dimensÕes da ciberdemocracia conceitos e experiências fundamentais

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA CONTEMPORÂNEAS DIMENSÕES DA CIBERDEMOCRACIA Conceitos e experiências fundamentais Francisco Paulo Jamil Almeida Marques Salvador – Bahia Maio 2004

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Esta dissertação visa examinar teoricamente algumas das dimensões da interface entre democracia e tecnologias de comunicação e informação, suas potencialidades, problemas e perspectivas de maior destaque. Admitir que as novas tecnologias de comunicação revolucionam a compreensão de democracia não é apenas aderir a uma perspectiva triunfalista. Implica, também, em aceitar que a democracia passa por carências que comprometem sua superioridade contemporânea enquanto forma de governo. Por outro lado, negar o potencial destas tecnologias para concertar diferentes formas de manifestação política, inclusive por parte da esfera civil, não parece uma saída satisfatória. São examinadas cinco classes de fenômenos manifestos nas redes telemáticas com implicações no campo político, a saber, Governo Eletrônico, Voto Eletrônico, Ativismo Digital, Comunicação Político-partidária e Esfera Pública Virtual.A hipótese central deste trabalho entende que a forma democrática de governo tem nas redes telemáticas um canal complementar para fomentar a participação dos cidadãos e conformar espaços de debate e informação, além de indicar mudanças nas relações entre agentes políticos institucionais (governo e agremiações partidárias) e esfera civil.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO E CULTURA CONTEMPORNEAS

DIMENSES DA CIBERDEMOCRACIAConceitos e experincias fundamentais

Francisco Paulo Jamil Almeida Marques

Salvador Bahia Maio 2004

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO E CULTURA CONTEMPORNEAS

DIMENSES DA CIBERDEMOCRACIAConceitos e experincias fundamentais

Francisco Paulo Jamil Almeida Marques

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Wilson da Silva Gomes

Salvador Bahia Maio 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO E CULTURA CONTEMPORNEAS

A Comisso Examinadora, abaixo assinada, aprova a dissertao Dimenses da Ciberdemocracia Conceitos e experincias fundamentais, elaborada por Francisco Paulo Jamil Almeida Marques, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Comunicao e Cultura Contemporneas.

Comisso Examinadora:

Prof. Dr. Wilson da Silva Gomes (Orientador)

Prof. Dr. Andr Luiz Martins Lemos (Examinador Interno)

Prof. Dr. Jorge Almeida (Examinador Externo)

Salvador, 04 de maio de 2004.

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Dedico este trabalho minha famlia.

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AGRADECIMENTOS

Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte, porque, apesar de muito moo, me sinto so, salvo e forte. E tenho comigo pensado: Deus brasileiro e anda do meu lado. Assim j no posso sofrer... no ano passado.

Antnio Carlos Gomes Belchior, "Sujeito de Sorte"

A trajetria de estudos que culminou nesta dissertao no deixou de contar com a contribuio de diversas pessoas. Nestas linhas, expresso gratido especial a quem no me deixou sozinho ao longo destes 21 meses, dividindo idias, projetos, cervejas, medos e saudades. Ao professor Wilson Gomes, agradeo pela confiana e perspiccia; Aos professores do Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas da Universidade Federal da Bahia, em particular Benjamin Picado, Jeder Janotti, Marcos Palacios, Maria Carmem, Itnia Gomes e Giovandro Ferreira; agradecimento fraterno a Andr Lemos, sempre disposto a ensinar e aconselhar; Universidade Federal da Bahia e Capes, pela bolsa de estudos e pelo acesso ao Portal de Peridicos. Aos amigos feitos durante o curso: Jos Carlos, Carla Schwingel, Luciana Mielniczuk e Jos Afonso Jnior (alis, pessoas estas com quem contei desde antes do incio do mestrado); Ana Cludia Pantoja, Ana Cristina Spannenberg, Andr Stangl, Carla Quaresma, Cassiano Simes, Flvia Rocha, Greice Schneider, Llian Reichert, Luize Meirelles, Maria Eugnia Rigitano (amizade fiel), Patrcia Moraes (, linda) e Rossana Gaia. Aos amigos de Fortaleza, Adelane Arajo, Adriano Ararajuba, Fernando Mskara, Raphaella Thephilo, Sybelle Alencar et petite Schramm. s amizades conquistadas na cidade do Salvador, como Juliana Pestana, Marelis Tavares, Paula Praxedes. Por fim, manifesto toda gratido e amor minha famlia: Dona Abigail (paciente e valente), Ana, Dione, Lia, Cleanny, Cleandro, Aaron e Jean.

De todo corao, obrigado.

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RESUMO DA DISSERTAO

Esta dissertao visa examinar teoricamente algumas das dimenses da interface entre democracia e tecnologias de comunicao e informao, suas potencialidades, problemas e perspectivas de maior destaque. Admitir que as novas tecnologias de comunicao revolucionam a compreenso de democracia no apenas aderir a uma perspectiva triunfalista. Implica, tambm, em aceitar que a democracia passa por carncias que comprometem sua superioridade contempornea enquanto forma de governo. Por outro lado, negar o potencial destas tecnologias para concertar diferentes formas de manifestao poltica, inclusive por parte da esfera civil, no parece uma sada satisfatria. So examinadas cinco classes de fenmenos manifestos nas redes telemticas com implicaes no campo poltico, a saber, Governo Eletrnico, Voto Eletrnico, Ativismo Digital, Comunicao Poltico-partidria e Esfera Pblica Virtual. A hiptese central deste trabalho entende que a forma democrtica de governo tem nas redes telemticas um canal complementar para fomentar a participao dos cidados e conformar espaos de debate e informao, alm de indicar mudanas nas relaes entre agentes polticos institucionais (governo e agremiaes partidrias) e esfera civil.

PALAVRAS CHAVE: Ciberdemocracia - Comunicao Poltica - Internet

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ABSTRACT

This dissertation aims to examine some dimensions of the interface between democracy and new technologies of communication and information, its potentialities, problems and perspectives. To admit that new technologies of communication revolutionize democracy is not only to adhere to a triunfalist perspective. It implies, also, in accepting that democracy have some lacks that compromise its superiority while government form. On the other hand, to deny the potential of these technologies for concerting different ways of political manifestation, inclusively from the civil sphere, is not a satisfactory view. One examine five class of manifest phenomena in the thelematics nets with implications in the political field: Electronic Government, Electronic Vote, Digital Activism, Parties and Campaign in a Digital Age and Virtual Public Sphere. The central hypothesis comprises that democracy has in the Internet a complementar channel to foster the participation of citizens and to conform spaces of debate and information, besides indicating changes in the relations between institutional agents (government and partisan clubs) and civil sphere.

KEY-WORDS: Cyberdemocracy - Political Communication - Internet

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SUMRIO

INTRODUO: Democracia 'Plug and Play'? ......................................................................................... 10 Hipteses centrais do trabalho .......................................................................................... 14 Estruturao da dissertao ............................................................................................... 15

PARTE 1: Subsdios da Teoria Democrtica para a Compreenso da Democracia Digital ...... 18 1.1 A teoria democrtica: notas genricas como subsdios sua compreenso .............. 19 Algumas dificuldades diagnosticadas no funcionamento da democracia .......................... 22 Os modelos de democracia ................................................................................................. 25 1.2 A esfera pblica como conceito central da democracia .............................................. 31 Dados histricos sobre a noo esfera pblica ................................................................... 31 A "mudana estrutural" do ponto de vista habermasiano ................................................... 35 As diferentes consideraes adicionadas noo de esfera pblica aps 1962 ................. 40 O Habermas subseqente e seus crticos ............................................................................ 51 A importncia do conceito de esfera pblica ..................................................................... 59

PARTE 2: Consideraes Gerais Sobre a Natureza das Redes Telemticas ................................ 61 Notas sobre a relao entre Mass media e democracia ...................................................... 61 2.1 Apontamentos em Comunicao e Cibercultura ......................................................... 66 2.1.1 Dados acerca da histria da Internet ....................................................................... 67 2.1.2 Da Excluso digital ................................................................................................... 71 2.2 A Teoria da Comunicao luz das novas tecnologias............................................... 83 A Internet como meio de comunicao .............................................................................. 88 Crticas "sociedade da informao" ................................................................................. 93

PARTE 3: A Internet Como Ambiente Poltico: Conceitos e Experincias Fundamentais ........ 97 As expectativas de democracia digital .............................................................................. 97 3.1 A Teledemocracia e as diferentes compreenses de democracia digital ................... 102 3.2 Governo eletrnico...................................................................................................... 109 3.3 Voto eletrnico ........................................................................................................... 119 3.4 Ativismo digital .......................................................................................................... 127

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3.5 Comunicao poltico-partidria na Internet ........................................................... 143 3.6 Esfera pblica virtual ............................................................................................... 155 Sobre a viabilidade de uma esfera pblica virtual .......................................................... 159 Os discursos que aceitam a noo de esfera pblica virtual ............................................ 160 Os discursos que negam o conceito de esfera pblica virtual ......................................... 165 A esfera pblica virtual como conversao civil ............................................................ 171 As iniciativas de esfera pblica virtual ............................................................................ 182 Parlamento Digital / Democracia Deliberativa ................................................................ 185

CONCLUSO ............................................................................................................... 188 Observaes para pesquisas futuras ................................................................................ 192

REFERNCIAS ........................................................................................................... 194

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INTRODUO: DEMOCRACIA 'PLUG AND PLAY'?

