dia: - anaisecomig.files.wordpress.com  · web viewresumo. a proposta desse ... (2011) ao de...

30
O CORDEL COMO LINGUAGEM 1 uma proposta teórica no campo da Comunicação Maria Gislene Carvalho Fonseca 2 RESUMO A proposta desse trabalho é discutir a pertinência dos estudos sobre a linguagem de cordel no campo da Comunicação. Para isso, esta reflexão está estruturada a partir da Teoria da Enunciação de Bakhtin (2011), que entende que os diálogos culturais são fundamentais para a compreensão dos enunciados e que, para seu entendimento, é necessário avaliar todo o contexto da enunciação. O cordel é tratado aqui como uma linguagem poética, uma forma de interpretar e ressignificar a realidade cotidiana. Trata-se de um trabalho de revisão conceitual realizado através de revisão bibliográfica. Deste modo, articulamos o conceito de interação para Braga (2011) ao de interação verbal de Bakhtin (2011) e refletimos sobre as disputas ideológicas manifestas na linguagem do cordel a partir de Hall (2013). PALAVRAS-CHAVE: Cordel; Comunicação; Interação; Linguagem. CORDEL AS LANGUAGE a theoretical proposal of communication ABSTRACT The purpose of this paper is to discuss the relevance of studies about cordel's language in the communication. For this, this reflection is structured from the Theory of Enunciation of Bakhtin (2011), who understands that cultural dialogue is fundamental to understanding the statements and that is necessary to evaluate the whole context of 1 Trabalho apresentado no GT Dispositivos e textualidades midiáticas. 2 Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais; [email protected]. VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais https://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

Upload: phungnhan

Post on 18-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

O CORDEL COMO LINGUAGEM 1

uma proposta teórica no campo da Comunicação

Maria Gislene Carvalho Fonseca2

RESUMO

A proposta desse trabalho é discutir a pertinência dos estudos sobre a linguagem de cordel no campo da Comunicação. Para isso, esta reflexão está estruturada a partir da Teoria da Enunciação de Bakhtin (2011), que entende que os diálogos culturais são fundamentais para a compreensão dos enunciados e que, para seu entendimento, é necessário avaliar todo o contexto da enunciação. O cordel é tratado aqui como uma linguagem poética, uma forma de interpretar e ressignificar a realidade cotidiana. Trata-se de um trabalho de revisão conceitual realizado através de revisão bibliográfica. Deste modo, articulamos o conceito de interação para Braga (2011) ao de interação verbal de Bakhtin (2011) e refletimos sobre as disputas ideológicas manifestas na linguagem do cordel a partir de Hall (2013).

PALAVRAS-CHAVE: Cordel; Comunicação; Interação; Linguagem.

CORDEL AS LANGUAGEa theoretical proposal of communication

ABSTRACTThe purpose of this paper is to discuss the relevance of studies about cordel's language in the communication. For this, this reflection is structured from the Theory of Enunciation of Bakhtin (2011), who understands that cultural dialogue is fundamental to understanding the statements and that is necessary to evaluate the whole context of enunciation. The string is treated here as a poetic language, a way to interpret and give new meaning to everyday reality. It is a conceptual review of work done through literature review. Thus articulated the concept of interaction to Braga (2011) to the verbal interaction Bakhtin (2011) and reflect on the ideological disputes manifest in the language of string from Hall (2013).

KEYWORDS: Cordel; Communication; Interaction; Language.

Introdução

O cordel é uma manifestação cultural comum no Nordeste brasileiro,

encontrado também em outras regiões do País, e que tem correspondentes em outras partes

1 Trabalho apresentado no GT Dispositivos e textualidades midiáticas.2 Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais; [email protected].

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

do mundo, como na Argentina3, no Chile4, em Portugal5, na Espanha6, na França7, na

Alemanha8 etc. É possível encontrarmos nos folhetos romances, homenagens, histórias

cômicas, histórias fantásticas, publicidade, notícias, críticas sociais e tantos outros temas

que muitas vezes aparecem juntos compondo um mesmo folheto.

A proposta desse trabalho é discutir a pertinência dos estudos sobre a

linguagem de cordel no campo da Comunicação. Para isso, esta reflexão está estruturada a

partir da Teoria da Enunciação de Bakhtin (2011), que entende que os diálogos culturais

são fundamentais para a compreensão dos enunciados e que, para seu entendimento, é

necessário avaliar todo o contexto da enunciação.

O cordel é tratado aqui como uma linguagem poética, uma forma de interpretar

e ressignificar a realidade cotidiana. Como uma manifestação cultural, sua compreensão

passa pelos diálogos entre diversas disciplinas como Literatura, História, Antropologia e

também pela Comunicação, que é nosso foco aqui. É tratado como linguagem, pois não

estaremos detidos ao suporte, ainda que consideremos suas especificidades, em que os

versos são apresentados, mas à própria poesia, seja em folheto, seja em texto nas redes

sociais, seja em produções audiovisuais que nos permitem explorar a oralidade e a

performance da poesia.

