dezem, rogério - matizes do amarelo

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Matizes do ‘Amarelo’: Elementos formadores do imaginário sobre o japonês no Brasil Rogério Dezem 1 Abstract: Based on the analysis of texts and illustrations published in the maganizes O Malho and Revista da Semana between 1903 and 1908, this article aims to present how the discussions related to the oriental immigrants in Brazil were constructed/deconstructed. We intend to focus on the plurality of these discourses, comparing them, besides identifying the stereotypes linked to the objective of stigmatizing, first, the Chinese (chim), and then the Japanese people. Palavras-chave: Imprensa no Brasil, Imigração Japonesa, Perigo Amarelo. For Old Japan was like an oyster:- to open it was to kill it” (sir Basil Hall Chamberlain) Introdução Este artigo tem como objetivo demonstrar que além dos discursos sobre o imigrante de origem asiática no Brasil, produzidos nos gabinetes e tribunas desde meados do século XIX, existe um outro campo discursivo a ser explorado: os discursos 1 Professor, Mestre em História Social pela FFLCH/USP (2003) e pesquisador do PROIN (Projeto Integrado Arquivo do Estado de São Paulo/Universidade de São Paulo desde 1997). Autor de Shindô- Renmei:terrorismo e repressão. Inventário Deops. São Paulo: AESP/ Imprensa Oficial, 2000 e Matizes do “amarelo”: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil. Série Histórias da Intolerância. São Paulo: Humanitas, 2005.

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  • Matizes do Amarelo: Elementos formadores do imaginrio sobre

    o japons no Brasil

    Rogrio Dezem1

    Abstract: Based on the analysis of texts and illustrations published in the maganizes O

    Malho and Revista da Semana between 1903 and 1908, this article aims to present how

    the discussions related to the oriental immigrants in Brazil were

    constructed/deconstructed. We intend to focus on the plurality of these discourses,

    comparing them, besides identifying the stereotypes linked to the objective of stigmatizing,

    first, the Chinese (chim), and then the Japanese people.

    Palavras-chave: Imprensa no Brasil, Imigrao Japonesa, Perigo Amarelo.

    For Old Japan was like an oyster:- to open it

    was to kill it (sir Basil Hall Chamberlain)

    Introduo

    Este artigo tem como objetivo demonstrar que alm dos discursos sobre o

    imigrante de origem asitica no Brasil, produzidos nos gabinetes e tribunas desde meados

    do sculo XIX, existe um outro campo discursivo a ser explorado: os discursos

    1 Professor, Mestre em Histria Social pela FFLCH/USP (2003) e pesquisador do PROIN (Projeto Integrado Arquivo do Estado de So Paulo/Universidade de So Paulo desde 1997). Autor de Shind-Renmei:terrorismo e represso. Inventrio Deops. So Paulo: AESP/ Imprensa Oficial, 2000 e Matizes do amarelo: a gnese dos discursos sobre os orientais no Brasil. Srie Histrias da Intolerncia. So Paulo: Humanitas, 2005.

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    formalizados e divulgados a partir da nascente imprensa ilustrada, principalmente, da

    cidade do Rio de Janeiro, autntica capital cultural da Belle poque tupiniquim.

    Nos ltimos anos do sculo XIX, o mundo passava por rpidas transformaes e,

    neste contexto o pequeno arquiplago japons deveria se adaptar a essa nova realidade.

    Ser japons aos olhos do Ocidente naquele momento era representar uma nao

    militarista em ascenso, cujos elementos exticos, como gueixas e samurais ainda

    alimentavam o curioso pensamento ocidental. No entanto, a imagem dos imigrantes

    japoneses era constituda no s de elementos positivos, mas tambm negativos.

    Enigmticos, da a expresso sorriso amarelo, fisicamente inferiores e de cor mbar,

    traioeiros, enfim podemos notar que haviam esteretipos relacionados a este imigrante

    que desde 1868 se aventuravam alm-mar, inicialmente para lavoura de cana-de-acar

    no Hava. Eram os primeiros dekasseguis2 em terras americanas.

    Naquele momento o governo do Japo estava estruturando sua poltica

    emigratria, a partir de Companhias de Emigrao com seus (depois) famosos marus3.

    Contingncia histrica, o fato foi que esta poltica deveria ser a soluo para os problemas

    demogrficos que aumentavam cada vez mais desde a dcada de 1870 no pas do Sol-

    Nascente. Neste universo de transformaes, a situao brasileira era diametralmente

    oposta japonesa. O fim do trfico de escravos (1850), associado posteriormente ao

    movimento abolicionista e imigrantista e ao boom da cafeicultura no estado de So Paulo,

    deram origem a debates em assemblias, congressos e at no Senado sobre quem

    deveria substituir a quase finada escravido negra. A partir de argumentos histricos,

    preconceituosos e racistas as oligarquias agrrias do Imprio optaram por descartar a

    mo-de-obra negra (sinnimo de atraso) e o trabalhador nacional (sinnimo de preguia),

    resolvendo-se por trazer, como elemento transitrio (Dezem, 2005, pp. 61-73), o imigrante

    chins ou simplesmente chim, considerado pelos fazendeiros um elemento mais barato e

    dcil, se comparado ao imigrante europeu.

    2 Segundo a sociloga Elisa Sasaki, a palavra de origem japonesa dekassegui significa trabalhar fora de casa. No Japo do final do sculo XIX, o termo referia-se aos trabalhadores que saam temporariamente de suas regies de origem e iam em direo a outras mais desenvolvidas, sobretudo aqueles provenientes do norte e nordeste do Japo, durante o rigoroso inverno que interrompia suas produes agrcolas no campo. 3 Maru um sufixo de nomes masculinos que tambm pode significar crculo, redondo. Denominao que recebiam os navios de emigrantes japoneses como por exemplo: Kasato Maru, Brasil Maru, Argentina Maru entre outros. Entre 1908 e 1940 aportaram no Brasil 309 marus.

