dinah silveira de queiroz - a muralha (txt)(rev)

Download Dinah Silveira de Queiroz - A Muralha (Txt)(Rev)

If you can't read please download the document

Upload: andre-senna

Post on 20-Oct-2015

217 views

Category:

Documents


51 download

TRANSCRIPT

http://groups.google.com/group/digitalsource A Muralha Dinah Silveira de QueirozA Muralha(ROMANCE COMEMORATIVO DO IV CENTENRIO DA FUNDAO DE SO PAULO)Copyright Dinah Silveira de QueirozCapa ESTDIO JBReviso A. TAVARESDireitos de publicao adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S A Rua do Carmo, 27 4 andar Tel. 31-5830 Caixa Postal 3812 Endero Telegrfico NEOFRONT Rio de Janeiro GBTudo o que acontece eu ponho neste livro. E se no acontece, estando no livro, o me smo que ter acontecido. DOM BRAZ OLINTO Orelhas do Livro: A Muralha e a Crtica Detentora do prmio distribudo pela Academia Brasileira de Letras o Malhado d e Assis, a mais alta lurea outorgada pela instituio, pois a que consagra tda a obra do autor, Dinah Silveira de Queiroz teve, da parte da Comisso Julgadora da Academ ia estas palavras, ao final do parecer: Com essa faculdade descritiva em que se desdobram as mais diferentes situaes psicolgicas, interpretando o selvagem desassombro dos desbravadores da terra e po voando-a de herosmo brbaro, a Sra. Dinah Silveira de Queiroz fz arte pessoal, roman ce de estrutura complexa, admirvel restaurao de cenrios e imagens que lhe asseguram uma posio inequvoca entre os nomes vitoriosos da literatura contempornea. a razo de s e lhe conferir o Prmio Machado de Assis de 1954, ano do quatricentenrio de So Paulo , em cuja honra, alis, escreveu ela A MURALHA. (a) Pedro Calmon, Relator, Ataulfo de Paiva, Presidente com voto, Mcio Leo, Clementino Fraga, Anbal Freire, Aloysio d e Castro, Celso Vieira. Tendo recebido das mos do ento Chanceler Macedo Soares a medalha Imperatriz Leopoldina, doada pelos mritos histricos do romance A MURALHA, teve ainda a romanc ista verdadeira consagrao do pblico e da Crtica. Assim, Jos Lins do Rgo se manifestou: AS figuras humanas crescem de vulto e assumem a importncia de absorventes es tados de alma. A o livro vence e se expande como fra de criao autntica. A figura de Cr istina, j no fim do livro, se confunde com a terra que ela leva no ventre. O chei ro do pntano que lhe penetra na carne se transforma numa espcie de feitio que a pre nde ao solo para sempre. E Rachel de Queiroz assim se pronunciou sbre A MURALHA: A escritora transps para o seu romance um mundo inteiro de gente, de paixes e de sucessos violentos, dentro de um cenrio igualmente copioso e colorido: sse episdio da infncia de um povo, turbulenta e sensacional, no apenas um quadro, de limit es curtos: todo um grande painel um painel de propores portinarescas. Plnio Barreto teve estas palavras para saudar A MURALHA: Antnio Olinto, por sua vez, disse de A MURALHA: A MURALHA tem o decorrer escorreito de uma estrutura armada com solidez, em que o humano se colocou sempre acima de tudo. A tcnica literria prpriamente dita, os dilogos, o ritmo das cenas, o plasmar dos personagens, tudo tem um carter de ob jetividade, de realidade. Os tipos humanos, a que Dinah Silveira de Queiroz d for ma, chegam enquadrados dentro da obra, com a indissolubilidade com que o homem v ivo est ligado vida. Adonias Filho, em seu livro. MODERNOS FICCIONISTAS BRASILEIROS, assim se e xpressou sbre o romance: Em A MURALHA, normas e dados foram previstos. Dinah Silveira de Queiroz lev anta o vu lentamente, reconstituindo a paisagem e os costumes do tempo, a famlia p aulista da poca exposta em sua fra de tronco, as lutas dos homens na selva, a guerr a pelo ouro que a terra virgem no ocultava. No centro, senhor da vida e da morte, o patriarca que tem em sua vontade a prpria lei. As enrgicas mulheres que vo gerar um povo. ndios e escravos na base, padres e judeus, os aventureiros que transfor mam ossos em alicerces de uma nao. No bjo dessa rbita de violncia, desespro, herosmo e traio, corre paralelamente o drama meramente romanesco, humano e poderoso, a roman cista separando no fluxo da narrativa a sua histria da terra. So dois movimentos e pisdicos inter-relacionados, verdade, que permanecem autnomos, cada qual transitan do em sua via prpria. Primeira Parte Descoberta da Terra I Era como uma brecha ou ferida rasgando as rvores e as plantas, uma vila mis ervel que transbordava de gente. Ela via os casebres, o povo afluindo ao prto, o n avio chegando bacia de leo, e punha sua vista naquele teatro com a firmeza do sac rifcio que se entrega, cuidando no cu. Se Deus bem quisesse, da a momentos iria con hecer Tiago, seu primo, seu prometido, a resposta que dera vida pequenina de Lis boa. O olhar crescia na gua, atravessando as lgrimas que no queriam cair. Havia um apagado de luz branca, em trno da mancha vermelha e cinza de orlas verdes de So Vi cente. Ali estava seu caminho, seu destino. Sou como um inocente que entendesse s eu prprio nascer. Junto de Cristina, anunciada pelo seu cheiro de sndalo, Joana Antnia, compan heira da longa viagem, apareceu. Trocara suas roupas simples. Trazia um vestido de adamascado escarlate, argolas de ouro e chapu com uma pena frisada que o vento mrno fazia viver. Hoje Joana Antnia estava decidida e cheia de coragem. Seus olho s cercados de tinta escura, como so os das mouras, luziam de bravata e no de chro: A menina bem me pode dar seu adeus... Se bem me fio em mim mesma, no lhe aj untei mal ou desgraa nesta enorme viagem... Adeus... respondeu Cristina com sbita secura, sem voltar-se de lado. Pareci a um retrato com fala e gesto, quando mais disse: Deus Nosso Senhor a acompanhe. Ai, quanto a isto, menina, Deus Nosso Senhor estar comigo, bem que no tenho dvida. le pessoa mais companheira e sem orgulho... Chegava o Capito-Mor. Nunca, como nesse momento, le lhe pareceu um galo nvo, passeando sua crista e seu esplendor em meio a outros apagados e servis emplumad os. Era distinto, fino, engomado e lustroso como boneco de prncipe. O cabelo caa e m ondas de mulher; a mo que o alisava para trs mostrava o grande anel de lpis-lazli, com seu escudo. Bom dia, senhora minha disse le a Cristina, passando junto de Joana Antnia, que se retirava, no a vendo, nem a sentindo. Se soubsseis o que esta terra, e stes endemoninhados sem Lei nem Rei, no gastareis aqui vossa gentil presena e, no esperan do resposta, enquanto acenava para terra, acreditando que j fsse visto: Em outrostempos, os desesperos de amor e as mgoas de famlia se aquietavam nos conventos. Ag ora, toca a passear a mgoa por um mundo diferente. Cristina sorria, deslindando as palavras com alegre afetao: Basta de tristezas. Espero no ter gasto todo meu dinheiro em vo com tantos c obiosos, neste barco. E saiba Vossa Senhoria que vou ser feliz e que no venho esqu ecer-me, mas viver... O Capito-Mor continuava a acenar; depois, brusco, pondo na ma seus olhos azui s frios, a puxou pelo brao tremente, falando em cr de voz mais ntima: Cure-se a menina de iluses. A pobreza arrogante desta terra! Os ndios feios como judas, os brancos sujos, fanfarres briguentos, os negros fazendo o que lhes ensinam, como monos. Os padres disputando com os brancos, mas lhes dizendo as mi ssas. E as mulheres escondidas em casa como coelhos nas tocas, ignorantes e obst inadas. E enquanto cortejava a gente que j o podia distinguir, com um aceno altanei ro: Vde bem esta misria. De perto ainda pior! Porque ste povo cheira diferente... Se algum dia descorooar, contai com minha valia. Cristina foi prendendo a mantilha, enrolando-a no pescoo: Com esta gente de que fala no viverei eu. H de ser com meu esposo, que tem m eu prprio sangue, e ser um homem igual a meu irmo. O Capito-Mor balanou a cabea, mirou Cristina de cima a baixo: Deus Nosso Senhor conserve a alegria da menina, e tambm sua beleza, em terro to sem galas. Adeus! Cristina se viu, descida do bote, num atordoar de povo que a olhava como s e ela viesse de outro mundo. Ela ficou a contar suas arcas, a vigiar os tripulan tes que as traziam para a terra. Como reconheceria Tiago? Voltava-se depressa, e m sustos, a cada instante. Mas o homem que podia ser seu noivo j a inquiria com j eito desaforado na face. Eram todos curiosos, e as suas coisas excitavam intersse geral. O mo que a acompanhava empurrou com o corpo, de lado, certa mulherinha esc ura, de duros cabelos, que passava a mo pelo seu vestido, como algum encantado a a lisar um bicho. Arreda! Arredem todos! Nesta confuso se chegou uma figura estranha: um mestio ruivo, de face sarden ta e rosada, de olhos fendidos no rosto chato. Vestia roupa decente, cala de algo do, gibo de couro. Ei... Procuro a dona mandada pra meu senhor... Cristina, embora em sua tonteira de emoo, quis ajudar. Seria o criado para l evar Joana Antnia... E mostrou: Vai acol. Espera ali sombra... Mas o criado a olhou, de lado, suspeitoso: Sou da Lagoa Serena. Meu senhor aqui me mandou pela dona de seu filho... T iago, meu sinhzinho. Cristina sentiu o sangue no rosto: Tiago no vem? O mestio olhou a ma... triunfante: Aimb leva a dona dle! Cristina viu dois homens quase despidos, escuros, de cabelos lisos e sem b arba. Pareciam gmeos. Gente boa. Gente da Lagoa Serena. Aimb mesmo caou les pra meu senhor! Os ndios, com Aimb, carregaram as arcas. Um homenzarro barbudo e em farrapos puxou a mantilha de Cristina, e riu, um riso de dentes prtos: Ai, a branquinha to fresca! Aimb lhe cortou a exploso: a sinhzinha pra Lagoa Serena! O homem fechou a bca, deu um passo desajeitado para trs, fazendo o arremdo de uma escusa ou de um cumprimento. Ela arrebanhou firme a saia na mo, e enfrentou a populaa formada de faces espantadas ou admirativas, ingnuas ou caostas. Desviou os olhos de uma mulher morena, s de saia, com os longos seios, bambos, expostos; deu com o brao no peito de um velho que ria divertido para ela, intrigado como se e la fsse um boneco de engono. Uma ave, no ombro do velho, dava gritos terrveis, ofen dida e solidria com seu amo, logo que ste foi empurrado. Cristina estava agora animada de herosmo obscuro. Aceitava tudo, queria tud o aceitar com perfeita naturalidade, porque ao fim daquele fio de cenas e aconte cimentos ela teria Tiago, o seu Tiago; to bom, decerto, como seu irmo, e ainda mai s belo. Exatamente como aparecia no medalho que escondia sob o vestido. Merendou nesse dia em casa limpa, de grande portal de pedra, de cho pisado. Uma bugra silenciosa serviu-lhe o po de milho assado na brasa. Silvria, a dona da casa, fz sentar Aimb a seu lado, na mesa nua, coberta de pratos de barro. Aimb hav ia sido mandado a comer na gamela dos criados e protestara. No deixaria sua senho ra s. Enorme sopeira de porcelana ficava no centro da mesa, como rainha de tudo. Mesmo tampada, deixava escapar uma respirao de fumaa. Era a honra e a glria da hospe dagem. Por tantos pratos ali postos, parecia que Silvria estava aguardando outras pessoas. Ela veio, cheirando a forno, repinicando as largas cadeiras enroladas em pano branco, adejando a saia estampada de flres, e destampou a sopeira: A tem, menina, a nossa canjica. o que h de melhor. Bem quente e tenra de se trincar. Ps no prato aqule caldo de caroos, que fumegava. A bugra veio, untado o cabel o de banha de galinha, uma cruz de prata pendendo do pescoo, cruz animada, que da nava, era tda