dilma, vamos dar uma volta?

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nossojornal / abr16 6 “Não cobre amor, que amor não é cobre. É ouro. Não peça amor, que amor não é peça. É todo. Mas chama, chama amor, que amor é chama. É fogo!” (C. Lemos) Querida presidenta, vamos bater um dedo de prosa, como se diz em bom mineirês. Desde que a senhora foi reeleita, não tem tido um só dia de paz, seja por causa do Congresso, cujo presidente não vota suas pautas, seja por causa da imprensa, que age feito abutre, seja por parte da população que não ficou satisfeita com o resultado das urnas. A desapro- vação, no entanto, é co- mum, e já aconteceu com a maioria dos presidentes anteriores. O que tem me entris- tecido é a crescente onda de ódio que foi instaura- do no país. Sabemos que esse fenômeno não é es- pontâneo, pelo contrário: foi habilmente arquitetado por setores dominantes da sociedade e tem sido magistralmente propaga- do pela grande mídia. E, como uma grande massa de manobra, as pessoas propagam - consciente ou inconscientemente - o dis- curso de quem nunca se conformou em perder um pouco de poder. Afinal de contas, não é a primeira vez que ou- vimos que é preciso varrer a corrupção e moralizar o país - é o mesmo discurso que fundamentou o golpe civil militar de 1964, que instaurou uma ditadura de 21 anos, tão corrupta quanto qualquer outro go- verno. Apesar de ter cons- ciência disso, ainda me choca a forma como as pessoas expressam sua insatisfação. No lugar do debate de ideias, da argu- mentação embasada em conhecimento histórico, o reducionismo político-ide- ológico - ou se é coxinha, Dilma, vamos dar uma volta? Isabella Lucas ou petralha. Aparente- mente, ignoram que exis- tem mais posicionamen- tos ideológicos entre o céu e a terra do que ja dizia essa vã dicotomia. Em meio aos gritos en- sandecidos das sacadas da zona sul, me pergun- to que momento passou a ser aceitável - e até in- centivado - xingar uma presidenta, usando xinga- mentos sexistas? Em que momento entendeu-se que estava tudo certo fa- zer montagens desrespei- tosas, chegando ao cúmu- lo dos adesivos para carro que simulam seu estupro? Senhora presidenta, a senhora, do alto de seus 68 anos, não merecia pas- sar por isso. Nenhum de seus antecessores passa- ram por isso, e sabemos o porquê: eram homens. Quando um presidente não agrada, ele é incom- petente, fraco. Quando ele é rígido, diz-se que tem pulso firme. A senhora, quando o é, é chamada de histérica, fora do eixo - porque, como a revista de maior circulação do país fez questão de evidenciar, o que se espera da mulher na política é que ela seja contida, recatada e que esteja preferencialmente em posição decorativa, não à frente de um país. Presidenta, a senhora não era minha primeira opção nas últimas elei- ções. Tenho decepções em vários aspectos, co- mo alguém que espera- va mais transformações rumo à uma efetiva jus- tiça social. Apesar disso, entendo que política não se faz só, e que não seria fácil lidar com o Congresso mais conservador desde a redemocratização. Mas ambas sabemos que não se trata de com- petência e que insatisfa- ção não justifica impea- chment, não é verdade? Afinal de contas, impe- achment justifica-se quando provado crime de responsabilidade, ou seja, quando atenta-se contra a carta maior da nação. Tampouco trata-se de pedadalas fiscais, porque, se por isso fosse, a maioria dos presidentes anteriores e pelo menos meia dúzia de governadores seriam impeachmados, incluin- do nosso ex governador e campeão olímpico de pedaladas fiscais, que é relator do processo de im- peachment no Senado. Também não se trata de combate à corrupção, pois, para isso, somente uma reforma política que comece pelo fim do finan- ciamento privado de cam- panha. Pois bem, o fato de fazer oposição - pela es- querda - ao seu governo não me impede de ter em- patia pela senhora. Basta que eu reconheça o enor- me avanço por termos eleito a nossa primeira mulher presidente. Eu me sinto muito or- gulhosa de ter como presi- denta uma mulher que lu- ta pela democracia desde quando ela parecia uma utopia, e que não arregou quando sofreu os mais cruéis castigos nos porões da ditadura. É por isso que meu co- ração se aperta sempre que a vejo com aparência exausta, dando declara- ções à mídia que age feito a Inquisição, pronta para queimar sua bruxa. Mas é também essa trajetória que me faz ter certeza de que a senho- ra continuará de cabeça erguida, pois é bastante provável que outros não aguentassem tão bem a pressão. Só quem superou o pau de arara, os cho- ques elétricos e os ratos na genitália continuaria fir- me em meio a essa cons- piração política tramada bem no quintal de casa. Quando a vi no Abraça- ço da Democracia, frente a frente, pude ver nos seus olhos um grande cansaço, mas vi também uma força sem tamanho. Espero que a senhora aguente firme, pra que eu possa continu- ar cobrando-lhe por mais investimentos em edu- cação, saúde, reformas agrária e política, reajuste fiscal e outras tantas ne- cessidades que temos. Não quero ter que co- brar isso de presidente e vice indiretamente eleitos, que não receberam nos- sos votos, e cujas fichas são sujas. Fique e honre os 54 milhões de votos que a elegeram. Uma vez dado o primeiro passo, precisamos ir adiante, e não pra trás. Um beijo, um cheiro, muito axé e ener- gias positivas! “Eu me sinto muito orgulhosa de ter como presidenta uma mulher que luta pela democracia desde quando ela parecia uma utopia, e que não arregou quando sofreu os mais cruéis castigos nos porões da ditadura... Quando a vi no Abraçaço da Democracia, frente a frente, pude ver nos seus olhos um grande cansaço, mas vi também uma força sem tamanho ”. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

