diÁlogo no sistema interamericano

Upload: sandro-henique-calheiros-lobo

Post on 02-Mar-2016

39 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 163

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    DILOGO NO SISTEMA INTERAMERICANODE DIREITOS HUMANOS:DESAFIOS DA REFORMA1

    Flvia Piovesan2

    Resumo: O presente artigo objetiva analisar o Sistema Interamericano deDireitos Humanos, destacando o seu impacto transformador no con-texto latino-americano, bem como o seu crescente empoderamento naregio, produto da efetividade do dilogo jurisdicional em um sistemamultinvel. Com efeito, sob esta perspectiva multinvel que emergemquatro vertentes do dilogo jurisdicional, a serem observadas no texto.Finalmente, busca-se identificar os principais desafios do Sistema Inte-ramericano e os potenciais riscos de sua agenda de reformas, susten-tando-se que o fortalecimento do sistema interamericano requer a ado-o de medidas reforando sua universalidade, institucionalidade, in-dependncia, sustentabilidade e efetividade, para o qual ao final se des-tacam sete propostas.

    1 Um especial agradecimento feito Alexander von Humboldt Foundation pela fellowship quetornou possvel este estudo e ao Max-Planck Institute for Comparative Public Law and Internati-onal Law por prover um ambiente acadmico de extraordinrio vigor intelectual. Este artigo temcomo base a conferncia Dilogo en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos: Retoscara a la Reforma, proferida no seminrio internacional Dilogo sobre dilogos jurisdicciona-les: Ius Constitucionale Commune Latinoamericanum, no Max-Planck-Institute, em Heidel-berg (Alemanha), em 04 de dezembro de 2012.

    2 Professora Doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Ps Graduao daPontifcia Universidade Catlica de So Paulo, da Pontifcia Universidade Catlica do Paran,Brasil, e da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha); Visiting Fellow do Human RightsProgram da Harvard Law School (1995 e 2000), Visiting Fellow do Centre for Brazilian Studies daUniversity of Oxford (2005), Visiting Fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Lawand International Law (Heidelberg 2007 e 2008); desde 2009 Humboldt Foundation GeorgForster Research Fellow no Max Planck Institute (Heidelberg); membro do Conselho Nacional deDefesa dos Direitos da Pessoa Humana. Foi membro da UN High Level Task Force on the imple-mentation of the right to development e membro do OAS Working Group para o monitoramentodo Protocolo de San Salvador em matria de direitos econmicos, sociais e culturais.

  • 164

    Palavras-chave: Sistema Interamericano de Direitos Humanos; DilogoJurisdicional; Amrica Latina.

    Zusammenfassung: Dieser Artikel zielt darauf ab das interamerikanischeMenschenrechtssystem zu analysieren; aufmerken ihrer transformierendeAuswirkungen auf dem lateinamerikanischen Kontext sowie ihremwachsenden Empowerment in der Region, ein Produkt der Wirksamkeitdes rechtsprechenden Dialogs in einem mehrstufigen System. Aus diesermehrstufigen Perspektive entstehen vier Strnge des rechtsprechendenDialogs, die im Text beachten werden. Schlielich, will man diewichtigsten Herausforderungen des Systems und die potenziellen Risikendem Reformplan zu identifizieren, mit dem Argument, dass die Strkungdes interamerikanischen Systems erfordert die Annahme vonManahmen zur Frderung ihrer Universalitt, Institutionalitt,Unabhngigkeit, Nachhaltigkeit und Effizienz, zu dem man siebenVorschlge andeutet.

    Schlsselwrter: Interamerikanische Menschenrechtssystem; Rechtspre-chendes Dialog; Lateinamerika.

    Sumrio: 1. Introduo; 2. Impacto Transformador do Sistema Interame-ricano no Contexto Latino-Americano; 3. O Empoderamento do Siste-ma Interamericano Mediante a Efetividade do Dilogo Jurisdicional eCrescente Legitimao Social; 4. Desafios do Sistema Interamericano ea Agenda de Reforma.

    1. INTRODUO

    Objetiva este artigo enfocar o sistema interamericano de direitos hu-manos, com destaque ao seu impacto transformador no contexto latino-americano e seu crescente empoderamento na regio, fruto da efetividadedo dilogo jurisdicional em um sistema mutinvel.

    sob esta perspectiva multinvel que emergem quatro vertentes dodilogo jurisdicional, a compreender o dilogo com o sistema global (me-diante a incorporao de parmetros protetivos de direitos humanos); odilogo com os sistemas regionais (a envolver a europeicizao do sistemainteramericano e a interamericanizao do sistema europeu); o dilogo comos sistemas nacionais (a abranger o controle da convencionalidade); e o

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 165

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    dilogo com a sociedade civil (a emprestar ao sistema interamericano cres-cente legitimao social).

    Por fim, pretende-se identificar os principais desafios do sistema inte-ramericano e os potenciais riscos de sua agenda de reformas visando aofortalecimento do sistema e pavimentao de um ius commune latino-ame-ricano em matria de direitos humanos.

    2. IMPACTO TRANSFORMADOR DO SISTEMA INTERAMERI-CANO NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO

    A Amrica Latina ostenta o maior grau de desigualdade do mundo.A pobreza na regio diminuiu do patamar de 48,3% a 33,2%, no perodo de1990 e 2008. Cinco dos dez pases mais desiguais do mundo esto na Am-rica Latina, dentre eles o Brasil3.

    No bastando o acentuado grau de desigualdade, a regio ainda sedestaca por ser a mais violenta do mundo. Concentra 27% dos homicdios,tendo apenas 9% da populao mundial. Dez dos vinte pases com maiorestaxas de homicdio do mundo so latino-americanos4.

    Como a regio tem avanado no somente na diminuio da pobre-za, como tambm na formao de uma classe mdia incipiente neste pano-rama de desigualdade, a segurana surge como o principal problema daAmrica Latina. Em 11 de 18 pases analisados pelo Latinobarometro asegurana constitui o desafio que os cidados mencionam como mais rele-vante a ser enfrentado pelos Estados (por exemplo, 61% na Venezuela, comuma mdia regional de 28%).

    Na pesquisa Latinobarometro 2011 sobre o apoio democracia naAmrica Latina, baseada na pergunta La democracia es preferible a cual-quer outra forma de gobierno, a resposta afirmativa encontra no Brasil oendosso de apenas 45%, no Mxico 40% e na Guatemala 36%.5

    A regio latino-americana tem assim sido caracterizada por elevadograu de excluso e violncia ao qual se somam democracias em fase deconsolidao. A regio ainda convive com as reminiscncias do legado dos

    3 Marta Lagos e Luca Dammert, La Seguridad Ciudadana: El problema principal de Amrica Latina,Latinobarmetro, 9 de maio de 2012, p.3.

    4 Marta Lagos e Luca Dammert, La Seguridad Ciudadana: El problema principal de Amrica Latina,Latinobarmetro, 9 de maio de 2012, p.3.

    5 Latinobarmetro, Informe 2011, Santiago do Chile, 28 de outubro de 2012.

  • 166

    regimes autoritrios ditatoriais, com uma cultura de violncia e de impuni-dade, com a baixa densidade de Estados de Direitos e com a precria tradi-o de respeito aos direitos humanos no mbito domstico.

    Dois perodos demarcam o contexto latino-americano: o perodo dosregimes ditatoriais; e o perodo da transio poltica aos regimes democr-ticos, marcado pelo fim das ditaduras militares na dcada de 80, na Argen-tina, no Chile, no Uruguai e no Brasil.

