tivera agente tan solicito en sus negocios como Diego Sua-rez30. Por sua vez, no tempo dos mesmos secretrios, D. Rodrigo da Cunha fora feito arcebispode Lisboa, a maior dignidade eclesistica de Portugal, e fora-lhe atribudo um lugar no Conselhode Estado, tudo isto vencendo diversas contradies relativas sua honra e reputao. O marqusde Ferreira ter-se-ia servido do mesmo Soares para solicitar as mercs que lhe eram devidas peloseu casamento, bem como outras pretenses. O conde de Vimioso tambm recebera mercs rgiaspor interveno dos mesmos secretrios, tendo o seu irmo, D. Miguel de Portugal, obtido o bis-pado de Lamego. Seguindo a mesma lgica da nomeao de pessoas que, no passado, tinhambeneficiado das aces de Soares e de Vasconcelos, aderindo mais tarde causa da Restaurao,o autor do impresso annimo refere, ainda, que lo mismo pudiera referir de los otros conjurados,sino pareciera que era vengana el nombrarlos31.

    Na polmica que opunha os defensores da Restaurao aos que se mantiveram fiis a Filipe IV,as cartas supuestas y fingidas, atribudas aos dois secretrios, serviam ainda outros propsitos.Nelas se dizia que tanto Soares como Vasconcelos aborreciam a todos os ministros, procurandoarruinar as carreiras sobretudo dos mais honrados. A falta de constncia dos mesmos ministros,bem como a sua falta de fidelidade a quem quer que fosse, a no ser aos seus interesses, expli-cava tambm que, mesmo em relao a Filipe IV, a Olivares e princesa de Mntua, se referissematravs de siglas e hierglifos utilizando palavras indignas. Ora, esta falta de virtudes nomeada-

    27. Ibidem, fl. 13.28. Ibidem, fl. 13.29. Ibidem, fl. 13.30. Ibidem, fl. 13v. 31. Ibidem, fl. 13v.

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    mente a falta de fidelidade relativamente aos seus superiores, qualidade necessria no quadro deuma viso do mundo e de uma sociedade profundamente hierarquizada fazia deles verdadeirosatestas. De igual modo, as cartas revelavam o pouco cuidado posto pelo marqus de Montalvo,vice-rei do Brasil, no socorro do Brasil. Porqu? Precisamente porque este era considerado amigoe correspondente dos mesmos secretrios, tendo o seu despacho para o governo do Brasil sidotratado directamente por Diogo Soares em Madrid, conjuntamente com a preparao da armadade socorro, na qual tambm se empenhara, a partir de Lisboa, Miguel de Vasconcelos. A denn-cia de tais cartas, por sua vez utilizadas como referncia e prova de autoridade pelos panfletosimpressos, contra os referidos secretrios, afigura-se como necessria: donde estn estas cartas?Quien declar estos geroglificos? Que palabras? Que nublados indignos hallastes en ellas?32. Con-cluindo-se que tais missivas s se poderiam explicar a partir de el odio que llega a fingir cartasque no ay, siendo en ofensa de opinion y honra propria33.

    De um ponto de vista analtico, interessante ser reparar de que forma uma lgica da nomea-o, depende de uma linguajem das virtudes (incluindo nesta o que se lhes ope, isto , vcios,enganos, mentiras e interesses particulares). Ambos os lados da polmica parecem enredados namesma lgica que se confunde com o vocabulrio das virtudes. Assim, tanto na referncia s car-tas fingidas, como no ataque directo aos chamados libelos de Pais Viegas e Agostinho Manuel, oautor do impresso annimo volta a refutar ideias gerais que no eram devidamente particulariza-das, ou seja, avaliadas em funo de exemplos e de pessoas concretas. o que acontece quando depois de se ter referido que os dois secretrios tinham um controlo praticamente absoluto sobrea mquina do Estado, podendo considerar-se que todos os ministros pertenciam sua faco sepassa acusao de que procuravam destruir as carreiras dos mais honrados, fabricando em rela-o a muitos deles aumentos para arruinarem em seguida as suas carreiras. Tudo isto, recorrendoao diablico meio de ordens reais por eles forjadas. Ora, nas palavras do autor annimo: Esta pre-ez de palabras vagas, sin demontracion de particularidades es el estilo que guardais en vuestroslibelos indignos de credito, pues el no particularizar es euidente argumento que sentis ser reconuenidos con lo mismo que apuntardes34.