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Matéria escrita pra edição de abril do Nosso Jornal, Folha Comunitária de Abaeté.

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Page 1: Dilma, vamos dar uma volta?

nossojornal / abr166

“Não cobre amor, que amor não é cobre. É ouro. Não peça amor, que amor não é peça. É todo. Mas chama, chama amor, que amor é chama. É fogo!” (C. Lemos)

Querida presidenta, vamos bater um dedo de prosa, como se diz em bom mineirês.

Desde que a senhora foi reeleita, não tem tido um só dia de paz, seja por causa do Congresso, cujo presidente não vota suas pautas, seja por causa da imprensa, que age feito abutre, seja por parte da população que não ficou satisfeita com o resultado das urnas. A desapro-vação, no entanto, é co-mum, e já aconteceu com a maioria dos presidentes anteriores.

O que tem me entris-tecido é a crescente onda de ódio que foi instaura-do no país. Sabemos que esse fenômeno não é es-pontâneo, pelo contrário: foi habilmente arquitetado por setores dominantes da sociedade e tem sido magistralmente propaga-do pela grande mídia. E, como uma grande massa de manobra, as pessoas propagam - consciente ou inconscientemente - o dis-curso de quem nunca se conformou em perder um pouco de poder.

Afinal de contas, não é a primeira vez que ou-vimos que é preciso varrer a corrupção e moralizar o país - é o mesmo discurso que fundamentou o golpe civil militar de 1964, que instaurou uma ditadura de 21 anos, tão corrupta quanto qualquer outro go-verno.

Apesar de ter cons-ciência disso, ainda me choca a forma como as pessoas expressam sua insatisfação. No lugar do debate de ideias, da argu-mentação embasada em conhecimento histórico, o reducionismo político-ide-ológico - ou se é coxinha,

Dilma, vamos dar uma volta? Isabella Lucas

ou petralha. Aparente-mente, ignoram que exis-tem mais posicionamen-tos ideológicos entre o céu e a terra do que ja dizia essa vã dicotomia.

