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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1 DIDASCALICON E DE SACRAMENTIS CHRISTIANAE FIDEI (DE SACRAMENTIS): UM ESTUDO DO PROJETO EDUCACIONAL DE HUGO DE SAINT VICTOR Ana Paula dos Santos Viana Terezinha Oliveira Introdução Neste estudo apresentamos uma proposta de pesquisa à linha de História e Historiografia da Educação. Pretendemos, ao desenvolver essa investigação, analisar o projeto educacional de Hugo de Saint-Victor (1096-1141) para os estudantes da Escola de Saint- Victor, em Paris, destacando os princípios pedagógicos essenciais à formação destes e, que se estende, aos homens do século XII. Desde o período em que fizemos a graduação em Pedagogia (2008-2011) na Universidade Estadual de Maringá (UEM) procuramos compreender a contribuição da educação para a formação humana e intelectual. Nesse sentido, à preocupação com o conhecimento, com a formação humana e docente e com o ensino e a aprendizagem foi alimentada pelas múltiplas experiências e vivências, seja nos estágios em docência seja na elaboração dos trabalhos para as disciplinas ou dos projetos de iniciação científica. Foi com o referido pensador medieval que tivemos o primeiro contato com a pesquisa e, assim, iniciamos nossos estudos no intuito de alcançar esse objetivo que é compreender a educação e sua contribuição para a formação dos sujeitos ao longo da história. Identificamo-nos com as disciplinas de Fundamentos da Educação, especialmente Filosofia da Educação nas épocas antiga e medieval, a qual nos possibilitou desenvolver o primeiro Projeto de Iniciação Científica (PIC), intitulado, A educação no século XII: um olhar da história, da filosofia e da literatura (01/05/2009 a 30/04/2010). Com o presente trabalho, pudemos compreender a importância da leitura como elemento essencial para chegar à sabedoria. Os escritos do mestre Hugo de Saint-Victor, de Pedro Abelardo e de Chrétien de Troyes brindaram-nos com suas formulações, cuja compreensão foi fundamental para

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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1

DIDASCALICON E DE SACRAMENTIS CHRISTIANAE FIDEI (DE SACRAMENTIS): UM ESTUDO DO PROJETO

EDUCACIONAL DE HUGO DE SAINT VICTOR

Ana Paula dos Santos Viana Terezinha Oliveira

Introdução

Neste estudo apresentamos uma proposta de pesquisa à linha de História e

Historiografia da Educação. Pretendemos, ao desenvolver essa investigação, analisar o projeto

educacional de Hugo de Saint-Victor (1096-1141) para os estudantes da Escola de Saint-

Victor, em Paris, destacando os princípios pedagógicos essenciais à formação destes e, que se

estende, aos homens do século XII.

Desde o período em que fizemos a graduação em Pedagogia (2008-2011) na

Universidade Estadual de Maringá (UEM) procuramos compreender a contribuição da

educação para a formação humana e intelectual. Nesse sentido, à preocupação com o

conhecimento, com a formação humana e docente e com o ensino e a aprendizagem foi

alimentada pelas múltiplas experiências e vivências, seja nos estágios em docência seja na

elaboração dos trabalhos para as disciplinas ou dos projetos de iniciação científica. Foi com o

referido pensador medieval que tivemos o primeiro contato com a pesquisa e, assim,

iniciamos nossos estudos no intuito de alcançar esse objetivo que é compreender a educação e

sua contribuição para a formação dos sujeitos ao longo da história.

Identificamo-nos com as disciplinas de Fundamentos da Educação, especialmente

Filosofia da Educação nas épocas antiga e medieval, a qual nos possibilitou desenvolver o

primeiro Projeto de Iniciação Científica (PIC), intitulado, A educação no século XII: um olhar

da história, da filosofia e da literatura (01/05/2009 a 30/04/2010). Com o presente trabalho,

pudemos compreender a importância da leitura como elemento essencial para chegar à

sabedoria. Os escritos do mestre Hugo de Saint-Victor, de Pedro Abelardo e de Chrétien de

Troyes brindaram-nos com suas formulações, cuja compreensão foi fundamental para

XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 2

atingirmos o objetivo ali proposto: analisar o conhecimento citadino do século XII,

priorizando as mudanças teóricas e comportamentais.

As discussões acerca dos ensinamentos de Hugo de Saint-Victor e de Pedro Abelardo

colaboraram para que entendêssemos que o envolvimento de ambos com a educação medieval

contribuíram para o nascimento da Universidade de Paris1.

Essa compreensão contribuiu para que desenvolvêssemos outro estudo ao

participarmos do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). Com o

objetivo de compreender as origens da universidade medieval, realizamos a pesquisa

intitulada Um estudo da Universidade medieval por meio da historiografia francesa

(01/08/2010 a 31/07/2011). Com base em seus resultados, redimensionamos o tema e

realizamos o trabalho de conclusão de curso, intitulado Universidade medieval no século XIII:

um estudo de suas origens sob o olhar da historiografia francesa (UEM/CCH/DFE – 2008-

2011).