No so poucas as assertivas que do como certa uma revitalizao da democracia e de suas instituies com o advento das novas tecnologias de comunicao e informao, mais destacadamente a Internet. Dentre as teses mais populares, esto desde as mais palpveis, mas no suficientemente investigadas, como a de que o Estado tornar-se-ia mais prximo do cidado (por oferecer servios e ganhar transparncia) 1, at as que geram maior polmica, pois sustentam que, com a Internet, seria enfraquecido decisivamente o carter oligoplico da comunicao massiva, no qual se protegeriam os grandes conglomerados de informao e entretenimento2. Uma rpida consulta a motores de busca revela a quantidade de pginas (na escala de milhares) relativas ao assunto, evidenciando muitas vezes a euforia com a qual o tema tratado. Basta associar "internet" + "esfera pblica" ou "democracia digital" e as centenas de referncias deslizam pela tela em poucos segundos.1 H, pelo menos, dois trabalhos sobre este tema que adotam tal viso: "As expectativas em relao governana eletrnica vo alm dos servios automatizados e das compras feitas pelo governo atravs da Internet. Ao contrrio, as expectativas em relao ao governo eletrnico representam uma transformao fundamental no governo, numa escala nunca vista desde o incio da era industrial." (Ferguson, 2002: 104). Existe ainda uma segunda referncia: "As possibilidades [da rede] estendem-se muito alm do comrcio. O setor publico est sitiado no mundo inteiro. Os contribuintes de todas as partes querem um Estado maior e mais barato (...) Os programas governamentais podem distribuir-se eletronicamente pela rede e, com isso, melhorar a qualidade e reduzir os custos. Pode-se facilitar o acesso informao oficial e criar, assim, um governo mais aberto. Os departamentos virtuais podem combinar o trabalho de muitos organismos para oferecer aos cidados um canal de comunicao nico. Pelas redes, pode-se acabar com a burocracia." (Cebrin, 1999: 17) 2 Tambm aqui h a exposio de dois autores que compartilham compreense s semelhantes. O primeiro Dnis de Moraes (2001): "A Internet veio dinamizar esforos de interveno dos movimentos sociais na cena pblica, graas singularidade de disponibilizar, em qualquer espao-tempo, variadas atividades e expresses de vida, sem submet-las a hierarquias de juzos e idiossincrasias. [...] Com a migrao para a Web, as entidades aderem comunicao em tempo real, sem centros fixos de enunciao. [...] Esse modelo alternativo de expresso, apoiado em processos interativos, contribui para reduzir a dependncia aos meios tradicionais, com a sua crnica desconfiana dos movimentos comunitrios. O mosaico comunicacional da Web refora, assim, os campos de resistncia concentrao da mdia, permitindo que idias humanistas se exprimam no permetro do espao poltico desterritorializado." (Moraes, 2001). A segunda contribuio vem de Leda Guidi (2002): "A compreenso e a fora pragmtica do paradigma de rede e a mudana implcita que provoca nas relaes de poder e representao est em colocar o ponto de vista centralizado entre parnteses, obviamente, sem se esquecer de sua utilidade descritiva em determinados contextos. Adquirir o hbito de usar comunicao para propsitos cvicos, democrticos e educacionais, por exemplo atravs da rede cvica metropolitana, pode ser a maneira mais efetiva de enfrentar o risco do surgimento de uma tecnocracia oligrquica telemtica, e de aumentar a massa crtica capaz de usar o meio e de participar da produo de contedos e formas de linguagem especficas." (Guidi, 2002: 183)

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O que no se pode negar, em todo caso, a fora de uma nova perspectiva em relao tecnologia de comunicao expressa em diversas das manifestaes mais triunfalistas (Palacios, 2001). Se as bases tericas tradicionais do campo meditico percebiam a comunicao de massa como caracterizada por uma estrutura vertical entre emissor e receptor, onde alguns poucos manipuladores disseminariam contedos de relevncia duvidosa, interesses de grandes corporaes e do "imperialismo cultural" (travestido de modernizao, como denunciava Herbert Schiller, apesar de no ser frankfurtiano, j na dcada de 70, na Inglaterra), ganha fora, contemporaneamente, o que Dominique Wolton (2001) ataca empregando o termo "ideologia da tcnica". A seduo pela "ideologia da tcnica" (Wolton, 2001) exalta as inovaes de ltima gerao, a corrida pela rapidez dos processadores, a avidez pela imensido informacional e a necessidade de estar todo o tempo conectado, mas pouco negociaria ou daria ateno s enraizadas estruturas sociais e culturais, mais lentas em sua evoluo exatamente por serem mais complexas e contarem com o fator gente, em vez de mquina; por no sarem de uma fbrica e no estarem submetidas a uma produo em srie. Nestes termos, a admisso de que (a) a democracia se torna necessariamente uma forma de governo com menos defeitos em virtude de uma maior quantidade de fluxos e de potenciais agentes em comunicao precisa ser investigada com cuidado3. Por mais que os esforos intelectuais de pesquisadores do campo queiram garantir comunicao seu lugar de direito na teoria social, o pensamento que infere a evoluo democrtica a partir do avano tcnico das mquinas de comunicar precisa ser examinado cautelosamente4. A questo no dar menor importncia comunicao no contexto democrtico (o que seria pouco inteligente, dada a presena marcante de

3 Pierre Lvy comenta a utilizao de artifcios para se chegar a uma forma mais legtima de governo: "A filosofia poltica ainda no foi capaz, evidentemente, de recensear e discutir a democracia direta em tempo real no ciberespao, pois sua possibilidade tcnica apresenta-se apenas a partir de meados dos anos 80. [...] Por ocasio do nascimento das democracias modernas, milhes de cidados se dispersavam em extensos territrios. Foi, na poca, praticamente impossvel manter uma democracia direta em grande escala. A democracia representativa pode ser considerada uma soluo tcnica a dificuldades de coordenao. Mas, uma vez que as melhores solues tcnicas so apresentadas, no h motivo algum para no explor-las a srio. [...] O ideal da democracia no a eleio de representantes, mas a maior participao do povo na vida da cidade. O voto clssico apenas um meio. Por que no conceber outros, com base no uso de tecnologias contemporneas que permitiriam uma participao dos cidados qualitativamente superior que confere a contagem de cdulas depositada nas urnas?" (Lvy, 1998: 64) 4 Obviamente, nenhum dos fundamentos da democracia prescinde de uma comunicao eficiente. E claro que uma comunicao melhor favorece a busca pelo consenso, pelo dilogo.

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contedos mediticos em eleies, por exemplo), mas fazer atribuies justas sua manifestao no campo poltico. Ser preciso investigar, do mesmo modo, se a idia de que (b) a democracia funciona de maneira semelhante s mquinas "plug and play" (conecte e use), de forma que, ao se fornecer aos cidados um determinado equipamento de carter descentralizado, sem constrangimentos de natureza comportamental, expressiva, ideolgica ou espacio-temporal (algo factvel, em princpio, com o surgimento das redes telemticas) automaticamente se daria uma revoluo social em termos de busca do bem comum5 pois, uma vez conectados, os indivduos estariam prontos a se despir do egosmo e exercitar suas virtudes, compartilhar, conversar pacificamente6. Conforme assinala Dominique Wolton:

"Em particular, a Net investida de todas as virtudes, constituindo o exacto simtrico de tudo aquilo que no agrada nos meios de comunicao social de massas. Quando se trata destes, tudo se resume a 'dominao cultural' e 'passividade'; j com a Net, fala-se sempre se 'liberdade individual' e de 'criao' [...] Imagina-se um emissor animado das piores intenes e de um destinatrio sempre crdulo, sem autonomia nem distncia crtica. Do mesmo modo que se nega a distncia crtica do receptor, nega-se igualmente a dimenso normativa do emissor, isto , a possibilidade de uma certa intercompreenso." (Wolton, 2001: 32)

No se descarta, importante fazer sobressair, toda a gama de possibilidades abertas por este novo sistema de comunicao, mais plural, dinmico, gil, que favorece o oferecimento dos vrios pontos de vista. Entretanto, como defende Daniel Bougnoux, "... nossas relaes tcnicas esto necessariamente engestadas em relaes pragmticas5 "O Bem comum , ao mesmo tempo, o princpio edificador da sociedade humana e o fim para o qual ela deve se orientar do ponto de vista natural e temporal. O Bem comum busca a felicidade natural, sendo portanto o valor poltico por excelncia, sempre, porm, subordinado moral. O em comum se distingue do bem individual e do bem pblico. Enquanto o bem pblico um bem de todos por estarem unidos, o Bem comum dos indivduos por serem membros de um Estado; trata-se de um valor comum que os indivduos podem perseguir somente em conjunto, na concrdia. Alm disso, com relao ao bem individual, o Bem comum no um simples somatrio destes bens; no tampouco a negao deles; ele coloca-se unicamente como sua prpria verdade ou sntese harmoniosa, tendo como ponto de partida a distino entre indivduo, subordinado comunidade, e a pessoa que permanece o verdadeiro e ltimo fim." (Bobbio, 2000: 106) 6 Aqui, pode-se ilustrar a defesa desta concepo a partir de Henrique Antoun (2001): "... o espao virtual aquele que de fato ns sempre habitamos. Nele uma democracia torna-se possvel porque a multido armada pelas tecnologias da informao (TI) e comunicao mediada por computador faz o problema da cidadania ps-moderna e da segurana pblica convergirem na direo da organizao das comunidades virtuais, apontando na direo de um novo pacto democrtico. Como na antiga Grcia a construo do

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que as precedem e as dirigem. Est-se de acordo, hoje, ao dizer que se a ferramenta autoriza, ela raramente determina" (Bougnoux, 1999: 107). Em outros termos, torna-se mister verificar as caractersticas relativas apreenso scio-cultural de tais aparatos tecnolgicos que permeiam o hodierno, para, posteriormente, examinar sua eficcia e maneiras de insero no jogo poltico. Em suma, nem tudo o que se observou e investigou sobre o tema "democracia" deve ser reconsiderado a partir do "espao de fluxos" (expresso empregada por Castells, 1999)7. Neste contexto, toma-se a tarefa de refletir sobre algumas das implicaes geradas pelas novas tecnologias de comunicao na arena poltica. Configura-se como objetivo geral do presente trabalho, examinar, levando em considerao a funo dos mass media de fornecer esfera civil a informao necessria para se compreender a realidade poltica de cada sociedade democrtica (temas processados na esfera pblica e os agentes da deciso), as relaes entre o advento das novas tecnologias de comunicao, prioritariamente a Internet, e o estabelecimento de novas configuraes do jogo poltico; sem a pretenso de estabelecer conceitos ou categorias definitivas, este trabalho estuda quais ingredientes so adicionados ao campo poltico com o advento da Internet, de que forma, em que medida, permitindo quais possveis concluses.

exrcito hoplita feita pelas elites para fugir do terror desptico do gigantesco exrcito Persa armou o povo, que insurrecionado, gerou a inveno da cidadania e do estado democrtico." 7 Ayres (1999) acredita que, com o advento das redes telemticas, sua difuso e uso corrente por parte dos cidados e instituies ligadas ao campo poltico-administrativo, torna -se necessria uma nova reflexo sobre os conceitos empregados para examinar teoricamente os fenmenos do campo poltico: "The Internet, which includes Web sites, listservs, and e-mail, is promoting a revolution in both the means of communication and the dynamics of popular contention. Perhaps nowhere is globalization's impact being more visibly and dramatically felt than in this revolution of communications technology. This cyber-diffusion the rapid, computer generated dissemination of information around the world, without concern for geographic location has not only changed the nature and process of contention but has encouraged a significant rethinking of those concepts available for understanding this contention. [...] There is wide agreement that the Internet is dramatically changing the dynamics of political participation" (Ayres, 1999: 133-140). T. A: "A Internet, que inclui Web sites, listas de discusso e correio eletrnico, vem promovendo uma revoluo tanto no que significa comunicao quanto na dinmica da afirmao popular. Talvez em lugar nenhum o impacto da globalizao esteja sendo to visvel e dramaticamente sentido do que em termos de tecnologias de comunicao. Esta ciber-difuso - a rapidez, disseminao de informao pelo mundo gerada pelos computadores, sem levar em conta a localizao geogrfica tem no apenas mudado a natureza e o processo de disputa [poltica] mas tem encorajado uma nova reflexo significante dos conceitos disponveis para a compreenso desta disputa. H uma concordncia geral de que a Internet vem dramaticamente modificando a dinmica da participao social."