    Em 1978, quando a Conveno Americana de Direitos Humanosentrou em vigor, muitos dos Estados da Amrica Central e do Sul eramgovernados por ditaduras. Dos 11 Estados-partes da Conveno poca,menos que a metade tinha governos eleitos democraticamente, ao passoque hoje quase a totalidade dos Estados latino-americanos na regio temgovernos eleitos democraticamente6. Diversamente do sistema regionaleuropeu que teve como fonte inspiradora a trade indissocivel Estado deDireito, Democracia e Direitos Humanos, o sistema regional interamerica-no tem em sua origem o paradoxo de nascer em um ambiente acentuada-mente autoritrio, que no permitia qualquer associao direta e imediataentre Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos. Ademais, nestecontexto, os direitos humanos eram tradicionalmente concebidos como umaagenda contra o Estado. Diversamente do sistema europeu, que surge comofruto do processo de integrao europeia e tem servido como relevante ins-trumento para fortalecer este processo de integrao, no caso interamerica-no havia to somente um movimento ainda embrionrio de integrao re-gional.

    neste cenrio que o sistema interamericano gradativamente se legi-tima como importante e eficaz instrumento para a proteo dos direitoshumanos, quando as instituies nacionais se mostram falhas ou omissas.Com a atuao da sociedade civil, a partir de articuladas e competentesestratgias de litigncia, o sistema interamericano tem a fora catalizadorade promover avanos no regime de direitos humanos.

    6 Como observa Thomas Buergenthal: O fato de hoje quase a totalidade dos Estados latino-ameri-canos na regio, com exceo de Cuba, terem governos eleitos democraticamente tem produzidosignificativos avanos na situao dos direitos humanos nesses Estados. Estes Estados ratificaram aConveno e reconheceram a competncia jurisdicional da Corte. (Prefcio de Thomas Buergen-thal, Jo M. Pasqualucci, The Practice and Procedure of the Inter-American Court on Human Ri-ghts, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p.XV). Em 2012, 22 Estados haviam reconhe-cido a competncia da Corte Interamericana de Direitos Humanos. De acordo com: http://www.cidh.oas.org/Basicos/English/Basic4.Amer.Conv.Ratif.htm (acesso em 06/01/12)

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 167

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    Permitiu a desestabilizao dos regimes ditatoriais; exigiu justia e ofim da impunidade nas transies democrticas; e agora demanda o forta-lecimento das instituies democrticas com o necessrio combate s vio-laes de direitos humanos e proteo aos grupos mais vulnerveis.

    Considerando a atuao da Corte Interamericana, possvel criaruma tipologia de casos baseada em decises concernentes a 5 (cinco) dife-rentes categorias de violao a direitos humanos:

    1) Violaes que refletem o legado do regime autoritrio ditatorial

    Esta categoria compreende a maioria significativa das decises da CorteInteramericana, que tem por objetivo prevenir arbitrariedades e controlar oexcessivo uso da fora, impondo limites ao poder punitivo do Estado.

    A ttulo de exemplo, destaca-se o leading case Velasquez Rodriguezversus Honduras concernente a desaparecimento forado. Em 1989 a Cor-te condenou o Estado de Honduras a pagar uma compensao aos familia-res da vtima, bem como ao dever de prevenir, investigar, processar, punir ereparar as violaes cometidas7.

    Adicionem-se ainda decises da Corte que condenaram Estados emface de precrias e cruis condies de deteno e da violao integridadefsica, psquica e moral de pessoas detidas; ou em face da prtica de execu-o sumria e extrajudicial; ou tortura. Estas decises enfatizaram o deverdo Estado de investigar, processar e punir os responsveis pelas violaes,bem como de efetuar o pagamento de indenizaes.

    No plano consultivo, merecem meno as opinies a respeito da im-possibilidade de adoo da pena de morte pelo Estado da Guatemala8 e daimpossibilidade de suspenso da garantia judicial de habeas corpus inclusi-ve em situaes de emergncia, de acordo com o artigo 27 da ConvenoAmericana9.

    2) Violaes que refletem questes da justia de transio (transitionaljustice)

    Nesta categoria de casos esto as decises relativas ao combate im-punidade, s leis de anistia e ao direito verdade.

    7 Velasquez Rodriguez Case, Inter-American Court of Human Rights, 1988, Ser. C, No. 4.8 Advisory Opinion No. 3/83, of 8 September 1983.9 Advisory Opinion No. 08/87, of 30 January 1987.

  • 168

    No caso Barrios Altos (massacre que envolveu a execuo de 15 pes-soas por agentes policiais), em virtude da promulgao e aplicao de leisde anistia (uma que concede anistia geral aos militares, policiais e civis, eoutra que dispe sobre a interpretao e alcance da anistia), o Peru foi con-denado a reabrir investigaes judiciais sobre os fatos em questo, relativosao massacre de Barrios Altos, de forma a derrogar ou a tornar sem efeitoas leis de anistia mencionadas. O Peru foi condenado, ainda, reparaointegral e adequada dos danos materiais e morais sofridos pelos familiaresdas vtimas10.

    Esta deciso apresentou um elevado impacto na anulao de leis deanistia e na consolidao do direito verdade, pelo qual os familiares dasvtimas e a sociedade como um todo devem ser informados das violaes,realando o dever do Estado de investigar, processar, punir e reparar viola-es aos direitos humanos.

    Concluiu a Corte que as leis de auto-anistia perpetuam a impuni-dade, propiciam uma injustia continuada, impedem s vtimas e aos seusfamiliares o acesso justia e o direito de conhecer a verdade e de receber areparao correspondente, o que constituiria uma manifesta afronta Con-veno Americana. As leis de anistiam configurariam, assim, um ilcito in-ternacional e sua revogao uma forma de reparao no pecuniria.

    No mesmo sentido, destaca-se o caso Almonacid Arellano versusChile11 cujo objeto era a validade do decreto-lei 2191/78 que perdoava oscrimes cometidos entre 1973 e 1978 durante o regime Pinochet luz dasobrigaes decorrentes da Conveno Americana de Direitos Humanos.Decidiu a Corte pela invalidade do mencionado decreto lei de auto-anis-tia, por implicar a denegao de justia s vtimas, bem como por afrontaros deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violaesde direitos humanos que constituem crimes de lesa humanidade.

    Cite-se, ainda, o caso argentino, em que deciso da Corte Supremade Justia de 2005 anulou as leis de ponto final (Lei 23.492/86) e obedin-cia devida (Lei 23.521/87), adotando como precedente o caso Barrios Al-tos.

    Em 2010, no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, a Corte Intera-mericana condenou o Brasil em virtude do desaparecimento de integrantes

    10 Barrios Altos case (Chumbipuma Aguirre and others vs. Peru). Judgment of 14 March 2001.11 Caso Almonacid Arellano and others vs. Chile. Judgment of 26 September 2006.

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 169

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    da guerrilha do Araguaia durante as operaes militares ocorridas na dca-da de 7012. A Corte realou que as disposies da lei de anistia de 1979 somanifestamente incompatveis com a Conveno Americana, carecem deefeitos jurdicos e no podem seguir representando um obstculo para ainvestigao de graves violaes de direitos humanos, nem para a identifi-cao e punio dos responsveis. Enfatizou que leis de anistia relativas agraves violaes de direitos humanos so incompatveis com o Direito In-ternacional e as obrigaes jurdicas internacionais contradas pelos Esta-dos. Concluiu, uma vez mais, que as leis de anistia violam o dever interna-cional do Estado de investigar e punir graves violaes a direitos humanos.

    Na mesma direo, em 2011, no caso Gelman versus Uruguai13, aCorte Interamericana decidiu que a Lei de Caducidade da Pretenso Pu-nitiva carecia de efeitos jurdicos por sua incompatibilidade com a Con-veno Americana e com a Conveno Interamericana sobre o Desapareci-mento Forado de Pessoas, no podendo impedir ou obstar a investigaodos fatos, a identificao e eventual sano dos responsveis por graves vi-olaes a direitos humanos.