Nessa oportunidade, investigamos, com base na historiografia francesa, a gênese do

espaço de formação humana e docente na universidade. Nossa preocupação com essa

instituição foi despertada pelos estudos anteriormente mencionados, especialmente os

relacionados à formação docente. Afinal, de acordo com Cambi, “[...] no âmbito das scholae,

serão Pedro Abelardo (1079-1142) e Hugo de Saint-Victor, ambos parisienses e

contemporâneos, que delinearão um primeiro quadro inovador dos processos educativos”

(CAMBI, 1999, p. 187, grifo do autor). Além disso, as escolas do século XII, sobretudo a

vitorina e a de Pedro Abelardo, são vistas por estudiosos como propulsoras das universidades

medievais do século XIII, pois dessas duas escolas nasceria a Universidade de Paris

(MARCHIONNI, 2001).

Essas discussões sobre a educação citadina do século XII e sua contribuição no

processo educativo da ambiência universitária no século XIII, nos levou a refletir, então,

como seria o processo formativo anterior a esse período, o que culminou no desenvolvimento

de uma pesquisa de Mestrado em Educação (2012-2014), na área de História e Historiografia 1 É importante observar que embora ambos vivessem na mesma ambiência do século XII, os espaços de atuação eram distintos e ambos contribuíram sobremaneira para o desenvolvimento do ensino e educação medieval. Afinal não distante da Escola de Saint-Victor em Paris, havia outra escola na Ilha do rio Sena, a de Notre-Dame, a qual se encontrava o ensino e as argumentações do mestre Pedro Abelardo. Posteriormente, Pedro Abelardo ensinará na colina Sainte-Geneviève local onde estava a abadia de Saint-Victor. Segundo estudiosos, destas escolas despontará, no início do século XIII, a Universidade de Paris. Neste contexto, os mestres Hugo de Saint-Victor e Pedro Abelardo brilharam em meados do século XII e abriram caminho para o desenvolvimento do conhecimento no século XIII (MARCHIONNI, 2001).

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da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de

Maringá (PPE/UEM). Esta pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Com essa pesquisa, recuperamos na História da Educação uma autora pouco divulgada

neste campo do saber e pouco estudada no ambiente universitário atual. Estamos nos

referindo à Dhuoda (c. 803-843), uma mãe de origem germânica, nobre, que viveu no século

IX no período da dinastia carolíngia. Essa autora dedicou-se a escrever um Manual2

intitulado, La educación cristiana de mi hijo, para orientar a formação de seu primogênito,

Guilherme quando este completara 16 anos. Ao redigi-lo procura ensinar a seu filho os

valores morais, os comportamentos e as virtudes3 necessárias a sua educação. (NUNES,

1995). Dentre esses elementos, observamos que a fidelidade era uma questão tênue no

período em que a autora viveu, pois o Império Carolíngio enfrentava um momento de crise

por questões políticas. Desse modo, procuramos analisar a concepção de fidelidade na obra de

Dhuoda, bem como o lugar que ocupa em sua proposta formativa para o nobre do século IX,

tendo como referência as relações feudo-vassálicas e a concepção aristotélica de virtude

moral.

Em face do frágil processo de unidade social que passara o referido Império, Dhuoda

serve-se da fidelidade como fundamento da educação pretendida para Guilherme, justamente

por prezar uma formação íntegra, unitária para ele. Assim, por perceber que essa fragilidade

poderia influenciar seu convívio social, a autora procurou redigir o Manual com o seguinte

objetivo: “[...] desde la primera línea de este pequeño libro, hasta la última sílaba del mismo,

2 Com relação à procedência do Manual, cumpre mencionar a respeito da origem e das edições do manuscrito de Dhuoda. Merino (1995), afirmando que existem diversas hipóteses para a origem do texto, refere-se à existência de uma versão do Manual em latim na biblioteca do arcebispo de Tolouse, Pierre de Marca, de uma versão na Biblioteca Municipal de Nîmes e de outra na Biblioteca Central de Barcelona. A primeira edição completa do Manual, segundo o autor, foi publicada em 1887, sob a responsabilidade de Édouard Bondurant, que a organizou com base nas informações contidas nos manuscritos existentes nas bibliotecas de Nîmes e Barcelona, reunindo assim o conteúdo de ambas em uma única publicação. Fundamentado nesta edição, Pierre Riché elaborou uma nova edição, versando o texto latino para o francês. Baseado na versão de Riché, Merino (1995) a traduziu para a língua espanhola. Destacamos desse modo, utilizamos como fonte de pesquisa, o Manual de Dhuoda, a versão em espanhol traduzida por Marcelo Merino (Profesor Ordinario de Patrología, del Instituto de Historia de la Iglesia, Universidad de Navarra, Pamplona). Disponível em: <http://www.unav.es/ihi/curriculum/merino/default.html>. Acesso em: 18 set. 2014.

3 As virtudes mencionadas por Dhuoda são encontradas ao longo de todo o Manual. No segundo capítulo são apresentadas as virtudes teologais (fé, esperança e caridade) e, no quarto, ela aborda com mais vagar os vícios e virtudes No sexto capítulo, esta mãe indica o caminho da perfeição, ilustrando-os com os sete dons do Espírito Santo apresentados pelo profeta Isaias (sabedoria, inteligência, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus) e com as oito bem-aventuranças tomadas por ela como virtudes necessárias para alcançar a perfeição.