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Hipteses centrais do trabalho

Pode-se propor, ento, que as conseqncias das novas tecnologias de comunicao para o fazer poltico no so gerais, mas tambm no so tmidas o suficiente para ser encaradas como apenas peculiares. Se os meios de comunicao de massa convencionais, como a televiso, o rdio e o jornal impresso, controlaram, sobretudo a partir da segunda metade do sculo XX, praticamente todo o fluxo de informaes necessrias ao bom funcionamento das sociedades democrticas (conformando, simplificadamente, um sistema, esfera poltica esfera da informao e do entretenimento esfera civil), pode-se postular, com o advento da Internet, uma modificao, ainda que no seja total, na natureza das trocas de contedo cognitivo e de disposies entre os agentes deste sistema. Em outras palavras, com a Internet se torna possvel aos agentes da esfera poltico-administrativa dirigir-se diretamente aos cidados (eleitores) por meio de contedos digitais prprios, complementando a circulao de seus informativos distribudos atravs dos meios de comunicao convencionais, dispendiosos no tempo, nos custos e que nem sempre atingem o pblico desejado; isto , abre-se uma possibilidade de que tais agentes no sejam compelidos, em todos os momentos, a se curvarem ou oferecer lisonja aos agentes e instituies da esfera da informao e do entretenimento, para que estes publiquem dada notcia, sob determinado enfoque. Apesar de ainda incipientes, podem ser apontados canais e instrumentos alternativos a serem empregados nas polticas de comunicao. Do mesmo modo, organizaes da sociedade civil e indivduos isolados podem, a partir do emprego de um meio barato e rpido, expor seus posicionamentos em relao a determinado assunto, angariar recursos e planejar aes contra entidades ou atitudes governamentais (Mitra, 2001; Deibert, 2000). Estas hipteses podem ser aditadas compreenso geral deste trabalho de que no h, com o advento das redes telemticas, rupturas completas com as formas polticas e institucionais j estabelecidas. Na verdade, estas tecnologias se inserem como um fator que complexifica o entendimento da forma democrtica de governo e os posicionamentos dos diversos atores do campo poltico (tornando-se til ou mesmo14

indispensvel para algumas organizaes) por (1) oferecer perspectivas de modernizao administrativa, (2) possibilitar acesso fcil informao, (3) dar voz a opinies antes suprimidas pelos grandes veculos de comunicao ou por governos autoritrios, (4) possibilitar uma relao direta dos atores polticos (institucionais ou no) com os cidados e (5) dos cidados entre si, atravs da formao de grupos de debate e de ativismo poltico.

Estruturao da dissertao

O trabalho foi dividido em trs partes principais. A primeira, Subsdios da Teoria Democrtica para a Compreenso da Democracia Digital, discute alguns fundamentos da teoria democrtica, associando-a prioritariamente categoria "esfera pblica". A idia expor, de modo a no exaurir as diferentes concepes tericas, consideraes concernentes aos principais modelos de democracia, explorando determinadas dificuldades desta forma de governo, bem como aditando breves reflexes provenientes da teoria poltica. A razo do trabalho em se dedicar a uma fundamentao desta natureza a percepo de que muitas das preocupaes (e tambm solues) que ocorrem aos especialistas das relaes entre democracia e novas tecnologias de comunicao j se configuram como problemas para os pensadores da democracia h um maior tempo. Ainda nesta primeira parte, examina-se as tendncias atuais quanto compreenso da categoria esfera pblica, dando-se vazo aos seus primeiros postulados histricos, crticas e alternativas, alm de se avaliar, genericamente, a importncia deste conceito para a democracia contempornea. Tenciona-se, a partir destas atitudes, preparar o terreno para um debate mais profcuo sobre o tema da dissertao. A segunda parte, Consideraes Gerais Sobre a Natureza das Redes Telemtiocas, busca dar conta de aspectos gerais em torno da rede mundial de computadores, pondo em debate seu histrico, reflexes sobre a questo do acesso aos equipamentos e demais desigualdades relativas ao "mundo digital". Discute-se se a Internet pode ser considerada um medium que traz implicaes severas em relao s formulaes da teoria da comunicao, e por quais maneiras se do estes eventos. A15

dissertao no tem por pretenso o tratamento de temas diversos relativos Cibercultura, como por exemplo suas tendncias tcnicas, velocidades, modos de ser e estar, sociabilidades e subjetividades, jornalismo online, educao ou teletrabalho, apesar destes temas, em algum momento ou outro, servirem de ilustrao8. J a terceira parte do trabalho busca articular o estudo da Internet Como Ambiente Poltico. A Internet compreende vrios fenmenos e pode servir a distintos campos sociais: economia, cultura, informao e entretenimento. Porm, a esta dissertao, vo interessar essencialmente as manifestaes e conceitos fundamentais que concernem articulao dos atores polticos (institucionais ou no, organizados ou no, efmeros ou no) no uso das novas tecnologias de comunicao e informao. Na tentativa de dar conta das experincias mais importantes, procura-se dissertar sobre 1) Governo Eletrnico, 2) Voto Eletrnico, 3) Ativismo Digital, 4) Comunicao polticopartidria e, por ltimo, investiga-se teoricamente a admisso do conceito de 5) Esfera Pblica Virtual. A hiptese de que estas classes de fenmenos, em maior ou menor medida, contribuem para uma compreenso mais ampla do que se entende por Ciberdemocracia. No adiantaria, por exemplo, um governo informatizado e que oferecesse servios online aos seus cidados, se, por outro lado, ele no absorve as disposies da esfera civil, levando em considerao apenas a diminuio dos seus custos atravs da automao administrativa; de modo semelhante, o ativismo digital, seus sites, fruns e informativos, no podem ser descolados de um exame do conceito de esfera pblica virtual, por exemplo. Importante dizer que este trabalho no visa entender todas as modalidades de atuao poltica geradas por um meio de comunicao complexo e abrangente como a Internet (que, na verdade, nem apenas pode ser subsumida a meio de comunicao por no obedecer, quando comparada, s lgicas dos media "tradicionais"). Atravs de uma reviso de literatura, o objetivo fazer o estudo de algumas das novas formas de mediao poltica oferecidas pela Internet, apontando estas mediaes como indicadores para a conformao de um conceito mais amplo, a saber, o de Ciberdemocracia.

8 Tal observao vale igualmente para o emprego dos seguidos apontamentos vindos dos estudos mais sedimentados de comunicao e democracia (cujo objeto preferencial no seja, necessariamente, o estudo das redes digitais), que tambm permeiam os diferentes tpicos.

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Destaque-se a maior dedicao da dissertao ltima classe de fenmenos, Esfera Pblica Virtual. As diferentes disposies dos especialistas acerca do tema so caracterizadas; so citadas diferentes iniciativas no sentido de concretizao dos debates digitais; procura-se, ainda, tecer consideraes sobre controle de contedo nas redes telemticas. Prioritariamente, monta-se, neste tpico, a argumentao sobre o melhor funcionamento dos espaos discursivos digitais como ferramentas de apoio democracia representativa contempornea. lcito se reivindicar uma justificativa sobre o porqu da escolha destas dimenses de fenmenos que relacionam democracia e Internet. O trabalho defende que estas cinco dimenses enumeradas recobrem as principais experincias que tm o objetivo de aprimorar a forma democrtica de governo atravs do uso de tecnologias digitais de comunicao. As investigaes da literatura revisada durante a feitura da dissertao tambm cabem de modo pertinente em pelo menos uma destas cinco classes. Cada um destes conceitos representa classes de fenmenos que podem conter diversos usos, por diferentes atores sociais9. Por exemplo, a categoria esfera pblica pode ser estimulada pela esfera civil (comunidades virtuais e seus debates, ainda que no deliberativos) e tambm pela esfera parlamentar-estatal. Dentro da compreenso de ativismo digital, podem constar manifestaes isoladas ou de grupos organizados, de entidades pr-existentes Internet ou necessariamente online, protestos dispersos geograficamente ou no. por este motivo que se procura fazer um apanhado das questes fundamentais ligadas a cada classe, procedendo ao exame de algumas das implicaes trazidas pelo meio de comunicao digital e os modos mais flagrantes de aplicao ao campo poltico, no objetivando esgotar as experincias que a cada dia brotam das classes elencadas. As observaes feitas sobre uma determinada classe podem se sobrepor ou manter validade em outra classe, isto , um apontamento especfico sobre esfera pblica virtual de feio parlamentar entra em articulao com o que se escreve acerca de governo eletrnico.

9 Importante ressaltar ainda que as conseqncias destas novas tecnologias no abatem igualmente a esfera governamental e a esfera civil, assim como difcil estabelecer o que apenas estatal e o que apenas civil quando se busca examinar os fenmenos que cercam a democracia digital.