    3) Violaes que refletem desafios acerca do fortalecimento de instituiese da consolidao do Estado de Direito (rule of law)

    Esta terceira categoria de casos remete ao desafio do fortalecimentode instituies e da consolidao do rule of law, particularmente no que serefere ao acesso justia, proteo judicial e fortalecimento e independn-cia do Poder Judicirio.

    Destaca-se o caso do Tribunal Constitucional contra o Peru (2001)14,envolvendo a destituio de juzes, em que a Corte reconheceu necessriogarantir a independncia de qualquer juiz em um Estado de Direito, especi-almente em Cortes constitucionais, o que demanda: a) um adequado pro-cesso de nomeao; b) um mandato com prazo certo; e c) garantias contrapresses externas.

    12 Caso Gomes Lund and others versus Brasil, Judgment of 24 November 2010. O caso foi subme-tido Corte pela Comisso Interamericana, ao reconhecer que o caso representava uma opor-tunidade importante para consolidar a jurisprudncia interamericana sobre leis de anistia emrelao aos desaparecimentos forados e s execues extrajudiciais, com a consequente obriga-o dos Estados de assegurar o conhecimento da verdade, bem como de investigar, processar epunir graves violaes de direitos humanos.

    13 Caso Gelman versus Uruguai, Judgment of 24 February 2011.14 Aguirre Roca and others vs. Peru case (Constitutional Court Case). Judgment of 31 January 2001.

  • 170

    Tal deciso contribuiu decisivamente para o fortalecimento de insti-tuies nacionais e para a consolidao do Estado de Direito.

    4) Violaes de direitos de grupos vulnerveis

    Esta quarta categoria de casos atm-se a decises que afirmam a pro-teo de direitos de grupos socialmente vulnerveis, como os povos indge-nas, as crianas, os migrantes, os presos, dentre outros.

    Quanto aos direitos dos povos indgenas, destaca-se o relevante casoda comunidade indgena Mayagna Awas Tingni contra a Nicargua (2001)15,em que a Corte reconheceu o direitos dos povos indgenas propriedadecoletiva da terra, como uma tradio comunitria, e como um direito fun-damental e bsico sua cultura, sua vida espiritual, sua integridade e sua sobrevivncia econmica. Acrescentou que para os povos indgenas arelao com a terra no somente uma questo de possesso e produo,mas um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente, in-clusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo s geraes futuras.

    Em outro caso caso da comunidade indgena Yakye Axa contra oParaguai (2005)16 -, a Corte sustentou que os povos indgenas tm direito amedidas especficas que garantam o acesso aos servios de sade, que de-vem ser apropriados sob a perspectiva cultural, incluindo cuidados preven-tivos, prticas curativas e medicinas tradicionais. Adicionou que para ospovos indgenas a sade apresenta uma dimenso coletiva, sendo que aruptura de sua relao simbitica com a terra exerce um efeito prejudicialsobre a sade destas populaes.

    No caso da comunidade indgena Xkmok Ksek v. Paraguai17, a CorteInteramericana condenou o Estado do Paraguai pela afronta aos direitos vida, propriedade comunitria e proteo judicial (artigos 4, 21 e 25 daConveno Americana, respectivamente), dentre outros direitos, em face

    15 Mayagna (Sumo) Awas Tingni Community vs. Nicaragua, Inter-American Court, 2001, Ser. C,No. 79.

    16 Yakye Axa Community vs. Paraguay, Inter-American Court, 2005, Ser. C, No. 125.17 Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Comunidad Indgena Xkmok Ksek. vs.

    Paraguay, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de agosto de 2010 Serie C N. 214.Note-se que, no sistema africano, merece meno um caso emblemtico que, ineditamente, emnome do direito ao desenvolvimento, assegurou a proteo de povos indgenas s suas terras. Em2010, a Comisso Africana dos Direitos Humanos e dos Povos considerou que o modo pelo quala comunidade Endorois no Kenya foi privada de suas terras tradicionais, tendo negado acesso arecursos, constitui uma violao a direitos humanos, especialmente ao direito ao desenvolvi-mento.

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 171

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    da no garantia do direito de propriedade ancestral aludida comunidadeindgena, o que estaria a afetar seu direito identidade cultural. Ao motivara sentena, destacou que os conceitos tradicionais de propriedade privada ede possesso no se aplicam s comunidades indgenas, pelo significadocoletivo da terra, eis que a relao de pertena no se centra no indivduo,seno no grupo e na comunidade. Acrescentou que o direito propriedadecoletiva estaria ainda a merecer igual proteo pelo artigo 21 da Conven-o (concernente ao direito a propriedade privada). Afirmou o dever doEstado em assegurar especial proteo s comunidades indgenas, luz desuas particularidades prprias, suas caractersticas econmicas e sociais esuas especiais vulnerabilidades, considerando o direito consuetudinrio, osvalores, os usos e os costumes dos povos indgenas, de forma a assegurar-lhes o direito vida digna, contemplando o acesso gua potvel, alimen-tao, sade, educao, dentre outros.

    No caso dos direitos das crianas, cabe meno ao caso VillagranMorales contra a Guatemala (1999)18, em que este Estado foi condenadopela Corte, em virtude da impunidade rela-tiva morte de 5 meninos derua, brutalmente torturados e assassinados por 2 policiais nacionais daGuatemala. Dentre as medidas de reparao ordenadas pela Corte esto: opagamento de indenizao pecuniria aos familiares das vtimas; a refor-ma no ordenamento jurdico interno visando maior proteo dos direitosdas crianas e adolescentes guatemaltecos; e a construo de uma escolaem memria das das vtimas.

    Adicionem-se, ainda, as opinies consultivas sobre a condio jurdi-ca e os direitos humanos das crianas (OC 17, emitida em agosto de 2002,por solicitao da Comisso Interamericana de Direitos Humanos) e sobrea condio jurdica e os direitos de migrantes sem documentos (OC18,emitida em setembro de 2003, por solicitao do Mxico).

    Mencione-se, tambm, o parecer emitido, por solicitao do Mxico(OC16, de 01 de outubro de 1999), em que a Corte considerou violado odireito ao devido processo legal, quando um Estado no notifica um presoestrangeiro de seu direito assistncia consular. Na hiptese, se o preso foicondenado pena de morte, isso constituiria privao arbitrria do direito vida. Note-se que o Mxico embasou seu pedido de consulta nos vrios

    18 Villagran Morales et al versus Guatemala (The Street Children Case), Inter-American Court, 19November 1999, Ser. C, No. 63.

  • 172

    casos de presos mexicanos condenados pena de morte nos Estados Uni-dos.

    Com relao aos direitos das mulheres, destacam-se relevantes deci-ses do sistema interamericano sobre discriminao e violncia contramulheres, o que fomentou a reforma do Cdigo Civil da Guatemala, a ado-o de uma lei de violncia domstica no Chile e no Brasil, dentre outrosavanos19. No caso Gonzlez e outras contra o Mxico (caso Campo Al-godonero), a Corte Interamericana condenou o Mxico em virtude dodesaparecimento e morte de mulheres em Ciudad Juarez, sob o argumentode que a omisso estatal estava a contribuir para a cultura da violncia e dadiscriminao contra a mulher. No perodo de 1993 a 2003, estima-se quede 260 a 370 mulheres tenham sido vtimas de assassinatos, em CiudadJuarez. A sentena da Corte condenou o Estado do Mxico ao dever deinvestigar, sob a perspectiva de gnero, as graves violaes ocorridas, garan-tindo direitos e adotando medidas preventivas necessrias de forma a com-bater a discriminao contra a mulher20.