  • 3

    Imagem 1. O chim como transio entre o negro e o europeu (branco), cartun de ngelo

    Agostini. (Revista Illustrada 1878)

    Era a Questo Chinesa (1879) que passava a ser debatida entre as elites agrrias

    e representantes do governo. Entre os defensores da vinda destes imigrantes se

    encontrava Moreira de Barros, Ministro dos Negcios Estrangeiros que afirmou: Pode-se

    chamar os chins de raa inferior, mas onde eles se estabelecerem ho de multiplicar-se,

    crescer, espalhar-se por toda parte, e ainda que a raa superior os domine, os escravize,

    os governe, qualquer que seja o futuro da raa branca no mundo, onde eles obtiverem

    uma ptria, ho de fatalmente ocupar o pas. Para isso basta-lhes viver, o que eles

    conseguem nas piores condies (Idem, p. 97).

    A lavoura de caf se expandia rapidamente pelo antigo Oeste Paulista (Jundia,

    Campinas, Ribeiro Preto entre outras cidades da regio), a necessidade de mo-de-obra

    se tornou o principal tema de debates entre os cafeicultores nas dcadas de 1870 e 1880.

    O imigrante branco, europeu e catlico era o mais desejado, pois deveria vir trabalhar e

    colonizar, alm disso, ele deveria contribuir para branquear a populao mestia

    brasileira. Inicialmente, existiam dificuldades em conseguir trazer este imigrante ideal,

    pois havia o desejo de italianos, espanhis, suos, alemes em emigrar para os Estados

    Unidos e a Argentina.

    A existncia da escravido no Brasil dificultava ainda mais a atrao de imigrantes

    europeus. Pensou-se ento, em trazer mo-de-obra em carter de urgncia ou

    transio, at que o pas estivesse preparado para receber os superiores europeus.

    Tentou-se a imigrao chinesa, que na realidade estava associada a uma rede de trfico

    amarelo (Ibidem, p. 163), na qual boa parte dos trabalhadores, conhecidos como coolies,

    era aliciada de forma violenta nos portos de Hong Kong, Amoy, Canto e Macau. Nestes

    locais grupos de chineses eram amontoados em barraces, semins, com uma placa

    pendurada ao pescoo na qual estava pintada a letra do ponto a que se destinavam:

    poderia ser C (Califrnia), P (Peru), H (Havana) ou S (Ilhas Sandwich). Eram recrutados

  • 4

    individualmente e sua procedncia, na maioria dos casos, consistia em condenados,

    prisioneiros de guerra vendidos, jogadores endividados, aldees e pescadores tomados

    fora. Este novo modelo de trfico teve como primeiro grande destino a colnia espanhola

    de Cuba na dcada de 1840. O governo chins proibia e tentava (ineficazmente) fiscalizar

    este tipo de trfico humano, condenado tambm pela Inglaterra. Imigrao defendida e

    combatida por muitos, a tentativa de se inserir chins para trabalhar na lavoura do caf

    acabou por no vingar. O estigma chins de pas derrotado e conquistado pelas potncias

    europias, alm de o chim ser visto como indolente, fraco, sujo, racialmente inferior,

    fizeram com que este projeto fracassasse. Pouco mais de 3.000 chineses aportaram no

    Brasil ao longo do sculo XIX.

    Por outro lado, enquanto a China vivia uma das maiores crises de sua histria o

    seu vizinho, Japo rumava para uma posio de destaque na sia. Para tal, baseou-se

    em uma poltica de carter militarista-expansionista (Doutrina Okuma), em ideais

    nacionalistas4, associados a modelos ocidentais de legislao (influncia francesa),

    organizao militar (influncias alem, francesa e inglesa), educao (influncia norte-

    americana), culminando com o culto ao Imperador. Como uma balana que representasse

    o jogo de poderes no Extremo-Oriente, um gigante descia, a China, enquanto que uma

    diminuta nao ascendia, o Japo.

    Reflexo destas mudanas pode ser notado em vrias obras publicadas no perodo,

    entre elas, citamos uma observao feita na crnica Chineses e Japoneses, do escritor

    portugus Ea de Queirs, publicada em 1894. Nela o autor demonstra admirao pelo

    pequeno arquiplago do sol-nascente que deixava de ser o Japo pitoresco para se

    transformar rapidamente no Japo formidvel (Queirs, 1997, p. 12).

    O ponto de partida deste rpido processo foi a Restaurao Meiji (1867-68),

    importante momento da histria nipnica para que se possa compreender o nascimento

    do Japo moderno. Modernizar-se sem perder a essncia era o desafio japons, aps o

    trmino de mais de duzentos anos de isolacionismo que marcaram a Era Tokugawa.

    4 As bases do nacionalismo japons se aliceravam a partir da associao de elementos culturais, como o Bushido, literalmente caminho do guerreiro; histricos, como o Kojiki e o Nihongi, obras sobre a histria de carter mitolgico do Japo antigo; poltico-filosficos associados ao neoconfucionismo e religiosos, como o xintosmo, elevado a religio estatal a partir da Restaurao Meiji (1868).

  • 5

    Um dos maiores temores do governo japons era sucumbir ao poderio ocidental

    como havia ocorrido com a China. No entanto, os deuses estavam ao lado dos nipnicos,

    como podemos notar nas palavras do socilogo e historiador japons N. Kitaro: Os cus

    preconizavam (...) uma moralidade bem distinta dos tempos Tokugawa; j no bastava o

    Japo se confinar a seu isolamento geogrfico, caberia a ele a misso de edificar uma

    sia Oriental...(Ortiz, 2000, p.28).