    Mas a melhor forma de demonstrar a dependncia de uma lgica da nomeao relativamente linguajem das virtudes surge, de novo, na tentiva de desqualificar Miguel de Vasconcelos e a suafamlia, qual reage o autor do impresso annimo. Se o seu pai, Pedro Barbosa de nobreza semmcula de limpeza de sangue, comendador da Ordem de Cristo e varo de eminentes letras, apren-didas na escola do seu tio, seu homnimo , era chamado nos manifestos portugueses de peste daRepublica, era necessrio ter presente a sua carreira35. Enquanto magistrado do Desembargo doPao, inspeccionara vrios contractos feitos com a Fazenda, descubrindo neles numerosas fraudes eprocurando sempre defender o aumento do Patrimnio real. Tais diligncias, feitas em tempo deFilipe III, valeram-lhe muitos dios e at uma sentena criminal, a qual acabou por ser julgada comonula pela Mesa da Conscincia, segundo uma ordem rgia. Neste sentido, Pedro Barbosa acabou porser restitudo sua honra. Quanto a Miguel de Vasconcelos, mau grado as tentativas dos chamadoslibelos difamatrios que lhe imputavam todos os vcios, nadie los oy en su vida, siendo nacido y

    32. Ibidem, fl. 14v. 33. Ibidem, fl. 15.34. Ibidem, fl. 15.35. Ibidem, fl. 15v.

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    criado en este Reyno; en todo estado antes y despues de ministro ay documentos mayores de todaexcepcion de su vida, y de su talento, y sus procedimentos: vileza es poner la mano en la barua delle muerto, y hazer alarde de oprobios en muerte, los que en vida se respetauan, le seguian, y leaclamauan con gloriosos renombres36. Neste sentido, vcios, embustes, enganos, malcias e falsida-des deveriam ser atribudos, isso sim, ao duque de Bragana e aos conjurados envolvidos na rebe-lio ou traio ao rei e ptria, palavras que servem para designar a Restaurao de 1640.

    A importncia concedida ao nome e pessoa de Miguel de Vasconcelos tal que a prpriarebelio, maquinada pelo duque e pelos conjurados, se confunde com a sua morte. O que equi-vale a dizer que o duque e os conjurados sabiam que s com a sua morte seria possvel destruira ordem poltica considerada legtima. Alis, teria bastado que o secretrio sasse em pblico paraque o povo que le amaua y respetaua (por mas que los manifiestos lo pinten odiado)37 noficasse desenfreado. A presena de Vasconcelos teria tambm impedido que grande parte danobreza se tivesse retirado, sem tomar a voz de Filipe IV ameaada pela licensiosa libertad delvulgo, como relataram em Madrid muitos dos que saram do reino38. Igualmente, castelos e pre-sdios no se teriam deixado entregar to facilmente obedecendo s ordens da princesa de Mn-tua, e que esta teria assinado pressionada pelos conjurados, uma vez que Vasconcelos com a suafidelidade a Filipe IV no o teria permitido. Os revoltosos sabiam bem quo importante era assas-sinar Miguel de Vasconcelos, representante de uma ordem poltica que eles pretendiam destruir, eestavam to receosos de o no conseguir que se preveniram con dineros en las faldriqueras parano pudiendo executar esta muerte, embarcarse a Olanda, dando por destruida su conjuracion39.