    Ineditamente, em 24 de fevereiro de 2012, a Corte Interamericanareconheceu a responsabilidade internacional do Estado do Chile em facedo tratamento discriminatrio e interferncia indevida na vida privada efamiliar da vtima Karen Atala devido sua orientao sexual21. O caso foiobjeto de intenso litgio judicial no Chile, que culminou com a deciso daCorte Suprema de Justia em determinar a custdia das trs filhas ao pai,sob o argumento de que a Sra. Atala no deveria manter a custdia porconviver com pessoa do mesmo sexo, aps o divrcio. No entender unni-me da Corte Interamericana, o Chile violou os artigos 1, pargrafo 1 e 14da Conveno Americana, por afrontar o princpio da igualdade e da proi-bio da discriminao.

    5) Violaes a direitos sociais

    Finalmente, nesta quinta categoria de casos emergem decises da Cor-te que protegem direitos sociais. Importa reiterar que a Conveno America-

    19 A respeito, ver caso Mara Eugenia versus Guatemala e caso Maria da Penha versus Brasil deci-didos pela Comisso Interamericana.

    20 Ver sentena de 16 de novembro de 2009. Disponvel em: www.corteidh.or.cr/docs/casos/arti-culos/seriec_205_esp.pdf

    21 Caso Atala Riffo and daughters vs. Chile, Inter-American Court, 24 February 2012, Series CN.239.

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 173

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    na de Direitos Humanos estabelece direitos civis e polticos, contemplandoapenas a aplicao progressiva dos direitos sociais (artigo 26). J o Protocolode San Salvador, ao dispor sobre direitos econmicos, sociais e culturais, pre-v que somente os direitos educao e liberdade sindical seriam tutelveispelo sistema de peties individuais (artigo 19, pargrafo 6).

    luz de uma interpretao dinmica e evolutiva, compreendendo aConveno Americana como um living instrument, no j citado caso Villa-gran Morales contra a Guatemala22, a Corte afirmou que o direito vidano pode ser concebido restritivamente. Introduziu a viso de que o direito vida compreende no apenas uma dimenso negativa o direito a no serprivado da vida arbitrariamente , mas uma dimenso positiva, que de-manda dos Estados medidas positivas apropriadas para proteger o direito vida digna o direito a criar e desenvolver um projeto de vida. Esta inter-pretao lanou um importante horizonte para proteo dos direitos soci-ais.

    Em outros julgados, a Corte tem endossado o dever jurdico dos Es-tados de conferir aplicao progressiva aos direitos sociais, com fundamen-to no artigo 26 da Conveno Americana de Direitos Humanos, especial-mente em se tratando de grupos socialmente vulnerveis. No caso niasYean y Bosico versus Republica Dominicana, a Corte enfatizou o dever dosEstados no tocante aplicao progressiva dos direitos sociais, a fim deassegurar o direito educao, com destaque especial vulnerabilidade demeninas. Sustentou que: en relacin con el deber de desarrollo progresivocontenido en el artculo 26 de la Convencin, el Estado debe prover educaci-n primaria gratuita a todos los menores, en un ambiente y condiciones pro-picias para su pleno desarrollo intelectual23.

    H, ademais, um conjunto de decises que consagram a proteoindireta de direitos sociais, mediante a proteo de direitos civis, o que confir-ma a ideia da indivisibilidade e da interdependncia dos direitos humanos.

    No caso Albn Cornejo y otros versus Equador24 referente supostanegligncia mdica em hospital particular mulher deu entrada no hospi-tal com quadro de meningite bacteriana e foi medicada, vindo a falecer no

    22 Villagran Morales et al versus Guatemala (The Street Children Case), Inter-American Court, 19November 1999, Ser. C, No. 63.

    23 Caso de las ninas Yean y Bosico v. Republica Dominicana, Inter-American Court, 08 November2005, Ser. C, N.130.

    24 Albn Cornejo y otros v. Ecuador, Inter-American Court, 22 November 2007, serie C n. 171.

  • 174

    dia seguinte, provavelmente em decorrncia do medicamento prescrito -, aCorte decidiu o caso com fundamento na proteo ao direito integridadepessoal e no no direito sade. No mesmo sentido, no caso Myrna MackChang versus Guatemala25, concernente a danos sade decorrentes decondies de deteno, uma vez mais a proteo ao direito sade deu-sesob o argumento da proteo do direito integridade fsica.

    Outros casos de proteo indireta de direitos sociais atm-se prote-o ao direito ao trabalho, tendo como fundamento o direito ao devidoprocesso legal e a proteo judicial. A respeito, destaca-se o caso BaenaRicardo y otros versus Panam26, envolvendo a demisso arbitrria de 270funcionrios pblicos que participaram de manifestao (greve). A Cortecondenou o Estado do Panam pela violao da garantia do devido proces-so legal e proteo judicial, determinando o pagamento de indenizao e areintegrao dos 270 trabalhadores. No caso Trabajadores cesados del con-greso (Aguado Alfaro y otros) versus Peru27, envolvendo a despedida arbi-trria de 257 trabalhadores, a Corte condenou o Estado do Peru tambmpela afronta ao devido processo legal e proteo judicial. Em ambos oscasos, a condenao dos Estados teve como argumento central a violao garantia do devido processo legal e no a violao ao direito do trabalho.

    Outro caso emblemtico o caso cinco pensionistas versus Peru28,envolvendo a modificao do regime de penso no Peru, em que a Cortecondenou o Estado com fundamento na violao ao direito de propriedadeprivada e no com fundamento na afronta ao direito de seguridade social,em face dos danos sofridos pelos 5 pensionistas.

    No caso Acevedo Buendia vs. Peru29, a Corte reconheceu que os di-reitos humanos devem ser interpretados sob a perspectiva de sua integrali-dade e interdependncia, a conjugar direitos civis e polticos e direitos eco-nmicos, sociais e culturais, inexistindo hierarquia entre eles e sendo todosdireitos exigveis. Realou ser a aplicao progressiva dos direitos sociais sus-cetvel de controle e fiscalizao pelas instncias competentes, destacando odever dos Estados de no-regressividade em matria de direitos sociais.

    25 Myrna Mack Chang v. Guatemala, Inter-American Court, 25 November 2003, serie C n. 101.26 Baena Ricardo y otros v. Panam, Inter-American Court, 02 February 2001, serie C n. 72.27 Caso Trabajadores cesados del congreso (Aguado Alfaro y otros) v. Peru, Inter-American Court,

    24 November 2006, serie C n. 158.28 Caso cinco pensionistas v. Peru, Inter-American Court, 28 February 2003, serie C n. 98.29 Caso Acevedo Buenda y otros (Cesantes y Jubilados de la Contralora) contra o Peru, senten-

    a prolatada em 01 de julho de 2009.

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 175

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    3. O EMPODERAMENTO DO SISTEMA INTERAMERICANOMEDIANTE A EFETIVIDADE DO DILOGO JURISDICIONAL E

    CRESCENTE LEGITIMAO SOCIAL

    O sistema interamericano capaz de revelar as peculiariedades e es-pecificidades das lutas emancipatrias por direitos e por justia na regiolatino-americana. O sistema apresenta uma particular institucionalidademarcada pelo protagonismo de diversos atores, em um palco em que intera-gem Estados, vtimas, organizaes da sociedade civil nacionais e interna-cionais, a Comisso e a Corte Interamericana no mbito da Organizaodos Estados Americanos.