A ideia é apresentar a poesia de cordel, suas características, suas estruturas e

seus usos a partir da diversidade de materialidades e de conteúdos identificados nos versos,

situando a pertinência do objeto e apontado formas possíveis de estudá-lo na Comunicação

a partir de uma reflexão teórica sobre linguagem, ideologia e cultura, partindo da ideia do

cordel como um dispositivo interacional.

1. Pesquisar cordel na comunicação

Pesquisar o cordel na Comunicação é um desafio cujos caminhos passam por

uma questão chave: o que seria um objeto da Comunicação? Para refletir sobre formas de

3 Payadas4 Lira popular5 Cordel em prosa6 Pliegos sueltos7 Litterature de Colportage8 Flugblatt

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

responder a isso, Braga (2011) nos serve como referência ao trazer a necessidade de se

discutir o campo da Comunicação, que é marcado pela interdisciplinaridade, mas que situa

um ângulo específico de olhar para a sociedade e, portanto, para os objetos. É a

especificidade no olhar para o cordel que nos permite estudá-lo na Comunicação.

Braga (2011) aponta que a definição do problema de pesquisa pode auxiliar na

definição do campo trabalhado. No caso do cordel, é necessário problematizá-lo no campo

da Comunicação. Uma das formas que isso pode ser feito é ao refletir sobre o processo de

interação entre os sujeitos a partir do uso da poesia como linguagem, observando aspectos

simbólicos que nos conduzem a uma discussão em torno das práticas culturais que o

constituem, atentando para superar uma "disjunção" entre mídia e interação (p. 70).

O cordel é um objeto que, como tantos outros, pode ser compreendido a partir

de diversos campos do conhecimento como a Linguística, a Literatura, a História, a

Sociologia, a Filosofia etc. Tem abordagens que "ainda que transversais a vários campos,

estes diversos temas são facilmente subsumidos ao ângulo de interesse de cada disciplina.

No diálogo entre uma disciplina e outra, são essas angulações específicas que são cotejadas

para ampliar o enfoque." (BRAGA, 2011, p. 64) Cabe aqui definirmos o nosso ângulo ao

refletirmos sobre o cordel.

Na Comunicação, olhamos para o cordel como um dispositivo, a partir das

definições de Agambem (2005, p. 13), ou seja, "qualquer coisa que tenha, de algum modo,

a capacidade de capturar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos,

as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes". Este dispositivo é interacional,

ou seja, um "lugar” epistêmico de ocorrência dos episódios comunicacionais, em que os diversos elementos sociais, heterogêneos, se articulam e tensionam, segundo determinados sistemas de relações, em função mesmo dos objetivos comunicacionais da sociedade e seus setores. (BRAGA, 2011, p. 76)

A centralidade da mídia, da midiatização ou, mais especificamente, do cordel

como mídia poderia ser tratada aqui como mais uma das formas de estudá-lo na

comunicação. Mas nossa proposta aqui está focada na linguagem. De todo modo, trata-se

de uma linguagem específica de um produto midiático, a linguagem que estabelece um elo

de ligação entre indivíduos postos em diálogo, ou seja, um elemento da interação. É a

linguagem que dota a interação de sentidos.

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

Compreendendo que o que define o campo de conhecimento pertinente a

determinado estudo não é o tema, mas a abordagem da pesquisa, como, então, devemos

olhar para o cordel? A princípio, temos que, como objeto midiático, o cordel pode ser um

objeto da Comunicação. Mas, além disso, nossa abordagem a partir da linguagem e,

portanto, em diálogo com a Linguística, diz respeito a um momento específico do processo

interativo do cordel como forma de interação social, que é o lugar do texto. Sabemos,

ainda, que a comunicação é um processo e assim não podemos isolar seus momentos como

estanques. O que realizamos aqui é uma ênfase sobre uma parte do processo como

estratégia metodológica e conceitual, assim como demos ênfase à comunicação como um

dos diversos elementos que constitui uma sociedade a partir de um referencial teórico, visto

que não conseguimos dar conta de toda a interação possibilitada pelos usos da poesia de

cordel.

Com foco na linguagem do cordel, neste trabalho, então, faz-se necessário

atentarmos para o diálogo possível entre a comunicação e a linguística, percebendo as

articulações teóricas e analíticas, mas sem esquecermos do nosso objetivo fundamental que

é de, ao tratarmos a poesia de cordel como linguagem, reconhecermos seus traços e

características como parte de uma interação social, dando ênfase a perspectiva dos diálogos

culturais que o constituem como linguagem.

Segundo Braga (2011, p. 65), precisamos deste modo compreender "o que há de

propriamente “conversacional” e de troca (simbólica e de práticas interativas) nas diversas

instâncias e situações da vida social". Assim, podemos olhar para nosso objeto com um

enfoque comunicacional. Porque ele constitui uma forma de mediação no diálogo em que

"a sociedade conversa com a sociedade" (p. 66) a partir da poesia, havendo trocas

comunicacionais, seja em folhetos noticiosos, seja naqueles que se propõem romances.

Porque, de toda forma, há diálogo entre poetas e leitores/ouvintes desde a concepção oral

em que o processo de criação leva em consideração uma imagem que o poeta tem de seu

público e dos prováveis interesses de conteúdo que têm. Trata-se da forma como o

cordelista conversa com seu público. E essa conversa se dá por uma linguagem poética. E

diante do cordel pronto, novos diálogos se tornam possíveis a partir de novas interações

também entre poeta e público.