a sua vida de autmato. Trouxe leite, deitou uma concha de acar. Em segu ida apresentou a canela da ndia. Cristina provou, sem entusiasmo, daquela brancur a de canja. Era a primeira vez que comia em terra, e aquilo, decerto, seria manj ar comum do povo, com o qual iria conviver. Aimb abriu um pouco seus olhos difceis , apertados. Fz gravemente a pergunta: Bom? Cristina tomou mais uma colherada, como a certificar-se de seu gsto: Bom! Muito bom! Aimb riu desafogado. Mas eis que l dentro, do longo corredor escuro que conduz cozinha aberta, r ebentam gritos, gritos humanos em algazarra, nasalados, em torrentes de palavras que no se entendem. Aimb se levanta, se precipita, envereda pelo corredor. E Silvr ia, depois de instantes, vem a queixar-se com certa cerimnia, enquanto o alarido continua: Menina, os seus criados no se comportam. Empurram os outros. Cristina levanta-se. Posta fora de casa, no terreiro, estava uma enorme ga mela, a mesma bacia cavada na madeira, onde, na sua quinta, iam comer os animais . Mas ali comiam homens! Alm de seus dois ndios, mais trs escravos l estavam: um neg ro e dois mestios. Aimb agora falava alto, zangado com os escravos da Lagoa Serena . Enquanto lhe respondiam les, os trs outros servos, curvos sbre a gamela, iam apan hando mancheias de um piro amarelo, e devorando sfregos, como ces humanos, aquela c omida. Silvria apontava os ndios que vinham com Cristina: les se imaginam importantes, porque so homens da Lagoa Serena, e querem come r antes dos outros. Mas em minha casa gente de cozinha tda de gamela igual. Os ou tros estavam famintos, por que vinham atrasados a buscar outra noiva que chegava no barco, e os pobres correram tda a manh, como pres! Cristina dirigiu-se, enrgica, a Aimb e aos dois escravos: Parem com esta algazarra, que farei queixa, quando chegar, e tero seu casti go. Aimb fechou a bca, mas um dos ndios disse, resmungando: A dona nhehen, nhehen, Aimb nhehen, e a gente fica sem fra na barriga pra car regar bagagem. E o outro concordou quase chorando: Aqules dois comem tudo! Diante dsse ato de insubordinao, Aimb no se conteve. Como estivessem vergados, bem juntos, le os apanhou de surprsa, as fortes mos em garras, pelas nucas fazendo estalar com fra, como nozes em estrpito, as cabeas uma na outra.Seu tom rseo de pele se tornou rubro: Cachorros comem s resto disse. Os ndios ficaram quietos, olhando como bichos amedrontados a entusiasmada c omilana na gamela, e se arredaram, submissos. Cristina estava assustada. O pior amo em sua terra no trataria assim o ltimo servo. Quando stes acabarem, d comida aos meus! disse a Silvria. Quero que comam szi hos. Volte a menina sua canjica, que ela esfria, e fique sem cuidado. Tudo se f ar conforme quer. Aimb acompanhou a ma. No os castigues mais, sem minha permisso. No quero. Darei parte se me contrar ias disse ela. Cristina se sentara mesa. Tomava a sua canjica, mas esta j no lhe sabia bem. O mestio, porm, pareceu no compreender seu constrangimento: Aimb mesmo apanhou les disse obstinado. Aimb castiga, quebra a cabea dles. M senhor no zanga, acha at bom, porque eu trouxe essas coisas e tambm muitas outras d o Serto. A dona no sabe. Meu senhor no ralha nunca com Aimb. Mal Cristina terminava a merenda, e a casa de Silvria era sacudida pela int empestiva chegada de Joana Antnia, ofegante, o chapu de pluma a cair-lhe sbre um lho . Vinha acompanhada por um guarda de farda nova para o agrado do Senhor Capito-Mo r. le a segurava por um brao: J se h de ver se vosmec tem marido ou companhia. Querer que arranje seguida e cavalos para So Paulo de Piratininga, sem dinheiro, dizendo que vai casar com um tal mestre Davido... Antes que Cristina tomasse parte na conversa, Joana Antnia reagiu: Pois se tivsseis pacincia, sabereis que guardo dinheiro comigo e muito o bast ante at para comprar vossa precioso servio e o de outros... No quero burlar ningum. O homem estava irritado: Esta uma terra de finrios, de estranhos que chegam sempre com uma rica idia na cabea, mas de blsa vazia. E ao depois tambm sei muito bem das qualidades de quem trato. L no barco me disseram... E preciso cautela. Se vosmec fala comigo, me tra te como a um branco, no como a um negro ou a um bugre. Ai, meu rico senhorzinho da guarda do Senhor Capito-Mor. Que linguagem quer eis? Nem bispo sois, nem prncipe, bem se v, malgrado essas meias novas, e a nova c ala azul e sse chapu tambm nvo. Trazeis sapatos furados, no tivestes a fortuna de ganh ar outros... Mas... que dizeis? Digo e repito a vosmec que no quero que me tratem como negro ou bugre! E quem vos trata assim? Vosmec. No custa... discutir como... branco. Irra! No entendo o que quereis, falo em boa lngua. o bastante. Silvria vinha da cozinha, para dizer que os escravos de Cristina haviam ter minado a refeio. Joana Antnia se desembaraou do guarda e se dirigiu a Silvria: J neste pouco tempo aprendi que aqui os bonitos vestidos como o meu custam bom dinheiro... Quase no existem. Quanto me dareis por ste? e ela volteou nervosa p ara mostrar o efeito de sua saia de adamascado: No tenho ouro para tanto... Mas... e Silvria se chegava fascinada. J recebi u m, no to bonito, de uma tia que se finou, e por testamento. Agora est velho e rasga do. Prometo... Eu prometo dar muito... menina. No oferea a outra, antes que lhe di ga qual a minha troca... Espere... Uma junta de bois... Mais um escravo... No bas ta... no? Joana Antnia sentou-se sbre o longo banco, rindo-se desafogada, fingindo ign orar Cristina. Olhou desafiadora para o guarda: Estou j mais rica do que vs... Deixai-me tratar de meus negcios em paz, que t enho tino. Cristina saiu de seu silncio: da guarda, que trato quereis?Pois quem se estima... diz Vossa Merc... ou vosmec, que mais fcil... No faz ma l lngua dobr-la uma vez por outra. Com todo o respeito a Vossa Merc... ou a vosmec, mas esta senhora veio comig o, e sei que diz a verdade. Voltou-se, fria, para Joana Antnia: Seus criados... Os escravos de mestre Davido esto l fora. Quem disse tal coisa menina? perguntou Silvria, de testa franzida. Pois sero, certamente, aqules escravos que vieram buscar a noiva... Perdoaime interferir em vosso bom negcio. Esto l no terreiro, senhor guarda! Se vosmec quis er, pode ir ver. O guarda saiu para a cozinha. Graas pela ajuda. murmurou Joana Antnia comovida. Faria por quem quer que fsse disse Cristina, dando de ombros. Mas... o vestido? Silvria insistia, sabendo que no obteria outro igual. Eu a inda posso juntar... algum... pouco... dinheiro. Joana Antnia estava alegre, sem que a afetasse agora o desdm de Cristina: Que me perdoe a hospedeira... mas se me vieram mesmo buscar, eu guardo o v estido para alegria de meu noivo, o mestre Davido... Pelo que vejo, me olharo com inveja muitas damas de So Paulo de Piratininga. Ah, bem sei que aqui j valho algum a coisa... IICristina quis conversar durante a viagem. Aimb vinha a seu lado, examinava o arreio da bsta em que montava a ma, corria a zelar pela carga que os outros anima is levavam, mas o que le dizia era pouco. Cada homem olhava por sua montaria. A v iagem seria longa. Logo sada de So Vicente, ia admirando aquela fartura de plantas que se adensavam, buscando umas s outras. O caminho era mal aberto, parecia arru inado. Lembrava-se da quinta, das penas que o povo sofria para juntar sua lenha, e aquilo era, ao princpio, como um desperdcio, um mar de plantaes que vestiam por c oisa alguma a terra tda, a terra que em Portugal seria nua, se jamais a cobrissem de trabalhos e canseiras. Os arbustos iam crescendo, as plantas de largas flhas a les sucediam, aparec iam rvores enormes enredadas de crinas. Ela queria saber se esta riqueza poderia ser de todos: Quem o dono? perguntou a Aimb, afinal, de to duvidosa. O Padre Nosso que estais no Cu, santificado! respondeu o mestio, rindo. Ela no teve agrado. Achava que le fazia caoada. De repente sua viso abriu, medrosa. Pelo alto do animal via passarem as flha s das rvores, como mos que a poderiam pegar. Ento... por aqui no h ningum? S gente pequenina, de ps para trs disse Aimb, rindo. Branco no come aqui. Br o vai correndo depressa . O ltimo ndio se atrasara com a mula. Tui! Aimb chamou. Fz Cristina parar. O outro ndio tambm ficou esperando. Aimb gritou novamente: Tui! e o vento levou aquela sorte de uivo sbre a planura mida, encharcada, rescende ndo ainda ao mar invisvel. Tui estava atrasado, l longe, imvel como um faquir. A bsta esperava, paciente. Apenas os lbios do ndio se moviam, modulando uns pios tristes e curtos, que atraam a passarinhada. Um pequeno povo de pssaros o espreitava, e le duro e rspido, continuava a chamar. Aimb pareceu tambm meio enfeitiado. Ficou parado, ausente, por uns instantes, e depois reagiu: Tui -toa! Tui obedece j... Fica bom filho, seno eu mando embora! Tui parou de assobiar. Dissipou-se o encanto da passarada. O ndio tangeu a bs ta. Aimb o estocou levemente com o cabo de seu chicote: Tui no conversa mais com passarinho, seno eu vou soltar Tui na mata grande! Tui tocou ento, vivamente, seu animal. Aimb fz o ndio tomar outro lugar, logo d epois de Cristina. E a ma viu que uns trs pssaros, dois verde-escuros, e um amarelo, ainda o perseguiam com seus vos, meio estonteados. Depois les se perderam entre as rvores, e foi a montona seguida de claridade e de sombra, de rendas de verdes. A lm, no dia que descambava, era um bafo friorento que parecia habitar. Muitas vzes de l vinham arezinhos de arrepios, quando o vento mudava. Os trs homens andavam ca lados. Aimb ativou ndios e bstas: Minha dona vai dormir bom. Minha dona comer bom e dormir fechada. Dormir b em fechada. J agora era uma viso no descampado, que emocionava a ma. Maripsas sem conta se desprendiam, do cho. A terra fervia de maripsas, que se desatavam do verde, como f lres a cobrar vida. Que lindeza! Mas o ndio, atrs de Cristina, assinalou as mariposas: Terra mole; no presta. Afunda, acaba tudo! Mais adiante, Cristina perguntou a Aimb: Piratininga... Piratininga agradvel, bela de se ver? Tem boas casas? Boas casas. Piratininga... bela respondeu o ndio com entusiasmo A noiva de Tiago apontou a enorme muralha verde-escuro barrando o horizont e. Fica muito longe, Piratininga? Longe! ecoou o escravo. Com as sombras da tarde, e a aproximao daquele desfile tenebroso de montanha s, que se encostavam erectas umas s outras, numa procisso de guardas gigantescos, insinuava-se na alma da ma uma desconfiana torturante: Longe? Ao p da serra? perguntou. Mais alto. Alto?... Como aqules pssaros que ali voam? To alto assim? Mas eu nada vejo! Mais alto do que passarinho pode voar! Mais alto? Deus meu! Onde? Onde est aquela grossa nuvem? Piratininga... depois de passarinho... depois de serra, l longe... J era quase a noite, quando o caminho abriu mais, numa rampa. De longe fres ca surprsa um galo mandou seu canto de coragem atravessando os ares. Comeou uma la rga crca de taipa, em breve alta como os muros de um convento. E veio logo o port al, guardado por um ndio. Aimb se adiantou: Gente da Lagoa Serena. Avise seu senhor! O ndio, le szinho, destrancou a porteira. Cristina se viu num largo ptio, junt o de uma grande casa, cuja cobertura de palha avanava sbre vrias colunas de madeira . Naquele rmo, algum tangia uma guitarra. Mas certa voz de homem, voz mole e quent e, j sustava seu