    Toda esta argumentao, baseada numa lgica da nomeao associada linguajem poltica dasvirtudes, serve de quadro a uma descrio dos acontecimentos ocorridos desde 1 de Dezembro de1640. referida rendio dos presdios, por ordem assinada enganosamente pela princesa de Mn-tua, seguiu-se a entrada dos conjurados nas casas de senhores nobres, ministros e magistrados,tendo em vista a sua intimidao. Assassinados foram os que se opuseram ao intento dos sedicio-sos, como aconteceu com os guardas do palcio e um corregedor, acabando por ter sido rouba-dos os armazns. O arcebispo de Lisboa, D. Rodrigo da Cunha, considerado autor da faco dosconjurados, simulou uma aclamao popular de D. Joo IV nas ruas de Lisboa. Mas toda esta mal-cia e ambio dos conjurados atingiu um dos seus pontos mais altos no modo como foi preparadoo saque da casa de Miguel de Vasconcelos, mandando preparar fragatas para transportar o que sejulgava ser uma grande rapina. Por este acto, poder-se-iam avaliar os intentos particulares e a ambi-o de enriquecimento fcil que caracterizavam os conjurados, os quais simultaneamente tambmpretenderam enganar o povo deitando-lhes pela janela alguns doces e cosas de pouco valor per-tencentes a Miguel de Vasconcelos, finjiendo que le hazian dueno del despojo40. A violncia exer-cida sobre a pessoa e os bens de Vasconcelos teve paralelo na perseguio e dio pessoal que osconjurados desenvolveram em relao aos familiares mais prximos de Diogo Soares, ausente emMadrid. Assim se passava en las personas inocentes de su madre vieja de nouenta nos, y de sushijas, y nietos, y dos yernos, y una hermana (que estaua recogida en un Conuento)41.

    36. Ibidem, fl. 16.37. Ibidem, fls. 16v-17.38. Ibidem, fl. 17. 39. Ibidem, fl. 17.40. Ibidem, fl. 17v.41. Ibidem, fl. 18.

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    A nomeao de todas estas pessoas e nomes tinha por objectivo defender Diogo Soares eMiguel de Vasconcelos representando verdadeiros espelhos de virtudes, de fidelidade e zelo aoservio do rei, e de honra da ptria , e atacar aquele que era considerado um pequeno grupo deconjurados, no ultrapassando os quarenta nobres aos quais se associavam todos os vcios e tira-nias possveis , sendo estes ltimos descritos at como homicidas, asasinos, adulteros, y autoresde otros vicios abominables y nefandos42. Claro que esta simples oposio discursiva entre adefesa dos amigos virtuosos e o ataque aos inimigos capazes de todos os vcios, malcias e golpesbaixos, presente em tantos discursos e polmicas da Restaurao, por mais dramtica que se afi-gure, no contempla o conjunto das linguajens e das dinmicas relativas s lutas polticas da poca.Por exemplo, o prprio folheto impresso de defesa de Soares e Vasconcelos deixa entrever, nasentrelinhas, que existiam outras clivagens, a saber: as que opunham, no interior do vice-reinadode Margaria de Mntua, o marqus de la Puebla a Miguel de Vasconcelos; as que existiam emMadrid, por exemplo, no interior da Junta do Despacho de Portugal; ou as que atravessavam a hie-rarquia do Estado que nunca se tinha deixado subordinar em bloco s decises dos referidos secre-trios. Numa outra perspectiva, teriam tambm existido afinidades de interesses e proteces entregrande parte da nobreza portuguesa e os mesmos Soares e Vasconcelos constatao em que ofolheto insiste, margem da referida oposio entre amigos e inimigos. escala de anlise domesmo folheto impresso, haver ainda que considerar o que num vocabulrio nosso contempor-neo designaramos como formas de integrao social ou de representao identitria. Vejamo-las,a partir de quatro pontos de vista.