    Misso que associada a uma mistura de admirao e temor frente ao Ocidente

    (Estados Unidos, Inglaterra, Frana e Alemanha), mas de extrema confiana nos deuses

    e no Imperador, se transformou no motor das diretrizes tomadas pelo novo governo

    japons. Vrias dificuldades foram enfrentadas: revoltas de ex-samurais e da populao,

    conspiraes nacionalistas, crises agrrias, exploso da taxa de natalidade, mas em um

    curto espao de tempo o pas conseguiu solucionar ou contornar seus principais

    problemas. A soluo encontrada foi o desenvolvimento de uma eficiente poltica

    educacional, baseada no edito Imperial Educacional (1890) e na criao de escolas,

    universidades e tambm no fortalecimento da crena no Esprito de Imbatividade (Yamato

    Damashii) e no Niponismo (Nihon Shugi) como elementos de coeso nacional. A crena

    exacerbada neste princpios, foram em grande parte, responsveis por um projeto de

    expanso militar que levou ao desastre japons na Segunda Guerra Mundial.

    No quadro internacional os reflexos da ascenso nipnica podiam ser sentidos

    mundialmente. A anexao do arquiplago de Okinawa (1872), a vitria sobre a China

    (1895), e o triunfo sobre o Gigante Russo (1905) deram ao Japo status de potncia junto

    ao Ocidente, que surpreso com a fora do pequeno pas, tambm comeou a ficar

    apreensivo. Em 1881 o peridico Japan Herald publicava em suas pginas que os

    japoneses so uma raa alegre e, contentando-se com pouco, no parece que

    conseguiro muito (Dezem, 2005, p. 141).

    Grande engano, pois em pouco mais de uma dcada os japoneses eram vistos

    sob o prisma de Perigo Amarelo (gelb Gefahr), denominao usada pela primeira vez na

    Europa pelo Kaiser Guilherme II da Alemanha ao advertir os russos sobre a expanso

    nipnica pela sia.

    O fim da escravido (maio de 1888) e a queda da Monarquia brasileira dando

    lugar Repblica (novembro de 1889), passaram a dar um tom mais eficiente poltica

  • 6

    imigratria brasileira voltada ao amarelo. Desse modo, com os projetos de imigrao

    chinesa descartada, comeou-se a se pensar, no incio da dcada de 1890, na vinda de

    imigrantes japoneses.

    1. Variaes sobre o mesmo tema: o imigrante japons

    Aos olhos de boa parte da diminuta elite ilustrada nacional, pretendia-se inaugurar no

    Brasil uma nova fase poltica fundada nos ideais positivistas de ordem e progresso

    social. Dentre os fundamentos promotores da modernidade estava a vinda de um nmero

    maior de imigrantes europeus para o pas. Antes mesmo de ser aprovada a Constituio

    republicana, o governo provisrio promulgava um decreto-lei que revelava o ideal de

    branqueamento em ao na busca de imigrantes (Skidmore, 1976, p. 155). Assim, ainda

    no governo provisrio, o presidente Marechal Deodoro da Fonseca promulgou o Decreto

    n. 528, de 28 de junho de 1890, que regulamentava o servio de introduo e localizao

    de imigrantes no Brasil. O artigo primeiro deste decreto estipulava que era:

    (...) inteiramente livre a entrada, nos portos da Repblica, dos indivduos vlidos e aptos

    para o trabalho, que no se acharem sujeitos ao criminal do seu pas, excetuados os

    indgenas da sia, ou da frica que smente mediante a autorizao do Congresso

    Nacional podero ser admitidos de acrdo com as condies que forem estipuladas

    (Demoro, 1960, p. 91)

    A partir desse momento, seja, da proclamao da Repblica brasileira, iniciou-se a

    entrada macia de imigrantes europeus, principalmente para o estado de So Paulo. A

    maioria desses imigrantes vinha como colonos para trabalhar nas fazendas de caf na

    regio do Vale o Paraba e na regio do antigo oeste paulista pontilhado por importantes

    ncleos urbanos como Limeira, Campinas e Ribeiro Preto. No entanto, em 5 de outubro

    de 1892 foi promulgada a Lei n. 97, que em seu artigo 1 versava:

    permitida a livre entrada, no territrio da Repblica, a imigrantes de nacionalidade

    chinesa e japonsa, contanto que, no sendo indigentes, mendigos, piratas, nem

  • 7

    sujeitos ao criminal em seus pases, sejam vlidos e aptos para trabalhos de qualquer

    indstria (Idem. p. 97)

    A inteno era de promover a execuo do Tratado de 5 de novembro de 1890

    com a China e celebrar um Tratado de Comrcio, Paz e Amizade com o Japo.

    Concomitantemente, pretendia-se criar legaes e consulados para a manuteno e a

    consolidao de uma possvel imigrao, inteno reafirmada pela tentativa de trazer,

    novamente, trabalhadores chineses para a lavoura de caf. Os debates continuavam

    acirrados. No entanto, o chins j tinha o seu veredicto confirmado, conforme as palavras

    do Senador Ubaldino Amaral em 1892: A raa chinesa invasora (...) o que certo

    que, uma vez aberto o caminho e iniciada a torrente, no h mais quem possa cont-la.5

    Considerando-se a dinmica dos mitos, podemos afirmar que ocorreu uma

    metamorfose: o japons tornou-se o elemento novo na equao imigratria. Seria ele

    uma segunda opo? Na realidade, o japons emergia ao olhar dos imigrantistas - e

    graas a fatores externos, como a ascenso na sia e o descrdito com relao ao chins

    como o principal denominador dessa equao amarela de onde o chins foi subtrado

    para dar lugar a opo japonesa: trabalhador bom, barato e dcil.

    Para garantir a viabilidade desse projeto, Jos da Costa Azevedo, Baro de

    Ladrio, foi enviado em 1893 para uma misso especial ao Extremo Oriente (China e

    Japo), com o objetivo de consolidar as relaes diplomticas e de contatar cidados

    interessados em imigrar para o Brasil. Apesar do malogro da misso, que no chegou ao

    seu final. Ladrio escreveu ao presidente Floriano Peixoto, manifestando-se contrrio

    imigrao chinesa, segundo ele um mal moral para o Brasil, no entanto, colocava-se

    como favorvel imigrao japonesa, pois no Japo havia melhores e mais econmicos

    trabalhadores (Abranches, 1918 vol. 1, p. 484).

    Influenciado ou no por esse parecer to enftico, o governo brasileiro

    interrompeu as tentativas de aproximao com o governo chins. No incio do ano de

    1895, os esforos voltaram-se para o estabelecimento de relaes diplomticas com o

    Japo. O assunto imigrao asitica tornou-se novamente tema de pauta no Senado e

    Cmara dos Deputados, onde muitos lamentavam o insucesso da misso no Extremo

    5 Anais do Senado, sesses de 6/1892, p. 161-5.

  • 8

    Oriente. Nesse momento Carlos de Carvalho, Ministro de Relaes Exteriores, procurava

    firmar com o Japo um tratado de comrcio. Segundo o ministro brasileiro, os japoneses

    iriam aviventar as foras agrcolas e industriais do nosso pas6

    Tais esforos culminaram com o Tratado de Amizade, Comrcio e Navegao,

    assinado em Paris por ambos os pases no dia 5 de novembro de 1895.

    Na realidade, o japons ganhou espao nos debates, apresentando-se como uma

    possvel corrente imigrantista. A ordem poltica comeava a mudar tanto no Brasil como

    no Japo. As relaes diplomticas, e at mesmo comerciais, entre os dois pases ainda

    se encontravam na mesma situao desde a (re)abertura do Japo para o Ocidente em

    1854,ou seja, eram praticamente nulas. Conhecia-se muito pouco sobre o Japo e o seu

    povo e, praticamente, no se tinha nenhuma informao mais slida sobre o perfil

    daquele que seria candidato imigrao.

    Aps calorosos debates na Cmara dos Deputados, no qual a imigrao japonesa

    passou a ser avaliada de maneira mais crtica e menos apaixonada foi aprovado o

    projeto relativo ao Tratado de Amizade em 1896. No Senado, Quintino Bocaiva, senador

    fluminense e que anos antes discursava em prol da imigrao chinesa para o Brasil,

    defendeu o tratado por entender que a corrente imigratria acompanharia o

    desenvolvimento das relaes comerciais. A seu ver, uma vez estabelecidos ncleos de

    imigrao, o Brasil lucraria, pois haveria desenvolvimento da sua marinha mercante, que

    faria presena em regies onde seu pavilho era quase desconhecido.7 interessante

    notar que argumentos como este no se manifestaram de forma to clara durante os

    debates anteriores relativos aos chineses. A proposta de se criar laos comerciais

    atrelados a uma poltica imigratria a ser colocada em prtica pelo governo brasileiro

    evidencia uma diferena substancial no modo de ver e de considerar as relaes com o

    pas do sol nascente.

    Concluda a redao final, o projeto que aprovava o Tratado Brasil-Japo, firmado

    em Paris no ano anterior, foi encaminhado sano presidencial em 27 de novembro de

    1896 (Bueno, 1995, p. 320).

    Importante ressaltar que no Brasil no foi apenas o governo federal que colocou

    obstculos legislativos introduo de asiticos. No ano de 1895, o governo do estado de 6 Anais do Senado Federal, sesso de 28 de outubro de 1895. 7 Anais do Senado Federal, sesso de 21 de setembro de 1896.

  • 9

    So Paulo promulgou a Lei Estadual n. 356, permitindo somente a entrada de imigrantes

    procedentes dos continentes europeu, americano e africano (canarinos), todos de raa

    branca.8 O estado de Minas Gerais, pelo contrrio a partir do Decreto Estadual n. 612 de

    1893, desenvolveu uma infra-estrutura necessria implementao do movimento

    imigratrio para seu estado, admitindo a entrada de asiticos. Naquele mesmo ano, o

    estado do Rio de Janeiro estudava a possibilidade de introduo de quinhentos asiticos.

    Com base nos fatos e pressupostos at aqui apresentados, pode-se afirmar que

    os poucos trabalhadores chineses (chins) que aportaram no Brasil no sculo XIX

    transformaram-se em referenciais nos discursos relativos a imigrao amarela, at a

    dcada de 1890. Referencial esse, de carter negativo, pois quase sempre ocorreram

    debates e crticas desfavorveis ao chim. Alm do chins ser avaliado como

    representante de uma raa inferior, a China era considerada pelas potncias europias,

    e tambm por boa parte da intelligentsia brasileira da poca, como um Imprio decadente.

    Cogitou-se transpor o modelo de raa inferior/nao inferior ao imigrante

    japons, estigmatizado inicialmente como representante da raa amarela. Quase de

    imediato essa marca comeou a ser questionada e a se modificar com a vitria japonesa

    sobre a China em 1895. Alterou-se quase que radicalmente com a consolidao do Japo

    como principal potncia asitica, aps sua vitria inconteste sobre os russos em 1905.

    Esse fato interferiu no contedo dos discursos relativos ao japons, tanto naqueles de

    teor filonipnico como antinipnico no Brasil e no exterior. A partir do incio do sculo XX,

    tornou-se evidente a diferena entre os amarelos: ao chins, atribua-se o papel de

    servir ao homem branco e, tambm, aos que se autodenominavam os brancos da sia,

    os japoneses (Dezem, 2005, p. 119).

    2. Imagens e discursos: matizes do amarelo

    Instigado pelos debates sobre a Questo Chinesa (1879), procuro neste captulo

    apresentar, ab initio, como o principal semanrio ilustrado entre as dcadas de 1870 e

    1880, a Revista Illustrada representava os trabalhadores chineses ou chins, primeiros

    imigrantes amarelos trazidos para o Brasil (em reduzido nmero) no incio do sculo XIX

    8 Colleco de Leis e Decretos do Estado de So Paulo de 1895-1896.

  • 10

    (Dezem, 2005). O vis irnico dos cartuns do jornalista ngelo Agostini (1843-1910)

    contribuu para consolidar esteretipos relativos a esse elemento, constatao que

    denomino equao amarela, na qual o outro denominador seria o japons.

    Os esteretipos veiculados com relao ao chim materializaram uma imagem

    negativa desse elemento, que alm de ter sua figura associada s suas tranas, foi

    sempre lembrado como preguioso, viciado em pio, ladro de galinhas, pouco

    higinico, civilizadamente atrasado, supersticioso, racialmente inferior etc. Em um

    primeiro momento a perpetuao desses estigmas no imaginrio coletivo deve-se ao fato

    de que, segundo o historiador da arte, E. Gombrich, todos ns temos a faculdade de

    fabricar mitos, e inserido nesse universo de mitologizao do mundo que o

    cartunista/chargista assume um importante e, talvez, nico papel ao encaixar toda uma

    cadeia de idias ou uma idia mais complexa dentro de uma imagem inventiva

    (Gombrich, 1999, pp. 130-139) de modo que o leitor possa captar tudo num simples olhar.

    No caso do chim, sua imagem tambm permaneceu associada de um elemento

    transitrio. O fato de no ter se efetivado a imigrao de trabalhadores chineses em

    nmero significativo para o Brasil, deu ensejo para que, a partir de meados da dcada de

    1890, a palavra chim praticamente desaparecesse dos discursos imigratrios, sendo

    substituda pela palavra japons. No entanto, veremos que, assim mesmo, elementos

    pertencentes ao imaginrio relacionado ao trabalhador chins ainda permaneceram.

    Associado ou fazendo contraponto ao outro elemento amarelo (japons), o fato foi que

    os cartunistas que retrataram o chim como ngelo Agostini - ao se utilizar de maneira

    to perfeita daquilo que E. Gombrich chama de recursos do arsenal do cartunista, ou

    seja, a capacidade/necessidade de condensar em um cartum o tpico e o permanente, a

    aluso de passagem e a caracterizao duradoura (Idem. p. 137), acabaram dando

    sobrevida imagem desse elemento ainda nos primrdios do sculo XX.

    As imagens, em nosso caso os cartuns e as charges, so de extrema importncia,

    pois elas nos permitem no somente estudar o uso de smbolos num contexto

    circunscrito, como tambm descobrir que papel podem representar nos escaninhos de

    nossa mente (Ibidem, p. 127). a partir dessa proposio que coloco lado a lado palavra

    e imagem, fato que pode ser constatado no discurso escrito relativo ao japons e que se

    mostrou, desde o final da dcada de 1890, dissociado da figura do chim. Por outro lado,

  • 11

    em alguns momentos a imagem do chim vinha associada figura do japons. Para

    melhor compreenso de que modo comeava a se mitologizar a imagem do japons,

    utilizo neste artigo de um pequeno conjunto de imagens, artigos e at uma pesquisa de

    opinio, produzidas pelas revistas ilustradas O Malho e Revista da Semana, peridicos

    em circulao a partir de 1902.

    Ao pesquisar as primeiras edies dos peridicos encontrei na edio de maro de

    1903, a representao de uma gueixa, primeira imagem publicada sobre o Japo na

    revista O Malho.9 Qual o efeito dessas charges no imaginrio coletivo nacional? Podemos

    afirmar que a chegada dos japoneses no Brasil se deu por meio destas publicaes?

    Com base nesses questionamentos gostaria de relacionar o discurso oral e escrito

    imagem, enfocando a figura do Japo e dos japoneses aos olhos da pulverizada opinio

    pblica nacional (Saliba, 2002, p. 80), portadora de uma imagem estereotipada do chins,

    uma das matizes do amarelo. Para responder, em parte, e essas instigantes questes,

    fao uso de uma curiosa pesquisa de opinio realizada pela revista O Malho, junto aos

    seus leitores entre os meses de maro e abril de 1904, logo aps o incio da Guerra

    Russo-Japonesa (1904-1905).

    Percebe-se, ento, que entre 1903 e 1908 ocorreu a desconstruo/construo da

    imagem associada ao Japo e aos japoneses. O principal responsvel por isso foi, no

    apenas no Brasil, o conflito russo-japons, interpretado aqui como um elemento de ajuste

    nos discursos relacionados idia de perigo amarelo. Com a vitria japonesa, as

    dvidas que pairavam sobre o real potencial do Japo confirmaram-se e o que para

    alguns era extico, tornou-se perigoso. A nascente repblica brasileira insere-se entre os

    pases que vivenciaram esta mudana conceitual. O imaginrio nacional relacionado ao

    japons, ainda na transio do sculo XIX para o XX, respirava os ares do japonismo,

    enquanto pases como o Peru e, principalmente, os Estados Unidos viviam um momento

    de redefinio dos discursos relativos ao imigrante japons que ali se radicava. Esse fato

    de suma importncia para compreendermos a diferena de sintonia entre o Brasil e os

    outros dois pases imigrantistas. A operao de desconstruo do mito de pas das

    gueixas e da esttica naif associada ao japonismo comeou a entrar em evidncia a

    partir da publicao da obra No Japo, do diplomata Oliveira Lima (1903). Ao mesmo

    9 O Malho, Rio de Janeiro, n. 26, ano II, 14 de maro de 1903.

  • 12

    tempo, comeava-se a construir o mito do pas dos samurais ou de um Japo imbatvel,

    de um povo bravo e herico. Baseadas em metforas ocidentais, nenhuma dessas

    imagens ir se diluir totalmente: a da gueixa, associada ao extico e frgil, personificando

    os mistrios da mulher japonesa, a do samurai, associada ao guerreiro e ao militar,

    modelo de fora e disciplina. Esse processo de transformao das formas de representar

    o japons no imaginrio nacional pode ser constatado nos discursos veiculados

    posteriormente, a partir da chegada dos imigrantes japoneses ao Brasil (1908).