canto. Cachorros vieram ladrando. Da coberta saiu um homem traze ndo na mo uma lanterna que aclarou, bem junto de Cristina, o rosto viril e barbud o, todo envolvido de cabelos, como cabea de leo. Cristina fz um ligeiro recuo, mas aqule bom leo ruivao, depois de examin-la, declarou: J esperava a senhora dona. Entrai e descansai que em nossa casa nada havere is que recear e para Aimb: Vigiai a carga, mas l na outra casa, onde tambm podereis comer. O ruivo hirsuto ajudou a ma a descer, entregando a lanterna a um de seus ndio s: No sabeis quem sou eu Cristina se achava pequena diante dle. Mas sei que soi s a prometida de Tiago, meu bom amigo. Pois entrai. A casa o pouco que vos posso oferecer... Dom Guilherme Salto d Ajuda, a fera ruiva, houvera construdo sua bem vigiada c asa num ponto de reunio dos caminheiros. le era tranqilo, saudvel, quieto e metido e m sua toca, como um gato selvagem. Desprezava as viagens, porque, nas suas terra s, sabia tanto ou mais que os viajeiros de acontecimentos do Serto, das minas que se abriam, das guas dos rios e do mar. Tinha sempre em sua propriedade ndios mans os e ativos para vender. Contavam em So Paulo do Campo de Piratininga que le possua um vinho todo especial s para fazer seus bons negcios. Enriquecia na preguia, rece bendo gente com fidalguia. Os enganados por Dom Guilherme nunca o perseguiram co m seu dio. E havia em So Vicente pessoas que juravam que le sofrera perseguies injustas de amigos de El-Rei. Era um passado de lutas e de guerras, que ali viera esqu ecer e curar. Cristina lavou-se em bacia de prata, com gua perfumada a ervas, e uma ndia q ue a acompanhava sua alcova, onde deveria passar a noite, vestiu-a com uma espcie de burel de algodo cheiroso, lavado e escorregadio. Seu senhor mandara a roupa ma, para que poupasse o rico vestido de viagem. Cristina tomou prazer naquela solic itude. No tinha nem o costume, nem o donaire de algumas damas do Reino, que caval gavam com a deciso de fidalgos caa. Fizera sua viagem at ali, como um severo castig o para o corpo. Agora sentia-se bem, depois do trato que recebia. Na grande sala , cujo teto se perdia no negrume, l pelas alturas, haviam aceso fumegantes candei as, cujas labaredas vermelhas danavam com o vento, ora de arrepios, ora de calor, que vinha da larga porta escancarada. L fora, num braseiro, postas de carne eram penduradas em ganchos suspensos de um portal de pedra. Escravos cortavam lanhos de uma carne de que Cristina des confiou. Pareciam-lhe postas de mula ou de jumento. Dom Guilherme Salto, rindo, tomou a mo da ma, levou-a porta: Dizei-me: que pensais desta carne? Cheira bem, no cheira? Agora, com franqu eza, de que animal vem ela? um veado, um vitelo ou um javali? e le ria, esplndido; espcie de sol selvagem. Cristina sentiu o rubor: Ai, se vs perguntais... Para mim, que bem conheo, isto carne de jumento. Mas se a vida rude aqui... no podemos desprez-la... e antes seu cheiro me chama o ape tite. Nunca pensaria, Dom Guilherme, que desejasse com-la... Mas sou franca. Ela cheira a delcia. Senhora... e Dom Guilherme fz uma careta cmica. No iria aguardar a noiva de T iago com um banquete feito com as postas de qualquer mula velha, sofrida e cansa da. Aprendei que nossos costumes no ficam sempre to puros, nem os de comer, nem os de vestir. Os ndios nos ensinam algumas coisas boas. Esta carne faz a delcia dos bugres. carne de anta, um animal que tanto tem de mula como de porco. Mas a vian da boa! Cristina se serviu do fgado da bsta. Era tenro, de paladar rico. E a ceia fo i alegre. Quando havia um silncio, caam sbre les sons estranhos. Pela porta vinham o s rudos da noite da mata. Eram como risadinhas, depois gritos, depois palpitaes que se sentiam no ar. Dom Guilherme viu o rosto franzido da ma e levantou o copo de prata. Tomou u m gole de seu famoso vinho indgena, que oferecia aos seus hspedes. L fora, agora, v elava a noite, com todos os seus sons indistintos: Bebamos a ste quiriri, a esta garganta do silncio da terra. Enquanto se ouvi rem estas coisas, estamos bem... Ningum nos far mal. Nem ndios, nem brancos, nem fe ras. a festa da Caaguau, a grande Mata. E h quem tenha mdo do quiriri... Pois que s l e sempre vos seja doce companhia, at chegardes a Piratininga. Cristina molhou os lbios no copo. A bebida era forte, mas sabia bem, vinda com a carne sangrenta. Tomou um gole e logo sentiu uma barra quente sbre a cabea, como se boa mo aquecida pousasse em sua fronte. Viu-se feliz e corajosa, mas com preendeu que era sbita demais sua alegria, e pensou como se fsse a guarda, a irm de si mesma: Mais nenhum gole, do contrrio logo estars tonta mesa dste desconhecido. vossa bela hospedagem, Dom Guilherme! e depois, querendo dar solenidade, e no intimidade conversa: Bebamos sade de El-Rei Nosso Senhor! E a ma pousou, apenas, o copo nos lbios. Pois... sade de El-Rei! . disse Dom Guilherme. E logo, em tom mais baixo: No convideis os parentes e amigos, ao chegardes, a essa prova de dedicao. Nem todos le s so como eu, to alcanvel s graas de uma dama. Tudo era contrrio quilo a que estava habituada... Cristina nem perguntou por qu. Tomou aquela advertncia mais como uma oportunidade para o galante, o feio e to atraente Dom Guilherme. Mas logo le lhe pediu novas de Lisboa, e ela o foi infor mando sbre casos do Reino. Quando a ceia findou, le tomou da guitarra e cantou canes de amor, como se estivesse em alegre serenata, sob o balco de qualquer bela, na ptria distante. Crist ina o viu exaltar-se, dela inteiramente esquecido por momentos. Havia o mesmo es tribilho, que le repetia em vrias melodias: So trs notas, so trs notas, Que sobem, descem e caem. De Marias, de Carlotas, D Isabelas so meus ais... A ma, com a necessidade que tm as mulheres de romance e de intriga, viu em Do m Guilherme um infeliz em amres, ali guardando sua desdita. Quando le fz uma pausa, ela delicadamente insinuou: Parece-me que sses ais so muito de vossa pena... E aqui viestes buscar sossgo de alguma atribulao. Fao mal em perguntar? Dom Guilherme riu estrondoso e as barbas e os cabelos lhe palpitaram em trn o figura vermelhenta: Aqui no habito por males de corao, mas de meu sangue violento. E vs? Lanar-vos to solitria por sses tapados de rvores e de ndios? Minha histria no tem mistrios, Dom Guilherme. Venho casar, como sabeis... Bem raro me parece que to bela senhora venha buscar marido nestas lonjuras do demnio, mas e le riu alongando as pernas e batendo estrepitosamente com os ps no cho as mulheres no carecem de razo como ns. Principalmente quando so belas. Senhor Dom Guilherme disse Cristina, com sbito acanhamento. Se me permitis, vou retirar-me. Estou morta de sono. Uma ndia chegava para retirar as sobras da ceia. Trazia roupa limpa e alva mas seu vestido frente estava aberto, desabotoado, e o seio esquerdo, quando ela se debruou, veio mostra. le derramou sua clera: Pag infeliz ralhou sabeis que teu senhor quer decncia nesta casa! Compe-te, a via-te, cunh sem juzo! A ndia aconchegou a roupa, medrosa, sem jeito. Depois apanhou uma bandeja d e barro, com restos de carne, e saiu assustada. difcil ensinar um ndio a vestir-se. les mostram a pele como os bichos mostram o plo. Escusai-me, senhora, quereis dormir? Nada mais justo. Desculpai-me a ceia rstica e os criados to broncos. Podeis dormir tranqila. Cristina o saudou e se dirigiu a seu quarto. Sua cama consistia num estrad o sbre o qual se via um alto e ffo colcho de palhas. As cobertas eram de pano gross o, spero para sua pele. Apesar do cansao, Cristina no podia dormir. Dedilhava Dom G uilherme, agora, certa msica brbara, tristonha e montona. Devia ser msica dos nativo s. Sua voz ia engrossando, enrouquecendo. le estaria bebendo ainda mesa. Afinal, Cristina caiu num curto sono. Depois ouviu rumres e acordou, o corao batendo forte. Levantou-se. Fecharia a janela que houvera deixado aberta, porque confiara nas grades de madeira que a resguardavam. Estremunhada, viu defronte a casa dos cria dos, iluminada por fugidios raios que clareavam a larga janela aberta. Havia um tumultuar de risos de crianas e a voz bbada de Dom Guilherme entoava a mesma msica montona e brbara. Cristina ali ficou, a garganta aquecida e abafada, inerte. Na co nfuso de sombra, e de luz viva, viu Dom Guilherme passar, inteiramente nu, abraado a duas ndias tambm despidas. Em seguida, pelo quadro de lume desigual, passou um grupo ruidoso de ndias nuas, com seus gritos e seus risos de meninas. Cristina fechou a janela de mansinho. Pensou que ia chorar, a cabea escondi da nas cobertas. Mas seu terror foi to grande, que ela no chorou. Ficou ouvindo aq uela roufenha melodia de Dom Guilherme, e procurando esconder seu pensamento de tal orgia de pecado. Em vo. Ouviu gritos. Gritos, e o tropel das mulheres-crianas. S dormiu quando tudo serenou. J os galos amiudavam o canto. Despertou moda, atribulada. Mas ao abrir a janela, a luz jorrou to alegre, o verde lhe pareceu to belo, as aves desconhecidas to ricas de suas vozes, que ela se sentiu purificada de lembranas. No riacho, ao lado da casa, dois indiozinhos m ergulhavam, rindo. Vinham tona, atiravam gua um no outro. O que se passara, acont ecera como um sonho de dissipao. Vestiu-se e se preparou para dizer, muito naturalmente o seu adeus a Dom G uilherme.III Diante da casa, depois de ter tomado a sua refeio, Cristina se despediu de D om Guilherme. J ao sol da manh que rompia, era outro homem, o mesmo fidalgo que a recebera. le mesmo estve a perquirir com os ndios sbre providncias de segurana da viag em. Forneceu a Aimb mantimentos e entregou uma carta a Cristina, para que ela lev asse a Tiago, em testemunho de sua amizade. Quando acomodou a ma sbre sua sela, Dom Guilherme disse: Levai de minha parte um recado especial a Dona Isabel. Dizei-lhe que a sua passagem por esta casa deu a ste velho solitrio grande alegria. Depois, mudando de tom, meio jocoso: Logo que estiverdes longe de vistas curiosas, ser bom abreviar tanta roupa junta, neste sol inclemente. Que vosso pudor no prejudique vossa boa disposio, impe dindo que chegueis to bela e disposta, quanto eu vos vejo. Adeus, Dom Guilherme disse Cristina. E a pequena comitiva rompeu a trilha pela manh varejada de um sol nvo, salpi cando de luz amarela os cimos das rvores da paisagem. Aimb havia calculado a viage m em trs dias; ste era o segundo. Durante tda a parte da manh, e at ao meio-dia, a vi agem foi montona, porque tudo era sol, ramos folhudos e perpassar, de quando em q uando, de pequenos animais selvagens que se escapavam correndo pela estrada inva dida de ervas. Mais tarde se encontraram com uma reduzida expedio que partia para So Vicente. Era um artfice chamado a Piratininga para servios da Cmara, e que vinha ainda furioso pelo pouco da sua paga. Quando soube que Cristina ia para a Lagoa Serena, perguntou-lhe sco: Que vai fazer a gentil ma naquele convento de mulheres? e como seu acompanha nte puxasse pelo seu brao, numa atitude de quem quer alertar o inconveniente, le no se emendou. Mirando Cristina, fz esta declarao, to pouco tranqilizadora para a moa: Se vosmec pretende casamento em Piratininga, com a raa da Lagoa Serena, melh or seria servida se houvesse ficado em Portugal, como criada de convento; porque vosmec vai ter muito pouco marido mas muita pena e servio. Cristina reagiu