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reconoce que todo há sido escrito para tu salvación” (DHUODA, 1995, p. 169), ou em outras

palavras “[...] para que sea leído como modelo de tu formación” (DHUODA, 1995, p. 51).

Visando continuar a investigação e compreensão do processo formativo no decorrer da

história, decidimos apresentar um projeto de doutorado à linha de pesquisa de História e

Historiografia da Educação que trate de temas importantes à Hugo de Saint-Victor

recuperando dois de seus escritos: Didascálicon e De sacramentis. Nosso objeto de pesquisa é

o projeto educacional do mestre vitorino para a formação dos estudantes da Escola da abadia

de Saint-Victor, em Paris, expresso nas obras citadas. Embora recuperemos Didascálicon, a

obra de Hugo de Saint-Victor já estudada no primeiro projeto que realizamos, a abordagem

não será direcionada a compreender as mudanças teóricas e comportamentais do século XII,

ainda que estas sejam pertinentes. A intenção é verificar a concepção vitorina de formação de

pessoas, de estudantes, dos princípios educacionais e pedagógicos para se ensinar algo a

alguém e, por conseguinte, para aprender algo de alguém. Nesse sentido, o problema que se

apresenta está relacionado aos fundamentos da formação humana e intelectiva, dentre as quais

se destaca a sabedoria, ou nas palavras de Hugo de Saint-Victor a Sapiência4.

De todas as coisas a serem buscadas, a primeira é a Sapiência, na qual reside a forma do bem perfeito. A Sapiência ilumina o homem para que conheça a si mesmo, ele que, quando não sabe que é feito acima das outras coisas, acaba achando-se semelhante a qualquer outra coisa. (HUGO DE SAINT-VICTOR, Didascálicon, L. I, c. I, § 1-2).

De acordo com o mestre vitorino a conotação de Sapiência ao qual ele se refere é de

chegar à Deus, pois para os homens do século XII, toda sabedoria procedia de Deus e alcançá-

la significava encontrá-lo por meio do saber, tanto que Hugo de Saint-victor esclarece que a

Sapiência é a Mente Divina “[...] porque [...] em maneira clara é expresso o advento de Cristo,

que é a Sapiência do Pai” (HUGO DE SAINT-VICTOR, Didascálicon, L. IV, c.VIII, § 10,

grifo do autor). Desse modo, a Sapiência não é qualquer sabedoria ou fase do conhecimento,

mas sim alguém: o Verbo, a Mente de Deus. Nesse sentido, observamos que é necessário

4 Cumpre mencionar que o termo mais corrente na contemporaneidade para a língua portuguesa seria sabedoria. No entanto, este não apresentaria o significado coerente da tradução do latim Sapientia em que Hugo de Saint-Victor se fundamenta baseando-se na tradição patrística. “Em Agostinho e em Francisco de Assis, por exemplo, Jesus, o Verbo e Filho de Deus, é invocado como a ‘Sapiência do Pai’ (Sapientia Patris), expressão que encontramos também no Didascálicon da arte de ler (IV, 8)” (MARCHIONNI, 2001, p. 10, grifo do autor). Por isso, manteremos o termo Sapiência neste projeto.

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buscar a sabedoria porque, de acordo com este pensador, ela é a nossa origem, conhecendo-a,

conheceremos a nós mesmos (nossa natureza humana).

Somos reerguidos pelo estudo, para que conheçamos a nossa natureza e aprendamos a não procurar fora de nós aquilo que podemos encontrar dentro de nós. A procura da Sapiência é, com efeito, “um grande conforto na vida”. (HUGO DE SAINT-VICTOR, Didascalicon, L. I, c. I, § 9).

Compreendemos, assim, que o homem se torna humano a partir do conhecimento e da

virtude, isto é, sua natureza humana, sua racionalidade é adquirida pelo intelecto por meio de

um comportamento virtuoso. Desta forma, inferimos que os sujeitos tornam-se humanos pela

sabedoria e esta deve ser alcançada, para os homens citadinos do século XII, ao aproximar-se

de Deus pelo caminho do estudo das Sagradas Escrituras, no processo de formação.

Prologus Quare lectionem mutaverit Cum igitur de prima eruditione sacri eloquii quae in Historica constat lectione, compendiosum volumen prius dictassem, hoc nunc ad secundam eruditionem (quae in allegoria est) introducendis praeparavi; in quo, si fundamento quodam cognitionis fidei animum stabiliant, ut caetera quae vel legendo vel audiendo superaedificare potuerint, inconcussa permaneant. Hanc enim quasi brevem quamdam summam omnium in unam seriem compegi, ut animus aliquid certum haberet, cui intentionem affigere et conformare valeret, ne per varia Scripturarum volumina et lectionum divortia sine ordine et directione raperetur5. (HUGONIS DE S. VICTORE, De sacramentis..., Prologus).

E complementa:

Quae sint discenda a principio Quisquis ad divinarum Scripturarum lectionem erudiendus accedit, primum considerare debet quae sit materia, circa quam versatur earum tractatio; quia, si rerum illarum de quibis scriptura facta est notitiam habuerit, facilius post

5 Prólogo

Por que mudar a leitura

O primeiro ensinamento do discurso sagrado consiste, historicamente, na sua palavra, na estrutura do livro, do qual já tratamos em um texto anterior, desejamos agora preparar uma introdução ao segundo ensinamento, que o encontra em uma analogia (simbologia), para tanto é preciso estabelecer primeiramente a alma no conhecimento dos mistérios da fé, para que ao serem acrescentadas outras coisas pelo estudo ou pela leitura, preserve em sua firmeza. Por isto reunimos nesta obra uma summa de todos os mistérios da fé, para que a alma, firmando-se em coisas certas, pudesse conformar-se e unir-se às mesmas em sua intenção, a fim de não ser tragada sem direção e sem ordem pelos vários volumes e lições das Sagradas Escrituras. (HUGONIS DE S. VICTORE, De sacramentis..., Prólogo, tradução nossa).

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modum dictorum ejus veritatem sive profunditatem perspiciet. [...] Materia divinarum Scripturarum omnium, sunt opera restaurationis humanae6. (HUGONIS DE S. VICTORE, De sacramentis..., c. 1-2).

As palavras de Hugo de Saint-Victor nos permitem inferir que as obras em questão

formam uma unidade: a formação dos homens do século XII. Isso porque

“[...] ele deixou uma obra abundante, onde expressa, ao mesmo tempo, sua espiritualidade de cônego e sua atividade de professor, encarregado de ensinar as artes liberais e a Sagrada Escritura: cerca de cinqüenta títulos, ou seja não menos de três volumes da Patrologia Latina, em que os escritos de espiritualidade e de mística estavam lado a lado com manuais de artes liberais [...] Duas obras maiores dominam o conjunto, o De sacramentis, a primeira grande suma de Teologia da Idade Média ocidental, e [...] o Didascalicon, redigido provavelmente desde os anos de magistério de Hugo [...] o Didascalicon foi definido como um “manual de estudos”, uma verdadeira ratio studiorum para o uso dos Vitorinos e, mais amplamente, de todas as escolas urbanas de seu tempo. O subtítulo (De studio legendi: “Como ler?”, “A aplicação à leitura”) traduz bem sua ambição [...] designam [...] tanto o trabalho do aluno que lê e logo estuda as autoridades, quanto o do professor que as “lê” publicamente, isto é, comenta-as em aula. Livro simultaneamente para o mestre e para o aluno (VERGER, 2001, p. 78-79, grifos do autor).

Essa parece ser a tônica dos escritos que pretendemos analisar, isto é, ao dedicar-se a

escrita Hugo de Saint-Victor procura direcionar a seus estudantes (com o Didascálicon) e a

seus pares (com De sacramentis) ensinamentos pertinentes à formação destes: o que, como e

em que momento ler para alcançar a Sapiência: é necessário, ao mesmo tempo, conhecer as

ciências profanas (artes liberais) e a ciência sagrada (Sagrada Escritura). Certamente, devem

não apenas conhecê-la, mas apropriar-se dela, com os princípios pedagógicos que

investigarem para que esse intuito seja conquistado.

Desse modo, pretendemos estudar o Didascálicon e De sacramentis para verificar

quais princípios pedagógicos necessários à formação dos estudantes da Escola de Saint-Victor

do século XII que compõe, por assim dizer, o projeto educacional do mestre Vitorino

expresso nesses escritos. Significa dizer, então, que a preocupação do mestre naqueles,

6O que deve ser aprendido desde o início

Quem se apaixona das lições das Sagradas Escrituras com o desejo de aprender, deve considerar primeiro qual é o assunto de que tratam, pois assim poderá alcançar mais facilmente a verdade e a profundidade de suas sentenças. [...] A matéria de todas as Sagradas Escrituras é a obra da restauração humana. (HUGONIS DE S. VICTORE, De sacramentis..., c. 1-2, tradução nossa).

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expressam em entender e analisar os elementos formadores dos homens do século XII. Assim,

as questões que nortearão esta pesquisa referem-se a quê/quais princípios pedagógicos e

saberes deveriam permear a vida dos estudantes vitorinos e como deveriam se comportar

(agir) na propagação desses conhecimentos.

Justificativa

Uma pesquisa de doutorado sobre o projeto formativo-educacional de Hugo de Saint-

victor é uma tarefa complexa, porém pertinente e possível à História da Educação. Se

pesquisarmos os livros, artigos, ensaios da História da Educação em nosso país, observam-se

poucas referências ao campo do saber, até mesmo seus escritos estão, em sua maioria,

traduzidos em outros idiomas. A Patrologia Latina de J. P. Magne reúne em três volumes

(Tomus 175, 176, 177) o acervo das obras, opúsculos e cartas de Hugo de Saint-Victor, em

um total de 52 títulos, todas, como o próprio título sugere, em língua latina (MARCHIONNI,

2001; VERGER, 2001); por isso podemos mencionar ser esta uma tarefa difícil, mas

pertinente à História da Educação, uma vez que este pensador e sua proposta educativa são

pouco conhecidas e estudadas na ambiência universitária atual, mas que compõe o processo

educativo de determinado período da história.