    3. O Escrutnio Russo-Japonez: o simphatico nippo e o colosso russo.

    No incio do ms de maro de 1904, logo aps o comeo das hostilidades entre a

    Rssia e o Japo no Extremo Oriente, a revista ilustrada O Malho convidou seus leitores a

    participar de uma votao livre sobre quem venceria a guerra entre russos e japoneses. O

    chamado Escrutnio Russo-Japonez teve espao em seis edies da revista,10 iniciou-se

    na primeira semana de maro de 1904 e terminou com a publicao do resultado final da

    votao na primeira semana de abril. O escrutnio baseava-se em questionrio simples

    composto de trs perguntas:

    1) Interessa-se pelo conflito Russo-Japonez?

    2) Por qual dos dous pazes manifesta os seus votos?

    3) Por que?

    Esta interessante iniciativa surpreendeu at mesmo aos mentores da pesquisa. Na

    primeira semana o volume de cartas foi to grande que, mal poderamos suppor que a

    nossa idia tivesse o alcance que teve, e que milhares de respostas nos vissem s

    mos.11 Notamos pela surpresa dos redatores que havia um certo ar despretensioso na

    iniciativa, pois o que poderia ser apenas mais um entretenimento da revista acabou se

    tornando um espelho da mentalidade de boa parte dos leitores da regio Sudeste e

    Nordeste do pas, e at mesmo de alguns estrangeiros aqui radicados. Ao final do 10 O Malho, Rio de Janeiro, ns 77,78,79,80,81 e 82, ano III. 5 de maro a 9 de abril de 1904. 11 O Malho, Rio de Janeiro, n. 78, ano III. 12 de maro de 1904. p. 17.

  • 13

    escrutnio, a revista havia recebido um total de quase seis mil cartas, sendo que apenas

    uma pequena parcela do total enviado redao do O Malho foram publicadas. A maioria

    das cartas vinha assinada por pseudnimos.

    No dia 10 de maro, aps a primeira apurao de votos, o resultado parcial foi o

    seguinte:

    Pelo Japo ............... 549 votos.

    Pela Russia .............. 231 votos 12

    Constata-se que essa margem favorvel de votos ao Japo aumentou de forma

    significativa, mesmo aps o ataque de surpresa efetuado pelos japoneses base naval

    russa de Port Arthur um ms antes da pesquisa. A que se deveu essa simpatia pelo

    Japo? Seria ela apenas resultado da guerra em si, na qual o gigante russo era

    malvisto, pois representava o atraso de um regime monrquico, autocrtico aos olhos

    da jovem Repblica brasileira? Aliado a esse fato estaria o chamado perigo eslavo,

    identificado com os planos russos de expansionismo na sia? Ou essa simpatia j vinha

    sendo cultivada h um certo tempo, no s por aqueles que admiravam as coisas do

    Japo como tambm por aqueles que viam nesse pequeno pas que se desenvolvia a

    cada dia, afeito ao progresso e em sintonia com a civilizao ocidental um modelo?

    Admirao ou desconhecimento por parte dos leitores? Percebe-se que admirao e

    desconhecimento acerca do outro conviveram lado a lado, produzindo algumas

    distores.

    Alguns como o leitor Odagab Arievilonoch, evocavam a ptria e alertavam para o

    perigo de uma expanso japonesa no mundo. Por ser brasileiro e patriota, ele desejava a

    vitria russa, caso isso no ocorresse (...) a Victoria dos filhos do Nippon poria em pratica

    o fallado Perigo Amarelo, no s para o Brasil como para o mundo em geral.13

    Em outras cartas favorveis vitria russa, os japoneses eram freqentemente

    acusados de haverem provocado covardemente a guerra, desleais, prfidos,

    traidores, salteadores do Oriente, raa orgulhosa e semi-selvagem. Para esse menor

    nmero de leitores que eram favorveis Rssia, a raa amarela deveria ser destruda,

    isto , derrotada para que o perigo amarello fosse destrudo. 12 Idem. 13 O Malho, Rio de Janeiro, n. 81, ano III. 2 de abril de 1904, p. 15.

  • 14

    Para o leitor Annbal Falco, de opinio totalmente contrria aos japoneses, a

    macia votao favorvel aos amarelos ocorria devido falta de conhecimentos

    histricos e geogrficos por parte dos leitores, fato que desmerecia a prpria raison

    dtre do escrutnio, que, a seu ver, no tinha lgica.

    Por mais contundentes que paream as opinies com relao ao Japo e seu

    povo at o momento explicitadas, estas ocorreram em menor nmero.

    Para se compreender os motivos que levaram simpatia pelo Japo e pelos

    japoneses, atenho-me variedade de adjetivos adotados pelos leitores para explicar os

    motivos pelos quais votaram a favor do Japo. O pequeno arquiplago nipnico era visto

    como a nobre nao do sol levante, intrpido e destemido, possuidor de uma

    grandeza militar que caminha a passos to largos para o progresso. Por seu turno, o

    povo japons era, segundo a opinio dos leitores, um fiel retrato de sua nao. Naquele

    momento, se o governo japons tivesse em mos essa pesquisa ficaria satisfeito pelo

    modo como era visto o herico povo japonez, o mais progressista do mundo. Idealizados

    sempre com sympathia, os japoneses eram freqentemente citados como civilisados,

    patriotas, valentes, briosos, pacientes, laboriosos, viris, possuidores de refinado

    gosto esttico e admirados por desprezar a morte.14

    Outros leitores, como o santista Jos Barroso, viam o Japo como o pas mais

    civilisado do mundo, depois do nosso querido Brasil, e faziam votos para que a vitria

    japonesa desse uma lio velha Europa decrpita!. Conclui sua carta externando seu

    desejo pela (...) victoria do Japo, pois to necessria como o alimento ao corpo. Deus

    justo, proteger esse povo here.15

    Em 9 de abril de 1904, na edio nmero 82 de O Malho, notificou-se aos leitores

    o encerramento das votaes. Aps um ms, os redatores alegaram como motivo para

    pr trmino ao escrutnio o excessivo nmero de respostas. O resultado final foi marcado

    pela triunfal vitria japonesa, como ocorreria na guerra um ano e meio depois:

