dialogia para uma compreensão ativa responsiva

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Dialogia para uma compreensão ativa responsiva A noção de dialogismo é pedra fundamental na rede teórica de Bakhtin. O filósofo russo e seus companheiros do Círculo utilizam-se da própria interlocução para estabelecer a ideia de dialogismo. O conceito nasce justamente de uma intensa interação dialógica com o discurso da linguística saussuriana, por meio da qual Bakhtin revela a natureza dialógica da linguagem, contrapondo-se ao discurso estruturalista, o qual enfatiza e valoriza as formas linguísticas fixas e padronizadas. Ao contrário, Bakhtin nos apresenta um signo variante, elástico e flexível, que leva em conta a situação de uso, os participantes da interação verbal, com suas valorações e visões de mundo a respeito do objeto e dos sujeitos do discurso. Portanto, a palavra/discurso não pode ser um acontecimento individual, monológico; ela está sempre em diálogo com outras palavras/discursos que já vieram e as que ainda virão (BAKHTIN, 1992). Portanto, os analistas que buscam fundamentação para suas reflexões nos princípios elaborados pelo círculo de Bakhtin não podem perder de vista esses aspectos constitutivos do discurso, ou seja, para além de sua composição linguística estruturante, baseada nas regras da língua, há também uma parcela importante de historicidade agindo concomitantemente à forma e ao conteúdo na produção de sentido. Por essa razão, qualquer estudo que se faça do discurso carece de uma orientação dialógica, pois o sentido é, muitas vezes, exterior a ele. É nessa acepção que a significação é histórica, pois a história dá o contorno aos discursos, os quais aprovam, desaprovam, estabelecem acordos sociais, geram novas polêmicas e apagam antigas, a depender do momento histórico e dos atores sociais envolvidos na produção dos enunciados. Nessa perspectiva, Fiorin salienta que: “A História não é exterior ao sentido, mas é interior a ele, pois ele é que é

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Trata-se de uma reflexão acerca da teoria dialógica de Bakhtin.

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Dialogia para uma compreenso ativa responsiva A noo de dialogismo pedra fundamental na rede terica de Bakhtin. O filsofo russo e seus companheiros do Crculo utilizam-se da prpria interlocuo para estabelecer a ideia de dialogismo. O conceito nasce justamente de uma intensa interao dialgica com o discurso da lingustica saussuriana, por meio da qual Bakhtin revela a natureza dialgica da linguagem, contrapondo-se ao discurso estruturalista, o qual enfatiza e valoriza as formas lingusticas fixas e padronizadas. Ao contrrio, Bakhtin nos apresenta um signo variante, elstico e flexvel, que leva em conta a situao de uso, os participantes da interao verbal, com suas valoraes e vises de mundo a respeito do objeto e dos sujeitos do discurso. Portanto, a palavra/discurso no pode ser um acontecimento individual, monolgico; ela est sempre em dilogo com outras palavras/discursos que j vieram e as que ainda viro (BAKHTIN, 1992). Portanto, os analistas que buscam fundamentao para suas reflexes nos princpios elaborados pelo crculo de Bakhtin no podem perder de vista esses aspectos constitutivos do discurso, ou seja, para alm de sua composio lingustica estruturante, baseada nas regras da lngua, h tambm uma parcela importante de historicidade agindo concomitantemente forma e ao contedo na produo de sentido. Por essa razo, qualquer estudo que se faa do discurso carece de uma orientao dialgica, pois o sentido , muitas vezes, exterior a ele. nessa acepo que a significao histrica, pois a histria d o contorno aos discursos, os quais aprovam, desaprovam, estabelecem acordos sociais, geram novas polmicas e apagam antigas, a depender do momento histrico e dos atores sociais envolvidos na produo dos enunciados. Nessa perspectiva, Fiorin salienta que: A Histria no exterior ao sentido, mas interior a ele, pois ele que histrico, j que se constitui fundamentalmente no confronto das vozes que se entrechocam na arena da realidade (FIORIN, 2010, p. 41). Perceber a relao do texto com a histria nesse movimento dialtico, constitutivo do discurso, descrito por Fiorin, fundamental para a captao dos sentidos de um texto. Assim, analisar um texto historicamente no significa, portanto, fazer uma descrio da poca em que o enunciado foi produzido, ou um levantamento biogrfico de seu autor, ou relatar fatos acerca de suas condies de produo, e sim coloc-lo em dilogo com outros discursos que vieram antes dele, contemporneos a ele, e com aqueles que ainda viro. Por conseguinte, conforme demonstrado por Bakhtin, todo discurso , por natureza, dialgico. Isso o mesmo que dizer: todo discurso constitudo a partir de outro discurso. Desse modo, um enunciado sempre ser uma resposta a outro que veio antes dele, uma tomada de posio com relao ao discurso do outro. Podemos afirmar, com