Estudar a educação de épocas anteriores ao nosso tempo presente, em especial, as

questões e preocupações presentes nos escritos de Hugo de Saint-Victor se justifica, a nosso

ver, por permitir conhecer e refletir acerca do homem e da sociedade em suas características

fundamentais no curso da história.

O que se produziu que parecera apelar imperiosamente à intervenção da história? Foi que o humano apareceu. Há muito tempo, com efeito, nossos grandes precursores, Michelet, Fustel de Coulanges, nos ensinaram a reconhecer: o objeto da história é, por natureza, o homem. Digamos melhor: os homens. Mais que o singular, favorável à abstração, o plural, que é o modo gramatical da relatividade, convém a uma ciência da diversidade. Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [...] por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que a criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Inde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça. (BLOCH, 2001, p.54).

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Marc Bloch, historiador do século XX, nos ensina que estudar a história nos permite

entender os homens e as particularidades da organização social essenciais à convivência e

sobrevivência dos sujeitos singulares. O objeto do historiador são os homens ao longo do

tempo.

Nesse sentido, acreditamos que estudar as obras desse importante cônego e magister

do século XII (VERGER, 2001) é um exercício de reflexão sobre os homens, suas

particularidades e relações estabelecidas entre seus pares e a sociedade em que estão

inseridos. Além disso, a preocupação em estudar o passado nasce com o interesse do

pesquisador pelo presente. Compreende-se, assim, que o pesquisador quer entender o que se

passa com os homens de seu tempo e, por isso, busca conhecer outras experiências, diferentes

das suas próprias, pois “[...] A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do

passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se

sabe do presente” (BLOCH, 2001, p. 65). Nesse sentido, por justamente se preocupar com os

problemas do presente que o historiador busca compreender o passado.

Acreditamos que estudar as questões em tela é importante porque possibilita o

enriquecimento do debate acerca da formação dos sujeitos singulares (estudantes), propondo-

nos a conhecer autores que não são estudados com tanta freqüência, mas que também trataram

da educação e dos processos de ensino e aprendizagem. Com efeito, olhar para o modo como

Hugo de Saint-Victor propunha a formação dos estudantes é, de certa forma, olhar para o

modo como o mestre vitorino entendia o processo de formação humana e intelectual dos

homens do século XII. São experiências que estão distantes de nós, mas que podem, na

perspectiva de Bloch (2001), contribuir para a compreensão dos homens, das relações sociais

e da forma como educam e são educados.

Portanto, o estudo das obras de Hugo de Saint-Victor, tendo como tese a necessidade

de se conhecer o projeto educacional para a formação de estudantes, torna-se importante na

medida em que nos faz refletir sobre a essência mesma do ser humano e do ser

sábio/intelectual.

Os objetivos com essa pesquisa

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O intuito dessa pesquisa é investigar o projeto educacional vitorino para a formação

dos estudantes da Escola de Saint-Victor no século XII, expressa nas obras Didascálicon e De

sacramentis, a fim de analisar a importância dos princípios pedagógicos para a formação

humana e intelectual. Para tanto, observamos a pertinência de analisar o contexto histórico,

político e social no século XII, bem como o ambiente cultural da região na época de

composição das obras Didascálicon e De sacramentis. Além disso, estudaremos as obras

Didascálicon e De sacramentis de Hugo de Saint-Victor, a fim de compreender seu projeto

educacional para a formação estudantes no século XII; estudaremos, também, as artes liberais,

a fim de compreender o processo educativo do século XII e sua relação/importância com a

Sagrada Escritura na formação dos homens no século XII, a fim de compreender os princípios

pedagógicos expressos nas referidas obras e refletir por que o mestre Vitorino assim os

concebia. Enfim, a partir desses objetivos procuraremos refletir sobre a importância da

sabedoria na formação dos homens do século XII à luz das ideias de Hugo de Saint-Victor.

Revisão de literatura: alguns apontamentos

Hugo de Saint-Victor é considerado o grande expoente da Escola de Saint-Victor, em

Paris (STREFLING, 2002; LE GOFF, 2007). Este mestre medieval, segundo Marchionni

(2001), juntamente à outros pensadores contemporâneos seus, interpretaram um novo papel

da razão no estudo e este caminho perpassou pela leitura e a sabedoria. Preocupados em

difundir a compreensão necessária a nova maneira de debruçar-se sobre os conhecimentos da

natureza humana e dos outros elementos que compõem o mundo, eles discutiram sobre

literatura, medicina, lógica, gramática, dialética, retórica, geografia.

A Escola de Saint-Victor, em paris, era formada por cônegos agostinianos que viviam

em uma abadia parisiense chamada Saint-Victor. Esta foi influenciada pela passagem do

simbolismo da natureza para a pesquisa sobre a natureza, assim como da teologia simbólica

para o debate dialético: é uma escola interna e externa, contemplativa e ativa, espiritual e

intelectual, Sapiência e ciência (MARCHIONNI, 2001). Hugo de Saint-Victor, cônego e

mestre desta abadia, absorve essa influência e dela se apropria.