Em meio aos gritos en-sandecidos das sacadas da zona sul, me pergun-to que momento passou a ser aceitável - e até in-centivado - xingar uma presidenta, usando xinga-mentos sexistas? Em que momento entendeu-se que estava tudo certo fa-zer montagens desrespei-tosas, chegando ao cúmu-lo dos adesivos para carro que simulam seu estupro?

Senhora presidenta, a senhora, do alto de seus 68 anos, não merecia pas-sar por isso. Nenhum de seus antecessores passa-ram por isso, e sabemos o porquê: eram homens. Quando um presidente não agrada, ele é incom-petente, fraco. Quando ele é rígido, diz-se que tem

pulso firme. A senhora, quando o é, é chamada de histérica, fora do eixo - porque, como a revista de maior circulação do país fez questão de evidenciar, o que se espera da mulher na política é que ela seja contida, recatada e que esteja preferencialmente em posição decorativa, não à frente de um país.

Presidenta, a senhora não era minha primeira opção nas últimas elei-ções. Tenho decepções em vários aspectos, co-mo alguém que espera-va mais transformações rumo à uma efetiva jus-tiça social. Apesar disso, entendo que política não se faz só, e que não seria fácil lidar com o Congresso mais conservador desde a redemocratização.

Mas ambas sabemos que não se trata de com-petência e que insatisfa-ção não justifica impea-

chment, não é verdade? Afinal de contas, impe-achment só justifica-se quando provado crime de responsabilidade, ou seja, quando atenta-se contra a carta maior da nação.

Tampouco trata-se de pedadalas fiscais, porque, se por isso fosse, a maioria dos presidentes anteriores e pelo menos meia dúzia de governadores seriam impeachmados, incluin-do nosso ex governador e campeão olímpico de pedaladas fiscais, que é relator do processo de im-peachment no Senado.

Também não se trata de combate à corrupção, pois, para isso, somente uma reforma política que comece pelo fim do finan-ciamento privado de cam-panha.

Pois bem, o fato de fazer oposição - pela es-querda - ao seu governo não me impede de ter em-

patia pela senhora. Basta que eu reconheça o enor-me avanço por termos eleito a nossa primeira mulher presidente.

Eu me sinto muito or-gulhosa de ter como presi-denta uma mulher que lu-ta pela democracia desde quando ela parecia uma utopia, e que não arregou quando sofreu os mais cruéis castigos nos porões da ditadura.

É por isso que meu co-ração se aperta sempre que a vejo com aparência exausta, dando declara-ções à mídia que age feito a Inquisição, pronta para queimar sua bruxa.

Mas é também essa trajetória que me faz ter certeza de que a senho-ra continuará de cabeça erguida, pois é bastante provável que outros não aguentassem tão bem a pressão. Só quem superou o pau de arara, os cho-ques elétricos e os ratos

na genitália continuaria fir-me em meio a essa cons-piração política tramada bem no quintal de casa.

Quando a vi no Abraça-ço da Democracia, frente a frente, pude ver nos seus olhos um grande cansaço, mas vi também uma força sem tamanho. Espero que a senhora aguente firme, pra que eu possa continu-ar cobrando-lhe por mais investimentos em edu-cação, saúde, reformas agrária e política, reajuste fiscal e outras tantas ne-cessidades que temos.

Não quero ter que co-brar isso de presidente e vice indiretamente eleitos, que não receberam nos-sos votos, e cujas fichas são sujas. Fique e honre os 54 milhões de votos que a elegeram. Uma vez dado o primeiro passo, precisamos ir adiante, e não pra trás. Um beijo, um cheiro, muito axé e ener-gias positivas!

“Eu me sinto muito orgulhosa de ter como presidenta uma mulher que luta pela democracia desde quando ela parecia uma utopia, e que não arregou quando sofreu os mais cruéis castigos nos porões da ditadura... Quando a vi no Abraçaço da

Democracia, frente a frente, pude ver nos seus olhos um grande cansaço, mas vi também uma força sem tamanho ”.

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR