dia i fazer · apresento-me com barba por fazer e não é permitido trabalhar assim. tenho de...

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CHEFIEI UM TURNO DE FÁBRICA, LIMPEI E EMBALEI VITRINES E BALCÕES REFRIGERADOS, FIZ ENTREVISTAS PARA Dia I : fazer hambúrgueres É com urna falsa partida que começa a expe- riência na maior rede defastfood do mundo. Apresento-me com barba por fazer e não é permitido trabalhar assim. Tenho de regres- sar a casa e usar a gilete para voltar ao Salda- nha uma hora depois. De manhã trabalho na cozinha, na linha dos grelhados, e as funções vão da colocação do pão na tostadeira à entrega do produto embalado ao colega da caixa. um mapa de controlo, com um responsável, para assegu- rar que as mãos de quem está na cozinha são ?

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Page 1: Dia I fazer · Apresento-me com barba por fazer e não é permitido trabalhar assim. Tenho de regres-sar a casa e usar a gilete para voltar ao Salda-nha uma hora depois. De manhã

CHEFIEI UM TURNO DE FÁBRICA, LIMPEI E EMBALEI

VITRINES E BALCÕES REFRIGERADOS, FIZ ENTREVISTAS PARA

Dia I : fazerhambúrgueres

É com urna falsa partida que começa a expe-riência na maior rede defastfood do mundo.

Apresento-me com barba por fazer e não é

permitido trabalhar assim. Tenho de regres-sar a casa e usar a gilete para voltar ao Salda-

nha uma hora depois.De manhã trabalho na cozinha, na linha

dos grelhados, e as funções vão da colocaçãodo pão na tostadeira à entrega do produtoembalado ao colega da caixa. Há um mapa de

controlo, com um responsável, para assegu-rar que as mãos de quem está na cozinha são ?

Page 2: Dia I fazer · Apresento-me com barba por fazer e não é permitido trabalhar assim. Tenho de regres-sar a casa e usar a gilete para voltar ao Salda-nha uma hora depois. De manhã

lavadas a cada 30 minutos. Tenho de assinar

o registo antes de ir ao lavatório porque o pa-

pel e a caneta podem ter micróbios.

Os primeiros minutos são de pânico. Os

pedidos caem no ecrã da linha onde estou e

tenho de fazer as associações certas (podemsair-me cinco grelhados diferentes): pão, in-

gredientes e molhos. Faço devagar para não

fazer mal. Não é hora de ponta e a minha

lentidão não atrapalha. Ao lado estão Mi-chael e Romina, que evitam que troque o

queijo do CBO normal com o do CBO smoky.

A partir do meio-dia começam a chegar

mais pessoas ao McDonakfs - a empresaficou em 22 o lugar no ranking da GPTW -e o ritmo aumenta. Estou a registar o alívio

por não ter de mexer na fritadeira industrial

que está atrás de mim quando me mandam

para o McCafé, mesmo à entrada do restau-

rante. Rapidamente descubro que tenho

muito menos jeito para fazer bohsjrappers,cafés e cappuccinos do que para montar ham-

búrgueres. Os corações, a clave de sol e as flo-

res que tinha de desenhar com a bisnaga re-

sultam em pura abstracção, impróprios paramontras sedutoras. E a espuma de leite (ser-

vida como o chantili) que coloco no topodo cappucdno fica disforme. Apesar do fra-

casso, as funcionárias que estão ao pé de

mim não perdem a paciência. Pelo menos

acabo por servir uns cafés sem me compro-meter. Mas sem dúvida que dava menos

prejuízo na cozinha.

c*li< k l> de lu I*lloA minha entrada na Huf, que ficou em 13. 0 lu-

gar no ranking das melhores empresas paratrabalhar em Portugal da GPTW, não podia

ter sido menos discreta. A newsktter da filial

portuguesa de componentes para o sector

automóvel anunciava, três dias antes, que eu

faria um estágio na empresa por estar de par-

tidapara a Huf Brasil, onde iria desempenharum cargo de "chefia intermédia". Na mesma

notícia era dada uma indicação vital, que mes-

mo assim não me pouparia a embaraços: o

novo colaborador não tem qualquer expe-riência no sector automóvel. O grande dia

chega. Pouco passa das 911 e já estou na reu-nião diária de produção. Não tenho aliados

na sala, todos pensam que vou efectivamen-

te para a empresa do grupo no Brasil e queestou ali, em Tondela, para fazer um estágiocomo chefe de turno. Oiço o que dizem os

sete participantes (entre eles, directores de

planeamento e logística e técnicos da quali-

dade), mas não me atrevo a falar, tenho medo

de dizer algo errado e ser descoberto. No fim

da reunião, as perguntas que temia: "De queárea tinha vindo? Porquê o sector automó-

vel?" E pior: "A planificação da produção nes-

sa área é muito diferente? Há picos e quebrasde venda que justifiquem mudanças signifi-cativas na produção?"

Já tinha uma história preparada: tinha tra-

balhado na Manuel Inácio Filhos, que produz

as Salsichas Izidoro. Quanto à produção, im-

proviso: no Verão, apesar da praia e da comi-

da mais leve, há menor procura, por isso di-

minuíamos a fabricação.

Terminada a reunião, vou para o terreno.

Sou a sombra do chefe de turno, Ricardo Cha-

ves (que não sabe que sou jornalista), para

perceber como se faz. Na fábrica corremos as

linhas de produção - de sistemas de fecha-

duras e de bloqueios de direcção de marcas

como a Peugeot, Citroen, Opel, Ford, BMW

e Volkswagen - para ver se tudo está bem.