com tda a sua fra de mulher portugusa: Sois um despeitado e quereis envenenar minha chegada. Se vos pagaram pouco , deve ter sido muito bem merecido, pois bem se v que vossa natureza no a de prest ar, mas a de contrariar. E com sse dilogo, to pouco ameno para a viagem num deserto de folhagem, se se pararam as duas breves comitivas. Como Dom Guilherme dissera, j mais adiante, o s ol, mesmo encoberto de quando em quando pelos ramos, se foi tornando penoso de s e suportar. Cristina primeiro abriu a gola; depois, passando a mo suada, com um l eno, pelo seio, desapertou o vestido. Mais tarde, pedindo a Aimb que parasse, se o cultou atrs de um pequeno barranco, despindo a longa angua engomada, debaixo da sa ia. Pouco a pouco, com a subida, nova vegetao se acrescentava quele perpassar de pl antas frondosas. Flres desabrochavam, amarelas, azuis, vermelhas, roxas como o ma nto de Nossa Senhora da Paixo. Transpuseram um riacho de gua fresca, onde as mulas se dessedentaram. Comeram um po de gsto diferente, que Aimb trouxera para merenda. Depois dessa pausa continuaram a subir, mas j a a viagem era mais penosa. Grimpav am os animais com menos facilidade. Muitas vzes seus cascos firmavam-se em pedras que se deslocavam e rolavam pelo caminho. Cristina resvalava a todo momento pelo arreio do animal. Ela se queixou a Aimb. Dona fica contente. Daqui a pouco dona tem que apear. E a viagem prosseguiu assim, ora baixando Cristina a cabea, puxados seus ca belos por espinheiros, no alto, ora contornando obstculos. Quando a subida avanou mais, a ma comeou a se assustar. J as pedras, que os animais faziam rolar, caam em pr ofundezas que ela no podia medir. Mais alm, com a fresca da tarde, chegou at o pequ eno grupo um tldo de nuvens, que se desprendia do tope do monte, e avanava cobrind o tudo de umidade. Pouco a pouco, j esquecido o sol alvissareiro da manh, o que ch egava era um mdo to estranho, como o que devem sentir os bichos. Cristina no receav a cair, mas aquelas nuvens frias, o verde negro das flhas, tudo que estava encobe rto lhe transmitia a impresso de que mares ocultos iriam assombr-la da a pouco. Aim b queria que a viagem prosseguisse at mais tarde, porm Cristina pediu-lhe que parasse. Ficassem por ali at clarear a madrugada. O ndio ainda fz ironia: Quem tem mdo no senta; quem tem mdo corre. Mas, instado por sua senhora, logo preparou dcilmente o descanso de todos. Aliviou, com os outros ndios, as bestas de suas cargas, amarrou-as a rvores e prep arou um leito para Cristina, com uma pesada manta. Mandou os ndios apanhar gravet os, fz um pequeno fogo e ficou de vigia enquanto os dois escravos dormiam, derrea dos de cansao. Cristina lembrou-se de Dom Guilherme, sentindo suspenso, sbre ela p rpria, o infinito murmrio do quiriri da mata. Estava saciada ainda com as sobras d o banquete de Dom Guilherme, que ela saboreara com aquela espcie de po de uma fari nha desconhecida. Alm dos ltimos galhos, rasgado par nuvens que passavam rpidas, um cu distante com estrlas embuadas espreitava. Um cu que fazia pensar em salvao difcil, na escravido do corpo humano, e nas penas e nos sofrimentos postos em alcan-lo. Com o em tda ma de dezoito anos, nela o amor estava muito prximo da idia de cu merecido c sta de sofrimento. Se Piratininga estava longe, se tudo que sofrera de cansao at a gora lhe adormentava o nimo, nem por isso perdia a f naquilo em que seu ser obscur amente acreditava. Tiago seria um prmio. Tiago no a decepcionaria. O terrvel homenz inho, que encontrara antes da subida, j fra esquecido, como demnio que no chega a ca usar mal. Todavia, sses pensamentos romnticos num instante se perderam. Estalaram flhas e uns olhos gateados a amarelo riscaram perto. Aimb, vigilante, atirou uma p edrada. Ouviu-se um ronco, meio gemido, meio ameaa. Cristina cobriu a cabea e fico u espreita do sono, ao mesmo tempo ansiando por le, e morrendo do mdo de que le a a traioas-se. Mas a escurido de sua coberta logo a aquietou. O sono a venceu, e ela s acordou quando as bstas estavam sendo arreadas, e quando uma dana estrepitosa de pssaros riscou de susto alegre seus primeiros instantes do ltimo dia da viagem. Depois dessa parada, Cristina pouco aproveitou as vantagens de ter uma mon taria dcil e a energia do passo da bsta descansada. Logo adiante a trilha apertou. Ela teve que apear. Andaram alguns instantes, montou novamente e em breve aquil o se tornou to desagradvel que preferiu continuar a p ainda por largo tempo. Quando o sol j aquecia, Tui, que estava novamente na retaguarda, teve outro acesso de co municao com seus companheiros alados. E ficou a cham-los, numa espcie de loucura que a Natureza lhe comunicava. Aimb desceu at onde le estava, raivoso, de chicote mo, v ermelho, de sangue s faces, e contra sua prpria fascinao pelo milagroso voejar das a ves que manchavam de cres e resplandeciam em trno da figura de Tui, perdeu a cabea e se atirou de chicotadas em cima do ndio. Com os gritos do mestio e os de Tui, as bs tas se impacientaram. Uma delas passou pela outra, querendo fugir, atordoada. A l tima falseou o p, tentou aprumar-se, mas j era tarde. E, de maneira sbita, desapare ceu no fundo do precipcio que estavam ladeando. Cristina correu, cheia de clera, e ameaou por sua vez a Aimb: Sois um louco! Justamente a arca com os presentes, os vestidos para a famli a de Tiago! Deus meu, que que vamos fazer? e depois de vencer a prpria perplexida de: Ainda que isto atrase a viagem, ireis buscar a arca. Que ser de mim se aparec er sem nenhum presente para a gente de Tiago? Aimb estava penalizado, mas seu desgsto era calmo: Tui culpado de tudo. Aimb vai soltar Tui na Caaguau e arranja outro pra fazer servio. Mas Aimb no desce no buraco no, dona. Tui sentou-se, lacriminoso e desvalido, chorando copiosamente. O outro ndio veio borda do precipcio, apertando os olhos e dando muxoxos significativos. Crist ina continuou obstinada: Se sois nascido nesta terra e conheceis bem estas paragens, deveis saber c omo se pode buscar uma pea cada. Quem sobe por ste caminho deve sofrer sempre danos iguais. Por isso ordeno-vos que comeceis uma busca, porque, se o animal natural mente morreu na queda, o que de roupa no se estragou de tal maneira que se deva d esprezar. Gente de Piratininga sabe perder, dona. Gente de Piratininga todo o dia pe rde. Gente de Piratininga j est acostumada, no chora, nem briga por isso. Se eu abr ir ouvidos para a queixa da dona, e descer neste buraco, vai ser pior. A dona fi ca sem Aimb, com sses dois coisa-ruim, que esto vivos s porque Aimb tem bom corao. Vam s embora, e quando eu chegar na Lagoa Serena, eu conto pra meu senhor que tinha uma arca cheia de pano bonito. Ningum vai pensar que a senhora mentiu. Enquanto Cristina se baixava, pesquisando pelo verde, e admitindo a possibilidade de que a arca tivesse ficado prsa a uma pedra, Aimb empurrou Tui, dizendo: Cachorro no vai atrs de mim, seno cachorro leva pedrada no lombo. Tui fica aqu i, passando fome e conversando com passarinho, como gosta. Nesta altura, Tui j no chorava, uivava. E Cristina, desanimada com a intil per seguio, levantou-se e encarou Aimb, dizendo: Deixai sse pobre de Cristo sob minha proteo. O culpado no foi le, mas sim quem organizou esta viagem, dando responsabilidade a ste infeliz. Meu senhor me mandou fazer a vontade de sua dona. Por isso Aimb, at chegar e m casa, faz o que ela quer. Mas na Lagoa Serena, onde Aimb tem vontade dle mesmo, jura que solta sse diabo no mato outra vez. Minha dona no vai ter muita pena de co isa ruim assim como le, porque por aqui tem muito bicho igual. les no prestam pra n ada, no valem nem o piro que mastigam. Pra gente no gastar o dinheiro do senhor, o melhor mesmo soltar le no mato de nvo. Cristina perdeu as esperanas diante daquele embrutecimento. Se le no se apied ava de um ser humano, quanto mais de umas pobres coisas postas dentro de uma arc a! Aimb continuou a jornada, exclamando: Antes tivessem cado sses dois diabos! Meu senhor vai ficar aborrecido com a bsta que perdeu, e que custou to caro! Continuava a viagem sob uma fnebre tristeza de Cristina. Aqules presentes co nstituam, na sua opinio, o melhor entendimento entre ela e as mulheres da famlia de Tiago. Durante quanto tempo, em Lisboa, reunira, pea por pea, aquelas preciosidad es, com que iria conquistar a boa vontade da sua futura sogra e de suas cunhadas ! Falara-lhe de Me Cndida o irmo. Dissera-lhe que seu tio fizera um relato das qual idades da espsa, numa curiosa carta, que Cristina nunca vira, e em que fra combina do o seu casamento com Tiago. A descrio que o tio fizera da mulher parecia ser est a: Custa a rir, mas quando ri, foi porque lhe abriram o corao fechado. A meiguice a desarma; enrgica mas cede, quando lhe sabem fazer agrados. Pensava na longa saia de cetim azul-violeta que comprara a um comerciante vindo da Frana; a saia de Me Cn dida; num caderninho de notas de veludo carmesim, para Dom Braz Olinto; e nos co lares, gargantilhas, mantus e pequenos objetos que comprara indistintamente para uma e outra pessoa, contando, de acrdo com a presena de cada um, dar a cada parent e o objeto mais apropriado. Acontecera alguma coisa que viera perturbar desolado ramente a ma. Aimb agora parecia mais zangado com ela mesma do que com Tui. Tdas essa s perspectivas de infortnio: chegar de mos vazias, debaixo da m vontade de Aimb, opr imiam de uma angstia vexada sua garganta. Aimb mudara inteiramente de sistema. Se a ma queria descansar, dizia: Sol andando, gente andando, pra chegar antes do sol; e chegava ao cmulo de, nas passagens um pouco mais difceis da estrada, correr na frente com os animais, deixando Cristina desnorteada e aflita para trs. Quando aq ule caminho incerto se tornou uma estrada regular, Cristina, que j estava muito fa tigada, usou de violncia para que houvesse um descanso. Tambm alguma coisa preocup ava alm das preocupaes que j havia experimentado at ali: seu aspecto. Dentro de pouca s horas estaria com Tiago, e temia pela maneira com que deveria ser apresentada a seu futuro marido. Uma copada rvore dava sombra suficiente para que tda a comitiva descansasse ali. Cristina procurou repousar; depois, mesmo com a m vontade de Aimb, abriu sua arca, tirou um corpete, vestiu-o, alisou os cabelos, enrolou a mantilha novament e em trno do pescoo, e passou a inquirir no seu pequeno espelho de prata, se a via gem no a tornara demasiadamente vermelha e manchada de sol. Fixava a ateno na pele que estava rosada, e at lhe ajuntava um aspecto de sade diferente. Cristina era mo rena, de um moreno plido, e jamais tivera essa glria que o sangue nas faces das mu lheres louras ou muito brancas. Teve uma curiosa impresso ao se ver enrubescida d e sol, como se isso fsse um presente de Deus para que ela no chegasse com o seu ar de sempre, excessivamente severo, na cr das mas fechadas, bordadeiras e recatadas. Observava seus olhos, um pouco prximos do nariz, fendidos, apertados nos cantos, olhos sempre molhados, e que representavam demasia de vida e de calor de mocida de, num rosto de linhas retas e falto de sensualidade. A bca estava rubra, sem qu e precisasse morder o lbio fino, como costumava fazer, quando saa de casa. Em cria na, se preocupara em comparar seus lbios, pobres de carnes, com os de mulheres queconhecia. Na