    Pelo Japo ............... 4.169 votos

    Pela Russia ...............1.132 votos 16

    14 O Malho, Rio de Janeiro, ns 77,78, 79, 80, 81 e 82, ano III. 5 de maro a 9 de abril de 1904. 15 O Malho, Rio de Janeiro, n. 78, ano III. 12 de maro de 1904, p. 18. 16 O Malho, Rio de Janeiro, n. 82, ano III. 9 de abril de 1904, p. 21.

  • 15

    Baseando-nos simplesmente nesses nmeros, pode-se afirmar que o mito da

    superioridade da raa branca havia enfraquecido no Brasil? Estaramos na vanguarda de

    um novo padro racial, no qual o amarelo encontrava um lugar ao sol? Longe disso. A

    meu ver, esse resultado final expressa que a notria simpatia e admirao pelo distante

    Japo e pelo povo japons era fruto de uma idealizao por boa parte dos leitores

    participantes, que ao se utilizarem de esteretipos para definir seu voto demonstravam

    seu (des)conhecimento pelo novo Japo que nascia.

    Pelo grande volume de cartas recebidas como tambm pelo contedo das

    opinies externadas pelos leitores sobre os resultados da guerra, vislumbra-se um retrato

    do universo nacional que se transformava. Evidenciado pela pouca variabilidade do nvel

    de informao sobre os dois pases que haviam acabado de entrar em guerra. E para

    definir os motivos de seus votos, os leitores geralmente se utilizavam de esteretipos.

    Leitores que, na maioria das vezes, admiravam o Japo e os japoneses por um elemento

    que o Brasil e os brasileiros ainda no haviam conseguido consagrar: a nao. O Japo

    era transformado em alvo de simpatia (mesmo que para certos leitores inexplicvel),

    enquanto, os russos (mesmo pertencendo a raa branca), governados pelo Czar Nicolau

    II, ao estarem associados ao regime monrquico autocrtico, eram vistos negativamente

    pelos leitores, que relacionavam a decrpita monarquia russa extinta monarquia

    brasileira. curioso observar que em nenhum momento as cartas citam a forma de

    governo japonesa (Monarquia Constitucional) como algo negativo ou mesmo positivo.

    Governo este, que tinha no culto ao Imperador, considerado figura divina, o principal eixo

    que acabou por conduzir o pas a um nacionalismo de carter exacerbado e militarista.

    A meu ver, uma srie de ilustraes (cartuns) e artigos publicados nas revistas

    ilustradas O Malho e Revista da Semana durante os anos de 1903 e 1908 tiveram um

    importante papel na (re)formulao dos discursos presentes no imaginrio coletivo

    nacional. Constato que, a partir desse primeiro momento, o Japo e os japoneses

    passaram a fazer parte do cotidiano da imprensa ilustrada brasileira.

    4. Imagens do Japo: japonismo, guerra, costumes, propaganda e perigo amarelo.

  • 16

    A veiculao pela imprensa nacional de imagens e artigos relacionados ao Japo

    no perodo anterior conflagrao da Guerra Russo-Japonesa praticamente inexistia. O

    pouco conhecimento pblico que se tinha sobre as coisas do Japo advinha em sua

    maior parte de obras produzidas por autores estrangeiros, que ainda veiculavam as

    imagens construdas pelo japonismo, no qual o outro, no caso o japons, idealizado

    por seus atributos estticos, vistos pelo Ocidente como exticos. Apesar da idia de

    perigo amarelo rondar o mundo, nota-se que seus efeitos no Brasil naquele momento

    e fora do estrito crculo diplomtico e poltico no alcanaram muita ressonncia como

    nos Estados Unidos e outros pases que j haviam recebido imigrantes japoneses em seu

    territrio. O imaginrio nacional ainda estava em lua-de-mel com os valores retricos e

    estticos do japonismo. A intelectualidade e as autoridades polticas brasileiras somente

    comearam a dar conta do pesadelo do perigo amarelo a partir do momento em que se

    tornou iminente a vinda dos embaixadores do vitorioso Japo (imigrantes japoneses)

    para o Brasil com os acordos selados em 1907.

    Desse modo, os anos de 1903 a 1908 representam um perodo de transformaes

    na maneira como o japons foi visto e representado no Brasil.

    Que imagens sobre o japons foram materializadas mediante a influncia dos

    discursos produzidos e veiculados durante a guerra? Que novos discursos essas imagens

    ajudaram a construir ou desmistificar?

    Devido cobertura jornalstica sustentada pelo O Malho e pela Revista da

    Semana a partir do incio do conflito russo-japons, os artigos e as imagens relacionadas

    ao Japo, at ento inexistentes, passaram a ser publicados em quase todas as edies

    desses peridicos. Grande parte do material editado sobre essa questo foi reproduzida a

    partir da imprensa inglesa e francesa.