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

Mas esta conversação não precisa necessariamente de uma resposta imediata,

como defende Braga (2011) ao definir interação comoprocessos simbólicos e práticos que, organizando trocas entre os seres humanos, viabilizam as diversas ações e objetivos em que se veem engajados (por exemplo, de área política, educacional, econômica, criativa, ou estética) e toda e qualquer atuação que solicita co-participação. Mas também o que decorre do esforço humano de enfrentar as injunções do mundo e de desenvolver aquelas atuações para seus objetivos – o próprio “estar em contato”, quer seja solidário quer conflitivo – e provavelmente com dosagens variadas de ambos; por coordenação de esforços ou por competição ou dominação. (BRAGA, 2011, p. 66)

Se, para Braga (2012, p. 26), "as interações sociais são o lugar de ocorrência da

comunicação" e consideramos o cordel como dispositivo interacional, podemos olhar para a

interação a partir da linguagem. Na poesia como dispositivo, temos um ambiente

comunicacional que abriga conteúdos e relações sociais. Produz sentidos desde sua

materialidade e coloca em relação indivíduos distintos, interligando suas consciências por

meio da linguagem. Como dispositivo interacional, que, elaborados na prática social,

viabilizam interações e são por elas tensionadas (p. 27), o cordel é tratado como objeto da

comunicação.

O cordel organiza formas simbólicas e possibilita uma série de interações e

diálogos, como trataremos mais adiante. Ele é, como enunciado, resposta a uma série de

diálogos que repercutem em sua produção. Por si só, já é o resultado de diversas interações

que formam a consciência do poeta. Como produto, permite uma nova interação, agora

entre poeta e leitores que, ao dialogarem na poesia como processo podem repercuti-lo. Até

mesmo quando a resposta é o silêncio, de alguma forma trata-se, por escolha, de uma forma

de responder ao conteúdo acessado. Deste modo, os versos impressos, além da

performance, também podem constituir interações. O próprio poeta, ao criar seus versos,

está, de alguma forma respondendo a outras conversas sociais, interações sociais - ou

diálogo, como trataremos mais adiante a partir de Bakhtin (2011, 2012) - das quais ele

tenha participado.

E o conteúdo produzido por eles entrará na rede de diálogos aos quais os seus

leitores/ouvintes têm acesso. É um modo de produção de conteúdos, cujo objetivo é colocar

em conexão consciências distintas, através da poesia. Trata-se de um texto que organiza o

mundo para apresentá-lo e oferecê-lo às diversas possibilidades de interpretação,

reconhecimento e respostas. Sujeitos sociais podem conversar pelo cordel, que organiza VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais

https://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

narrativas da vida cotidiana para leitores/ouvintes que respondem socialmente aos

conteúdos. Deste modo, se o objeto da comunicação envolve as conversações sociais

compreendidas como interação, temos, pois, o cordel, neste trabalho, como objeto deste

campo do conhecimento.

2. Interação verbal em cordel

A poesia de cordel é uma linguagem que estrutura formas de perceber o mundo

e de compartilhá-lo. Como interação, temos, então, o objetivo de compreendê-lo através de

sua linguagem. Não compreendemos que a linguagem seja suficiente para tratar do

fenômeno comunicacional do cordel, mas é possível refleti-la como uma etapa do processo

comunicativo e como elemento importante para tratarmos da interação verbal a partir de

Bakhtin (2012).

É necessário, então, compreendermos o que está sendo tratado como linguagem

e para isso utilizamos Bakhtin (2012) e as relações que a linguagem apresenta com a ideia

do dialogismo, propondo uma forma de materializá-la através de enunciados, que são

resultados de um conjunto de diálogos anteriores ao momento da enunciação e são,

portanto, dotados de ideologia. A linguagem é um elemento da comunicação que possibilita

a interação pela poesia de cordel.

A linguagem se materializa em enunciados. E "a enunciação enquanto tal é um

puro produto da interação social" (BAKHTIN, 2012, p. 126), decorrendo da relação entre

indivíduos socialmente organizados e que dispensam a obrigatoriedade de um interlocutor

real que, segundo Bakhtin (2012, p. 116), pode ser substituído pelo representante médio do

grupo social ao qual pertence o locutor. Deste modo, o enunciado é determinado pelas

condições reais da enunciação, pela situação social imediata. Desta forma, no caso do

cordel, as situações sociais nas quais o poeta está inserido modelam a enunciação. Por isso,

sua compreensão não pode ignorar o contexto de produção da poesia. Compreendemos,

ainda, que o contexto não é um plano de fundo para a produção, mas é um elemento

fundamental que a configura.

Os enunciados do cordel são os versos, que são criados a partir de interações e

que não podem ser isoladas de suas formas ideológicas, pois, segundo Bakhtin (2012), a

linguagem é um fenômeno ideológico. A linguagem do cordel, então, é uma forma de

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

organizar, de estruturar ideologias por parte dos poetas e dos leitores/ouvintes. A

significação dos enunciados não está situada em um único indivíduo, mas na forma como a

linguagem, como ponte que interliga as consciências, é enunciada e interpretada pelo

público. Os enunciados são significados como produtos da interação entre locutor e

ouvinte, por isso, o processo de comunicação não pode ser compreendido em apenas um

momento, mas deve considerar todos os seus elementos constituintes. É no diálogo que os

significados são produzidos.