viagem, sua bca descorada adquirira um contrno diferente, porque sob ressaa de seu rosto, com a cr que o sol lhe emprestara. To comum no tipo portugus, u m leve buo sempre fra seu cuidado. Achava que le ainda sombreava mais seu rosto plid o, e agora surprsa! o pequeno buo queimado de sol, era penugem de pssego num rosto que nem de longe demonstrava as guardadas e infinitas perturbaes. Enquanto Cristina fazia essa consoladora descoberta, e tendo Aimb, com os d ois ndios, descido margem da estrada, para apanhar gua num crrego prximo, uma comiti va se aproximou. Cristina guardou o espelhinho e ficou a olhar, intrigada, para uma personalidade que marchava frente, montada numa bsta, e que vinha to cheia de mantos e imponente que ela tomou por algum fidalgo excntrico, a andar naqueles er mos, coberto de magnificncias, embora montando animal inferior. S muito de perto f oi que reconheceu: o cavaleiro era Joana Antnia, que vinha, no atrs do cortejo, com o acontecia com Cristina, mas sua frente, num mpeto de general, e levando os home ns, que a acompanhavam aos berros. Ao passar junto de Cristina, descobriu a comp anheira de viagem sentada junto do tronco da rvore, e tda ela, em cascatas de pano s e de plumas, se derramou do alto da montaria para a ma: Que grande gsto meu o de v-la, minha senhora disse cerimoniosa mas alegre. P or que, com to bom tempo, estais a sentada? e num estado de nimo, que admirou Crist ina, sem esperar resposta: J me sinto outra, nesta largueza, com ste cheiro de mat o! Ai. meu Deus, acho que vou mesmo passar de pecadora a virtuosa... Estou to fel iz, ofegante e ansiosa, quanto uma noiva donzela! Que grande revoluo se passara no esprito de Cristina! Ela, que tanto havia ev itado a m companhia de Joana Antnia, no barco, no pde disfarar um sentimento de alegr e surprsa, e riu para ela dizendo: De longe me pareceis um fidalgo d El-Rei caa. Como podeis suportar esta viagem to largamente vestida assim? Joana Antnia erguera a saia e de um salto se pusera no cho, ao lado de Crist ina: Ora, vou l perder minhas ptalas?... Numa terra onde as mulheres nada tm para vestir? Na falta de outra honra, trago esta aqui de sobra. Cristina continuava rindo para Joana Antnia. A antipatia que experimentara por Aimb e pelos seus escravos fizera com que ela apreciasse o encontro de Joana Antnia de maneira absolutamente diversa do que podia esperar. Mas, quando Joana A ntnia se referiu falta de vestidos das mulheres, voltou-lhe a cruel aflio e disse: Joana Antnia, imaginai que vou chegar de mos vazias. Uma de minhas arcas, ju stamente a que levava os presentes para a famlia de Tiago, rolou no despenhadeiro ! Estou pensando como me vou apresentar sem um agrado sequer... Joana Antnia soprou com violncia a pluma do chapu, que amolecera ao sol, e pe ndia como crista de galo velho sbre seu rosto forte e belo, apesar de tanta extra vagncia: No me esquecerei disse ela sria, da bondade que tivestes para comigo, impedi ndo que fsse levada por aqule soldadinho. Escolhei na arca que levo umas quantas c oisas para vossa gente. Se no vos amedronta o cheiro de pecado... as fazendas so b oas. O velho sentimento de asco pelas mulheres de m vida voltou em Cristina de m aneira imprevista, logo que Joana Antnia falou em cheiro de pecado. E mudou de to m, dizendo em voz mais apagada: No vos preocupeis; saberei arranjar-me szinha. Joana Antnia tambm no insistiu. E voltando novamente sua bsta rua, montou-a com desenvoltura, pondo fim conversa: Se fazeis isso de cerimnia, muito bem; sofrereis da cerimnia quando chegar a ocasio prpria. Adeus, senhora Cristina, no quero perder tempo. Vou mandar Davido su rrar stes escravos, que cochilam em p. Nunca vi gente to preguiosa em minha vida. Joana Antnia, inteiramente dona daquelas paragens de grandeza, se afastou, seguida pelos escravos a p, e de caras to sofredoras como sentenciados. Mais adian te, Joana Antnia rompeu numa alegre cano das tascas de Lisboa, e a sua voz, ardente e entusiasmada, chegou a Cristina como um estranho estmulo. Pensou como so as coi sas neste mundo de Deus. No era possvel que por uns poucos pedaos de pano e pela fa lta de alguns objetos, ela pudesse ser to amesquinhada, a ponto de que a mulher d e m vida se sentisse muito mais segura e importante. Riu szinha, um riso meio de amargura e meio de entendimento com ela prpria. Aprenderia a fazer, de si mesma, c onfidente, conslo. Enquanto chamava, com voz sonora, a Aimb e a Tui, pensava que da por diante teria muito que tirar de suas prprias fras. Ai, to distante o irmo! Ai, to longe a terra! At mesmo sua pequena e mesquinha vida desgostosa de l longe lhe par ecia como um teto, uma proteo. Ela agora sentia que, embora caminhando para uma gr ande casa. com muita gente, estava s, com sua fra ou sua fraqueza. IVQuando Cristina se avizinhou de Piratininga, uma iluso lhe ofuscou o olhar. De longe, a vila parecia importante, eriada de fortificaes, com altos muros e palia das. Mas ao chegar perto, viu que aqules eram restos de muros e tda aquela aparncia sofria de incrvel desmazlo. Eram runas. Entravam e saam livremente os porcos; criana s patinhavam na lama a seus ps. Mais lhe parecia a Vila de So Paulo, ao penetrar n ela, uma aldeia em abandono. Ao transpor uma pequena ponte, por ali se quedaram, ela, Aimb e Tui, espera do outro ndio, mandado, havia horas, como mensageiro, avis ar a gente da Lagoa Serena. Cristina se sentiu abandonada na espera. A chegada de estrangeiros no atiava o povo, que deveria ter ficado atrs das janelas, nessa vila estranha. Cristina p erguntou a Aimb: Piratininga isto? Nada mais? Aimb franziu o rosto sardento: Piratininga morre, todo dia da semana. S tem vida dia santo, dia de festa. A fica tudo uma beleza. A espera pareceu-lhe um sculo. De quarto em quarto d hora, chegava-lhe, de lo nge, ao ouvido, a voz triste do sino do Colgio. Procurava observar, no pouco que via, os costumes da nova terra. Mas tudo era to estranho, contrastando com tdas as normas at ali apreendidas por ela! Passava um senhor, acompanhado de um escravo prto seminu. Trazia o homem chapelo de feltro importante, um antigo traje de cerimn ia, mas os seus ps iam nus pisando as pedras. Houvera apreciado o edifcio que deve ria ser o mais rico da cidade o da Cmara. Ainda que encimado por uma espcie de tor reo, que ostentava no tpo a bandeira com a Cruz de Malta que lhe mandava como que o nico adeusinho gentil sua importncia era relativa nicamente aos outros pequenos p rdios do lugarejo. Em Lisboa podia passar por uma priso de bairro. E a ma, na sua es pera, no se descuidava, a alisar-se, a pentear-se, a enxugar o suor do rosto. Ima ginava que, em breve, apareceria ali um luzido cortejo para acompanh-la Lagoa Ser ena. Por mais rstico que fsse ste pais, por certo haveria le de se interessar pelas pompas do noivado, que cabem at mesmo nos stios mais distantes do campo, em Portug al. Pensava que, em breve, numa nuvem de p, surgiriam Tiago, seus irmos, em tda uma pequena crte de amigos e de parentes, para vir saud-la. Tanta aflio de espera lhe p unha um frio desconhecido no corpo. E de repente, como se o seu pensamento fsse u ma anteviso, ela viu, num canto de rua de casas baixas e encostadas, surgir um co rtejo composto de sres confusos, que gritavam, num tropel de cavaleiros e de home ns a p, cortejo que desceu a ruazinha e desembocou perto da ponte, aos gritos de Viva a noiva! Explodiram foguetes. Que viso to cmica! pensava ela, perplexa. Que ge to especial! Aimb lhe puxou o brao: Olha l atrs! Ela se voltou. Alm da ponte, Joana Antnia, ela mesma transformada numa espcie de estandarte vivo, esperava risonha e orgulhosa, o magote de estranhos Cortesos . frente, ia um cavaleiro de gibo de couro, que mal se fechava no ventre sacudido pelo andar do animal. O chapu escapava para trs descobrindo-lhe a face redonda. E ra pachola, muito tpico, e simptico. Eis Davido Cristina viu logo. le havia tambm vi do de Portugal, mas agora era to de Piratininga como um peixe pertence ao rio. Ri scou pela ponte em algazarra e estrpito o noivo Davido com seus amigos. Cristina a companhou o teatro de abraos e de festas. Joana Antnia escolhera marido to ruidoso e comunicativo quanto ela mesma pensou. E logo Davido, Joana Antnia e tdas as pessoa s passaram rente ma. Joana Antnia, vendo-a, parou: Dona Cristina disse, aqui est a flor dos noivos de So Paulo! Vde bem, pela su a grossura e por seu vestir, que homem de vida farta. Acabaram-se os maus tempospara mim! O noivo pareceu extremamente lisonjeado com essa declarao. E batendo com cer to carinho na prpria rotundidade, disse: Ai, quanto vida farta, bem verdade o que diz a menina Joana Antnia! Tda esta glria do bom viver quase me vai por gua abaixo, pelo cuidado que tive com a viage m da minha rica noivinha. Mas agora no lhe faltar nem proteo nem carinho. Ao que Joana Antnia respondeu: Ests bem certo de que ters mulher para proteger? Ou para ajudar a mandar? Me stre Davido, nunca fizeste um to bom negcio, quanto ste que me trouxe aqui. Tenho ga nas de te ajudar em teu empreendimento de tal forma, que havemos de ser, se no prn cipes, pelo menos os senhores mais ricos desta terra. Ainda bem que no escolheste mulher rezadeira, mas de tino e coragem. Cristina ficou chocada com essa assombrosa falta de modstia. Mas a prpria Jo ana Antnia a fz sorrir, dizendo: Dona Cristina, se estiverdes enfarada de vossa vida e de vossa gente, proc urai a mim e a Davido. Estou to contente! Davido, no vamos perder tempo. Toca pa ra casa! Davido fz um cumprimento para Cristina: Pois quando quiser, venha a menina nossa casa. Sou um homem muito conhecid o. s procurar pelo Davido, que at mesmo os cachorros lhe ensinam onde moro. Quando vier a alguma funo da Igreja, esteja em nossa casa, que teremos gsto em hosped-la. E tambm se tiver qualquer coisa para vender, no deixe de procurar-me, que eu dirijo o negcio. No h estrangeiro que no tenha tido comigo um ajuste. Eu vendo, eu troco, tudo debaixo do bom desejo de fazer, no s fregueses, mas amigos. Cristina foi mais calorosa do que supunha: Que Deus vos abenoe disse. O vosso entusiasmo me aquece o corao. E ao dizer aquece o corao , sua voz se encolheu e tremeu um pouco. L se foi despachado o cortejo dos noivos, seguidos por uns poucos basbaques de ps descalos, uns pobretes alevantados, de aparncia sadia, que ela mais tarde ver ia, multiplicados, pelas ruas de So Paulo de Piratininga. Eram boa gente, gente s imples do lugar, to pobres de roupa, quanto ricos de liberdades e soltos na vida, com alegria dentro dles. E depois, quando os sinos j lhe haviam cantado tantas vze s, o ndio veio de volta. Chegou, a cabea pendida, descorooada, e disse: No tem homem. Cristina ficou sem entender: Fala, criatura, explica-te! Que queres dizer? No tem homem e depois de uma pausa: S tem dona, l na Lagoa Serena. Homem est udo no Serto, e ainda no voltou. Me Cndida est esperando vosmec l na Lagoa Serena. No foi nem desnimo. Foi um como de dio, que Cristina experimentou. Grande desco nsiderao, aquela! Era muito menos importante a sua chegada, do que a da pobre Joan a Antnia, acolhida com tanta festa e tanta alegria. Avisado a bom tempo fra Tiago. Bem avisados foram todos. Ela no podia conceber uma chegada no meio de tamanha i ndiferena. Atravessaram uma vrzea. Acima dos