diegues. o mito da natureza intocada

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  • 7/21/2019 Diegues. O Mito da Natureza Intocada

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    DIEGUES, Antnio Carlos SantAna.

    O mito moderno da natureza intocada.

    Samuel Borges de Oliveira Jnior1

    O livro O mito moderno da natureza intocada uma obra de grande importncia,pois aborda conceitos relativos s relaes simblicas e imaginrias oriundas dasrelaes ser humano/natureza, tendo como ponto central de seu enfoque as reasconsideradas protegidas no mundo. O autor considera que a civilizao urbano-industrial, no desenvolvimento de novas tecnologias, acaba por descobrir, tambm,

    meios de destruio em massa da natureza, rompendo, por assim dizer, com aligao ancestral dessas relaes, consideradas por muitos como um mito.Esse mito, provavelmente oriundo de pases ditos industrializados, segundo o

    autor, se refere a reas naturais protegidas, consideradas como um paraso, um espaodesabitado, onde a natureza deve ser mantida intocada e livre de qualquer presso porparte da humanidade. Seria uma idia interessante para fins de conservao natural, masesse mito confronta com outros mitos e simbologias existentes nas populaes locaisque vivem em reas protegidas (por exemplo, indgenas, pescadores artesanais).

    Esse confronto percebido atravs da produo do conhecimento destas

    populaes locais que desenvolveram, atravs desse interrelacionamentocom o ambiente ao qual esto inseridas, sistemas de manejo de fauna e flora,oportunizando, assim, a conservao da diversidade biolgica. Entretanto, acriao dessas reas protegidas uma das principais estratgias para a conservaoda natureza, principalmente em pases do Terceiro Mundo, com o objetivo depreservar espaos que tenham importncia ecolgica. Essas reas so criadas, paraque seus atributos naturais e estticos possam ser apreciados por visitantes, masno para a permanncia das populaes locais em seu interior.

    Essa excluso dessas populaes de tais reas pode ser conflituosa, pois emnosso pas existe uma diversidade de modos de vida e culturas que so consideradastradicionais ou locais, totalmente dependentes dessas reas para sua prpriasobrevivncia. Alm dessas populaes, temos ainda uma diversidade de tribos e

    1 Bilogo, Mestre em Educao, Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Ecologia e Recursos

    Naturais/UFSCar [email protected].

    R. Educ. Pbl. Cuiab v. 18 n. 36 p. 227-229 jan./abr. 2009

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    228 Notas de leituras, resumos e resenhas

    R. Educ. Pbl. Cuiab, v. 18, n. 36, p. 227-229, jan./abr. 2009

    povos indgenas que tambm dependem de tais reas para sobreviverem.O livro aponta que os ecossistemas considerados naturais so os mais preferidos

    para a transformao em reas naturais protegidas, implicando, certamente,na expulso dos moradores, sem levar em considerao a histria de vida dessapopulao em relao ao ambiente ao qual est inserida. Com essa expulso,provavelmente em benefcio das populaes urbanizadas, que ocorre um dosgraves problemas, que os tomadores de deciso no levam em considerao: aperda do conhecimento local dessas populaes e, conseqentemente, ao usodesse conhecimento no ambiente, seja em sistemas de manejo, seja na construocultural da populao.

    Essa perda inevitvel se esse caminho continuar a ser seguido, onde osgovernos nem sempre avaliam os impactos que sero causados nas populaes que

    so retiradas dessas reas sem se importar com o modo de vida das mesmas, que,em muitos casos, so responsveis pela conservao e conseqente preservaodessas reas naturais. Para as populaes locais, fica a indagao: como as atividadestradicionais, sejam vinculadas agricultura de subsistncia, pesca ou extrativismo,so consideradas prejudiciais, se muitas vezes os impactos causados pela visitaode turistas so maiores e mais graves?

    Conforme o prprio nome do livro diz, essa noo de Mito moderno danatureza intocadanada mais do que uma representao simblica, segundo a

    qual ainda existem reas naturais intocadas e que no permitem a presena doser humano. Ou seja, esse mito traz que incompatvel a qualquer tipo de aohumana e a conservao da natureza e que, o ser humano nada mais do que umgrande vilo, portanto, mantido afastado dessas reas naturais.