Para Bakhtin (2012), o diálogo é uma as formas mais importantes da interação

verbal e significa "toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja" (p. 127). O cordel é

um objeto que estabelece diálogo entre poeta e público. Mas é também produto de diversos

diálogos sociais dos quais participou o poeta que faz seu cordel como resposta a esses

diálogos. O poeta é um sujeito social que não está situado em um lugar único - ser poeta

não é uma identidade fixa, aliás, a própria ideia de identidade é múltipla, a partir desta

concepção - mas que, ao transitar entre seus diversos lugares, produz diálogos distintos que

se transformarão em enunciados, seja em poesia, seja nas demais formas de experiências

vividas.

Assim, os diálogos se constituem em uma rede de produção de significados,

pois "qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma

fração de uma corrente de comunicação ininterrupta" (BAKHTIN, 2012, p. 128). Os

diálogos são constantes e cada enunciação fornece novos elementos para novos diálogos

que produzirão novos enunciados, como uma espiral em que não somos capazes de

identificar nem sua origem nem seu fim. As interações estão todas encadeadas e dizem

respeito à formação dos indivíduos que inclui todos os diálogos e cargas ideológicas que

oferecem significados às enunciações estruturadas pelos contextos nos quais se inserem.

Por meio da linguagem há uma explicitação ideológica do status social daquele que fala (p.

121).

Porém, como este lugar social não é estanque, tampouco consegue ser

determinante de ideologias e discursos. A "atividade mental do nós", ou seja, uma

orientação coletiva do discurso, é dotada de contradições internas. Isso porque os

indivíduos por mais que sejam influenciados pelo seu lugar social, este não é único.

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

Diversos papéis atravessam o indivíduo e dialogam na constituição de uma consciência

ideológica que se materializa em linguagem e se estrutura em enunciado.

Como diálogo, essas ideologias são formas de compreender o mundo que não

partem exclusivamente da individualidade dos sujeitos, mas das relações sociais que,

inclusive, estruturam os enunciados e, segundo Bakhtin (2012), permitem graus diferentes

de modelagem ideológica, o que implica na impossibilidade de falarmos em determinismos

de ideologias de classe social. Consideramos aqui que as classes e grupos aos quais se

vinculam os indivíduos são elementos que dialogam com o contexto da enunciação e que

constituem a ideologia manifesta linguisticamente.

A chamada ideologia do cotidiano, entendida como "o domínio da palavra

interior e exterior desordenada e não fixada num sistema, que acompanha cada um dos

nossos atos ou gestos e cada um dos nossos estados de consciência" (BAKHTIN, 2012, p.

123), cristaliza os ditos sistemas ideológicos constituídos - a arte, a moral, o direito - nas

formas de expressão linguísticas e exercem forte influência sobre as manifestações

culturais, como é o caso do cordel.

Como a atividade de enunciação é de natureza social e não se pode isolar a

atividade linguística de sua lógica de diálogo, portanto, do contexto ao qual está inserido,

temos a ideologia como elemento fundamental, que compõe todo signo e objeto artístico-

simbólico. Neste caso, mais uma vez, reafirmamos o cordel como objeto ideológico em sua

constituição e em seus conteúdos. Sejam aqueles que resistem a uma ordem hegemônica de

produção midiática e literária, sejam os que estão alinhados aos cânones da produção

editorial.

Sendo ideológico, o cordel é um lugar de embate, de disputas de sentidos. É o

que percebemos, por exemplo, em folhetos como os de Jarid Arraes9, militante feminista

que usa os folhetos como forma de manifestar um inconformismo com um status quo

machista e opressor. Ou no caso de Salete Maria10 também feminista, que em alguns de

seus versos fala sobre gênero e diversidade sexual como resistência à homofobia ou sobre

questões trabalhistas como resistência ao poder econômico em um ambiente de lutas de

classes. O poeta José Franklin11 relata o cotidiano do Complexo do Alemão, como formas 9 Poetisa de Juazeiro do Norte, filha e neta de poetas. Mora em São Paulo e vende folhetos ativistas pela Internet.10 Poetisa de Juazeiro do Norte e professora do curso de Direito da Universidade Federal da Bahia.11 Poeta cordelista carioca, que mora no Complexo do Alemão e que escreve o cotidiano da região em poesia.

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

de resistência à uma representação hegemônica do contexto das favelas no Rio de Janeiro.

Em todos estes casos podemos observar que a arte poética dos folhetos tem sido usada

como instrumento de resistência ideológica.

O cordel, então, está carregado de traços culturais que dialogam a partir das

práticas sociais que o constituem como enunciado. A análise, por sua vez, está

condicionada não apenas ao discurso, mas a todo o contexto de enunciação que a ele

corresponde. Nem o discurso é algo puro, tampouco sua interlocução, que ao ter acesso a

ele, inicia imediatamente um novo processo dialógico, compondo assim o contexto geral da

enunciação.