    Em primeiro lugar, as referncias especficas ao povo, reveladoras de uma crena profundanuma sociedade hierarquizada, supem a necessidade de quem decide por exemplo, Vasconce-los ou a nobreza obter o acordo ou o aplauso populares. Tal facto indicia a existncia de umaordem poltica consensual, mais ou menos idealizada, a qual seria ameaada quando se tentavaenganar o povo (deitando-lhe doces como se se tratasse de um rico despojo), ou tambm pelaexistncia de um vulgo descomposto43. Esta referncia ao povo e ao vulgo, bem presentes nointerior do vocabulrio poltico, supe a existncia de conflitos verticais que no poderemos redu-zir aos choques horizontais entre faces referidos pela historiografia recente. Em segundo lugar,o conceito de faco utilizado como equivalente ao de conjurados ou sediciosos, no folheto favo-rvel a Soares e Vasconcelos, revelando assim uma conotao negativa. Contudo, tambm serpossvel verificar que pode assumir uma valorao positiva, quando manejado pelos defensores daRestaurao. Para alm desta ambiguidade de sentido, o que no se justifica a atribuio de umaexcessiva importncia a tais unidades polticas e sociais, no interior das quais a instabilidade e osconflitos tambm se fazem sentir. Em terceiro lugar, a fidelidade ao rei e o amor ptria, referidosno impresso de defesa de Soares e Vasconcelos, apoiantes sem discusso da legitimidade de FilipeIV contra o pequeno grupo de traidores portugueses, reintroduz a questo do sentimento nacio-nal, enquanto capaz de conferir um sentido de pertena bem presente nas lutas polticas. Tal cons-tatao obriga a repensar a questo do patriotismo e do nacionalismo da poca, para alm dasapropriaes historiogrficas e comemorativas que pesam sobre a memria da Restaurao de1640. Em quarto e ltimo lugar, em torno de cada nome e de cada pessoa ser sempre possveldesenhar, por crculos concntricos, vrios sentimentos de pertena: famlia, linhagem, casa ou

    42. Ibidem, fl. 18.43. Ibidem, fl. 17.

  • Diogo Ramada Curto336

    clientela (apesar de esta ltima nem sempre se afigurar muita ntida); ou a uma carreira sobre-tudo ao servio do rei, mas que muitas vezes se confunde com uma sucesso familiar em deter-minado cargo , sendo que muitas vezes tnue a separao entre os cargos ocupados e os ttu-los e comendas recebidas.

    Mas um inventrio de tais perspectivas, a partir das quais ser possvel pensar socialmente ascategorias da luta poltica da poca em estudo, corre o risco de ficar incompleto. Por exemplo, ofacto de Soares e Vasconcelos terem sido acusados de pertencer seita dos atestas, s por si,sugere a necessidade de se atender a muitas categorias teolgicas e religiosas, incluindo as queestiveram presente em inmeras polmicas entre diferentes credos, para pensar a poltica em tornode 1640. Lugar parte dever tambm merecer uma anlise das implicaes polticas presentes norecurso a uma linguajem sexista, utilizada por exemplo nas cartas supostamente atribudas a Soa-res e Vasconcelos (em trechos que o referido autor annimo do folheto impresso em castelhanono refere). Contudo, a perspectiva que aqui procurmos aprofundar, atravs de uma anlise topormenorizada quanto possvel de um nico folheto impresso, diz respeito a um modo especficode pensar socialmente a poltica baseada na referncia individualizada dos nomes e das pessoas,ou seja, numa lgica da nomeao que se afigura claramente tributria do vocabulrio das virtu-des. Trata-se de uma lgica de nomes e pessoas que, a par da escrita de anais de acontecimentospolticos de que se conhecem exemplos na poca, revela uma concepo bem terrena da histriae da sociedade. Ora, em toda a sua riqueza de sentidos e linguajens, a literatura da Restauraode 1640 contm numerosos exemplos do que por comodidade convencionmos chamar lgica danomeao. Curiosamente, no panfleto cuja anlise mais nos ocupou, claramente escrito sob a tutelade Diogo Soares, o sentido da referncia aos nomes e s pessoas inclui ecos de um claro ethosnobilirquico que encontrava nos livros de genealogias e linhagens um dos seus principais pon-tos de referncia , para, de seguida, colocar em primeiro plano as matrias de guerra e finanas,bem como a carreira, os servios e a defesa escala do imprio do Estado da ndia ao Brasil.Constatar esta dimenso imperial, enquanto teatro de actuao de Diogo Soares e Miguel de Vas-concelos, importante, pois ajuda a relativizar a importncia excessiva do contexto ibrico incluindo as supostas relaes entre um centro representado por Madrid e uma periferia lideradapor Lisboa presente em grande parte da historiografia mais recente.