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PARTE 1 SUBSDIOS DA TEORIA DEMOCRTICA PARA ACOMPREENSO DA D EMOCRACIA DIGITAL

Ao propor o estudo de um tema como a democracia (da qual a "democracia digital" seria derivada), no se pode perder de vista a contribuio j ofertada pelas cincias sociais, sobretudo se o interesse da investigao recai sobre um dos aspectos mais importantes para a teoria desta forma de governo: a relao entre esfera poltica e esfera civil a partir da mediao da esfera pblica. Inicialmente, importante ressaltar que esta primeira parte da dissertao no tem a pretenso de realizar uma discusso exaustiva dos modelos e teorias que se referem forma democrtica de governo, mas, simplesmente, considerar, no interior das teorias da democracia, aquelas dimenses e aspectos que interessam ao argumento sobre se a Internet uma modalidade de comunicao que pode ser aplicada eficazmente ao aperfeioamento da forma democrtica de governo. A seo, nestes termos, est dividida em duas partes. Na primeira, o objetivo examinar determinados tpicos da reflexo sobre a teoria democrtica contempornea que apresentam subsdios para uma discusso mais abalizada sobre a "democracia digital". Atravs do apoio de informaes histricas e do recurso a alguns autores clssicos, a inteno expor, em linhas gerais, os modelos de compreenso da democracia advindos, principalmente, da cincia poltica; tambm so expostas determinadas dificuldades e crticas democracia. Indica-se, por exemplo, a origem da democracia representativa com a justificativa de que se deve afastar, em momento oportuno da dissertao, a perspectiva que identifica uma correspondncia entre democracia apoiada pelos meios de comunicao e democracia direta (cf. Toffler, 1996, e suas reflexes sobre teledemocracia). Uma outra questo enfatizada nesta primeira parte versa sobre a apatia dos cidados, tpica da cultura poltica de algumas sociedades. A idia argumentar que a participao dos cidados na democracia no est ligada apenas a uma questo de fornecer equipamentos ou dar voz a todos com algo a dizer de relevncia poltica.18

A segunda parte tem como motivao a investigao de um dos fundamentos da democracia, a saber, a noo de esfera pblica. O destaque ocorre sobre seu histrico, esforos para uma definio, "mudanas estruturais" e modelos alternativos de compreenso deste conceito. Defende-se a importncia da esfera pblica para uma maior efetividade da democracia, sobretudo no que concerne ao modelo

deliberacionista, pois neste mbito de discusses onde so colocadas em pauta as preocupaes e modos de resolver os problemas presentes na agenda social. A importncia em estudar melhor esta categoria ganha pertinncia na medida em que as dimenses da ciberdemocracia propostas para este estudo mantm relao mpar com noes ligadas ao conceito de esfera pblica, como a abertura dos governos aos cidados, a participao da esfera civil, a formao discursiva da vontade e a busca pelo consenso, alm do estabelecimento de um novo canal informativo. A partir desta reviso de literatura, tem-se a inteno de fundamentar, minimamente, os pressupostos da democracia com o objetivo de debater, em um segundo momento do trabalho, o que se compreende por democracia digital.

1.1 A teoria democrtica: notas genricas como subsdios sua compreenso

O sculo XX foi marcado pelo triunfo da forma democrtica de governo. Depois de a histria testemunhar regimes autoritrios na Europa Ocidental, que sucumbiram em boa parte ao trmino da Segunda Guerra Mundial; ditaduras latinoamericanas, fracassadas sobretudo no plano econmico e social; e a queda do regime sovitico, a democracia parece se firmar, contemporaneamente, como o modo de governar que agrega a maior legitimao proveniente da esfera civil. Este triunfo da democracia pode ser evidenciado nos discursos de lderes polticos ou de instituies que buscam associar s suas imagens pblicas o adjetivo "democrtico": acontece, ento, em muitos casos, um uso indiscriminado da palavra "democracia", e seus derivados, o que a faz tornar-se um "im semntico" (Ribeiro,

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2001). A ex-Unio Sovitica e os pases que antes estavam sob sua influncia, por exemplo, intitulavam-se "democracias populares"10. O fato que a prtica de governo arbitrrio e que no possui o compromisso de prestar contas sociedade parece ser uma idia cada vez mais distante das realidades dos pases ocidentais11 . Percebe-se, porm, que nem todos os pases vivem sob este regime: o nacionalismo fervoroso, xenfobo ou o fanatismo religioso continuam servindo como justificativa para a manuteno de regimes onde um s ou apenas poucos governam, sem a anuncia civil; h exemplos de pases onde o voto no estendido a toda populao; onde a imprensa capitaneada por escritrios do executivo central; alis, onde os outros poderes (Judicirio e Legislativo), quando existem, esto encolhidos ou subsumidos (Dahl, 2001). Se a configurao moderna de democracia ainda recente (aponta-se o sculo XVIII como seu incio histrico), sua noo, porm, remonta a sculos12. Democracia vem do grego (demos, povo; kratein, governar) e foi exatamente na cidade-Estado de Atenas, pertencente ao mundo helnico, onde foi pela primeira vez praticada, por volta do sculo V antes de Cristo. Ribeiro (2001) observa que, desde sua origem na Antigidade, a democracia no pressupe um "governo pelo povo", onde este estaria no comando da administrao estatal, por todo o tempo; o real significado "governo do povo", ou seja, onde o povo a fonte do poder, tem a capacidade de autorizar o mando e de influenciar na execuo de polticas pblicas. O poder deixa de ser exercido de dentro dos palcios (por tiranos, por exemplo), por quem governa sem o consentimento10 Pode-se ilustrar esta observao a partir do seguinte trecho: "... Vladimir Ilitch Lenin afirmou: 'A democracia do proletrio um milho de vezes mais democrtica do que qualquer democracia burguesa: o governo sovitico um milho de vezes mais democrtico do que a mais democrtica repblica burguesa'. [...] No entanto, por que deveramos aceita covardemente as declaraes dos dspotas de que so democratas? Uma serpente venenosa no se torna uma pomba porque seu dono diz que . No importa o que afirmem lderes e propagandistas, um pas ser uma democracia apenas se possuir todas as instituies polticas necessrias democracia." (Dahl, 2001: 115-116) 11 O cientista poltico Emir Sader (2001) admite esse processo de converso recente dos regimes autoritrios em democracia, mas o critica na medida em que o modelo de democracia "liberal" adotado por estes pases segue um vis norte-americano, isto , uma democracia na qual imperaria a manipulao de campanhas eleitorais; governos que apelam constantemente a recursos mediticos; partidos cada vez menos diferenciveis no espectro ideolgico e apatia dos cidados, patrocinada pelo seu mero carter de consumidor. (Sader, 2001, http://www2.correioweb.com.br/cw/2001-08-12/mat_49460.htm , capturado em 04 de setembro de 2003) 12 Robert Dahl (2001) afirma, em considerao sobre os diferentes modos de aceitao da democracia ao longo da histria, o seguinte: "At dois sculos atrs apenas (digamos, h dez geraes) a histria tinha pouqussimos exemplos de verdadeiras democracias. A democracia era mais assunto para teorizao de filsofos do que um verdadeiro sistema a ser adotado e praticado pelos povos. Mesmo nos raros casos em

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dos governados, e ganha visibilidade pblica para avaliao e aprovao ou no dos considerados cidados. Importante ressaltar, mesmo levando em considerao as correspondncias histricas, que no faltam diferenas entre a democracia antiga e a contempornea. Enquanto na antiga Atenas o direito de participao era restrito aos "cidados" (homens livres, senhores de si), que podiam exercer a vontade da maioria diretamente, atravs de assemblias reunidas aproximadamente 40 vezes por ano, atualmente, nos pases que adotam a democracia, existe a capacidade de se escolher, independentemente de condies econmicas ou grau de instruo educacional (o princpio da incluso, isonomia, sem privilgio do sbio ou do tecnocrata), os representantes polticos. Por preocupaes particulares e fatores como complexificao social e administrativa, os cidados delegam, por determinado perodo de tempo, seus interesses a representantes que passam a coordenar as instituies polticas centrais13. A origem da representatividade se encontra no Imprio Romano, onde, assim como em Atenas, o direito de participao poltica era concedido apenas aos homens livres, aos cidados. Todavia, com a expanso do Imprio para alm das comunidades que cercavam Roma e o conseqente o aumento do nmero de cidados graas s localidades conquistadas, a participao destes concernidos provenientes de lugares distantes da sede do governo era dificultada justamente pelo fator espao. Em outros termos, o sistema representativo ainda no havia sido institudo. Justamente a partir desta dificuldade vem a idia de que, para uma rea extensa, onde fica impossibilitado o deslocamento e a participao de todos os civis nas diversas ocasies polticas necessrias, o mais vivel seria eleger representantes14. Isto quer dizer, na verdade, que o funcionamento razovel de uma democracia de grandesque realmente existia uma 'democracia' ou uma 'repblica', a maioria dos adultos no estava autorizada a participar da vida poltica." (Dahl, 2001:13) 13 Robert Dahl, simplificadamente, indica as diferenas entre a democracia antiga e a democracia moderna: "Da perspectiva de hoje, evidentemente ausente de todos esses sistemas [da Antigidade], estavam pelo menos trs instituies polticas bsicas: um parlamento nacional composto por representantes eleitos e governos locais eleitos pelo povo que, em ltima anlise, estavam subordinados ao governo nacional." (Dahl, 2001: 27) 14 Acrescente-se mais uma contribuio quanto ao sistema representativo: "Em 1820, James Stuart Mill descreveu o 'sistema de representao' como 'a grandiosa descoberta dos tempos modernos'. Inveno inovadora, grandiosa descoberta: essas palavras nos ajudam a apreender um pouco da emoo que sentiram os reformadores democrticos ao desvendar o pensamento democrtico tradicional e perceberam que seria possvel criar uma nova espcie de democracia, enxertando a prtica medieval da representao na rvore da democracia antiga." (Dahl, 2001: 120)

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propores, para alm de uma comunidade ou cidade-estado (modelo este predominante no mundo Antigo), est comprometido a partir do momento em que no lanar mo do recurso da representatividade (o que no deixa de ser uma soluo tcnica), no instante em que no se d voz a comunidades menos prximas ao comando central.

Algumas dificuldades diagnosticadas no funcionamento da democracia

A maior viabilidade em se adotar a democracia representativa em detrimento da democracia direta, porm, no sem dificuldades. Desde antes da j industrializada frase de Churchill ("Ningum pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que tm sido experimentadas de tempos em tempos"), alega-se a pouca legitimidade e a carncia de participao popular no regime que, por princpio, deveria privilegiar a maioria (respeitando as minorias) e emanar de suas disposies. Questiona-se, por exemplo, como pode ser justo um regime no qual o representante que prope e estabelece leis em nome de determinado cidado pode nem mesmo ter obtido o voto particular deste indivduo, mas sim de outros eleitores15; pergunta-se, ainda, como avaliar comparativamente a opinio ou valor do voto de um cidado qualificado, bem instrudo e dedicado a pensar na coisa pblica, com o voto ou opinio de um indivduo que mal sabe ler e que possui pouco tempo, competncia ou interesse para se dedicar a pensar no coletivo16. So discusses fomentadas em grande medida pela filosofia poltica, conforme indicado por Ribeiro (2001).