A individualidade do poeta, sua subjetividade, é formada por elementos culturais

que compõem manifestações artísticas como no caso do cordel. Por estes elementos, torna-

se possível a experimentação de uma nova realidade, em que as dificuldades da vida são

tratadas de modo alegre, cômico, educativo, por exemplo, fazendo da poesia uma

experiência diferente daquela experimentada no cotidiano, e que por ela é inspirada e

composta.

Os folhetos carregam em suas páginas sentidos que resultam destas práticas e que

se constituem como diálogos na elaboração de enunciados poéticos, seguindo a ideia de

Bakhtin (2012), para quem todo estes são compostos também pelas ideologias dos sujeitos

envolvidos nos discursos, que conferem às palavras sentidos próprios em cada ato de

enunciação. A partir das ideologias é que o mundo recebe significados.

Segundo Hall (2010), o sentido é uma produção social, portanto, os signos não têm

significados intrínsecos, mas são resultados de práticas cotidianas. A linguagem é

polissêmica e é seu uso cotidiano que lhe atribui sentidos. Por isso não podemos falar em

uma linguagem estática, fixa. As palavras são historicamente ressiginificadas justamente

porque o sentido é uma prática social e decorre dos empregos e interpretações que variam

porque a consciência individual é socioideológica, segundo Bakhtin (2012).As relações sociais evoluem (em função das infraestruturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem em consequência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança das formas da língua. (BAKHTIN, 2012, p. 129)

Então, os processos de significação tanto dizem respeito a um contexto cultural,

externo ao indivíduo, mas que por ele é composto, pois o indivíduo é o vetor que carrega

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

em si a diversidade de contextos sociais pelos quais é atravessado e é onde acontecem os

diálogos ideológico desta produção de sentidos.

O cordel é uma prática social e como tal é dotada de sentidos, que dialogam e

produzem enunciados, seja em sua materialidade, seja nos textos, seja a partir de seus

leitores/ouvintes interpretantes. Cada possibilidade de sentido é resultado de diálogos

anteriores e dialogam entre si, constituindo uma espiral constante de diálogos que

produzem sentidos. Consideramos que, a partir das reflexões de Bakhtin (2011, 2012) sobre

linguagem, que consideram-na um movimento dialógico constituído a partir de processos

de interação entre indivíduos e, portanto, ideologicamente constituídos, a poesia de cordel

pode ser tratada como linguagem. Neste caso, uma linguagem que costuma referir-se ao

cotidiano, agregando elementos de realidade e de ficção.

Assim, a linguagem do cordel se materializa em enunciados que para serem

compreendidos precisam levar em consideração o contexto de enunciação, as relações que

se estabelecem entre poeta e leitores, os lugares e os momentos em que os enunciados se

realizam e, principalmente, deve ser analisada considerando os diálogos e a pluralidade de

vozes que compõem o ato de enunciação. A interação é mais ampla que o diálogo face à

face e inclui a ideia de polifonia de Bakhtin (2012), cujas vozes não precisam estar ditas no

texto, mas elas compõem o enunciado do poeta. O contexto social na produção de sentidos

é também uma forma de interação.

Para Bakhtin (2012), um enunciado puro ou "absolutamente neutro" é impossível

pois as escolhas de recursos lexicais, gramaticais e composicionais possuem relações

valorativas no discurso. O indivíduo atribui às palavras significações às quais apreendeu em

outros diálogos. O juízo de valor das palavras é atribuído em cada enunciação e está

vinculado às condições de uma situação social que produz estes significados. Por isso

Bakhtin (2012) destaca a relevância da ideologia na construção dos enunciados e em sua

significação. "Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de

si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe

ideologia" (p. 31). O cordel, como linguagem, é um espaço de ideologias manifestas em

enunciados poéticos. As palavras escolhidas pelos poetas têm o objetivo de ressignificar o

próprio cotidiano.

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

A linguagem no cordel é, deste modo, compreendida como um espaço de luta

pelos sentidos. A interação é uma negociação de significados posta em prática através dos

enunciados. Segundo Hall (2010), trata-se de uma luta pelo domínio no discurso, que no

cordel trata-se de uma luta pela legitimação da ideia de "verdade" em seu discurso. Esta

luta se dá pela multiplicidade se significados possíveis aos signos, atribuíveis

culturalmente, pelo seu uso cotidiano. Sendo os signos polissêmicos, também é a realidade

e cada interlocutor a enuncia de forma distinta, partindo da rede de diálogos sociais ao qual

experimentou.

3. A Cultura como espaço de representação a partir da linguagem

A significação decorre das práticas sociais e a partir das relações sociais temos

uma transformação nos sentidos que evoluem historicamente por serem as práticas dotadas

de ideologias. Assim, devemos pensar a importância da cultura neste processo de interação,

pois "é dentro dos sistemas de representação da cultura e através deles que nós

'experimentamos o mundo': a experiência é o produto de nossos códigos de inteligibilidade,

de nossos esquemas de interpretação" (HALL, 2013, p. 200). A poesia de cordel como

linguagem e como prática social, portanto, está atravessada por elementos culturais que

organizam a experiência dos poetas e a partir delas estruturam ideologicamente os discursos

nos versos.