base nisso, que um discurso s existe em funo do outro, e que ele sempre ser heterogneo, pois sempre haver nele a presena de pelo menos duas vozes confrontando-se, completando-se ou conformando-se. Em cada palavra h vozes, vozes que podem ser infinitamente longnquas, annimas, quase despersonalizadas (a voz dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), inapreensveis, e vozes prximas que soam simultaneamente. ( ...) Dois enunciados, separados um do outro no espao e no tempo e que nada sabem um do outro, revelam-se em relao dialgica mediante uma confrontao do sentido. (...) Mesmo entre produes verbais profundamente monolgicas, observa-se sempre uma relao dialgica (BAKHTIN, 2003, p. 354 - 356). Tomemos como exemplo o discurso de que se deve valorizar a cultura cuiabana, o seu modo de falar, suas danas e o seu folclore. Essa afirmao revela pelo menos duas vozes: uma do cuiabano ptrio, proveniente da terra que, ao perceber sua cultura e seus costumes sendo, aos poucos, sobrepostos pela cultura dos imigrantes vindos principalmente do sul e do sudeste do pas, busca resgatar e manter suas tradies. E, por outro lado, a voz do colonizador, o desbravador que procura impor seus hbitos e mtodos como sinnimos de vanguardismo e modernidade. Ora, numa sociedade em que no houvesse esse processo migratrio com intuito de colonizar/explorar as regies recnditas, tal enunciado no teria razo de ser. Nesse sentido que Fiorin afirma que o discurso deixa ver o seu direito e o seu avesso (FIORIN, 2010, p. 40). Assim o funcionamento real do enunciado. Devido a sua natureza dialgica, s possvel compreend-lo, independente do espao social em que foi produzido, quando se leva em conta que ele foi constitudo num processo de oposio ao seu avesso, ou seja, ao seu outro na cadeia comunicativa. A palavra do outro, portanto, requisito para que haja qualquer discurso. Tomemos como exemplo o discurso dos modernistas que se opunha viso de mundo dos parnasianos. O preciosismo rtmico e vocabular destes, bem como sua preferncia por temas relacionados a paisagens, consoantes a sua viso acerca da arte, segundo a qual ela deveria existir por si s, so contrapostos pelos modernos, para quem a arte deveria ser engajada, voltada ao cotidiano, ter uma funo social. a percepo dessa oposio que atribui historicidade a ambos os discursos, e na apreenso desse movimento contraditrio, inerente aos enunciados, que se constitui o sentido. Fiorin (2010) nos explica que essa historicidade discursiva apresenta no fio do discurso vozes enunciativas, que so percebidas pelos interlocutores graas a sua capacidade de apreender os diferentes discursos que se formam e circulam em determinada poca, numa formao social especfica. A partir da que daro sentido aos enunciados, segundo a ideologia de cada um, porque o texto ser sempre incompleto, esperando algum que lhe d acabamento. Esse o sentido do dialogismo. Essa teoria deve especialmente interessar ao analista do discurso, principalmente quele que se prope a analisar os produtos de uma cultura tomados como linguagem, seja ala artstica ou no, como, por exemplo, um filme, documentrio, propaganda etc. Todo enunciado, segundo Bakhtin, deve ser situado historicamente. Isso implica assentir que nenhuma anlise discursiva, que se pretenda dialgica, deve deixar de considerar esse carter diacrnico do enunciado, ou seja, assumir que toda situao discursiva ser sempre situada num tempo e num espao. Assim, ao analisar o uso que o professor vem fazendo do curta-metragem em sala de aula, incumbncia do captulo III, usaremos como critrio metodolgico a verificao da subjacncia deste modo de conceber a linguagem no emprego do cinema como recurso didtico. Para tanto, partimos da premissa de que uma anlise flmica significativa no pode abrir mo de nenhum elemento que concorra para a compreenso ativa do enunciado. Desta forma, exige-se do professor-analista a responsabilidade de mantenedor dos fios dialgicos do discurso com o qual est interagindo, juntamente com seus alunos. Portanto, deve-se incluir no bojo da anlise tanto as representaes quanto os mecanismos utilizados nas representaes, bem como seus aspectos contextuais na relao com o tempo e o espao. Expressando de outra forma, a anlise deve contemplar os recursos narrativos especficos da linguagem cinematogrfica, pois, para Bakhtin (2003), as diferentes vozes do discurso manifestam-se na superfcie do texto, por meio dos diversos procedimentos composicionais; no caso do texto flmico, os movimentos de cmera, fotografia, edio etc., elementos que dialogam de forma direta com os temas representados, sendo eles que, de fato, produzem os tons sociais desejados pelo diretor nas representaes. Mas tambm no se pode perder de vista as metforas sociais presentes no texto flmico, os temas transversais, como querem os PCN. Aprofundando mais essa noo de dialogismo na anlise do texto flmico, nos emerge a ideia bakhtiniana de autor, a qual diferencia