15 Ou, como complementa Dahl: "Como se pode ao mesmo tempo ter a liberdade para escolher as leis que o estado far respeitar e, ainda assim, depois de escolher essas leis, no ser livre para desobedec-las? [...] Se no razovel esperar-se viver em perfeita harmonia com todos os seres humanos, poderamos experimentar criar um processo para chegar a decises em relao a regras e a leis que satisfaam determinados critrios razoveis." (Dahl, 2001: 67). 16 Partindo para alguns exemplos relativos cultura poltica das sociedades atuais, pode-se destacar o pouco vigor nas formas participativas dos cidados, mesmo daqueles que no vivem dificuldades econmicas ou sociais. Moses Finley (1988) contata que: "Talvez as 'descobertas' mais conhecidas e certamente as mais divulgadas da moderna pesquisa de opinio pblica sejam a indiferena e a ignorncia da maioria do eleitorado nas democracias ocidentais. As pessoas no conseguem formular as questes sobre a maior parte daquilo que, enfim, no lhes interessa; muitas no sabem o que Mercado Comum, ou mesmo o que so as Naes Unidas; muitas no podem dizer os nomes de seus representantes ou de quem est concorrendo a determinado cargo." (Finley, 1998: 17)

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importante ressaltar que muitos dos ataques forma democrtica de governo esto intimamente ligados ao modelo de democracia representativa que, mesmo ao viabilizar uma das formas contemporneas mais comuns da gesto governamental, trouxe desvantagens, como partidos polticos que do preferncia disputa pelo poder, denunciando corrupes ou prejudicando de outros modos a trajetria de seus oponentes, pondo em segundo plano o debate de propostas importantes (Fallows, 1997); ao no prever um espao institucional para a participao freqente dos cidados, restringindo as manifestaes deliberativas com poder de reunir toda a populao a eleies ou plebiscitos; ao fazer com que os muitos dos concernidos acabem alienando sua participao a entidades corporativas, tendo como conseqncia a dvida sobre se as reivindicaes da esfera civil sero colocadas em pauta nos crculos institucionais previstos17. Porm, os que criticam a democracia no necessariamente parecem pregar a adoo de uma outra forma de governo, mas, sim, indicam eventuais falhas a serem corrigidas para que a democracia ganhe maior legitimidade. A apatia dos cidados sobre os temas polticos tambm um fato que depe contra a idia de que a democracia se configura enquanto uma forma de governo "menos ruim", exatamente porque a democracia tem como meta dedicar maior ateno s disposies da esfera civil. Entretanto, deve-se observar este pouco interesse dos cidados no que se refere coisa pblica no como uma crtica democracia em si, mas cultura poltica intrnseca a cada sociedade, ou seja, realidade onde determinado modelo de gesto poltica aplicado18.

17 Maia examina o caminho das reivindicaes da esfera civil at serem institucionalizadas: "Por certo, muitas das prticas comunicativas que acontecem nos contextos socioculturais da vida diria e nas esferas pblicas perifricas no alcanam as instncias formais do sistema poltico. Permanecem sem expresso poltica e, conseqentemente, sem eficcia poltica." (Maia, 2002: 122). 18 Sobre esta questo da participao popular, a literatura registra contribuies como a de Dahl (2001), quando ele afirma que no seria justo delegar a especialistas o comando do governo, e no apenas por uma questo moral, mas pela prpria natureza dos assuntos polticos. De acordo com este cientista poltico, "o conhecimento uma coisa, o poder outra" (p. 87), isto , quando se estabelecem leis de modo autoritrio, sem o consenso dos governados, h sim um vcuo moral na medida em que no se reconhece os cidados como capazes de gerir suas prprias vidas em coletividade. Ora, a poltica, argumenta Dahl, no uma cincia como a fsica ou a qumica, onde se trabalha com dados concretos, onde h fatos e estes se configuram como inargumentveis, e justamente a partir dessa caracterstica da poltica que os cidados se tornam "credenciados" para influir na forma democrtica de governo. Seria pouco inteligente estabelecer um amplo debate pblico sobre a validade, por exemplo, da equao formulada por Einstein de que a energia corresponde massa de um corpo multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz. Porm, configura-se legtima questo poltica o uso que se faz desse conhecimento, como por exemplo a busca pela fisso de tomos pesados, como urnio 235 ou plutnio 239, com o objetivo de liberao de energia, isto , o princpio da bomba atmica, e assim provocar a destruio de cidades e inimigos em uma suposta guerra.

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Richard Sennett (1989), j na dcada de 70, diagnosticava o "declnio do homem pblico". Haveria, de acordo Sennett, um certo distanciamento dos cidados em relao aos temas de interesse coletivo, principalmente temas polticos, na direo de um processo de individualizao crescente. Causas diversas podem ser consideradas para esta indiferena dos cidados (Fallows, 1997; Ramonet, 199919), com ocorrncia mesmo nas sociedades com maior grau de instruo. Muito desta indiferena seria patrocinado pelos meios de comunicao de massa, porque banais ao preferir mencionar os perfis e peculiaridades de personagens polticos, em vez de debater e tornar a populao esclarecida sobre os temas importantes em pauta; por propagarem uma onda consumista que tornaria o indivduo cada vez mais objeto de seu narcisismo desenfreado20; por patrocinarem a prpria rendio do campo poltico noo de poltica espetculo, que acabaria deteriorando a confiana nos homens pblicos, preocupados com suas imagens e em evitar escndalos; e, ainda, por provocarem uma "mudana estrutural" no espao simblico da argumentao ao tratar sobretudo de temas frvolos, conforme argumenta Habermas (1984). Ao enumerar estas dificuldades, que so diagnosticadas em maior ou menor grau, a depender do especialista, pode-se perguntar se uma democracia funcionando perfeitamente, com os cidados participando, exercendo suas virtudes, atravs de instituies sempre idneas e funcionando de maneira perfeita no seria mera iluso. Robert Dahl compreende que as crticas de cunho realista, por atacarem a aplicao no plano prtico dos princpios democrticos, no necessariamente devem ir de encontro ao carter normativo que rege o modelo ideal de democracia21 .19 Ramonet (1999), considerado pessimista em suas ponderaes, argumenta que: "Se o pblico sente muito bem que de uma informao de qualidade depende sua maior ou menor participao na vida cvica e consequentemente a qualidade da democracia nem por isso deixou embalar pela lisonja da televiso que lhe prometia inform-lo divertindo-o e apresentando-lhe um espetculo cheio de ressaltos, apaixonante como um filme de aventuras. Esta contradio inicial se resolve finalmente pela conscincia atual que esses cidados tm do perigo induzido por uma informao sedutora, que segue, at o paroxismo, a lgica do suspense e do espetculo. Eles descobrem que informar-se cansativo e que este o preo da democracia." (Ramonet, 1999: 38) 20 Postman adiciona comentrios pertinentes a esta viso peculiar das sociedades modernas: "... hoje o comercial de televiso, pelo menos, raramente se refere ao carter dos produtos. Ele se refere ao carter dos consumidores dos produtos. Imagens de estrelas do cinema e atletas famosos, de lagos serenos e viagens de pesca machista, de jantares elegantes e diverses romnticas, de famlias felizes enchendo caminhonetes para um piquenique no campo eles nada dizem sobre os produtos que esto vendendo. Mas dizem tudo sobre os medos, iluses e sonhos daqueles que podem compr-los. O que o publicitrio precisa saber no o que o produto tem de certo, e sim o que h de errado no comprador." (Postman, 1994: 176-177) 21 Conforme explica Avritzer: "... [para Dahl] para ser realista no necessrio ser antinormativo [...] para o autor da Democracia e seus Crticos no o idealismo da democracia que deve ser criticado e sim

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Os modelos de democracia

Os debates contemporneos em torno do tema democracia procuram especular sobre suas dificuldades e indicar sadas para seus problemas. De modo simplificado, sem pretenso alguma de esgotar o estado da arte sobre a questo, a cincia poltica tende a agrupar dois modelos de democracia: os modelos procedimentalistas e os deliberacionistas. Segue-se uma breve caracterizao de cada um. Joseph Schumpeter um dos precursores do procedimentalismo 22, atravs da sua concepo de "elitismo competitivo" 23. Este terico enfatiza, em sua nica obra de cunho sociolgico, Capitalismo, Socialismo e Democracia (editada pela primeira vez em 1942), as elites como detentoras do poder poltico. Schumpeter toma a democracia como um modo mais legtimo de escolher os lderes polticos ao mesmo tempo em que ela oferece limites para o exerccio deste poder (prevenindo a tirania). H, desta forma, "um rebaixamento do ideal democrtico [...] a negao da possibilidade de qualquer forma substantiva de soberania popular. A participao do cidado reduzida ao mnimo, ao ato de votar, sendo exatamente o voto da populao o alvo das disputas" (Miguel, 2002). Adicionalmente, como oportunamente esclarece Luchmann,

o fato das democracias reais no conseguirem alcanar o ideal democrtico. Desse modo, uma teoria capaz de conciliar o emprico e o normativo teria como tarefa restaurar o ideal de autonomia moral e a justificativa normativa da democracia tentando demonstrar a importncia desses ideais na prtica democrtica." (Avritzer, 1996: 114-116) 22 Um outro autor que pode ser indicado como precursor do procedimentalismo Hans Kelsen (autor de Essncia e Valor da Democracia, publicado em 1929). Ele confere particular importncia aos partidos polticos como fundamento da democracia moderna e aos parlamentos como ambiente propcio a uma busca de consenso entre a maioria e as minorias. Avritzer e Santos (2002) fornecem maiores elementos para a compreenso do procedimentalismo kelsiano: "Na sua primeira formulao, o procedimentalismo kelsiano tentou articular relativismo moral com mtodos para soluo de divergncias, mtodos que passavam pelo parlamento, assim como por formas mais diretas de expresso. Neste relativismo moral anunciava-se a reduo do problema da legitimidade ao problema da legalidade, uma reduo que Kelsen extraiu de uma leitura incorreta de Weber. Coube a dois autores, Joseph Schumpeter e Norberto Bobbio, durante o perodo de entre-guerras e o imediato ps-guerra, transformar o elemento procedimentalista da doutrina kelsiana da democracia numa forma de elitismo democrtico" (Avritzer e Santos, 2002). 23 A teoria elitista da democracia tem suas origens no final do sculo XIX a partir de reflexes de pensadores como Mosca, Pareto e Michels, cuja nfase se encontrava na oposio aos movimentos socialistas e, inclusive, aos movimentos democrticos que tinham como objetivo uma maior igualdade entre os cidados. Para os elitistas, a prpria natureza da sociedade a torna marcadamente desigual, sobretudo politicamente. Ou seja, seria uma iluso postular-se qualquer governo da maioria, incapaz de governar. Miguel (2002) constata uma "reviravolta notvel" que acaba levando os pressupostos da teoria elitista (as elites exclusivamente concorrem pelo poder e os indivduos no tm qualificao suficiente para decidir em termos polticos) para a formulao do conceito de democracia elitista por Schumpeter.