    Neste contexto, o sistema interamericano gradativamente se empo-dera, mediante dilogos a permitir o fortalecimento dos direitos humanosem um sistema multinvel. sob esta perspectiva multinvel que emergemquatro vertentes do dilogo jurisdicional, a compreender o dilogo com osistema global (mediante a incorporao de parmetros protetivos de direi-tos humanos); o dilogo com os sistemas regionais (a envolver a europeici-zao do sistema interamericano e a interamericanizao do sistema euro-peu); o dilogo com os sistemas nacionais (a abranger o controle da con-vencionalidade); e o dilogo com a sociedade civil (a emprestar ao sistemainteramericano crescente legitimao social).

    No que se refere ao dilogo com o sistema global, constata-se a incor-porao crescente de parmetros protetivos de direitos humanos do siste-ma global (ONU) nas sentenas proferidas pela Corte Interamericana, comrealce soft jurisprudence fomentada pelos treaties bodies. A ttulo ilustrati-vo, destaque-se meno Declarao da ONU sobre Povos Indgenas de2007, bem como jurisprudncia do Comit Geral n. 17/2005 do Comitda ONU sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, na sentena pro-ferida pela Corte Interamericana no caso Pueblo Indgena Kichwa de Sa-rayaku vs. Equador, de 27 de junho de 2012. Outro exemplo atm-se sen-tena do caso Atala Riffo y ninas vs. Chile, de 24 de fevereiro de 2012, emque a Corte Interamericana incorpora a jurisprudncia dos Comits da ONUde Direitos Humanos, de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, contraa Tortura, sobre a Eliminao da Discriminao contra a Mulher e sobre aEliminao de todas as formas de Discriminao Racial, tecendo, ainda,meno Declarao da ONU sobre Orientao Sexual e Identidade deGnero, de 2008. Na sentena do caso Geman vs. Uruguai, de 24 de feve-reiro de 2012, a Corte menciona a Conveno da ONU para a Proteo de

  • 176

    todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forado de 2006, bem como aConveno sobre os Direitos da Criana e a jurisprudncia do respectivoComit.

    Quanto ao dilogo com os sistemas regionais, faz-se cada vez maisintenso os processos de interamericanizao do sistema europeu e de euro-peicizao do sistema interamericano.

    A incluso dos pases do Leste Europeu no sistema europeu, com suaagenda prpria de violaes, est a deflagrar a crescente abertura da CorteEuropeia jurisprudncia interamericana relativa a graves violaes de direi-tos perpetradas por regimes autoritrios, envolvendo a prtica de tortura,execuo sumria e desaparecimento forado de pessoas. Como demonstrarelatrio produzido pelo Conselho da Europa, ao analisar 25 (vinte e cinco)sentenas proferidas pela Corte Europeia, h expressiva referncia jurispru-dncia da Corte Interamericana, sobretudo em matria de desaparecimentoforado, combate impunidade e justia de transio, com destaque s sen-tenas dos casos Velsquez Rodrigues vs. Honduras, Godinez Gruz vs. Hon-duras, Loyaza Tamayo vs. Peru e Barrios Altos vs. Peru, na jurisprudncia daCorte Europeia. Tambm foram localizados julgados da Corte Europeia con-cernentes a direitos sociais, com meno s sentenas da Corte Interamerica-na nos casos Acevedo Buendia vs. Peru e Cinco Pensionistas vs. Peru30.

    Por sua vez, a Corte Interamericana ao enfrentar novos temas de di-reitos humanos emergentes na agenda contempornea passa a aludiraos precedentes da Corte Europeia, como bem ilustra o leading case KarenAtala y hijas vs. Chile, decidido em 24 de fevereiro de 201231. Trata-se deindita e emblemtica sentena concernente proibio da discriminaofundada em orientao sexual, em que a Corte Interamericana no campoargumentativo alude ao relevante repertrio jurisprudencial firmado pelaCorte Europeia em caso similar32. Tambm no caso Puelo Indgena Kichwa

    30 A respeito, ver Council of Europe. Research Report, References to the Inter-American Court ofHuman Rights in the case-law of the European Court of Human Rights. 2012.Available at: http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/7EB3DE1F-C43E-4230-980D-63F127E6A7D9/0/RAPPORT_RECHERCHE_InterAmerican_Court_and_the_Court_caselaw.pdf(access on 01/12/2012).

    31 Caso Atala Riffo and daughters vs. Chile, Inter-American Court, 24 February 2012, Series CN.239.

    32 Com efeito, a Corte Interamericana recorreu ao caso Salgueiro da Silva Mouta vs. Portugal,sustentando que: Respecto a la inclusin de la orientacin sexual como categoria de discrimi-nacin prohibido, el Tribunal Europeo de Derechos Humanos h sealado que la orientacinsexual es outra condicin mencionada em el artculo 14 del Convenio Europeu para la Protec-

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 177

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    de Sarayaku vs. Equador, de 27 de junho de 2012, a Corte Interamericanavale-se de precedente da Corte Europeia em matria de direito identidadecultural, endossando o entendimento de que o direito identidade culturaldeve ser respeitado em sociedades multiculturais, pluralistas e democrti-cas. Na sentena do caso Gelman vs. Uruguai, de 24 de fevereiro de 2012, aCorte Interamericana alude jurisprudncia da Corte Europeia em casoscontra a Turquia e a Hungria.

    A respeito do dilogo com os sistemas nacionais consolida-se o cha-mado controle de convencionalidade. Tal controle reflexo de um novoparadigma a nortear a cultura jurdica latino-americana na atualidade: dahermtica pirmide centrada no State approach permeabilidade do trap-zio centrado no Human rights approach.

    Isto , aos parmetros constitucionais somam-se os parmetros con-vencionais, na composio de um trapzio juridico aberto ao dilogo, aosemprstimos e interdisciplinariedade, a resignificar o fenmeno jurdicosob a inspirao do human rights approach.

    No caso latino-americano, o processo de democratizao na regio,deflagrado na dcada de 80, que propiciou a incorporao de importantesinstrumentos internacionais de proteo dos direitos humanos pelos Esta-dos latino-americanos. Hoje constata-se que os pases latino-americanossubscreveram os principais tratados de direitos humanos adotados pela ONUe pela OEA.

    De um lado, despontam Constituies latino-americanas com clu-sulas constitucionais abertas, com destaque hierarquia especial dos trata-dos de direitos humanos, sua incorporao automtica e s regras inter-pretativas aliceradas no princpio pro persona.

    Com efeito, as Constituies latino-americanas estabelecem clusu-las constitucionais abertas, que permitem a integrao entre a ordem cons-titucional e a ordem internacional, especialmente no campo dos direitoshumanos, ampliando e expandindo o bloco de constitucionalidade. Ao pro-cesso de constitucionalizao do Direito Internacional conjuga-se o pro-

    cin de los Derechos Humanos e de las Libertades Fundamentales, el cual prohbe tratos discri-minatrios. En particular, em el caso Salgueira da Silva Mouta vs. Portugal, el Tribunal Europeoconcluyo que la orientacin sexual es un concepto que se encuentra cubierto por el articulo 14del Convenio Europeu. Adems, reiter que el listado de categorias que se realiza em dichoartculo es ilustrativa y no exhaustiva. (Caso Atala Riffo and daughters vs. Chile, Inter-Ameri-can Court, 24 February 2012, Series C N.239).