barrancos se alinhavam casas pobres, de t aipa. Mas havia em So Paulo de Piratininga uma altivez incompreensvel. Da vrzea, as pequenas casas pareciam crescidas naquele aumento do barranco. Cristina pensou, uma raiva surda a lhe apertar a garganta: Tanta pena, tanto cansao; uma subida co mo se ns fssemos catedral do tpo do mundo! E ao chegarmos... isto: uma pouca sujeir a . Lembrava-se do que Aimb lhe havia dito: Piratininga bela e no ria porque estava to acabrunhada, que no podia imaginar quando poderia dispor da naturalidade de seu riso. Umas trs ou quatro horas depois, atravessaram o rio. Sbre le deslizava mansam ente uma balsa, onde um homem branco, solitrio, viajava, cantando feliz, certa mi stura de cano d Europa e de harmonia nativa. Ao ver os viajantes na outra margem, ac enou, com o brao, e l se foi minguando na distncia sua voz e seu vulto, com uma ale gria diferente. Cruzaram uma propriedade. Um negro, vestindo alva roupa de algodo, to branca de luzir ao sol, contrastando com sua pretura opaca, veio cumprimentar, em nome de seu senhor, a ma viajant e: Meu senhor Joo Antunes lhe manda dar bom dia e convidar para visitar a faze nda. Meu senhor est de comida posta na mesa. Aimb disse a Cristina: Tem que aceitar. Mas Cristina respondeu: Diga a seu senhor que fico muito agradecida com o convite. Logo estarei de volta aqui, e ento terei o prazer de me sentar sua mesa. Mas hoje estou muito fa tigada, e quero chegar depressa Lagoa Serena, para onde j vou com atraso. Esporeou o animal, mas o conteve, ao ver que o negro se abaixava, desanima do: A bno, sinhzinha! Deus o abenoe disse ela, admirada. E a, com mais violncia, tomou o caminho da Lagoa Serena. Ouviu, apesar do tr ote rijo da sua montaria, o comentrio amargo de Aimb: A dona... est comeando errado. A dona... est com dengue demais... No tem homem , no tem mesmo: no adianta ficar zangada.Muito tempo depois ela se lembraria da primeira viso que tivera da Lagoa Se rena. A lagoa, rente pequena aldeia de casas e de compartimentos da Fazenda; e, descendo a encosta, os bois carregando um carro transbordando de lenha. Os edifci os muitos a casa alta, de taipa, com uma varanda, e mandando ao ar um fumaceira alegre; o moinho, as casas menores, o paiol, o muro a cercar a ilha edificada no mar de vegetao, e, diante do muro, no cho limpo, uma fila estranha, tda composta de mulheres. Ao centro, a cabea altiva e branca de Me Cndida, batida de luz, os cabel os soprados pelo vento da tarde. E ao lado, as filhas, a nora, tdas com ar cerimo nioso e ao mesmo tempo simples de disciplina. Do grupo se destacou Me Cndida. Cris tina viu-a caminhar com uma particular dignidade de maneiras, enquanto sua saia de tsco riscado lambia o cho de terra pisada. Abriu os braos: Seja bem-vinda, minha filha! Cristina, desajeitadamente, desceu do animal, beijou a mo calosa e morena, mo de serva, mas talhada em linhas fidalgas. Sua raiva ela no entendia bem como qu e se fra de repente naquele beijo filial. J Me Cndida puxava-a para si mesma, a abraa va num abrao rstico, um pouco duro. Mas seus olhos prtos, pestanudos, de sobrancelh as negras, que lutavam contra a branquido dos cabelos, impondo energia e um resto de mocidade, estavam cheios d gua: Pobre da minha filha disse ela. Beijou Cristina na testa: Compreendo a sua decepo por no encontrar Tiago, aqui espera. Mas... quem sabe se isso no ser melhor? Assim vosmec vai vendo a sua prpria casa e a sua prpria gente , ns, tdas mostrou as outras mulheres estudando nossos costumes para que le a conhea j como filha da casa. A larga porteira se abriu. Me Cndida, segurando o brao de Cristina, entrou em casa. As mulheres cochichavam, meio tmidas, meio curiosas. Havia em tudo uma ext ravagante mescla de imponncia e pobreza, que feriu o corao de Cristina. To mal vesti das! Logo mais teria de revelar seu segrdo. Em vez de raivosa, ela estava novamen te com receio. Fra entregue s mulheres da Lagoa Serena. Perdoariam elas a sua trist e chegada de mos vazias? pensou, filosofando. Desculpem ou no desculpem, decepo por d cepo, afinal tambm tdas elas me parecem meio escarninhas, meio diferentes. S Me Cndida ser o meu prto seguro! Em tudo que vira at ali no havia ela mesma no se explicava bem porque encontr ado a firmeza do apoio e da simpatia, que a figura de Me Cndida lhe impusera alma. Entraram. A sala enorme era mistura de salo de recepo e de depsito de arreios. Sentou-se com Me Cndida num sof tsco e duro. E ento viu-se cercada de mulheres: mulh eres morenas, severas, que a olhavam, obstinadamente, hesitando na pergunta. Uma pergunta que ela bem sabia qual era: Que que vosmec trouxe para ns? VA impresso de que tdas aquelas mulheres eram escuras de rosto, dentro de alg uns instantes se modificou. A vista que delas tivera fra tomada de diante da jane la, que recolhia um muito de sol da tarde, e um tanto da lagoa, morta e brilhant e. Sbre ste fundo luminoso se recortavam as imagens das mulheres que seriam vultos de sombra. Dessas criaturas, Me Cndida puxava uma pela mo: era Margarida, sua nora , a que esposara o irmo mais velho de Tiago. Me Cndida apresentava as duas mas, dizen do: Margarida lhe vai ensinar a gostar da Lagoa Serena. Anos depois, Cristina ainda se lembraria de sua admirao por aquela graciosa figura que sobressaa das outras mulheres, como se ela fsse uma fidalga menina de p ao, ali encontrada, no se sabia por que espcie de acontecimento. At no vestido era d iferente. Enquanto tdas as outras usavam saias de algodo e corpetes soltos, tambm d e algodo, Margarida estava com uma linda blusa de sda, e uma saia de chamalote. Alm disso trazia jias, brincos, colares e o cabelo louro penteado irrepreensivelment e. Parecia injusto ver, na mesma fazenda, uma to chocante regalia de luxo. Todavi a, ela no devia ser invejada ou estar em rivalidade com as outras, porque, enquan to falava, as cunhadas a olhavam com intersse e uma espcie de ternura, como se fsse o orgulho de tdas. Margarida, com muita espontaneidade, disse a Cristina: Vosmec no pode imaginar como estamos encantadas. Quem manda buscar mulher em lugar to distante no sabe o que vem. Nesse momento as outras sorriram. Sempre, c para estas bandas, vm ou as infelizes, ou as feias, ou as que foge m. Quem tem noivo e quem tem vantagens no vai deixar tanta gala e tanta pompa par a vir a Piratininga. Que vosmec no se admire... E Margarida ria, ao mesmo tempo que seus olhos se enchiam d gua, e ela ficava subitamente vermelha. Ns aqui apostvamos como vosmec devia ser. Mana Roslia dizia que vosmec devia se r muito gorda. Baslia, a filha mais velha da casa muito parecida com Me Cndida, um pouco sca, disse, meio amuada: No era por mal. Ns sempre ouvimos falar que tudo que se ganha para engordar o povo do Reino. Cristina sobressaltou-se. Mas j Margarida continuava: Tdas ns brincvamos com Tiago, mas le, afinal, era s quem tinha idia certa, e di se que vosmec no devia desmerecer o retrato que carrega sob o pano da camisa! Ela se sentia um pouco enleada. No sabia como principiar a conversa, at que Me Cndida lhe deu a oportunidade: Venha, minha filha. Vosmec precisa conhecer seus aposentos, e tambm descansa r da viagem. Depois que repousar um pouco, vamos janta. Roslia lhe preparou uns d oces de que vosmec, estou certa, vai gostar. Cristina quis corresponder amabilidade e disse, afinal, o que tdas as mulhe res estavam esperando. Falou, j no hbito da terra: Eu trouxe... uns agrados para vosmec, Me Cndida, e tambm para tdas! Acenderam-se sorrisos pelas faces. Me Cndida foi perfeita: Vosmec no precisa se incomodar, agora. Ns tdas temos tempo de sobra, enquanto os homens esto fora. Deixe pra se ocupar com essas coisas amanh. Cristina voltou a falar, verificando, obscuramente, que a boa acolhida lhe dera uma possibilidade de se sentir, no abaixo, mas acima das moradoras da Lagoa Serena. E apesar de que nunca fsse esperta em manhas e artifcios, j importante pel a recepo, acabou em mentirosa: Infelizmente, Me Cndida, vejo que vosmec ainda no recebeu a arca. Que arca? perguntou Baslia, com os olhos brilhantes. Como estava dela muito cuidadosa, o Senhor Capito-Mor, a quem fui recomenda da na viagem, tomou a si o encargo de faz-la despachar, juntamente com envios seu s, para Piratininga. Disse que, com isso, aliviava as minhas preocupaes. Agora, es tou percebendo que a arca no chegou, porque seno me teriam dado notcias dela. Baslia franzia as sobrancelhas: estranho. Vou mandar perquirir. Em que tempo estamos ns, que mesmo os trast es do Capito-Mor no tm segurana em seu destino?Cristina no ficou sabendo se ela estava ou irnica ou penalizada. Margarida d esmanchou qualquer m impresso: Ora, tenho recebido tanta coisa de mais longe! Por que s vosmecs teriam meno s sorte? Mas j as mulheres acompanhavam Cristina, que ia conhecer seu quarto de solt eira. Quando casasse, teria habitao mais larga e importante. Atravessaram a sala, onde costumavam comer em recato, quando havia visitas masculinas. Os homens ficavam a rir, a conversar e a falar alto, inteiramente v ontade, no salo vizinho. O quarto de Cristina dava para uma pequena antecmara, que comunicava com os aposentos de Roslia e de Baslia. Era muito simples: as paredes de taipa cobertas de cal, um catre com pano limpo de algodo, uma arca ao lado da cama. Sbre a pequen a mesa, a bacia de cobre, j posta com gua. As mulheres no pareciam envergonhadas da simplicidade e at da penria daquele quarto da noiva. Ela sentiu um aprto no corao, mas no estranhou mais. Quando em Lisb oa lhe falavam da riqueza da famlia que agora vivia nas lonjuras do nvo pais, no sa biam como esta riqueza era falsa. Margarida enlaou-a e mostrando com uma graa face ira, a bacia de gua fresca, riu desenvolta, dizendo: Ah, dizem que as mulheres de Lisboa tm duas caras, mas que a verdadeira s o diabo lhes sabe. A est a gua, minha mana. Vamos ver a sua face verdadeira, depois q ue conhecemos a de cerimnia e j sem poder mais sufocar aqule natural ruidoso e comu nicativo, passou-lhe a mo pela nuca: Lave esta carinha de freira. Vamos ver! As outras riram. Cristina riu tambm. E abrindo a gola do vestido, hesitou: Me Cndida, com permisso de vosmec. Mas, nesse instante, Me Cndida j havia sado silenciosamente, acompanhada de Ro slia. E Margarida e Baslia seguiram curiosas o desvestir da moa, estudando-lhe o pe scoo, o busto, as rendas e roupas de baixo, como se ela fsse objeto de grande rari dade. Margarida ajudou-a a lavar o pescoo, as orelhas, dizendo: Tambm sabemos que l no Reino a moda dos cheiros e da esfregao da pele com unge tos e perfumes. Mas aqui os ndios nos ensinam o banho da gua fresca. Isto s por hoj e, porque amanh cedo vosmec, se quiser, pode ir comigo, de camisolo, no remanso da lagoa, tomar um banho muito melhor! O jantar foi servido s quatro horas da tarde, na grande mesa coberta por um a infinidade de pratos, com a comida a fumegar. Pela janela, sempre aquela viso d a lagoa, morna e parada. Uma lmina a cortar a vista dos campos. Havia grande quan tidade de carne de porco guisada e muito cheirosa . A mesa era farta, como Crist ina jamais vira tanta fartura na quinta onde vivera. Tudo era psto de uma vez: vi andas, farofas, compotas. Os escravos no traziam bandejas mesa. les se recolhiam c ozinha, depois de ter preparado tudo. Ao iniciar a refeio, Me