O mestre Vitorino era descendente de nobre, nasceu por volta de 1095, provavelmente

na Saxônia, chega a Paris por volta de 1115 e morre em 1141. A fundação da Escola de Saint-

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Victor é datada de 1108, ano em que o arquidiácono Guilherme de Champeaux deixa a Ilha da

Cidade (Île de la Cité), onde lecionava e se acomoda em uma capela em honra de São Vitor.

Próximo a estas havia alguns anexos na margem esquerda do rio Sena, que dera início a então

escola de Saint-Victor. Em 1113 o rei Luís VI promove o local a abadia e a entrega aos

cônegos de Santo Agostinho. Em 1114 a abadia é reconhecida pelo papa Pascal II, que

nomeia Galduíno como primeiro prior, enquanto o fundador Guilherme, ordenado bispo de

Châlons, lá morre em 1121. Hugo São Victor foi levado à abadia de São Vitor, por volta de

1115, pelo arquidiácono Halberstadt. Destaca-se que esta abadia, após alguns anos, foi

anexada à abadia de Sainte-Geneviève. A abadia, como força intelectual e política, foi

protegida pelos reis e pelos papas (MARCHIONNI, 2001).

O século XII – período em que o mestre Vitorino escreve – é considerado como um

período de essencial transformação da Europa7, e pertence a um longo período de crescimento

demográfico e econômico geral, com início ao final do século X e no decorrer do XI. A base

desse crescimento deve-se, segundo Verger (2001), ao desenvolvimento agrícola, ou seja,

com a extensão de terras cultivadas, melhor domínio dos espaços naturais, progresso das

técnicas agrícolas, altas dos rendimentos e, por conseguinte, desenvolvimento e diversificação

da produção que permitiu garantir de maneira mais ou menos regular a alimentação de uma

população cada vez mais numerosa. Além disso, Verger (2001) menciona que após séculos de

economia-natureza da Alta Idade Média, houve o retorno, no século em tela, da economia

monetária (moedas/espécies metálicas), a qual serviu de instrumentos essenciais das trocas de

bens e de serviços. Essas alterações provocaram debates, e a Igreja, por sua vez, manteve sua

condenação ao empréstimo a juros, o anti-judaísmo cristão encontrou uma de suas

justificações, heresias e movimentos religiosos de pobreza floresceram no meio urbano,

influenciados pela monetarização da economia. Esses aspectos permearam as discussões dos

pregadores e comentados nas disputas universitárias.

Com esse contexto, a vida intelectual deparou-se com condições favoráveis a seu

desenvolvimento e difusão. Houve, segundo Verger (2001), investimentos no 7 [...] do nascimento ou desenvolvimento decisivo de uma cultura e de mentalidades novas [...] o século XI e sobretudo o XII redefinem para muito tempo noções essenciais que darão forma ao pensamento europeu ocidental: a idéia de natureza e a idéia da razão (LE GOFF, 2007, p. 111-112). Com a natureza também a razão, ainda mais característica da condição humana, é promovida no século XII. [...] Santo Anselmo [...] Propõe aos cristãos o “fides quarens intellectum” (a fé em busca da inteligência). O grande teólogo Vitorino, Hugo de São Víctor, divide, no começo do século XII, a razão em razão superior, voltada para as realidades transcendentes, e razão em razão em razão inferior, voltada para o mundo material e terreno. [...] O cristianismo no caminho da escolástica. (LE GOFF, 2007,p. 118).

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desenvolvimento da escola e cultura com remuneração aos mestres, subsistências dos

escolares, a compilação dos livros. Além disso, há que se destacar que na Idade Média não há

como distinguir a vida religiosa da cultural e, nesse sentido, as palavras do referido autor são

elucidativas ao mostrar a Reforma da Igreja, também conhecida de “gregoriana”, influenciou

sobremaneira a vida intelectual e o ensino dos séculos XII e XIII.

A reforma foi inicialmente reforma do clero secular e revalorização de seu papel (predição e sacramentos), ao menos ao nível dos bispos e dos cônegos, das paróquias [...] Isto exigia maior número de clérigos cultos, logo, formadores nas escolas. Isto implicava em um esforço intelectual sistemático de formatação [...] Campos consideráveis se abriram assim à reflexão e à ação dos clérigos instruídos. (VERGER, 2001, p. 26-27).

Isso nos leva pensar que Hugo de Saint-Victor, como homem, teólogo e mestre de seu

tempo tenha sido influenciado por essa reforma apresentando assim De sacramentis fidei

christianae. Para o mestre virtorino, na história humana age o Espírito Santo, que conduz o

diálogo entre os homens e Deus, ao qual, mesmo agindo na história, respeita a liberdade e a

responsabilidade do homem, pois estes ao ler e estudar as ciências (sagrada e profana),

potencialmente, encontrará conhecimento necessário para alcançar a Sapiência. Nesse

sentido, para Hugo de Saint-Victor, o estudo da Sagrada Escritura e do seu significado

histórico-literal torna possível aos homens conhecer sua estrutura, a ilustração sistemática das

‘verdades’ e dos dogmas da fé, as quais foram apresentadas pelo mestre medieval na obra que

analisaremos: De sacramentis fidei christianae. Para que os estudantes saibam como, o que e

em que ordem ler é importante, primeiramente, conhecer essa sistematização, a metodologia

do saber que foi amplamente explicitada no Didascalicon como um currículo medieval de

estudos (VERGER, 2001; MARCHIONNI, 2001; LE GOFF, 2007). Desta forma, observamos

que em sua proposta formativa é necessário a formação pela união de saberes: de um lado,

artes liberais8 (trívio e quadrívio) e do outro a Sagrada Escritura. Por isso, ambos escritos são

pertinentes ao nosso objeto de pesquisa.