da viso romntica, que supervaloriza a originalidade e individualidade no processo criativo. Em oposio a isso, Bakhtin, por meio do dialogismo, assinala a inverossimilhana de a criao de um produto cultural ser o resultado direto de uma mente nica. Para ele, um enunciado, seja da esfera artstica ou no, ser sempre fruto de um intrincado dilogo com outros enunciados. Nessa toada, podemos concluir que uma obra literria sempre manter relao dialgica com outras obras anteriores e contemporneas a ela, da mesma natureza textual, ou no. Assim, um filme do sculo XXI, por exemplo, pode estabelecer interdiscursividade com um romance do sculo XX. Nas palavras de Bakhtin: Em cada palavra h vozes, vozes que podem ser infinitamente longnquas, annimas, quase despersonalizadas, inapreensveis, e vozes prximas que soam simultaneamente (BAKHTIN, 2003, p. 354). O filsofo estabelece que, nas criaes enunciativas, sobretudo as artsticas, os sentidos so constitudos a partir de pelo menos duas vozes. Interessa-nos, aqui, compreender o conceito de vozes em Bakhtin, e como esse entendimento pode contribuir para uma anlise dialgica do discurso cinematogrfico. Bakhtin lembra que, a partir de um mesmo lugar enunciativo, possvel perceber diferentes vozes de diferentes lugares enunciativos, de diferentes pocas. Em razo disso, Barros (2012) ressalta a necessidade de o analista aprender a ouvir e distinguir essas vozes, entendidas como posies discursivas no fio dialgico da comunicao humana. Dialogicamente, a autora nos auxilia na tarefa de identificar, de forma enunciativa, algumas das vozes a serem ouvidas no texto flmico, embora seu objeto fosse de natureza literria. A primeira voz a ser ouvida a do destinatrio suposto, muito importante no processo de interpretao, pois o autor de uma obra flmica elabora sua arquitetnica discursiva (forma e contedo) pensando nesse destinatrio. No menos importante - talvez o mais importante, considerando o contexto de sala de aula - est o destinatrio real, aquele que de fato assiste ao filme. Amorim (2002, Apud BARROS, 2012) ressalta a relevncia da participao deste na construo de sentidos, pois o processo de interpretao resulta em um segundo texto, baseado no qual o primeiro, por meio das relaes dialgicas, poder fazer sentido. Seguindo esse percurso, a autora menciona ainda o lugar do objeto discursivo como sendo mais uma voz presente num texto flmico a ser ouvida pelo professor-analista. Perceber essa voz pode ser determinante para uma compreenso ativa e, consequentemente, para a assuno de uma postura responsiva ante a obra analisada. Isso porque o mesmo objeto j foi abordado por outros autores, em outras obras, sob vrios pontos de vistas, impregnado de apreciaes ideolgicas, circulado em outras esferas enunciativas, sob diferentes intencionalidades. Como reflete Barros (2012, p.32): O objeto discursivo um palco de encontro de opinies, vises de mundo, correntes e teorias. E isso confere ao objeto discursivo um potencial dialgico infinito de possibilidades de sentidos. Por fim, ela faz referncia instncia do autor-criador como sendo outra voz que requer especial ateno do analista do discurso. Especial porque nem sempre fcil perceber a presena deste no discurso, embora saibamos que ele se faz presente com seu olhar, seu ponto de vista, falando de determinado espao enunciativo. assim como bem ressalta Amorim (2002, apud BARROS, 2012, p. 31): Se diante de um discurso, pensa-se que todo o dito est presente no enunciado, resulta-se em nada para analisar. Portanto, para tornar perceptvel a voz dessa instncia enunciativa nomeada por Bakhtin de autor-criador, no caso de um texto flmico, o analista ter que contrapor discursos, atentar s formas utilizadas na representao do assunto, ou seja, os enquadramentos, a obliquidade de sua cmara, o jogo de luz, a seleo do figurino, a aplicao das cores, bem como a escolha e abordagem do objeto discursivo. A noo bakhtiniana de dialogia nos revela seu carter multimodal, pois nos d conta de sua aplicabilidade a qualquer tipo de texto. Considerando nosso objeto, o texto cinematogrfico, o dialogismo aponta no apenas para o dilogo entre as personagens do filme, mas tambm para o dilogo com outros filmes anteriores, bem como entre as vozes sociais que se fazem ouvir no interior da narrativa, entre as trilhas sonoras e entre as imagens. Alm disso, h o dilogo que interfere na produo final do enunciado, o qual acontece entre produtores, diretores e atores. H, por fim, o dilogo com o pblico, que tambm conforma a obra, uma vez que suas possveis reaes valorativas so consideradas no processo de produo, levando-o a assumir um papel de coautoria na obra. Enfim, um enunciado qualquer, como um filme, um livro, uma pea, sempre ser recepcionado, julgado, avaliado e apreciado segundo os valores do outro, baseados nos costumes de uma poca e de um lugar, e todos esses elementos conformadores concorrem dialogicamente para atribuir sentidos ao enunciado