O trabalho é sempre de pé, uma espécie

de circuito pelas unidades de produção com

um número de voltas infinito. Às ioh4o bre-

ve pausa para o que pensava ser um café. Mas

Ricardo come um bitoque e na mesma filei-

ra de mesas do refeitório há quem devore

uma feijoada de chocos. Entraram todos às

6h. "Vamos para a guerra", diz-me à saída.

No fim do dia denuncio-me, todos se riem

e fico a saber que já era conhecido como "o

homem das salsichas que vai para o Brasil".

Dia 3: limpai*v embalar

Nem o dia luminoso consegue alegrar o cin-

zento do parque industrial de São João de

Ponte, em Guimarães. Às Bh3o em ponto en-

tro na José Júlio Jordão, Lda. - a 21. 0 melhor

empresa para trabalhar em Portugal, segun-do o estudo da GPTW - para começar o dia

como infiltrado no fabricante de equipamen-tos de refrigeração e ventilação.

A minha tarefa é ajudar duas funcionárias

a limpar, embalar e pôr na boca de saída to-

dos os balcões, armários, vitrinas ebancadas

fabricados. Calço luvas e visto uma bata. As

colegas olham-me admiradas, mas recebem-

-me bem. Emília, mais velha, pouco diz, Isa-

bel (ainda nos 30) mete conversa: "É enge-nheiro ?" Digo que não e explico que para tra-

balhar na área da qualidade tem de se passar

por todos os postos de trabalho. "E é cá de

cima? Não tem sotaque..." Invento: "Resolvi

mudar de vida e vir trabalhar no Norte."

Bastam uns minutos para perceber queboa vontade não é sinónimo de competên-cia. Primeira lição: os carrinhos de mão, de fer-

ro, que servem para transportar os pesados

equipamentos refrigerados, têm rodas, por-

tanto, não faz sentido (mesmo quando es-

tão sem carga, que era o caso) levantá-los do

chão e arrastar com o seu peso, basta faze-

mos deslizar. Quase coro de vergonha quan-do Isabel, em menos de cinco segundos, me

mostra como se faz.

Passados uns minutos de silêncio planea-

va confirmar as regarias dadas pela Jordão

que a GPTW refere, mas não foi preciso. Emí-

lia queixa-se de dores de ouvidos e Isabel

aconselha: "Vai ao dr., ele está cá hoje. Car-

los, temos médico aqui. Não precisa de nada?

Ele vem cá todas as segundas-feiras."

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O trabalho é rotineiro: ir buscar o equipa-mento refrigerado, levá-lo ao posto de lim-

peza/embalagem, desmontar as peças "des-

tacáveis", limpar o pó, embrulhar tudo, leros códigos de barras para registar o produtocomo embalado, voltar a colocá-lo no carri-nho e transferi-lo para a zona dos equipa-mentos prontos a seguir para o cliente. Aofim de duas peças gigantes já me robotizei.

Dia I: consultorAcabo de sair do elevador no 15. 0 piso, pas-so as portas de entrada do escritório com a fei-

ta de à-vontade de um primeiro dia e sou logotestado: "Carlos, o que estás a fazer aqui?",

pergunta-me Catarina, uma amiga de infân-cia que trabalha na ROFF, a empresa que fi-

cou na4 a. posição no ranking do GPTW. Digo-

-lhe que deixei o jornalismo e procurei um lu-

gar na área do marketing e comunicação de

uma empresa. "Mas deixaste tudo? E vens

como estagiário ? Não te vi aqui nas entrevis-

tas [ de selecção ]", continua a antiga colega de

catequese. "É isso mesmo, estou aqui paracomeçar do zero." Minutos depois, os meus

cúmplices no segredo tiveram de lhe dizer averdade - o assunto estava a espalhar--se e ameaçava estragar todo o plano.

Preencho a papelada para a inscrição nes-ta consultora em tecnologias de informaçãoe dão-me o "kit ROFF": um trólei com o com-

putador portátil, o telemóvel e o cartão para

estacionar o cano no parque. Informam-me

que não há limite de chamadas (posso fazer

telefonemas particulares) e que os gastos fi-

cam ao critério do meu bom senso.

Por volta das ioh3O começa a reunião se-

manal. Em ambiente informal, é feito o pon-to da situação do marketing interno e da res-

ponsabilidade social. Há 59 acções abertas e

mais algumas que são lançadas naquelas qua-se duas horas de conversa guiadas pela folhade Excel retroprojectada. A área não me é es-

tranha e atribuem-me tarefas (todas para a

newsktter): três entrevistas e uma rubrica acombinar com o departamento de qualida-de. A hora de almoço chega e com ela uma

surpresa: desafiam-me a ir de bicicleta (daempresa) para o restaurante, uns 800 metrosem "circuito urbano", por Algés. Depois, vol-

to ao trabalho. Sento-me no assento por ondetodos os estagiários têm de passar (uma enor-me bola New Fit azul) e preparo a entrevistaem francês ao líder da ROFF em Marrocos.

Como Fayçal Chraibi não atende em ne-nhuma das três tentativas, faço as duas entre-vistas aos colaboradores e subo as escadas

para a sala dos consultores. Quando desço,com o trabalho feito, a disposição do ecrã do

computador está mudada, configurada da es-

querda para a direita em vez de cima para bai-

xo. João, colega do marketing, avisa-me queé a partida típica que se faz a quem se esque-ce de bloquear o portátil.

Já passa das íçih quando me denuncio. A

surpresa é geral, mas o convite para ir correr

junto ao rio, no dia seguinte, mantém-se. •

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