8 Cumpre mencionar que, de acordo com Marchionni (2001, p. 17), Hugo de Saint-Victor introduz em seu livro uma novidade. O mestre divide a filosofia em quatro ciências (teórica, prática, mecânica e lógica). Cada ciência dessa, por sua vez, contém subdivisões. Desde a teórica (teologia, matemática e física) até as artes do trívio (gramática, dialética e retórica), incluídas na lógica. No meio estão o quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música), situados com a matemática, a prática (ética, econômica e política) e as sete artes mecânicas (lanifício, armadura, navegação, agricultura, caça, medicina e teatro). Embora Hugo desmembre as sete artes liberais, caracterizando o quadrívio à matemática, uma parte da filosofia teórica, e incluindo o trívio na lógica, continua a atribuir um papel relevante a estes.

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Metodologia

Em razão da perspectiva de análise do objeto, tomamos como referência o método da

História Social. De acordo com a historiografia, essa tendência surgiu com a Revista dos

Annales fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929, na França. Os autores propunham

o tratamento da história como problema, cuja análise deveria contemplar diferentes campos

do conhecimento, como a Sociologia, a Antropologia, a Literatura e outros. Esses

conhecimentos, aliados aos saberes produzidos na sociedade, possibilitariam, segundo eles,

compreender as situações do presente.

Castro (1997) aborda a proposta de Bloch e Febvre para o estudo da história e afirma

que eles apresentam um caminho metodológico norteado pela colaboração das demais

disciplinas (ciências) para desenvolver pesquisas históricas.

Outro autor importante para compreendermos essa perspectiva metodológica é Burke,

para quem a contribuição dos fundadores dos Annales foi a de diversificar o fazer

historiográfico: “[...] fundaram a revista Annales, com o objetivo de fazer dela um

instrumento de enriquecimento da história, por sua aproximação com as ciências vizinhas e

pelo incentivo à inovação temática” (BURKE, 2010, p. 8).

Desse modo, com base em Burke (2010; 2012), podemos afirmar que Bloch e Febvre

mostraram uma nova forma de produção historiográfica: a interdisciplinar. A proposta deles

era utilizar o estudo de diversas disciplinas para se compreender a história; estudar o objeto

em seus diversos aspectos, o que implicava considerar os aspectos geográficos, econômicos,

filosóficos, sociológicos, linguísticos, de sensibilidade, etc.

Com isso, a disciplina histórica passou a ter um novo enfoque. Para Bloch (2001), se,

antes, a história era concebida como a ciência do passado, com o surgimento dessa

abordagem, o entendimento passa a ser o de considerar o percurso do homem ao longo do

tempo tendo como princípio o fluxo da duração9.

Nos escritos de Bloch e Febvre, observamos que eles não teorizam sobre o tempo da

história, como fez Braudel. No entanto, é necessário reconhecer que suas obras trazem, de

9 Bem além desse segundo recitativo, situa-se uma história de respiração mais contida ainda, e, desta vez, de amplitude secular: a história de longa [...] duração. A fórmula, boa ou má, tornou-se-me familiar para designar o inverso do que François Simiand, um dos primeiros após Paul Lacombe, terá batizado história ocorrencial (événementielle). Pouco importam essas fórmulas; em todo caso, é de uma a outra, de um pólo ao outro do tempo, do instantâneo à longa duração que situará nossa discussão. (BRAUDEL, 1978, p.44-45).

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forma implícita, a sensível compreensão de tempo histórico. “[...] A incompreensão do

presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-

se em compreender o passado se nada se sabe do presente”, disse Bloch (2001, p. 65).

Para Políbios, um historiador do século II a. C., a história expressa a essência humana,

o que consideramos como sua natureza corpórea e mental. Essa concepção de totalidade

mencionada pelo autor também pode ser usada para esclarecer a escolha da metodologia, na

medida em que ele nos leva a refletir sobre o estudo da história. De sua perspectiva, esta seria

um conhecimento por meio do qual se pode compreender o homem e a sociedade não pela

fragmentação, mas em sua plenitude10.

Com tal concepção de história, Políbios nos ensina que é importante olhar o todo para

compreendermos as particularidades, o que não ocorreria com o inverso. É, pois, com essa

percepção que nos dedicaremos a compreender o contexto social em que Hugo de Saint-

Victor viveu, escreveu e ensinou. Dessa forma, estudaremos as formulações do mestre

Vitorino considerando seu processo histórico e educativo.

No que tange à escolha das fontes para nossa pesquisa, concordamos com Bloch

(2001) que afirma a necessidade de buscarmos o passado por meio dos vestígios que deixou à

posteridade. Entendemos que o Didascálicon e De sacramentis constituem-se como

documentos fecundos para entendermos como esse pensador concebia a formação dos

homens no século XII, já que estas obras são consideradas por alguns estudiosos

contemporâneos, como Marchionni11 (2001), Verger12 (2001) e Le Goff13 (2007), como uma

das importantes produções do saber medieval.