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"O modelo elitista, ao conceber a democracia como mecanismo de escolha de lderes polticos pautado na competio entre os partidos atravs do voto, equipara a dinmica poltica ao jogo do mercado. Esta concepo mercadolgica da poltica (MacPherson, 1978) pautada na relao de oferta e procura que se estabelece entre os polticos-empresrios e os cidados-consumidores, reduz a democracia a um mecanismo de escolha dos representantes polticos que definiro os rumos, as aes e os programas pblicos. A legitimidade do governo assegurada, aqui, pelo resultado do processo eleitoral." (Luchmann, 2002)

Schumpeter duramente criticado por defender uma viso mais "realista" de democracia, no sentido de associ-la preferencialmente a mtodos ("um arranjo institucional") do que "soberania popular", pois entende que o povo jamais teria condies de dirigir uma sociedade, porque nem todos os cidados saberiam o que desejam exatamente em termos polticos. A competio pelo voto, tpica do procedimento minimalista, tem como conseqncia o abandono da busca da democracia enquanto um ideal. Amy Guttman (1995) critica o "pouco valor substantivo" da democracia compreendida por Schumpeter. A perspectiva do elitismo ainda pode ser identificada nas formulaes de Anthony Downs (1999) sobre a democracia. Para Downs, os governos empregam a estrutura democrtica para atingir seus interesses de manuteno do poder24. Apesar de Miguel (2002) constatar que os ltimos trabalhos de Robert Dahl procuram uma postura mais crtica em relao compreenso das democracias concorrenciais, pode-se dizer que Dahl tambm foi influenciado pelas reflexes de Schumpeter, formulando uma concepo de democracia rotulada de modelo pluralista (ou neo-pluralist ou liberalindividualist). Os grupos de interesse, neste caso, so quem competem pelo poder poltico (diversos centros de poder). J o modelo deliberacionista, considerado uma nova verso da democracia participativa ou "strong democracy", como prope Barber (1984), prefere valorizar o24 Conforme adiciona Avritzer contribuio dada por Downs: "Downs encontra um princpio de compatibilizao entre o funcionamento da 'democracia elitista' e a racionalidade individual. a possibilidade de tal compatibilizao que permite a Downs propor um modelo de funcionamento da democracia baseado em dois supostos: um primeiro princpio cujo objetivo seria compatibilizar a racionalidade individual com o modus operandi dos governos, supe que o objetivo dos governos a reeleio e que, portanto, todo governo tem como objetivo maximizar o seu apoio eleitoral. Um segundo princpio cujo objetivo associar a idia de racionalidade individual com o realismo supe que a democracia existe nos locais nos quais ela praticada. Os dois princpios permitiriam teoria downsiana alcanar o ponto de chegada almejado mas no atingido pela teoria schumpeteriana: o da

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debate, a argumentao (enfatizam o carter discursivo), o fortalecimento das instituies de governo e da participao dos cidados em geral. Em outras palavras, a deliberao poltica deve levar em conta a participao da esfera civil, composta por cidados livres e iguais, na formulao das decises. A marca instrumental da democracia que caracteriza o elitismo democrtico perde espao, neste modelo, para a compreenso de que deve haver uma produo coletiva das normas sociais (Miguel, 2001). A democracia deliberativa apresenta tambm diferenas em relao democracia representativa porque considera que o ideal no exerccio do poder poltico no est ligado prioritariamente legitimidade do processo decisrio ou ao resultado eleitoral, mas sobretudo ao debate pblico entre cidados livres e postos em condies iguais de participao. Pela natureza desta concepo, deve-se esclarecer que sociedade civil e esfera pblica so dois conceitos essenciais para a a democracia deliberativa. Nos ltimos anos, esta concepo de democracia deliberativa vem ganhando maior destaque. Podem ser citados como adeptos desta vertente Jrgen Habermas, Amy Guttman, John Dryzek e Joshua Cohen. A origem da democracia deliberativa em Habermas est situada na tenso entre o que ele chama de modelo republicano de democracia e o modelo liberal. Habermas busca uma reflexo heurstica sobre o tema, propondo um modelo de democracia que no abdica da interao entre cidados e entre representantes para a formao da opinio que ocorre na esfera pblica, nem deixa de reconhecer as regras prticas do jogo deliberativo, as nuances da tomada de deciso, por sistemas polticos especficos25. O modelo republicano tem em Hannah Arendt (Ribeiro, 2001) uma de suas maiores defensoras. Admiradora da liberdade dos cidados, no sentido atribudo pelos gregos da Antigidade, Arendt defende uma submisso da lgica do mercado ao

compatibilizao de uma teoria realista da democracia com um modus operandi de revezamento das elites no poder." (Avritzer, 1996: 110-111) 25 Conforme explica Rousiley Maia: "A teoria da democracia deliberativa habermasiana construda em dois planos. H uma distino e descrio normativa (a) do processo informal da constituio da vontade na esfera pblica e (b) da deliberao poltica, a qual regulada por procedimentos democrticos e orientada para a tomada de deciso em sistemas polticos especficos. Essas so duas dimenses interdependentes. A sociedade que promove a deliberao pblica possivelmente ser mais sensvel aos interesses de uma poro mais ampla da populao. E condio necessria para a obteno de legitimidade que o exerccio pblico do poder e a organizao das principais instituies sociais sejam o resultado do procedimento de deliberao na esfera pblica." (Maia, 2002a: 49)

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dilogo, em uma perspectiva normativa que visa rechaar conchavos e outros vcios inerentes ao fazer poltico. O problema, de acordo com os analistas, que tal concepo no leva em considerao os valores individuais dos cidados, isto , consideram todos dotados de virtudes e que estas se fazem presentes ao jogo em tempo integral: no se pode deixar de dizer que a totalidade dos concernidos nem sempre busca o entendimento26, o consenso. Habermas explica com maior propriedade27:

"Mas em situaes de pluralismo cultural e social, por trs das metas politicamente relevantes muitas vezes escondem-se interesses e orientaes valorativas, que entram em conflito sem perspectiva de consenso, necessitam de um equilbrio ou de um compromisso que no possvel alcanar-se mediante discursos ticos, ainda que os resultados se sujeitem condio de no transgredir os valores bsicos consensuais de uma cultura." (Habermas, 1995: 44)

De acordo com Habermas, no modelo denominado "democracia liberal", os fenmenos ligados poltica sempre carregariam boa parte de estratgias de ganhos e perdas, busca pela satisfao de interesses, pela barganha, pela quantidade de votos, pelo nmero de projetos aprovados nas casas parlamentares, pelas alianas entre partidos, enfim, pelo xito obtido no campo poltico sem necessariamente buscar o entendimento ou o convencimento dos que so contra determinada proposta. Isto quer dizer que as elites polticas buscariam sempre a maximizao de seus lucros, contemplando a poltica como meramente instrumental. J em sua forma de entender o fazer poltico, a democracia deliberativa considera os cidados capazes de formar determinados juzos sobre temas pblicos, interessando-se pelos processos que do origem a estes juzos e s formas como as decises so tomadas. A democracia deliberativa, ento, afasta-se do modelo republicano porque leva em considerao que nem todas as opinies so formadas exclusivamente pelo dilogo. Isso quer dizer que no h expectativa to grande em26 Apesar de ser alocado no outro modelo de compreenso da democracia, Dahl (2001) alerta que situaes de pluralidade social so fatores complicadores para uma realizao plena do ideal democrtico, visto que a ao estratgica de grupos ou indivduos visita o fazer poltico sempre que necessrio, o que se configura uma dificuldade para essa interao compreensiva. 27 Keane esclarece a compreenso deste modelo republicano atravs de referncia a Arendt: "... Hannah Arendt lamenta a perda moderna da 'vida pblica', entendida como a capacidade dos cidados de falar e interagir com o propsito de definir e redefinir como desejam viver em comum; de acordo com Arendt, tal interao pblica foi gradualmente corroda nos tempos modernos pelo cido do consumismo

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relao pureza moral dos sujeitos (Gimmler, 2001); os cidados no precisam estar o tempo todo mobilizados, exercendo suas virtudes e demonstrando seu esforo para o entendimento completo dos temas coletivos. Entretanto, ele precisam, sim, estar preparados para exigirem transparncia e implantao de projetos de interesse do bem comum por parte de seus representantes. As instituies pblicas devem prestar contas de seus atos e as questes coletivas estarem sempre valorizadas (para isso, so necessrias informaes relevantes vindas de instituies idneas)28. Em suma, a democracia deliberativa em Habermas rompe com uma lgica que parte dos interesses individuais e tambm no pressupe uma participao popular to forte, como no modelo republicano.

"A democracia deliberativa, um ideal mais abrangente e mais exigente, oferece uma forma de resolver a tenso tanto internamente prpria democracia populista quanto entre esta e o liberalismo negativo. [...] A democracia deliberativa prope a resposta de que valorizamos a vontade popular e a liberdade pessoal na medida em que o exerccio de uma e outra reflitam ou exprimam a autonomia das pessoas, entendendo-se autonomia como autodeterminao, isto , a disposio e a capacidade de determinar os rumos da prpria vida privada ou pblica por meio da deliberao, da reflexo informada, do julgamento e da persuaso que alia a retrica razo. A democracia deliberativa se vale do governo da maioria para exprimir e dar apoio autonomia de todos. O governo da maioria valorizado como um meio de exprimir e garantir a autonomia das pessoas: sua capacidade de deliberar em conjunto sobre questes de interesse pblico e de se submeter aos resultados dessas deliberaes." (Gutmann, 1995: 19-20)

pingando ao longo de uma sociedade de trabalhadores que ignoram a alegria e a liberdade que resulta da comunicao em pblico de assuntos de importncia pblica." (Keane, 1996: 8). 28 Gimmler, mais uma vez, expe sua avaliao de que a democracia deliberativa possui vantagens em relao aos ouitros modelos de democracia: "Habermas's version of deliberative democracy has, in my view, three crucial advantages over its rivals. First, it has the advantage of normativity. The deliberative democracy approach is based on a foundation that enables the legitimacy of the constitutional state and civil society to be justified. [...] The second advantage of Habermas's model is that it takes account of an important sociological observation, namely, that in pluralistic societies the moral, legal and functional spheres are distinct from one another; and the diversity of values, forms of life and attitudes that compose them is an established fact of modern societies. [...] The third positive feature of the discourse model is what I shall call the advantage of legitimation. In Habermas's version of deliberative democracy, the institutionalized procedures of parliamentary decisionmaking are connected with the public sphere and civil society." (Gimmler, 2001: 23). T.A.: "A verso habermasiana de democracia deliberativa tem, a meu ver, trs vantagens cruciais sobre seus rivais. Primeiro, ela tem a vantagem da normatividade. A abordagem da democracia deliberativa baseada em uma fundamentao que habilita a legitimidade do estado constitucional e a sociedade civil para ser justificada. [...] A segunda vantagem do modelo de Habermas que ele leva em conta uma observao sociolgica importante, a saber, que em sociedade plurais, as esferas moral, legal e funcional so distintas entre si, e a diversidade de valores, formas de vida e atitudes que as compem um fato estabelecido das sociedades modernas. [...] A terceira caracterstica positiva do modelo discursivo o que eu deveria chamar da vantagem da legitimao. Na verso habermasiana de democracia deliberativa, os procedimentos institucionais da deliberao parlamentar esto conectadas esfera pblica e sociedade civil."