Braga (2011) chama atenção para a necessidade de não se confundir os estudos de

cultura com estudos em Comunicação, apesar de sua forte interligação. O que nos interessa

no cordel não são seus dados prévios como elemento cultural, visto que a cultura, assim

como a linguagem, não é algo estático, mas que se modifica a partir das práticas sociais que

a significam e constituem. Interessa-nos pensar o cordel, no campo da Comunicação, O gesto de cultura (fala, dança, criação, comportamento), em situação de auto-explicitação, já não é apenas movimento de participação e de identificação do indivíduo na comunidade. É também expressão consciente desse identificar-se – é comunicação (aos iguais e aos diferentes) da opção feita. Corresponde a uma seleção entre diversos jogos e atuação consciente sobre suas regras, via interação social. (BRAGA, 2011, p. 75)

Os sentidos produzidos a partir de processos de interação, que se estabelecem a

partir de disputas ideológicas, evidenciam as diferenças entre práticas culturais, mas

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

também distinções internas em uma mesma cultura. Deste modo, entendemos que, não

sendo estática e apresentando contradições internas, a cultura também não é determinante

das significações, mas constitui-se como elemento que faz parte do diálogo que produz os

enunciados. No caso da poesia de cordel, temos, então, uma multiplicidade de atividades e

práticas que produzem sentido, sendo a cultura um espaço que Braga (2011) chama de

extra-mediático, onde se dão interações entre as inserções diversas de indivíduos no

ambiente midiático. Deve-se olhar para a articulação entre os objetos e processos

comunicacionais com contextos socioculturais.

A diversidade cultural, que permite a troca, o diálogo, a interação, baseia-se em

uma diversidade ideológica. As ideologias organizam classificações em torno de categorias

sociais, conforme Hall (2013, p. 211), assumidas pelos indivíduos que experimentam cada

categoria. A partir do conceito de ideologia de Athusser, Hall (2013) considera que as

ideologias estão relacionadas à linguagem, que lhes oferece registro material - assim como

define Bakhtin (2011, 2012) - e constituem estruturas de avaliação e compreensão do

mundo. "É por isso que devemos analisar ou desconstruir a linguagem e o comportamento

para decifrar os padrões de pensamento ideológico ali inscritos" (HALL, 2013, p. 191).

Os três autores dialogam sobre a importância de se considerar as classes na

compreensão das ideologias manifestas na linguagem. Mas isso não significa, segundo Hall

(2013), que haja uma correspondência necessária entre ideologia e classe social, pois seria

incoerente falarmos que existe "uma" ideologia dominante e "uma" ideologia subordinada.

Isso ignoraria as diversas variantes de comportamentos e experiências que atribuem

significados ao mundo. Não existe "unidade" nas classes sociais que não nos permita

identificar conflitos dentro e fora delas. Por isso, falamos aqui em ideologias diversas que

dialogam e produzem significados.

Deste modo, os significados ideológicos não são estáticos. No grupo dos

cordelistas, por exemplo, não podemos identificar uma ideologia homogênea. Percebemos

que há subdivisões: mulheres, homens, militantes de partidos políticos específicos, pessoas

envolvidas com movimentos feministas, negro e LGBT, sindicalistas, professores

universitários, homofóbicos, nordestinos, sudestinos, migrantes, pessoas que têm inserção

na mídia hegemônica, poetas que utilizam as redes sociais, outros que as rejeitam, com

diferentes escolaridades, de diferentes classes sociais.

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

E cada vinculação a uma ou mais destas subdivisões não lhes garante identidade,

mas interfere ideologicamente na construção dos significados que produzem nos versos, e

que variam de acordo com seus usos. Os enunciados produzidos são um campo de luta

ideológica da linguagem. E os indivíduos permanecem abertos para se posicionarem - ou

serem posicionados socialmente - em lugares distintos das experiências. Isso acontece com

o cordelista que em um momento é público de uma mídia e em seguida é o emissor de seu

próprio conteúdo nos folhetos. Ou aquele que é constantemente oprimido por questões de

classe social e pode mudar de papel, tornando-se opressor, ao escrever um folheto machista

ou homofóbico.

Por isso, não podemos considerar que todos os cordéis são sempre iguais,

combativos, resistentes em seus conteúdos, visto que muitas vezes estão situados no lugar

do opressor. Ainda assim, a poesia está sempre dotada de ideologias e estas estão sempre

em disputa de sentidos, ou, em luta ideológica.Uma cadeia ideológica particular se torna um local de luta não apenas quando as pessoas tentam deslocá-la, rompê-la ou contestá-la, suplantando-a por um conjunto inteiramente novo de termos, mas também quando interrompem o campo ideológico e tentam transformar seus significados pela modificação ou rearticulação de suas associações, passando, por exemplo, do negativo para o positivo. Frequentemente a luta ideológica consiste na tentativa de obter um novo conjunto de significados para um termo ou categoria já existente, de desarticulá-lo de seu lugar na estrutura significativa. (HALL, 2013, p. 213)

A luta ideológica do cordel é por reconhecimento. A luta ideológica no cordel tem

diversas configurações. Segundo Hall (2010), existe uma disputa pelo domínio do discurso

e há um conjunto de meios hegemônicos que cria um sistema socialmente estabelecido de

equivalência entre a sua linguagem e a realidade, como é o caso do jornalismo, que utiliza

as técnicas de apuração e de redação como mecanismos de autoafirmação e legitimação dos

signos utilizados, como se estes fossem os mais adequados para referir-se ao real. Mas se

consideramos que os signos são uma arena de luta, visto que há uma "multiacentualidade"

dos signos, então as formas de significar o real também serão múltiplas. Deste modo, os

instrumentos desta luta de significação estão no interior da linguagem, na forma de

ideologias.