Existe uma tradução14 da Didascalicon, realizada por Antonio Marchionni e publicada

em edição bilíngüe pela editora Vozes, que facilita o acesso para leitores que conhecem o 10 As histórias parciais, portanto, contribuem muito pouco para o conhecimento do todo e para formar uma convicção quanto à sua veracidade; somente pelo estudo de todas as particularidades, semelhanças e diferenças ficamos capacitados a fazer uma apreciação geral, e assim tirar ao mesmo tempo proveito e prazer da História (POLÍBIOS, 1985, p. 44).

11 Sobretudo depois que o famoso pedagogo Ivan Illich escreveu Du lisible au visible, que é um ensaio sobre a revolução intelectual do século XII a partir do Da arte de ler, este livro de Hugo de São Vitor é considerado um divisor de águas no saber mundial [...] (MARCHIONNI, 2001, p. 9). 12 As classificações do saber mais elaboradas produzidas no século XII são provavelmente as de Hugo de Saint-Victor em sua Didascálicon [...] (VERGER, 2001, p. 76). 13 Desta nova arte de ler foi o grande teólogo e sábio do convento suburbano de Saint-victor em Paris, Hugo de São Víctor (LE GOFF, 2007, p.180-181). O grande iniciador Hugo de São Vitor pode ser considerado como o ponto de partida dessa nova produção enciclopédica. Em particular no seu Didascalion, Hugo mistura ciência do sagrado e ciência do profano, situa num primeiro nível de saberes as artes e a filosofia, num segundo, a hermenêutica [...] (LE GOFF, 2007, p. 183). 14 Tradução feita a partir do texto latino da edição crítica de Ch. H. Buttiner, citado na Bibliografia e editado nos Estados Unidos em 1939 a partir da Patrologia de Migne (1879).

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português. Portanto, esta obra que nos propomos a estudar está disponível e o acesso é

relativamente simples. Com efeito, a segunda obra, De sacramentis, não encontramos

traduções, ao qual faremos um trabalho de tradução ao longo da pesquisa em colaboração com

o prof. Me. João Bacellar de Siqueira.

Originalidade da temática investigada

Para verificar a originalidade da temática investigada, consultamos o Banco de Teses e

Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Fizemos uma busca a partir das palavras-chave ‘Hugo de Saint-Victor’ e ‘Hugo de São Vitor’,

a fim de obter o maior número de trabalhos possíveis em que o termo aparece. Não foram

encontradas teses na área da Educação, ou na História da Educação, que tenham por objeto a

relação projeto educacional e/ou a formação de estudantes no século XII pelos escritos de

Hugo de Saint-Victor.

A única tese que encontramos foi a de doutorado em Filosofia defendida por Antonio

Marchionni, em 1998, na Universidade Estadual de Campinas, sob o título Trabalho e razão

no Didascalicon de Hugo de São Vitor. Nela, o autor trata dos elementos de uma filosofia do

trabalho fundamentado nesse pensador medieval.

Como pudemos observar, o trabalho encontrado na pesquisa que fizemos no banco de

teses e dissertações da CAPES apresenta uma tese e abordagem diferente da que propomos

neste projeto. Com efeito, pretendemos abordar o Didascalicon e De sacramentis, enquanto

obras pedagógicas – além de filosófica e teológica –, como fonte para desenvolvermos a tese

de que a sabedoria é o fundamento para a formação dos estudantes da Escola de Saint-Victor

e, que se estende, aos homens citadinos do século XII.

Referências

BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

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BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1978. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução da historiografia. 2. ed. Trad. Nilo Odalia. São Paulo: Editora Unesp, 2010. BURKE, Peter. História e teoria social. Trad. Klauss Brandini Grhardt, Roneide Venâncio Majer, Roberto Ferreira Leal. 3. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012. CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999. DHUODA. La educación cristiana de mi hijo. Pamplona: Editora Eunate, 1995. HUGO DE SAINT-VICTOR. Didascálion: Da arte de ler. Trad. Antonio Marchionni. Petrópolis: Vozes, 2001. HUGONIS DE S. VICTORE. De sacramentis fidei christianae. In: MIGNE, J. P. Patrologia Latina. Disponível em: <https://archive.org/details/patrologiaecurs05migngoog>. Acesso em 04 set. 2014. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007. MARCHIONNI, Antonio. Introdução. In: HUGO DE SAINT-VICTOR. Didascálion: Da arte de ler. Trad. Antonio Marchionni. Petrópolis: Vozes, 2001. MERINO, Marcelo. Introdução. In: DHUODA. La Educación cristiana de mi hijo. Pamplona: Editora Eunate, 1995. NUNES, Ruy. O dever da fidelidade no manual de Dhuoda. In: SOUZA, J. A. C. R. (Org.). O reino e o sacerdócio: o pensamento político na Alta Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. POLÍBIOS. História. Brasília: UnB, 1985. STREFLING, Sergio Ricardo. Igreja e poder: plenitude e soberania popular em Marsílio de Pádua. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 2001.