    O que devemos levar em considerao, para acabar de vez com essa idiamesquinha de que exista uma natureza intocada, lembrarmos que muitos soos exemplos de reas naturais onde ocorre o uso sustentvel, como o caso dereservas extrativistas, corroborando ainda mais contra esse mito.

    Diegues demonstra que na concepo mtica das sociedades primitivas etradicionais ocorrem relaes simbiticas entre seres humanos e a natureza, sejaem atividades cotidianas (como em atividades do fazer, das tcnicas e da produo)quanto no campo simblico, muitas vezes interpretado de forma errnea edesconsiderado na construo de estratgias conservacionistas. Considerandoessas relaes, a noo de parques ou reservas protegidas sem as populaes locaistorna-se sem sentido para as culturas que tenham esse pensamento, sendo queessa separao, onde as populaes locais so praticamente proibidas pelo Estadode exercer qualquer atividade de cunho tradicional, acaba por representar a

    imposio desse mito, que prprio da sociedade moderna.A imposio desse pensamento, que leva criao de tais reas naturais

  • 7/21/2019 Diegues. O Mito da Natureza Intocada

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    DIEGUES, Antnio Carlos SantAna.

    O mito moderno da natureza intocada. So Paulo: Hucitec, 2000. 169 p. 229

    R. Educ. Pbl. Cuiab, v. 18, n. 36, p. 227-229, jan./abr. 2009

    protegidas em territrios onde havia a presena de povos tradicionais, acaba sendovista, nada mais, nada menos, como uma usurpao dos direitos consideradossagrados terra onde viveram seus antepassados, onde funciona o espaocoletivo totalmente diferente dos centros urbanos. Se essa expulso persistir,as populaes locais no tero mais condies de continuar existindo comoportadora de determinada cultura, de uma relao especfica ao ambiente ao qualesto inseridas.

    Segundo Diegues, h ainda o confronto de saberes (tradicional e cientfico-moderno) oriundo da implantao de tais reas, onde de um lado encontra-seo saber acumulado pelas populaes locais ao longo de geraes, sobre os ciclosnaturais, destacando o conhecimento sobre a reproduo de espcies, influnciada lua nas atividades de pesca, produo de sistemas de manejos dos recursos,

    tendo em vista a conservao das espcies e, por outro lado, o conhecimentocientfico, oriundo das cincias exatas que, nos seus moldes, desconhece e desprezao conhecimento tradicionalmente acumulado.

    Esse confronto de saberes leva a outra situao onde, em quase todas as reasnaturais protegidas, a pesquisa cientfica permitida. Entretanto, trabalhos sobre oconhecimento local so descartados, pois necessria a presena das comunidadestradicionais, dos seus saberes, de suas tcnicas e, sobretudo, das relaes existentesentre as populaes e a natureza, o que vai de encontro ao princpio do mito, que

    no permite a presena de tais populaes nessas reas.O autor enfoca tambm a importncia da etnocincia nos estudos sobreo conhecimento das populaes locais, levando-se em conta que os estudosetnocientficos reforam a idia de que o manejo adequado dos ecossistemas tambmsignifica uma relao de conhecimento e ao entre tais populaes e seu ambiente. Oautor evidencia que importante manter as populaes nessas reas, pois as mesmastm conhecimento sobre esse ambiente, influenciando na sua conservao.

    O autor finaliza demonstrando a necessidade de se conhecer melhor essas relaesque ajudam na manuteno da diversidade biolgica e cultural e que as populaeslocais devem ser parceiras na criao e implantao de reas protegidas, pois, apesarde conhecer essas reas, tais populaes raramente participam dos debates e dasdecises, que ficam sob responsabilidade de cientistas naturais e dos tomadores dedeciso. Esse um dos passos para se acabar com o mito de uma natureza intocada.

    Recebimento em: 10/10/2008.

    Aceite em: 10/11/2008.