A poesia de folheto resiste a um processo de hegemonia midiática e editorial.

Sobrevive como prática cultural, como produção artística e como lugar de conhecimento,

mesmo que ainda seja tomado como uma "literatura menor", "um livreto de gracejos" a

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

partir de produções independentes de poetas, de associações e até mesmo da publicação de

versos na Internet, o que dispensa os custos e eventuais prejuízos com impressão.

Pensar as práticas cotidianas como elementos culturais - que compõem o diálogo

que resultará no enunciado dos folhetos - é o que nos sugerem os Estudos Culturais,

abordado aqui a partir de Hall (2013), que nos permite pensar no cordel como uma forma

de manifestação cultural. A produção de folhetos pode ser compreendida como uma prática

cultural por estar relacionada a produção de significados a partir de hábitos cotidianos e

tradições. A cultura, segundo Hall (2013, p. 149) "está perpassada por todas as práticas

sociais e constitui a soma do inter-relacionamento das mesmas". Ela não é uma prática por

si só, mas pelas práticas oferece sentido e organiza a compreensão do cotidiano. Assim,

estudar o cordel como objeto cultural significa analisar esta organização do cotidiano, das

práticas sociais nos versos, que apresentam especificidades e descontinuidades, que

carregam traços das experiências dos poetas manifestas nos versos.O significado não é um reflexo transparente do mundo na linguagem, mas surge das diferenças entre os termos e as categorias, os sistemas de referência, que classificam o mundo e fazem com que ele seja apropriado desta forma pelo pensamento social e o senso comum. (HALL, 2013, p. 207)

Patativa do Assaré, nos versos "Cante lá que eu canto cá", reflete a produção de

conteúdo a partir de um lugar específico. "É que o poeta da cidade ele não sabe cantar o sertão como o Patativa canta, porque ele poderá já ter até vivido no sertão um dia, um mês e tal, mas ele não sabe a vida do sertão! Ele não sabe por experiência, que é o que eu digo no poema." (Patativa do Assaré. In: CARVALHO, 2002, p. 69)

Podemos compreender que, a partir das condições ideológicas da linguagem, das

práticas culturais dotadas de ideologias, as experiências cotidianas são significadas e

oferecem sentidos aos discursos enunciados nos versos.Pueta cantor da ruaQue na cidade nasceuCante a cidade que é suaQue eu canto o sertãoQue é meu.Se aí você teve estudoAqui Deus me ensinou tudoSem de livro precisar. (Patativa do Assaré. In: CARVALHO, 2002, p. 69)

Os cordelistas assumem em diversos momentos papéis diferentes na sociedade,

sendo constituídos de identidades múltiplas, variáveis, fluidas. Há o momento em que eles

são emissores, produtores de conteúdo. Mas antes, eles foram receptores, o público da VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais

https://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

mídia e da literatura canônica. Assim como são também receptores de diversos outros

enunciados que são emitidos cotidianamente e que reforçam ou resistem a práticas

hegemônicas. "E o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos

subsequentes ou no comportamento do ouvinte." (BAKHTIN, 2011, p. 272) Como

receptores de enunciados diversos, cada momento de interação produz uma resposta, seja

de concordância, seja de discordância, e isso se manifesta em outros enunciados que os

sujeitos produzirão. No caso, a poesia de cordel pode ser uma dessas respostas no grande

diálogo interacional dos indivíduos, que faz com que os poetas migrem do lugar de receptor

para o lugar de emissor de conteúdos, que fazem parte da espiral dialógica da comunicação.

A partir do diálogo, o cordel se constitui como uma prática de resistência, por

tratar-se, como linguagem, de um fenômeno ideológico e plural, onde identificamos uma

diversidade de vozes que compõem uma tensão, seja cultural, seja social, seja econômica,

seja política. Assim, ele apresenta um embate na luta pela legitimação de seus discursos

como "verdade", ao mesmo tempo em que seus conteúdos resistem às formas hegemônicas

de representação de grupos oprimidos. É a partir desta ideia do cordel como um lugar de

disputa é que ele se constitui como elemento da cultura popular.Há pontos de resistência e também momentos de superação. Esta é a dialética da luta cultural. Na atualidade esta luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação que transformam o campo da cultura em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtém vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas e perdidas. (HALL, 2013, p. 282)

A cultura faz parte das categorias ideológicas de produção de significados e é nela

e a partir dela que se dão os diálogos produtores de linguagem, pois não existem culturas

isoladas a partir de um determinismo histórico. "As culturas de classe tendem a se

entrecruzar e a se sobrepor num mesmo campo de luta". (HALL, 2013, p. 290)

A cultura popular é definida por Hall (2013) como um lugar onde transformações

sociais são operadas, onde há um duplo movimento de contenção e de resistência,

continuamente em tensão com a cultura dominante. Não é a produção de conteúdos

"autênticos", até porque nem as "classes populares" são perfeitamente limitadas em sua

constituição e produção e também porque as atividades humanas estão em um constante

diálogo, influenciando-se mutuamente. Para Hall (2013), considerar essa "autenticidade" da

cultura popular seria subestimar o poder da inserção cultural.