  • 178

    cesso de internacionalizao do Direito Constitucional. A ttulo exemplifi-cativo, a Constituio da Argentina, aps a reforma constitucional de 1994,dispe, no artigo 75, inciso 22, que, enquanto os tratados em geral tmhierarquia infra-constitucional, mas supra-legal, os tratados de proteo dosdireitos humanos tm hierarquia constitucional, complementando os direi-tos e garantias constitucionalmente reconhecidos. A Constituio Brasilei-ra de 1988, no artigo 5, pargrafo 2, consagra que os direitos e garantiasexpressos na Constituio no excluem os direitos decorrentes dos princ-pios e do regime a ela aplicvel e os direitos enunciados em tratados inter-nacionais ratificados pelo Brasil, permitindo, assim, a expanso do blocode constitucionalidade. A ento Constituio do Peru de 1979, no mesmosentido, determinava, no artigo 105, que os preceitos contidos nos tratadosde direitos humanos tm hierarquia constitucional e no podem ser modifi-cados seno pelo procedimento que rege a reforma da prpria Constitui-o. J a atual Constituio do Peru de 1993 consagra que os direitos cons-titucionalmente reconhecidos devem ser interpretados em conformidadecom a Declarao Universal de Direitos Humanos e com os tratados dedireitos humanos ratificados pelo Peru. Deciso proferida em 2005 peloTribunal Constitucional do Peru endossou a hierarquia constitucional dostratados internacionais de proteo dos direitos humanos, adicionando queos direitos humanos enunciados nos tratados conformam a ordem jurdicae vinculam os poderes pblicos. A Constituio da Colmbia de 1991, re-formada em 1997, confere, no artigo 93, hierarquia especial aos tratados dedireitos humanos, determinando que estes prevalecem na ordem interna eque os direitos humanos constitucionalmente consagrados sero interpre-tados em conformidade com os tratados de direitos humanos ratificadospelo pas. Tambm a Constituio do Chile de 1980, em decorrncia dareforma constitucional de 1989, passou a consagrar o dever dos rgos doEstado de respeitar e promover os direitos garantidos pelos tratados inter-nacionais ratificados por aquele pas. Acrescente-se a Constituio da Bol-via de 2009, ao estabelecer que os direitos e deveres reconhecidos constitu-cionalmente sero interpretados em conformidade com os tratados de di-reitos humanos ratificados pela Bolvia, que prevalecero em relao pr-pria Constituio se enunciarem direitos mais favorveis (artigos 13,IV e256). Na mesma direo, destaca-se a Constituio do Equador de 2008, aoconsagrar que a Constituio e os tratados de direitos humanos ratificadospelo Estado que reconheam direitos mais favorveis aos previstos pela

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 179

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    Constituio tm prevalncia em relao a qualquer outra norma jurdicaou ato do Poder Pblico (artigo 424), adicionando que sero aplicados osprincpios pro ser humano, de no restrio de direitos, de aplicabilidadedireta e de clusula constitucional aberta (artigo 416). A Constituio doMxico, com a reforma de junho de 2011, passou a contemplar a hierar-quia constitucional dos tratados de direitos humanos e a regra interpretati-va fundada no principio pro persona.

    Por outro lado, o sistema interamericano revela permeabilidade eabertura ao dilogo mediante as regras interpretativas do artigo 29 daConveno Americana, em especial as que asseguram o princpio da pre-valncia da norma mais benfica, mais favorvel e mais protetiva vti-ma. Ressalte-se que os tratados de direitos humanos fixam parmetrosprotetivos mnimos, constituindo um piso mnimo de proteo e no umteto protetivo mximo. Da a hermenutica dos tratados de direitos hu-manos endossar o princpio pro ser humano. s regras interpretativas con-sagradas no artigo 29 da Conveno Americana, somem-se os tratados dedireitos humanos do sistema global que, por sua vez, tambm enunciamo princpio pro persona fundado na prevalncia da norma mais benfica,como ilustram o artigo 23 da Conveno sobre a Eliminao da Discrimi-nao contra a Mulher, o artigo 41 da Conveno sobre os Direitos daCriana, o artigo 16, pargrafo 2 da Conveno contra a Tortura e oartigo 4, pargrafo 4 da Conveno sobre os Direitos das Pessoas comDeficincia.

    Clasulas de abertura constitucional e o princpio pro ser humanoinspirador dos tratados de direitos humanos compem os dois vrtices nacional e internacional a fomentar o dilogo em matria de direitoshumanos. No sistema interamericano este dilogo caracterizado pelo fe-nmeno do controle da convencionalidade, na sua forma difusa e con-centrada.

    Como enfatiza a Corte Interamericana: Quando um Estado ratificaum tratado internacional como a Conveno Americana, seus juzes, como parte doaparato do Estado, tambm esto submetidos a ela, o que lhes obriga a zelar paraque os efeitos dos dispositivos da Conveno no se vejam mitigados pela aplicaode leis contrrias a seu objeto, e que desde o incio carecem de efeitos jurdicos. (...) opoder Judicirio deve exercer uma espcie de controle da convencionalidade dasleis. entre as normas jurdicas internas que aplicam nos casos concretos e a Conven-o Americana sobre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judicirio deve ter

  • 180

    em conta no somente o tratado, mas tambm a interpretao que do mesmo temfeito a Corte Interamericana, intrprete ltima da Conveno Americana.33

    Como sustenta Eduardo Ferrer Mac-Gregor34, o juiz nacional agora tambm juiz interamericano, tendo como mandato exercer o controle deconvencionalidade na modalidade difusa. Cortes nacionais exercem o con-trole da convencionalidade na esfera domstica, mediante a incorporaoda normatividade, principiologia e jurisprudncia protetiva internacionalem matria de direitos humanos no contexto latino-americano. Frise-se:quando um Estado ratifica um tratado, todos os rgos do poder estatal aele se vinculam, compromentendo-se a cumpri-lo de boa f.

    A Corte Interamericana exerce o controle da convencionalidade namodalidade concentrada, tendo a ultima palavra sobre a interpretao daConveno Americana. Na realizao do controle de convencionalidade, aCorte Interamericana guia-se pelo princpio pro persona, conferindo preva-lncia norma mais benfica, destacando, em diversas sentenas, decisesjudiciais proferidas pelas Cortes constitucionais latino-americanas, bemcomo meno a dispositivos das Constituies latino-americanas, comopodem revelar os casos Pueblo Indgena Kichwa de Sarayaku vs. Equador(sentena proferida em 27 de junho de 2012), Atala Riffo y ninas vs. Chile(sentena proferida em 24 de fevereiro de 2012) e Gelman vs. Uruguai (sen-tena proferida em 24 de fevereiro de 2012)35.

    Por fim, adicione-se o profcuo dilogo do sistema interamericanocom a sociedade civil, o que lhe confere gradativa legitimao social e cres-

    33 Ver caso Almonacid Arellano and others vs. Chile. Judgment of 26 September 2006.34 Eduardo Ferrer Mac-Gregor, Interpretacin conforme y control difuso de convencionalidad: El

    Nuevo paradigma para el juez mexicano, In: Armin von Bogdandy, Flavia Piovesan e MarielaMorales Antoniazzi, Estudos Avanados de Direitos Humanos Democracia e Integrao Jurdica:Emergncia de um novo Direito Pblico, So Paulo, ed. Campus Elsevier, 2013, p. 627-705.

    35 A ttulo ilustrativo, cabe meno sentena proferida pela Corte Interamericana no caso PuebloIndgena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, de 27 de junho de 2012, em que a Corte incorporaprecedentes judiciais em matria indgena da Corte Constitucional Colombiana (sentencia C-169/01), no que se refere ao direito consulta prvia dos povos indgenas, bem como ao pluralis-mo. Empresta ainda destaque s Constituies da Argentina, da Bolvia, do Brasil, do Peru e doChile. Outro exemplo atm-se sentena do caso Atala Riffo y ninas vs. Chile, de 24 de fevereirode 2012, em que a Corte Interamericana faz aluso jurisprudncia da Suprema Corte de Justi-cia de la Nacin do Mxico, na AI 2/2010, concernente proibio da discriminao por orien-tao sexual. No caso Guelman vs. Uruguai, por sua vez, a Corte destaca a jurisprudncia daVenezuela, do Mxico, do Chile, da Argentina e da Bolivia reconhecendo a natureza pluriofen-siva e permanente do delito de desaparecimento forado, bem como a jurisprudncia latino-americana invalidando leis de anistia.