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O processamento das demandas advindas da sociedade na democracia deliberativa, conforme formulada por Habermas29, pode ser divido em dois momentos, interdependentes, sendo que o primeiro acontece a partir do processo informal de construo da vontade no mbito da esfera pblica30 e o segundo estaria ligado aos procedimentos decisrios no plano institucional (Maia, 2002a: 49). Esta abertura avaliao pblica varia de sociedade para sociedade e compe a escala para se medir o gradiente de democracia de cada cultura poltica. Por este motivo, no se pode descartar a importncia dos meios de comunicao neste contexto de formao da vontade poltica, pois possibilitam a difuso de informao e a prpria ampliao do debate. Maia (2002a) defende que a formao da vontade se d a partir do acmulo de informaes e disposies sobre determinada matria durante certo perodo, o que demanda uma interpretao individual, primeiramente, e depois social. As diferentes posies so reunidas e apresentadas com o objetivo de se buscar um consenso31. Assim, a democracia de cunho deliberacionista ressalta a idia fundamental ligada ao conceito de esfera pblica que a participao da esfera civil na produo da deciso poltica. Em outras palavras, a esfera pblica, uma das bases para o estabelecimento de um modelo de democracia participativa (origem do

deliberacionismo) ou forte (cf. Barber, 1984), supe a participao da esfera civil na deciso sobre os negcios pblicos, no apenas atravs da concretizao de suas disposies (o momento do voto), mas tambm a partir de procedimentos como uma

29 Em Direito e Democracia. Adverte-se que este livro no ser objeto de estudo mais aprofundado nesta dissertao. 30 a partir desta esfera pblica de carter menos formal que Habermas insere uma tipologia de esfera pbica centrada em trs mbitos: uma esfera pblica episdica, que alcana situaes quotidiana corriqueiras; uma esfera pblica de presena organizada, como reunies de partidos ou igrejas; uma esfera pblica abstrata, produzida pelos meios de comunicao de massa e, claramente, de maior alcance (Habermas, 1997 apud Maia, 2002b: 112) 31 Maia oferece maiores recursos para a compreenso da formao da vontade: "Com o objetivo de apreciar o valor da deliberao para a democracia e o modo pelo qual os cidados adquirem e usam o conhecimento, possvel distinguir entre a estrutura da deliberao individual e a da deliberao pblica. Ainda que esses processos sejam inevitavelmente interligados na prtica, podemos estabelecer, para fins heursticos, dos cenrios de deliberao, individual e coletiva. No primeiro cenrio [...] os indivduos deliberam privadamente, no discutem com os outros as suas premissas (aquilo que consideram os mritos de suas posies). [...] No segundo cenrio, temos a estrutura da deliberao pblica. [...] O pressuposto operante nessa viso o de que os cidados, para formarem julgamentos polticos mais slidos, precisam trocar idias e conhecimento uns com os outros. [...] A deliberao pblica demanda um agente plural, ao invs de um agente individual ou coletivo" (Maia, 2002a: 60-61).

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boa carga de informao e dilogo entre as posies concorrentes para que se chegue a um consenso justo32.

1.2 A esfera pblica como conceito central da democracia: de Habermas s ponderaes subseqentes

Neste tpico, procura-se destacar importncia da esfera pblica para a compreenso e o bom funcionamento da democracia. No se pretende esgotar a anlise de todas as contribuies j feitas compreenso terica desta noo, mas pelo menos cobrir parte da literatura mais citada sobre o assunto, fazendo o reconhecimento do histrico da categoria esfera pblica, indicando suas caracterizaes e determinadas controvrsias. A justificativa desta explorao se encontra no fato de que a dissertao tem como um de seus objetivos o estudo sobre se a Internet pode ou no funcionar como uma esfera pblica, em que condies e por qual modo. Alm disso, as classes de fenmenos que convergem para a noo de ciberdemocracia demandam maiores esclarecimentos sobre a participao da esfera civil no jogo poltico.

Dados histricos sobre a noo esfera pblica

O surgimento da noo de esfera pblica, onde os grandes temas da conjuntura social so debatidos de forma contraditria, veio preencher uma lacuna na compreenso da teoria democrtica moderna. A busca pela transparncia na gerncia do Estado, desde o Iluminismo, regra, condio necessria (mesmo no sendo suficiente) ao estabelecimento de um regime democrtico. Se, cada vez mais, os dirigentes do Estado precisam justificar suas atitudes, justamente na esfera pblica onde estas atitudes so32 Como afirma Wilson Gomes sobre a importncia da noo de esfera pblica: "Na verdade, h duas instituies essenciais para a democracia em seu sentido moderno: a existncia de eleies de tempos em tempos e a existncia da esfera do debate pblico. O episdio eleitoral, em lapsos regulares, garantiria que o poder no se cristalizasse nos que o exercem de maneira a que os indivduos perdessem o controle sobre ele, mas retornasse aos cidados para que, de tempos em tempos, possam de novo outorgar a certos sujeitos e posies em disputa. J a esfera pblica, deliberativa, garantiria na democracia que as decises concernentes ao chamado bem comum sejam conseguidas atravs de um procedimento leal e justo, aberto, revisvel e orientado pela busca do consenso." (Gomes, 1999)

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expostas, avaliadas e legitimadas. A configurao de um espao destinado argumentao livre e pblica vai de encontro ao que ainda persiste em determinadas sociedades de governo desptico, onde a autoridade concebe suas realizaes sem negociar ou submeter reviso os projetos que implanta. De modo complementar, a idia de pblico remete idia de democracia e participao dos cidados nos negcios de determinada comunidade. Mesmo que ausente dos dicionrios sobre poltica e democracia, como se percebe em Bobbio (reeditado em 2000), a categoria esfera pblica, recente em termos de teoria social, vem se configurando como central para o entendimento da forma democrtica de governo, ainda que sob o nome de "debate pblico", "espao pblico" ou "mediao discursiva entre o Estado e a sociedade". Jrgen Habermas33, em seu livro publicado pela primeira vez em 1962, intitulado Mudana Estrutural da Esfera Pblica34 (no original, Strukturwandel der ffentlichkeit), emprega com maior dedicao o termo em questo, retomando-o a partir dos escritos de Immanuel Kant. O "princpio da publicidade" ou "publicidade" em si (do alemo ffentlichkeit) teria as funes simultneas de (1) adicionar carter pblico35 aos temas relativos administrao estatal (no sentido de fortalecer o interesse comum, j que todos os cidados teriam, de acordo com os burgueses precursores de tal reivindicao, o direito de influenciar nos rumos e implantao de projetos), e de (2) fazer visvel (dar publicidade) os temas e decises, j que os governos absolutistas mantinham o monoplio da deciso poltica, no se submetendo ao consenso dos que consideravam apenas sditos. O "princpio da publicidade" foi defendido pela insurgente burguesia comercial que se opunha aos monarcas e cortes da Europa que promoviam seus interesses privados utilizando-se do Estado.33 Alemo, nascido em 1929, ligado ao grupo conhecido como Escola de Frankfurt, cujos principais pensadores podem ser enumerados nas figuras de Adorno, Benjamin, Marcuse e Horkheimer. Apesar de disparidades em objetos de estudo e certas divergncias no entendimento de questes tericas, as contribuies destes autores tm como objetivo claro a crtica moderna sociedade industrial, suas formas de reproduo e influncia nos campos artstico, poltico, cultural e cientfico. 34 Por mais criticado que seja, rotulado pessimista, saudosista, dentre outros adjetivos, este livro de Jrgen Habermas ainda consta como uma das mais importantes referncias nos cursos cuja rea de concentrao visa investigar sobre a interface entre comunicao e poltica. 35 Uma das distines conferidas ao livro de Habermas seu rigor conceitual. Desta maneira, o autor de Mudana Estrutural no se nega a esclarecer o que entende por "pblico". Explicando em termos simples, em princpio, o termo utilizado por oposio ao "privado". Pressionado, o Estado absolutista passa a divulgar suas decises e, de certa forma, a se abrir ao escrutnio pblico, mas, na verdade, ao escrutnio de quem l, de quem pode ter acesso s informaes "publicadas". deste modo que a burguesia letrada passa a assumir e a se proclamar a funo de "pblico".

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A formao dos Estados Nacionais, nascidos a partir da unificao dos feudos ainda no incio da Idade Moderna, acabou centralizando o poder poltico, instituindo rgos, exrcitos e soberanias sobre territrios. Assim, a Histria narra que, aps o sculo XV e XVI, assistiu-se o fortalecimento dos nobres (absolutistas) e tambm da burguesia comercial, mas esta ltima sem qualquer poder poltico. Estaria formando, nestes termos, o cenrio contraditrio que culminou com a realizao pblica do debate, isto , a formao da esfera pblica: a classe que ganha fora economicamente (graas ao capitalismo mercantil36) no pode ditar os rumos e polticas de que carece por falta de poder; esta classe tem, ento, o interesse em problematizar aspectos polticos da sociedade e busca garantir legitimao social compreendendo um espao simblico de argumentao no pertencente tutela estatal e no afetado pelas ingerncias da vida privada. por este motivo que se pode afirmar ser a esfera pblica uma instncia cujo processo de constituio se deu paralelamente ao surgimento do Estado-nao (Costa, 2002). Era exatamente a quebra desse monoplio de deciso e da influncia sobre a conduo das polticas estatais que a burguesia, sobretudo a inglesa, objeto privilegiado das investigaes de Habermas (1984), tinha por objetivo ao se reunir nos cafs a partir do sculo XVIII, consolidando uma separao severa entre as esferas pblica e privada. As relaes e negcios pblicos concernentes aos cidados deveriam vir s claras, para que o consenso, obtido aps o jogo de argumentaes dos interessados, esclarecidos em um frum especifico, fosse convertido na real fora poltica37. Empregando-se o libi de um interesse geral em discutir e buscar participao civil no rumo dado s questes