Cndida, que a ela pres idia na cadeira importante a nica de espaldar, se levantou e levando a mo testa, d isse: Santa Cruara angau arec. As outras mulheres repetiram: Santa Cruara angau arec. A recm-chegada assustou-se. Seriam aquelas mulheres tdas dadas a magias e a bruxedos? Permaneceu levantada, mas hirta, de olhos espantadssimos, a inquirir a estranha gente, que dizia aquelas palavras misteriosas. Roslia, a seu lado, apert ou-lhe o brao. A caula disse baixo: Vosmec reze tambm. Me Cndida percebeu o embarao de Cristina e, se interrompendo, falou s filhas: Cristina ainda no sabe. Vamos dizer mesmo na lngua dela. Voltou a persignar-se e ento, com aquela sua voz mscula, to parte dela mesma, disse: Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus... Cristina respirou aliviada. Em Lisboa, vivia com temor das feiticeiras e d a ral de religio proibida. Receara ter cado no meio de mulheres que, s escondidas de seus homens, fizessem o que tantas faziam no silncio e no segredo dos lares port uguses: passes de magia, oraes supersticiosas, coisas que infestavam as casas mal-protegidas. O sinal da cruz acabara por dar a Cristina segurana e estabilidade, e foi com alvio que ela honrou o primeiro jantar na grande casa de Lagoa Serena. As mulheres comeram em silncio, e a recm-vinda apreciou a deliciosa compota de fruto s desconhecidos, que Roslia, a caula da famlia, havia feito. Quando estava tranqila e satisfeita, olhou a porta que dava para a larga cozinha e viu nela plantado, d e mos cintura, Aimb, que a fitava, curioso, como a ver seu desempenho. Ento pediu licena Me Cndida, dizendo que ainda tinha que dar algumas ordens. L evantou-se do banco e disse ao mestio, bem alto: Depois me procure, que eu lhe vou dar um agrado pelo servio que prestou e b aixo feche o bico sbre a arca que caiu! Aimb continuou com a mesma cara vagamente divertida. E a ma retomou seu lugar . Margarida ento disse a Cristina: J falei com Me Cndida, e ela me deu licena para carregar vosmec at l em casa. mec no quer acabar seu dia fazendo visita? Roslia, ento, voltou para Cristina o rosto redondo, picado de sardas, vivo e trigueiro: Ah, vosmec vai ter uma surprsa muito grande, com a casa de Margarida! Depois vosmec nos conta se l, pelas suas bandas, tambm tem casa assim e um pouco inconven iente: O perigo a gente gostar demais... Baslia frechou a irm com uma frase severa: A nossa casa to acolhedora quanto a de Margarida. Apenas no to enfeitada, e v osmec no precisa desdenhar do que seu, tambm. Me Cndida disse sem se mostrar aborrecida: Podem levantar, meninas. Cristina respondeu a Margarida: Estou um pouco fatigada. Gostaria de me deitar. Margarida foi imperiosa: Vosmec descansou demais, jantou at demais... No faa dengues comigo. Puxou Cristina pelo brao, e logo, fora de casa, chamou um escravo que dormi tava rente a um tronco de rvore, mandando-lhe aprontar as viaturas. Eram essas vi aturas apenas duas cadeiras comuns, amarradas a longos paus. Em breve, Margarida e Cristina se sentaram e foram atravessando, lado a lado, carregadas por quatro escravos negros, a porteira da fazenda. Do alto, Cristina viu o campo coberto d e arbustos e estatelar flocos de neve. Margarida mostrou, com o dedo em riste: Aquilo ali d a roupa de que a Lagoa Serena precisa. Ns no temos o linho, do f ino corpete de vosmec. E mais adiante mostrou o trigal ondulando ao sol, e que se escondia atrs de um corte escuro de mata: Quase tudo isso aqui obra de Me Cndida. Vosmec conheceu hoje uma criatura ext raordinria e rindo: Mais homem que muito homem... Ladearam um riacho, um pequenino brao d gua da lagoa. A casa de Margarida ficava fora da povoao que constitua a fazenda. Era tda fac eira, no coberta de palha, como a maioria dos edifcios da fazenda, mas de boa telh a vermelha. As janelas tinham rtulas e frente se via um pequeno rosai. Cristina ficou deslumbrada: Rosas por aqui! Tantas rosas! Nunca pensei que aqui houvesse rosas! Margarida no sorriu: Vosmec pensava que espinho no d flor, no ? Ainda havia um resto de luz para que Cristina observasse mincias da casa. Reparou no mosaico da entrada, cobrindo o c ho, nas pinturas das paredes. Deteve-se, deslumbrada, a examinar as extravagantes ornamentaes que atulhavam a casa da nora de Me Cndida. Em cima de uma pequena mesa, coroas de penas, de cres alegres: a um canto, um pano tranado de fibras, com fran ja de colorido vivo. Margarida f-la sentar-se num catre coberto por uma colcha de raro adamascado. Junto, havia outra mesinha com quantidade de conchas de tda espc ie. E, quando Cristina se sentou e baixou os olhos para os ps, reparou que les pis avam o couro de enorme fera, parecendo um tigre. A vista ficou alegremente impre ssionada com aquela confuso de objetos diferentes. No lhe parecia a casa de um bom gsto admitido por sua gente, mas era alegre e agradvel. Do pequeno terrao, ao lado , vinham gritos de aves, e uma delas imitava o falar humano, dando ordens engrol adas, que se espalhavam sonoras. Margarida ficou a observar Cristina, esperandosua aprovao. Via-se que a pressa em mostrar a casa denotava o imenso orgulho que s entia. Cristina disse: Aqui diferente de tdas as casas que meus olhos j viram. Acho a sua mais do q ue bonita: ela me faz pensar em lendas e coisas que se escutam na infncia. No tem jeito de casa, mas eu vejo que lhe deve dar muito confrto e satisfao. A outra exultou: isso mesmo disse. No tem jeito de casa. Por que todos devem morar da mesma forma? Nossa casa minha e de Leonel faz um pouco o milagre que as mulheres daqui tanto desejariam realizar. Veja, Cristina, vosmec est tomando parte nas viagens d e meu marido e nas minhas, tambm. Mostrou as conchas: Aqui esto lembranas de Itanhaem. Aquela rde veio das Minas e foi um companhei ro de Leonel que a cedeu. E ste tapete aqui foi feito do couro de uma ona que meu pai, le mesmo, caou com seus escravos. A voz do pssaro continuava, festiva e entusiasmada, a dar ordens. E aqule papagaio, que vosmec est ouvindo, foi comprado de um viajante, no Rio de Janeiro. Essa colcha de adamascado, Leonel a comprou em Santos, de um ingls q ue diziam ser pirata. E vosmec ainda no viu nem a metade dos tesouros que possuo. Escurecera de vez. Margarida falou: Venha conhecer o Louro! Sbitamente, a ave silenciara. Um escravo havia acendido um facho. O pssaro e ncorujava-se no poleiro, e Cristina, ento, o olhou rindo: Ai, to pequenino, e to importante de fala! Bem dizem falou supersticiosa que esta uma terra de maravilhas e de assombramentos! No esconder esta ave alguma alm a encantada? Ela queria brincar, mas estava dizendo o que sentia. Disse a dona da casa: como muitos de ns! Muita fala, muita fanfarronada, e muito pouca cabea. Se st e fr encantado, o encantamento aqui se v aos milhares, porque o Louro, antes de se r caado no serto e levado ao Rio de Janeiro, vivia no meio de um povo de pssaros ig uais a le. O pobre, de vez em quando, ainda est a imitar os barulhos da mata de on de veio. Coce-lhe a cabea, e veja vosmec mesma que bichinho to sem maldade le! Mas a visitante no quis saber de fazer a experincia: Ah, l no Reino, as coisas que se contavam dessa terra perita nas grandezas da magia, com seus feiticeiros perigosos! Pode ser que um dia eu tome confiana no Louro, mas to de pronto, no. Margarida riu sonoramente: curioso; quando ouvia falar numa moa do Reino, pensava que ela fsse altiva e desdenhosa, mas nunca pensei que ela fsse medrosa. Vamos voltar, minha querida. Um outro dia eu lhe mostrarei a melhor coisa que tenho. Vosmec pode me dizer o que ? Margarida fz um muxxo. Talvez vosmec goste, porque diferente, mas as outras mulheres da Lagoa Sere na no gostam. Elas, quando os homens esto fora, se esquecem no trabalho. E eu, a m ais preguiosa de tdas, fao uma coisa que muitos aqui censuram numa dona: escrevo! P or parte de meu av, tenho a rima no sangue. Foi esta, entre tdas, a mais assombrosa das admiraes de Cristina. Encontrar a li mulher letrada, e com aquela simplicidade e aquela travessura! Imediatamente, tda a simpatia e a proximidade que a figura de Margarida lhe pareciam significar , se desvaneceram. A amiga, que procurava nessas lonjuras, poderia ser essa mulh er que fazia versos? Vejo que vosmec levou susto, Cristina. Mas a poesia tambm lembrana da lonjura de Leonel e dos outros homens. Vamos ver o que que vosmec inventa para se ocupar , quando fr casada com Tiago. Voltaram logo depois, nas suas cadeiras, e aquela frase ficou doendo no co rao da noiva. At mesmo a alegre Margarida vivia sofrendo de solido. VIChegou um mensageiro Lagoa Serena, e por le ficaram as mulheres sabendo que os homens no tardariam a voltar. Houve muito alvoro. Cristina pensou que chegassem na semana seguinte, mas Me Cndida sorriu: Depressa aqui, minha filha? So duas luas, pelo menos. Como Margarida lhe dissera, as mulheres eram obrigadas a encurtar o tempo de espera, por um trabalho quase sbre-humano. Elas no participavam, nunca, daquela s horas de cio do mulherio do Reino. Me Cndida, ento, era como a chefe de um pequeno Estado, um verdadeiro prncipe que encarnava em si todo os podres. Estava sempre a prumada, erecta, sem dar sinais de cansao e de fraqueza. Comeava seu dia com os prp rios escravos, ao toque da madrugada . No ficava fechada em casa, a dar ordens. I a pessoalmente fiscalizar os trabalhos de plantio e de colheita. Era to dela aqule cheiro de pano limpo, rescendendo ainda a roupa corada ao sol, como se tudo que Me Cndida vestisse no tivesse uso, fsse puro! Fresca de roupas, com a falta de face irice total, apesar da sua ocupao intensa, ainda tinha tempo para se dedicar aos p roblemas de cada um de seus filhos. A madrugada reunia as mulheres menos Margarida no salo da Fazenda, numa rez a geral, em que participavam os escravos e as escravas, porm les ficavam do lado d e fora, ao relento, e eram s as suas vozes que povoavam de sofrimento e submisso a larga sala. Havia um pequeno oratrio com a imagem da Virgem, tendo aos ps um anjo. Ali a rdia perenemente uma lamparina. Chamavam-na Madama do Anjo. Roslia disse a Cristina, irreverente: A Madama s ganha iluminao quando os homens esto fora. No dia em que les chegam, acabou-se. Apaga-se a lamparina. E ningum mais se preocupa com ela. Depois que Me Cndida saa para dar as suas voltas na Fazenda, muitas vzes acomp anhada por Baslia, Cristina ficava a ajudar Roslia na grande cozinha. Roslia tinha o orgulho de ter seu prprio comrcio e mandar caixas e caixas de marmelada para lon ge dali. Tdas as mulheres se ocupavam em trabalhos rendosos. Era extraordinrio. Ha vendo tanto esfro e tanto xito, faltava todo e qualquer luxo e confrto para tais mul heres. Cristina acabou pensando que isso se devia ao fato de que a Lagoa Serena tinha bcas demais, vidas demais, para serem nutridas e agasalhadas. Depois do almo, enquanto havia um ligeiro descanso para as outras mulheres, Me Cndida recebia seus doentes: tambm fazia de mdico. Tinha um livro, em que mandava Baslia ler, e atendia os escravos com tda a espcie de chs e de ungentos, feitos de b anha de carneiro. Era um orgulho seu ter a escravaria bem tratada e limpa de fer idas. Uma vez, Cristina a viu lidar com certa negra da cozinha que tinha queimad ura arruinada. Sbre essa queimadura, no se sabe que espcie de bicho venenoso ali pe gou. Quando