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 181

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    cente empoderamento. O sistema enfrenta o paradoxo de sua origem nas-ceu em um ambiente marcado pelo arbtrio de regimes autoritrios com aexpectativa estatal de seu reduzido impacto e passa a ganhar credibilida-de, confiabilidade e elevado impacto. A fora motriz do sistema interameri-cano tem sido a sociedade civil organizada por meio de um transnationalnetwork, a empreender exitosos litgios estratgicos.

    Na experincia brasileira, por exemplo, 100% dos casos submetidos Comisso Interamericana foram fruto de uma articulao a reunir vti-mas e organizaes no governamentais locais e internacionais36, com in-tenso protagonismo na seleo de um caso paradigmtico, na litigncia domesmo (aliando estratgias jurdicas e polticas) e na implementao do-mstica de eventuais ganhos internacionais.

    Transita-se, deste modo, ao enfoque dos desafios centrais ao sistemainteramericano, luz da agenda do processo de reforma.

    4. DESAFIOS DO SISTEMA INTERAMERICANOE A AGENDA DE REFORMA

    O sistema interamericano constitui uma eficaz estratgia de proteodos direitos humanos, quando as instituies nacionais se mostram falhasou omissas. A Comisso e a Corte Interamericana contribuem para a de-nncia dos mais srios abusos e pressionam os governos para que cessemcom as violaes de direitos humanos, fortalecendo a accountability dos Es-tados.

    A ao internacional tem tambm auxiliado a publicidade das viola-es de direitos humanos, o que oferece o risco do constrangimento polti-co e moral ao Estado violador, e, nesse sentido, surge como significativofator para a proteo dos direitos humanos. Ademais, ao enfrentar a publi-cidade das violaes de direitos humanos, bem como as presses internaci-onais, o Estado praticamente compelido a apresentar justificativas arespeito de sua prtica. A ao internacional e as presses internacionaispodem, assim, contribuir para transformar uma prtica governamental es-pecfica, no que se refere aos direitos humanos, conferindo suporte ou est-mulo para reformas internas.

    36 Flvia Piovesan. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 13 ed. revista e atualiza-da, ed. Saraiva: So Paulo, 2012, p.431.

  • 182

    Como reala James L. Cavallaro, estratgias bem articuladas de liti-gncia internacional que diferenciem vitrias meramente processuais deganhos substantivos, mediante a adoo de medidas para mobilizar a m-dia e a opinio pblica, tm permitido o avano da causa dos direitos hu-manos (...).37 Na percepo de Kathryn Sikkink: O trabalho das ONGstornam as prticas repressivas dos Estados mais visveis e pblicas, exigin-do deles, que se manteriam calados, uma resposta. Ao enfrentar pressescrescentes, os Estados repressivos buscam apresentar justificativas. (...)Quando um Estado reconhece a legitimidade das intervenes internacio-nais na questo dos direitos humanos e, em resposta a presses internacio-nais, altera sua prtica com relao matria, fica reconstituda a relaoentre Estado, cidados e atores internacionais.38 Adiciona a autora: pres-ses e polticas transnacionais no campo dos direitos humanos, incluindonetwork de ONGs, tm exercido uma significativa diferena no sentido depermitir avanos nas prticas dos direitos humanos em diversos pases domundo. Sem os regimes internacionais de proteo dos direitos humanos esuas normas, bem como sem a atuao das networks transnacionais queoperam para efetivar tais normas, transformaes na esfera dos direitoshumanos no teriam ocorrido39.

    O sucesso do sistema reflete o intenso comprometimento das ONGs(envolvendo movimentos sociais e estratgias de mdia), a boa resposta dosistema e a implementao de suas decises pelo Estado, propiciando trans-formaes e avanos no regime interno de proteo dos direitos humanos.

    Entretanto, o fortalecimento do sistema interamericano requer a ado-o de medidas reforando sua universalidade; institucionalidade; indepen-dncia; sustentabilidade; e efetividade. Para tanto, destacam-se 7 propostas40:

    37 James L. Cavallaro, Toward Fair Play: A Decade of Transformation and Resistance in Interna-tional Human Rights Advocacy in Brazil, In: Chicago Journal of International Law, v.3, n.2, fall2002, p. 492.

    38 Ver Kathryn Sikkink, Human rights, principled issue-networks, and sovereignty in Latin Ameri-ca, In: International Organizations, Massachusetts, IO Foundation and the Massacussetts Instituteof Technology, 1993, p. 414-415.

    39 Kathryn Sikkink e Thomas Risse, Conclusions, In: Thomas Risse, Stephen C. Ropp e KathrynSikkink, The Power of Human Rights: International Norms and Domestic Change, Cambridge, Cam-bridge University Press, 1999, p. 275

    40 No debate acerca da reforma do sistema interamericano, h controvertidas propostas formula-das por Estados visando restrio do poder da Comisso Interamericana em conceder medidascautelares e limitao de relatorias especiais, como a relatoria especial sobre a liberdade deexpresso e acesso informao. Para um enfoque crtico destas propostas, ver Deisy Ventura,Flvia Piovesan e Juana Kweitel, Sistema Interamericano sob Forte Ataque, Folha de So Paulo, p.A3, 07 de agosto de 2012.

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 183

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    1) Universalidade do sistema interamericano

    Assegurar a universalidade do sistema interamericano requer expan-dir o universo de Estados-partes da Conveno Americana (que contavacom 25 Estados-partes em 2012) e sobretudo do Protocolo de San Salvadorem matria de direitos econmicos, sociais e culturais (que contava apenascom 14 Estados-partes em 2012). Outra medida essencial ampliar o graude reconhecimento da jurisdio da Corte Interamericana de Direitos Hu-manos, a contar com o aceite de 22 Estados, em 2012. Observa-se que aOEA compreende 34 Estados membros.

    2) Independncia dos rgos do sistema interamericano

    Outra relevante medida assegurar a elevada independncia e auto-nomia dos membros integrantes da Comisso e da Corte Interamericana,que devem atuar a ttulo pessoal e no governamental.

    Faz-se necessrio densificar a participao da sociedade civil no mo-nitoramento do processo de indicao de tais membros, doando-lhe maiorpublicidade, transparncia e accountability.

    3) Jurisdio automtica e compulsria da Corte Interamericana

    O direito proteo judicial um direito humano no apenas sob aperspectiva nacional, mas tambm sob a perspectiva internacional. O acesso justia deve, pois, ser assegurado nas esferas nacional, regional e global.

    O sistema interamericano h de estabelecer a jurisdio automtica ecompulsria da Corte, convertendo em obrigatria a clusula facultativado artigo 62 da Conveno Americana pertinente ao reconhecimento dejurisdio da Corte. Reitere-se que, atualmente, dos 34 Estados membrosda OEA, 21 aceitam a jurisdio da Corte.

    Como afirma Antnio Augusto Canado Trindade: O direito deacesso justia no plano internacional aqui entendido lato sensu, con-figurando um direito autnomo do ser humano prestao jurisdicional, aobter justia, prpria realizao da justia, no marco da Conveno Ame-ricana. Com efeito, o acesso direto dos indivduos jurisdio internacio-nal constitui, em nossos dias, uma grande conquista no universo conceptu-al do Direito, que possibilita ao ser humano reivindicar direitos, que lhe soinerentes, contra todas as manifestaes de poder arbitrrio, dando, assim,

  • 184

    um contedo tico s normas tanto de direito pblico interno, como dedireito internacional41.