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

O essencial em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a "cultura popular" em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante. Trata-se de uma concepção de cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural. Considera o domínio das formas e atividades culturais como um campo sempre variável. Em seguida, atenta para as relações que continuamente estruturam esse campo em formações dominantes de subordinadas. Observa o processo pelo qual essas relações e subordinação são articuladas. Trata-as como um processo: o processo pelo qual algumas coisas são ativamente preferidas para que outras possam ser destronadas. Em seu centro estão as relações de força mutáveis e irregulares que definem o campo da cultura - isto é, a questão da luta cultural e suas muitas formas. Seu principal foco de atenção é a relação entre a cultura e as questões de hegemonia. (HALL, 2013, p. 285)

Por isso, ao interpretarmos uma atividade cultural como é o caso do cordel,

devemos estar atentos às questões ideológicas que o compõem como linguagem, as relações

de poder que se instituem, a que ele resiste - seja em conteúdo, seja como prática

enunciativa por meio de folhetos. Os significados do cordel e os significados que ele

veicula são usados e interpretados a partir do campo social ao qual estão incorporados

poetas e leitores, como explica Hall (2013). A produção do cordel como prática, em sua

diversidade, marca um lugar de fala do poeta que está em constante movimento.

Neste sentido, compreendemos a prática poética de cordel como uma resistência,

assim como alguns de seus conteúdos. Há uma luta constante por aceitação, por

reconhecimento e por visibilidade por parte dos cordelistas. E a arma utilizada neste

embate, segundo Lemaire (2008), é a "verdade". Os cordelistas lutam não pela

possibilidade de dizê-la, mas pelo reconhecimento de sua legitimidade.

Considerações finais

Se o que constitui um objeto para um determinado campo de conhecimento é a

angulação teórica e conceitual que a atribuímos, é pela perspectiva da interação verbal - por

meio da linguagem - que estudamos o cordel na comunicação. Como dispositivo

interacional, o cordel tem uma linguagem específica, uma forma própria de significar a

realidade e defender sua ideia de "verdade", a partir dos diálogos dos quais os poetas

compartilham. O processo dialógico que constitui a interação no cordel é apenas uma das

formas que nos permite compreendê-lo como objeto da comunicação. Há outras

possibilidades, como a compreensão do cordel como mídia, que requer outro referencial

teórico, além do que foi tratado neste trabalho.

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

Se os sentidos dependem das práticas sociais, então os diálogos culturais são

fundamentais para a compreensão das ideologias presentes na linguagem. Nos enunciados

que organizam a linguagem do cordel, isso não é diferente e as significações são

atravessadas pelas práticas cotidianas dos poetas, que configuram as experiências, as lutas

ideológicas e produzem os sentidos interpretáveis nos versos. Reconhecemos, ainda, que

esta disputa ideológica, situada na linguagem, e como processo interacional, se completa na

recepção, onde adquire novos sentidos e se abre para novas possibilidades de diálogos.

O estudo do cordel como linguagem traz à tona questões sobre resistência,

hegemonia e ativismo nos versos. Seja por sua configuração de dispositivo midiático

alternativo, seja pelos conteúdos que consegue abordar por seu formato e modos de

produção, na maioria das vezes concentrando todas as atividades - criação, editoração,

impressão e venda - em um mesmo sujeito. Estas questões não puderam ser abordadas aqui,

mas elas abrem diversas formas de compreender a poesia de cordel.

A interação entre poeta e público no cordel não é somente política, é também

econômica. O cordelista é um empreendedor. Faz folhetos para vender e está atento aos

interesses comerciais, observando o que os leitores estão mais interessados, o que segundo

donos de editoras faz com que as edições de folhetos de acontecimento estejam diminuindo,

porque, ao perder a efemeridade, perde-se a venda, e é o que faz com que esse tipo de

produção esteja migrando para os espaços da Internet, que não implicam o custo de

impressão. Assim, a produção do cordelista não é uma resistência "pura", sua produção não

é tão somente ativista de questões sociais ou militante pela democratização da

comunicação. Os poetas estão atentos ao mercado e ao consumo da poesia.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

_______________. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012.

BRAGA, José Luiz. Constituição do campo da Comunicação. Verso e Reverso, XXV (58).

jan-abr 2011, p. 62-77.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora

UFMG, 2003.

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

___________. A redescoberta da ideologia: o retorno do recalcado dos estudos midiáticos.

In.: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor. Mikhail Bakhtin: Linguagem,

Cultura e Mídia. São Carlos: Pedro&João Editores, 2010

VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]