a ma vinha chegando, Me Cndida lhe fz sinal para que esperasse. Com a pon ta de uma pequena faca, ela descarnava as partes podres da carne. O cheiro era to intenso que, para prosseguir no seu trabalho, ela havia mergulhado algodo embebi do em vinagre, no nariz. O ferimento era to grave, que a negra no se queixava. A f erida havia morto a carne. Seria preciso chegar at a parte viva, para que a escra va se restabelecesse. A mais comunicativa da famlia era Roslia. Margarida dizia que ela mentia sem maldade, para se enganar, como fazia com seus versos. Procurava embasbacar Cris tina, falando de assombraes, que visitavam a Fazenda. Contava sbre um padre excomu ngado, que havia muitos anos morrera numa tocaia, ali perto, e que perambulava a o redor da Fazenda. Muitos o haviam visto: le estava sempre recitando uma litania , no a Deus, mas a Satans. At diziam que a gente ruim, do lugar, quando queria faze r algum malefcio, invocava o padre edemoninhado, que era muito generoso na carida de do Mal. Enquanto Roslia, franzina, o rosto luzidio do fogo, todo pintadinho de sardas, contava essas coisas, batendo com uma colher de pau a massa espssa de ma rmelada fumegante, Genoveva, a mulata que superintendia os trabalhos das outras escravas e que era a primeira pessoa da cozinha apertava a bca, fazendo um hum-hu m significativo . Que que vosmec quer dizer com isso? perguntava Cristina. Ento Roslia, acesa ainda pelas labaredas de sua inveno, a olhava com desdm sem rancor, dizendo: Vosmec no sabe que Genoveva tem alma de sapo? S sabe dizer hum-hum para tudo. Olhe a: at cara de sapo ela tem tambm.Genoveva no se zangava com a caulinha da Fazenda, e, muitas vzes, vinha com c oisas raras e especiais, que agradavam sua sinhzinha. Sempre o melhor sequilho er a para ela. s vzes, nem mesmo Me Cndida podia comer as broinhas mais tenras que lhe preparava. A menina era todo o seu enlvo, e continuava a ser mimada, como quando ela a trouxera nos braos. Nunca lhe fizera censuras, seno com o seu hum-hum inofen sivo. Roslia tinha um namorado misterioso, quase sobrenatural. Ningum o vira. Gost ava de falar dle, principalmente a Cristina, novata ali, a quem endereava frases q ue se desmanchavam no ar, imprecisas: Quem me vai tirar disto aqui ser meu amor. Eu no me vou casar com sses homens que enquanto fazem um filho na mulher, fazem dez nas ndias. Quando ela disse essas palavras to imprprias para uma menina de quatorze ano s, Cristina julgou de bom tom repreend-la: Me Cndida no gostaria de ouvir vosmec dizer essas coisas. Roslia respondeu: Eu no sou filha de minha me no sacrifcio. V vosmec escarafunchar na cozinha, no quintal, e a por fora, que h de ver nosso sangue misturado ao dsses macacos. Justamente quando Roslia acabava de dizer esta frase, Baslia veio chegando. E ento a menina falou, com a maior naturalidade: Mana Cristina estava aqui me contando sbre as danas do Reino. A mana no quer aprender algum passo? Baslia disse com severidade: Tenho vinte e cinco anos e no sou mais ma de dar passos. Ao que Roslia, com muita insolncia, respondeu: Nem os de dana, nem os maus passos... No mesmo, mana Braslia? Baslia se dirigiu a Cristina: Vosmec no se impressione mal com Roslia. Tem a lngua slta, foi mal educada e mi mada por tdas ns. Eu lhe deveria ter, como mana mais velha, aplicado a palmatria, m as nem Me Cndida a corrige. E o resultado ste: uma menina sem modos, dizendo tda espc ie de inconvenincias. Eu lhe peo, Cristina. No d trela para suas conversas e, como p essoa mais velha, a censure e a corrija quando fr oportuno. Mas Cristina no tinha o menor desejo de ser severa: Roslia muito inocente disse. Roslia explodiu num riso: Inocente, eu, dentro desta Fazenda? Posso lhe dar lies, minha querida. A exp erincia no se consegue s prpria custa, mas custa dos outros: o que sses negros daqui e d alm-mar nos ensinam! E s porque eu quero falar de gente... Porque a bicharada es t a slta para me dar aulas... Mana Cristina disse ela com ternura l fora no lagoa, rrente de rio, e torrente forte. Um tempo dsses, nosso pai, que anda meio brigado com os padres... Baslia, que ia saindo, se voltou: Tenha comedimento, minha mana. Quando foi que nosso pai brigou com os padr es? A menina prosseguiu com violncia: Eu no disse brigado, disse meio brigado, que diferente. Baslia, franzindo as sobrancelhas, ordenou: Vosmec pare a. Eu acho muito bom. Porque vosmec ainda no est livre da vara de m armelo! E antes que meu pai ou minha me tenham que lhe dar ensino, eu lhe dou, e com o direito de irm mais velha. Roslia no ficou intimidada: Ah, Baslia, pode ser que Cristina tenha mdo dessa sua cara de mamo macho, mas eu sei que vosmec tem um fraco por mim. Quem mais vosmec h de querer? No tem mais i dade para arranjar marido. Tem que tirar a teno dsse propsito: amar pai e me sacrifci que cansa. O pai, porque anda sempre longe, e a me, porque seu corao tem que dar p ara todos, e no chega muito para a gente. Ora vosmec bem sabe que eu no sou s sua ma na eu sou sua filha torta. E, intempestivamente, Roslia pegou a irm pela cintura e lhe deu um beijo na face. Baslia ficou hirta e ela continuou. Oh, rosto ruim da gente beijar! No admira que vosmec no tenha arranjado casam ento. Parece at cara de homem. Pois ste amontoado de grosserias no despertou em Baslia uma reao altura do ataque carinhoso. Suspirou fundo e disse com uma tristeza velada: Deus queira que a gente no se arrependa de ter criado to mal ste diabinho. Ento saiu. Saiu triste e ao mesmo tempo encantada, como se o afeto da irm lh e fsse um tormento de amor. Margarida vinha buscar Cristina para o banho da madrugada. Acorde, sua preguiosa! E como Cristina, ainda um pouco oprimida de sono, reagisse molemente, ela brincava: Olhe que vosmec tem que desmanchar isso de que falam da gente do Reino. Que povo que tem mdo de banho. Cristina abriu os olhos e disse: De gua quente no tenho mdo, mas dessa friagem da lagoa bem que tenho. Margarida j vinha com o camisolo, e Cristina o vestia, se enrolando depois n um largo xale. E l iam as duas, antes mesmo da reza, quando a Lagoa Serena pareci a conter a pouca luz que o dia dava em promessa. Cristina achava que a lagoa amanhecia antes da terra. Ficava brilhando, vi va, quando tudo ainda estava quieto, dormindo, envolto em trevas. Ao chegar perto do remanso da lagoa, subiram o pequeno barranco, com um ca minhozinho afundado entre a relva, e desceram Margarida frente pelo declive esco rregadio. Na rvore que crescia embaixo da alta borda da lagoa, Margarida pendurou o longo xale. Cristina fz o mesmo com o seu. E Margarida desceu com coragem para a frira do banho. sse remanso da lagoa ficava mais prximo da casa de Margarida do que da casa da Fazenda, alm dos muros que a sitiavam. Ao entrar na gua, Cristina o uviu um som confuso e longnquo, como uma frase imensa, despachada pelos ares. Quem est acordado, dando ordens? perguntou Cristina, o queixo batendo. Margarida riu, uma risada que se quebrava, naquele frio de arrepiar: Minha mana, quem est dando ordens o Louro. Cruz, credo! respondeu Cristina. Essa ave enfeitiada acompanha a gente at no banho! o nico homenzinho por aqui! falou a outra. Cristina reparava: os pequenos pulos de Margarida faziam com que seu camis olo se enchesse d gua. Parece um tonel disse. Ou... A outra no achou graa: Uma mulher prenhe? e Margarida perdeu seu riso e sua animao. Ah, bem que des ejaria ter essa forma ridcula! Veja vosmec, as mulheres, aqui, parece que cumprem o encargo que Deus Nosso Senhor lhes deu: povoar ste mundo despovoado... As bugra s, as negras tm filhos, como as bugias dos matos. Tm filhos do amor, tm filhos do d esamor... E no entanto Leonel e eu, que formamos um par to feliz, que nos queremo s tanto, nunca tivemos a felicidade de ter um filho. Ao que Cristina respondeu, esfregando os longos cabelos que lhe caam no ros to e roavam a gua como sombra de negro salgueiro: Ah, vosmec muito nova! Por isso mesmo eu sofro, porque sou nova no sangue e no corpo, e um filho me faz falta, para acalentar a saudade do pai. Mas j a Margarida pareceu querer esquecer ste assunto. Atirou-se de costas sbr e a gua, boiando, o camisolo unido ao corpo, to bela e serena. Olhou o cu, onde as e strelas desmaiavam, e ento perguntou: Vosmec j conhece a Rabudinha? Que que vosmec est dizendo? Margarida havia voltado alegre disposio de sempre: Rabudinha a outra bem-amada de Tiago. Deixemos de brincadeira, mana. No sou forte em adivinhaes. E vejo que vosmec e st querendo me confundir: pois se Tiago tivesse mulher, eu no seria informada e ai nda mais por vosmec, que to boa. Rabudinha... Que nome estranho! Ser uma novilha? O u quem sabe se no uma macaquinha? Mas fale depressa! Margarida foi saindo para a margem, grimpando o degrau lodoso da terra. Eenquanto Cristina deixava tambm o banho, ela, sacudindo a cabea e os longos cabelo s louros, que gotejavam gua e claridade, disse: Venha conhecer a Rabudinha... Cristina subiu pequena parte do barranco. Olhe l a Rabudinha! e apontou para a margem do cu, onde uma estrla cintilava, sangunea, com um claro que parecia encomprid-la ligeiramente, como uma lgrima desce ndo. E Margarida, extasiada: Nunca ela estve to bonita! Cristina ficou parada, sem saber o que dizer. E Margarida continuou: A Rabudinha, agora, no indica, para Tiago e os outros homens, apenas o cami nho da Lagoa Serena. Ela mostra, principalmente, vosmec. E por isso que ela est to linda, como eu nunca vi. Cristina combateu aquela emoo que se apossava de sua alma, naquele momento to impressionante e imediato ao fim da noite: Vosmec est fazendo poesia ou essa histria mesmo verdade?... VIIUm berro varou o escuro: Ei, Tiago! Tiago! Nada. O silncio, uns grilinhos, a voz dos sapos. O ndio correu para junto de Dom Braz Olinto: Meu senhor chamou? E tu te chamas Tiago? disse o velho senhor do Serto, com voz spera. O ndio respondeu manso, com o queixo cado; ainda que Dom Braz no lhe visse o rosto submisso, sua voz era doce e afetuosa: Mas quando meu senhor chama, por qualquer nome, eu atendo. Dom Braz ficou um instante silencioso. Tda a gente ainda dormia. le j estava, havia muito, acordado: Vem c, Parati. Vai por a fora buscar Tiago. No sei por que que le no me resp e. Parati respondeu com a mesma voz doce: Sinhozinho anda muito triste, Sinhozinho anda s querendo olhar as cunhs do cu ... Diacho disse Dom Braz Olinto. E aconselhou o ndio. Cuidado com o mato sco da qui por perto. Tem muita cobra. melhor campear Tiago a pela borda do rio. Parati ficou muito lisonjeado: Meu senhor, Parati sabe onde pisa. Diacho! disse o velho. Campeia logo seu respondo, que ns temos que continuar viagem daqui a pouco. Junto do rio, Tiago estava de p, com o vento da madrugada a lhe bulir na ba rba, os cabelos compridos soprados por aquela aragem mida e friorenta. spero, vest ido de couro, com suas botas altas, le ali estava olhando firmemente a barra do cu , onde a Rabudinha o espiava com seu lho dengoso, derretido, escorrendo luz sensu al e vermelha. O ndio o tirou do seu esquecimento: Meu senhor est chamando vosmec. Tiago se voltou, to estranho, como se le o houvesse acordado naquele momento : Que que meu pai deseja? Meu senhor s fazia gritar: Tiago! Tiago! Est muito zangado. Tiago sorriu. E pensou: Graas a Deus! le est no seu natural. E foram os do