    4) Efetividade do sistema interamericano

    No sistema interamericano h uma sria lacuna concernente super-viso das decises da Corte e da Comisso. No sistema europeu, a ttuloexemplificativo, o Comit de Ministros (rgo poltico) tem a funo desupervisionar a execuo das decises da Corte Europeia, atuando coleti-vamente em nome do Conselho da Europa42.

    No sistema interamericano, so seus prprios rgos que realizam ofollow up das decises que eles prprios proferem. Isto porque a ConvenoAmericana no estabelece mecanismo especfico para supervisionar o cum-primento das decises da Comisso ou da Corte, embora a Assembleia Geralda OEA tenha o mandato genrico a este respeito, nos termos do artigo 65da Conveno Americana43.

    Na avaliao de Antnio Augusto Canado Trindade: (...) a CorteInteramericana tem atualmente uma especial preocupao quanto ao cum-primento de suas sentenas. Os Estados, em geral, cumprem as reparaesque se referem a indenizaes de carter pecunirio, mas o mesmo noocorre necessariamente com as reparaes de carter no pecunirio, em es-pecial as que se referem s investigaes efetivas dos fatos que originaram taisviolaes, bem como identificao e sano dos responsveis, imprescin-dveis para por fim impunidade (e suas consequncias negativas para o teci-do social como um todo). (...) Atualmente, dada a carncia institucional dosistema interamericano de proteo dos direitos humanos nesta rea especfi-ca, a Corte Interamericana vem exercendo motu propio a superviso da execu-o de suas sentenas, dedicando-lhe um ou dois dias de cada perodo desesses. Mas a superviso como exerccio de garantia coletiva da fiel exe-

    41 Antnio Augusto Canado Trindade e Manuel E. Ventura Robles, El Futuro de la Corte Interame-ricana de Derechos humanos, 2a ed. atualizada e ampliada, San Jos/Costa Rica, Corte Interame-ricana de Direitos Humanos e ACNUR, 2004, p. 10-11.

    42 Para uma anlise comparativa dos sistemas regionais, ver Flvia Piovesan, Direitos Humanos eJustia Internacional: Um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano,So Paulo, 3 edio revista, ampliada e atualizada, ed. Saraiva, 2012.

    43 De acordo com o artigo 65 da Conveno: A Corte submeter considerao da AssembleiaGeral da OEA, em cada perodo ordinrio de sesses, um relatrio sobre as suas atividades noano anterior. De maneira especial, e com as recomendaes pertinentes, indicar os casos emque um Estado no tenha dado cumprimento a suas sentenas.

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos

  • 185

    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    cuo das sentenas e decises da Corte uma tarefa que recai sobre o con-junto dos Estados-partes da Conveno44.

    5) Sustentabilidade do sistema interamericano

    Uma quinta proposta, de natureza logstica, a instituio de funcio-namento permanente da Comisso e da Corte, com recursos financeiros45,tcnicos e administrativos suficientes.

    6) Adoo de medidas internas visando plena implementao das deci-ses internacionais no plano domstico

    As decises internacionais em matria de direitos humanos devemproduzir eficcia jurdica direta, imediata e obrigatria no mbito do orde-namento jurdico interno, cabendo aos Estados sua fiel execuo e cumpri-mento, em conformidade com o princpio da boa f, que orienta a ordeminternacional.

    Para Antonio Augusto Canado Trindade: O futuro do sistema inter-nacional de proteo dos direitos humanos est condicionado aos mecanismos naci-onais de implementao 46.

    44 Antnio Augusto Canado Trindade e Manuel E. Ventura Robles, El Futuro de la Corte Intera-mericana de Derechos humanos, 2a ed. atualizada e ampliada, San Jos/Costa Rica, Corte Inte-ramericana de Direitos Humanos e ACNUR, 2004, p.434. Prope o autor: Para assegurar omonitoramento contnuo do fiel cumprimento de todas as obrigaes convencionais de proteo,em particular das decises da Corte, deve ser acrescentado ao final do artigo 65 da ConvenoAmericana, a seguinte frase: A Assembleia Geral os remeter ao Conselho Permanente, paraestudar a matria e elaborar um informe, a fim de que a Assembleia Geral delibere a respeito.Deste modo, se supre uma lacuna com relao a um mecanismo, a operar em base permanente (eno apenas uma vez por ano, ante a Assembleia Geral da OEA), para supervisionar a fiel execu-o, por todos os Estados-partes demandados, das sentenas da Corte. (op. cit. p. 91-92).

    45 A ttulo ilustrativo, o oramento da Corte Europeia corresponde aproximadamente a 20% dooramento do Conselho da Europa, envolvendo 41 milhes de euros, enquanto que o oramentoconjunto da Comisso e da Corte Interamericana corresponde aproximadamente a 5% do ora-mento da OEA, envolvendo apenas 4 milhes de dlares norte-americanos. Observe-se, ainda,que os 5% de oramento da OEA cobre to somente 55% das despesas da Comisso e 46% dasdespesas da Corte Interamericana.

    46 Antnio Augusto Canado Trindade e Manuel E. Ventura Robles, El Futuro de la Corte Interame-ricana de Derechos humanos, 2 ed., revista e atualizada, San Jos/Costa Rica, Corte Interamerica-na de Direitos Humanos e UNHCR, 2004, p. 91.

  • 186

    7) Fortalecimento do regime domstico de proteo dos direitos humanos

    A ltima proposta refere-se ao fortalecimento da proteo dos direi-tos humanos no plano local, a partir da consolidao de uma cultura dedireitos humanos.

    O desafio aumentar o comprometimento dos Estados para com acausa dos direitos humanos, ainda vista, no contexto latino-americano, comouma agenda contra o Estado. H que se endossar a ideia to vital experincia europeia da indissociabilidade entre direitos humanos, de-mocracia e Estado de Direito. Isto , h que se reforar a concepo de queo respeito aos direitos humanos condio essencial para a sustentabilida-de democrtica e para a capilaridade do Estado de Direito na regio.

    Diversamente do contexto europeu, em que h uma relao indisso-civel entre democracia, Estado de Direito e direitos humanos, a realidadelatino-americana reflete democracias polticas incompletas e Estados deDireito de baixa densidade, que convivem com um grave padro de viola-o a direitos.

    neste cenrio que o sistema interamericano se legitima como impor-tante e eficaz instrumento para a proteo dos direitos humanos. Com a atu-ao da sociedade civil, a partir de articuladas e competentes estratgias delitigncia, o sistema interamericano tem tido a fora catalizadora de promo-ver avanos no regime de direitos humanos. Permitiu a desestabilizao dosregimes ditatoriais; exigiu justia e o fim da impunidade nas transies de-mocrticas; e agora demanda o fortalecimento das instituies democrticascom o necessrio combate s violaes de direitos humanos. O sistema inte-ramericano tem assim concretizado o potencial emancipatrio dos direitoshumanos. Afinal, como lembra Habermas, the origin of human rights has alwaysbeen resistance to despotism, oppression and humiliation (...)47.

    47 Adiciona Habermas: The appeal to human rights feeds off the outrage of the humiliated at theviolation of their human dignity. Para o autor, o princpio da dignidade humana a fontemoral da qual os Direitos fundamentais extraem seu contedo. (Jurgen Habermas, The Crisis ofthe European Union: A Response, Cambridge, Polity Press, 2012, p. 75).

    F. PIOVESAN Dilogo no sistema interamericano de direitos humanos