36 O desenvolvimento do capitalismo mercantil a partir do sculo XVII, o maior intercmbio entre os burgos e a difuso da imprensa (inclusive o estatuto da liberdade de expresso, defendida com furor pelos filsofos liberais) so os pressupostos para que a opinio pblica e a esfera pblica ganhem corpo neste contexto de transformaes que marcaram a Idade Moderna. So precisamente as notcias da incipiente imprensa (inclusive vindas do exterior, ainda que chegassem lentamente) que funcionam como combustvel para alimentar os discursos. 37 Habermas adiciona mais algumas informaes histricas sobre estes assunto: " prtica do segredo de Estado ser mais tarde contraposto o princpio da 'publicidade'. [...] Governar por decretos e ditos classificado por Montesquieu como une mauvaise sorte de lgislation. Com isso, est preparada a inverso do princpio da soberania absoluta, inverso definitivamente formulada na teoria hobbesiana do Estado: veritas non auctoritas facit legem. A 'lei', essncia das normas gerais, abstratas e permanentes, cuja mera aplicao se pretende que a dominao seja reduzida, inerente uma racionalidade em que o correto converge com o justo. Historicamente, a polmica pretenso dessa espcie de racionalidade desenvolveu-se contra a poltica do segredo de Estado praticada pela autoridade principesca no contexto do raciocnio pblico das pessoas privadas. Assim como o segredo serve para manter uma dominao baseada na voluntas, assim tambm a publicidade deve servir para impor uma legislao baseada na ratio." (Habermas, 1984: 69-71)

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polticas, a burguesia encobriu o que na verdade era seu interesse de classe: apropriar-se das esferas de deciso. So esses eventos que caracterizam o surgimento de uma esfera pblica, onde os participantes tinham voz (acesso) e empregavam a palavra, a interao face a face e os discursos para debater (discursividade e racionalidade) (Gomes, 1998). Desta forma, a inteno da burguesia de que a luta pelo poder poltico passe a ser movida no mais por uma noo de superioridade da nobreza hereditria (ou pelo clero), mas pela competncia em administrar e prover riqueza, pelo melhor argumento respaldado na opinio pblica. A esfera pblica poltica, na verdade, um dos desenvolvimentos de uma pioneira esfera pblica literria, no genuinamente burguesa, mas sobretudo ligada nobreza e ao seu apego pelas artes. Sempre que concebida, uma nova criao artstica, por exemplo, era exposta esfera pblica literria para sabatina, para ser processada pelo crivo dos especialistas da corte, como constata o levantamento histrico feito por Habermas:

"O processo ao longo do qual o pblico constitudo pelos indivduos conscientizados se apropria da esfera pblica controlada pela autoridade e a transforma numa esfera em que a crtica se exerce contra o poder do Estado realiza-se como refuncionalizao (Umfunktionierung) da esfera pblica literria, que j era dotada de um pblico possuidor de suas prprias instituies e plataformas de discusso. Graas mediatizao dela, esse conjunto de experincias da privacidade ligada ao pblico tambm ingressa na esfera pblica poltica." (Habermas, 1984: 68)

Por ltimo, uma informao acerca do livro Mudana Estrutural. Habermas (1984), logo no incio de seu livro, alerta aos leitores que a esfera pblica qual se devota deve ser entendida como uma categoria de poca, ou seja, uma categoria que mantm ntima relao com a realidade social e econmica testemunhada pela Histria do sculo XVIII na Inglaterra. Este um dado relevante, sobretudo para defender o texto de Habermas de interpretaes que reclamam de sua pouca dedicao no que se refere s esferas pblicas existentes antes da inglesa, como por exemplo a veneziana e a

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holandesa, sugeridas por Peter Burke38. Alm disso, Habermas sustenta um diferencial desta esfera pblica inglesa: ela a primeira a funcionar, de modo freqente, politicamente.

A "mudana estrutural" do ponto de vista habermasiano

A definio de esfera pblica ainda hoje gera polmicas para os especialistas no assunto. O fato que a referncia a esta categoria mudou ao longo da histria, apesar de determinados estudiosos insistirem em seu carter normativo, enquanto outros preferem se prender a uma compreenso alargada em excesso desta categoria. Comecese pelo conceito apenas esboado pelo prprio Habermas para, ento, mostrar-se as diferentes interpretaes que fizeram o debate sobre a esfera pblica se prolongar.

"A esfera pblica burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em um pblico; elas reivindicam esta esfera pblica regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a prpria autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis do intercmbio de mercadorias e do trabalho social. O meio dessa discusso poltica no tem, de modo peculiar e histrico, um modelo anterior: a racionalizao pblica. [...] Os burgueses so pessoas privadas; como tais, no 'governam'. Por isso, as suas reivindicaes de poderio contra o poder pblico no se dirigem contra a concentrao do poder que deveria ser 'compartilhado'; muito mais eles atacam o prprio princpio de dominao vigente. O princpio de controle que o pblico burgus contrape a esta dominao, ou seja, a esfera pblica, quer modificar a dominao enquanto tal." (Habermas, 1984: 42-43)39

Esta afirmao de Habermas significa que o campo de ao da esfera pblica comporta pelo menos trs pr-requisitos para que esta situao discursiva se configure: a prioridade dada aos discursos, no sentido de entendimento dialgico, formal, valorizando, assim, o carter comunicativo; o fato de que o discurso se baseia na

38 Historiador ingls que tem como um dos focos de interesse os estudos sobre as elites de Veneza e Amsterd do sculo XVII. 39 Wilson Gomes (1998) vai procurar sintetizar uma definio de esfera pblica que tenha alcance um pouco alm das caracterizaes que marcam a conceituao feita por Habermas (1984); "A esfera pblica o mbito da vida social em que interesses, vontades e pretenses que comportam conseqncias concernentes a uma coletividade apresentam-se discursivamente e argumentativamente, de forma aberta e racional. [...] chama-se esfera pblica o mbito da vida social em que se realiza - em vrias arenas, por vrios instrumentos e em torno de variados objetos de interesse especfico - a discusso permanente entre pessoas privadas reunidas num pblico." (Gomes, 1998)

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formulao de proposies cujo poder de convencimento est por ser avaliado, de modo racional, durante a sesso argumentativa; o acesso de cidados autnomos em suas vidas particulares, livres de constrangimentos advindos de esferas como a econmica ou qualquer outra condio anterior ao plano do debate. A partir deste entendimento, pode-se dizer que Habermas considera a esfera pblica burguesa do sculo XVIII como um espao bem delimitado pelas circunstncias daquele momento, diferindo-se de e contestando o modo absolutista de produo da deciso poltica, deixando de levar em considerao os temas concernentes esfera dos negcios particulares como diferenciadores das capacidades argumentativas dos cidados. Entretanto, Habermas, ainda em Mudana Estrutural, argumenta que, depois de obter sistematicamente sua influncia no poder poltico, a burguesia no mais precisa ser crtica ou mesmo manter um esfera discursiva contra o Estado e, conseqentemente, esta classe social acaba por institucionalizar o espao da argumentao (na figura do parlamento, ocupado por representantes eleitos), que continuaria, por este meio, a seu servio. A discusso sobre as formas de comando poltico de um Estado passaria, desde ento, no dizer de Habermas, a ser elitizada em partidos antagnicos que se organizam para alm da instncia local das comunidades, estabelecendo uma estrutura burocrtica de funcionamento que visa manter seus signatrios sob sintonia ideolgica. Isto quer dizer que, cada vez mais, as vontades deixam de ser formadas no confronto entre as opinies dos indivduos, de um pblico esclarecido, para permanecerem sob jugo de poucos dirigentes que, com a conivncia dos demais arregimentados, estabelecem as diretrizes e projetos a serem implantados a partir do momento em que seus partidos tencionam chegar ao poder. A opinio pblica, igualmente, deixa de ser resultado de um debate racional entre desprovidos de investidura para ganhar feies institucionais. Em outras palavras, ao possibilitar a associao de homens privados em agremiaes especificas, o surgimento dos partidos faz com que os cidados particulares no mais se coloquem para debater suas prprias idias da forma vivaz que acontecia antes, mas, geralmente, estejam prontos a aderir s idias de seus correligionrios, prontos a negar as iniciativas dos oponentes, por melhores que elas sejam (por mais que esta atitude v de encontro s suas sinceras reflexes pessoais).36

Deve-se observar, todavia, que a burguesia no vai exercer o comando da administrao estatal sem dificuldades aps a queda do Absolutismo. Quando apregoava que o regime absolutista deveria ser mais claro e buscar o consentimento dos cidados, o que o tornaria um governo menos odioso, a burguesia convertia seu interesse especfico em interesse geral, ou seja, o acesso a todos deveria ser permitido no que tange coisa pblica. O fato que a reivindicao do poder a um "pblico" legitimador, a "todos", acaba gerando espao para uma compreenso mais ampla do acesso esfera do debate, incluindo-se, a partir da, membros de origem no necessariamente burguesa. De acordo com Habermas, mesmo os grupos desprovidos de bens econmicos vo requerer sua participao poltica:

"Marx j tinha em vista a perspectiva dessa evoluo: medida que camadas no-burguesas penetram na esfera pblica poltica e se apossam de suas instituies, medida que participam da imprensa, dos partidos e do Parlamento, a arma da publicidade, forjada pela burguesia, volta-se contra a prpria burguesia. [...] Ora, porm, pela metade do sculo XIX, era de se prever que essa esfera pblica, devido sua prpria dialtica, passaria a ser ocupada por grupos que, por no disporem de propriedade e, com isso, de uma base para a autonomia privada, no poderiam ter nenhum interesse na manuteno da sociedade como esfera privada. (Habermas, 1984: 152-156)

Habermas reconhece que tal expanso e diversificao dos atores e interesses no aconteceu como previsto pelos ideais do pensamento marxista. A partir do momento em que o Estado busca medidas para aliviar a tenso social criada pela desigualdade entre os diferentes estratos sociais, como oferecer bem-estar em sade, educao, habitao e trabalho, a base burguesa ou elitista caracterizadora do mbito poltico, na qual passou a se estabelecer a esfera pblica com o fim do Absolutismo, no sofreu grandes modificaes. Aqui se encontra um outro fator-chave que, na viso de Habermas, vem justificar a transformao do espao argumentativo: a antiga diviso entre Estado e esfera pblica burguesa se compromete a partir do momento em que as fronteiras entre estas duas instncias se tornam difceis de traar: h uma influncia mtua. Com a interveno do Estado (a busca de mecanismos que regulem a economia, por exemplo), a prpria esfera privada afetada na medida em que a mquina administrativa atua no sentido de oferecer vantagens e garantias sociais, negcios antes restritos famlia.

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A mudana estrutural da esfera pblica, para Habermas, estaria ainda intimamente ligada modificao ocorrida no papel da imprensa e da comunicao, fenmeno caracterstico do sculo XX. Os mass media teriam tornado os indivduos atomizados e tolhido suas individualidades na medida em que passaram a favorecer a difuso de temas frvolos e de carter meramente consumista. Para deteriorar ainda mais o quadro, Habermas alega que, com o advento dos meios de comunicao eletrnicos (rdio e televiso, principalmente), marcados pela verticalidade entre emissores e receptores, a replicabilidade, o dilogo, a interao, estariam comprometidos. Isto , a mudana estrutural da esfera pbli