    Imagem 2: O Japo chins, charge de K. Lixto. (O Malho 1904)

    Foi nesse contexto de dvidas que pairavam sobre quem seria o vencedor do

    conflito recm-iniciado que a revista O Malho, na edio de nmero 77, de 5 de maro de

    1904, publicou em sua capa uma charge de autoria de K. Lixto (1877-1957), um dos

  • 17

    grandes nomes da caricatura nacional no perodo. Importante lembrar que foi nessa

    mesma edio que teve incio o Escrutnio Russo-Japonez. Na charge, que mostra o

    representante russo em luta com o representante japons, um primeiro dado merece a

    nossa ateno: o modo original como o desenho da capa da revista foi idealizado ao se

    utilizar a tcnica chamada trompe doeil, que possibilita virar a pgina de cabea para

    baixo de maneira que o contendor que est por cima fique por baixo, dando ao leitor a

    liberdade para escolher o provvel vencedor... Outro dado a figura do representante

    japons, que, se observado atentamente, nota-se que na realidade se trata da figura de

    um chins, pois a trana (herana da dinastia Manchu na China) denota esse aspecto.

    Brincadeira de K. Lixto ou isso seria resultado do desconhecimento com relao ao Japo

    e os japoneses?

    Ao nosso ver, a imagem do japons/chins denota um certo desconhecimento,

    podendo ser considerada expresso do imaginrio coletivo que, at certo ponto, ainda se

    mostrava ambguo com relao aos orientais no Brasil. A princpio parece que no

    importava quem vencesse (ao longo da guerra nota-se que boa parte dos leitores da

    revista e da opinio pblica torcia pelos japoneses) e que aos olhos do cartunista

    chineses e japoneses, ou seja, amarelos pareciam ser a mesma coisa. Confuso que, se

    realmente existia para alguns, foi desfeita aps o trmino da guerra entre russos e

    japoneses.

    Com o objetivo de informar os leitores sobre quem era aquele valente oponente

    dos russos, foi publicada no decorrer da guerra uma srie de artigos sobre os costumes

    japoneses. Quase nada se falava sobre a Rssia ou os russos. Parecia que a imprensa

    ilustrada nacional, acompanhando o esprito do escrutnio, estava deslumbrada com a

    possibilidade de um pas extico e de raa amarela vencer o colosso branco russo.

    Em quase todas as edies do ano de 1904 dos peridicos pesquisados

    identificamos artigos e imagens sobre a guerra. Na revista O Malho, por exemplo, foram

    criadas colunas semanais com o ttulo de Desenhos Japonezes e Costumes

    Japonezes, enquanto na Revista da Semana, os assuntos relacionados ao Japo faziam

    parte da seo Curiosidades Mundiais. O contedo dos artigos veiculados nessas

    colunas ainda idealizava os japoneses, no mais vistos unicamente sob a forma de uma

    inofensiva e misteriosa gueixa, mas tambm como Os voluntrios da morte, expresso

  • 18

    tirada de um artigo publicado na coluna Costumes Japonezes, de O Malho em julho de

    1904. O prprio epteto, voluntrios da morte, para designar os japoneses se faz

    impactante. Percebe-se que a inteno dos redatores era demonstrar a sensvel moral

    japonesa ao descrever a importncia dada s questes ligadas honra, valor essencial

    na cultura nipnica.

    Segundo o artigo, era costume, caso um japons fosse insultado ou cometesse

    algum ato que ferisse sua honra ou a de outro, se autopunir, como demonstrao do

    reconhecimento do erro e da preservao da honra. Essa autopunio poderia se

    formalizar apenas em um ato simples de raspar a cabea, ou, em casos mais extremos,

    terminar em suicdio. A morte voluntria no Japo presente no imaginrio japons

    era chamada de seppuku, que significa ventre cortado (leitura moda chinesa, mais

    elegante e sbia). No Ocidente essa ao passou a ser conhecida pelo nome de hara kiri

    (leitura vulgar ocidentalizada). Costume que mesmo adoado pela civilisao ocidental

    no deixava de ser extraordinrio, podendo, segundo o autor (desconhecido) do artigo,

    servir de lio aos brasileiros habituados a ver falhar a justia publica, e at Divina (!).17

    Outros artigos de cunho mais ameno, mas voltados para temas no menos

    exticos aos olhos dos redatores e dos leitores, retratavam aspectos religiosos da cultura

    japonesa, como, por exemplo, o artigo As Religies Japonezas, de autoria de F. Mendes

    Junior, publicado na seo Curiosidades Mundiais da Revista da Semana, em agosto de

    1904. Aos olhos de Mendes Junior, o culto xntosta era algo bem simples, pois o povo

    japons, visto como portador de uma ndole calma e de carter tradicionalista, no

    apreciava as cousas difficeis e desse modo seus deuses no eram exigentes.18 Alm

    disso, nas primeiras linhas do artigo, o autor sintetiza de maneira curiosa o modo como o

    Japo era visto at aquele momento, como um raro e extraordinrio Museu:

    Nada mais a propsito actualmente do que uma pequena indagao dos usos e

    costumes antigos dos japonezes. At agora o grande imprio do Extremo Oriente

    era considerado como uma curiosidade que o resto do mundo civilisado ia ver e

    17 Os voluntrios da Morte. In: O Malho. Rio de Janeiro, n. 97, ano III. 23 de julho de 1904, p. 18. 18 Seo Curiosidades Mundiais As religies japonezas. Revista da Semana, n. 222, 14 de agosto de 1904, pp.1469-1471.

  • 19

    examinar como se fosse um raro Museu, em que se achasse collecionada toda

    multido de pequenos objetos darte to raros e to apreciados pelos ocidentaes.

    Desta colleo, os seus homens constituam a primeira e mais admirada parte do

    extraordinrio Museu.

    Examinar um japonez ou uma japoneza, ir estudar os seus hbitos, apreciar os

    seus costumes, admirar sua atividade, constitua, como ainda hoje constitue, uma

    diverso ao mesmo tempo cara e almejada pelos europeus. (...) os japonezes,

    habitantes pequenos, nervosos, buliosos, originaes em tudo, mas em tudo

    perfeitos at nas mais insignificantes cousas que elles usam.19

    A utilizao de imagens de mulheres ocidentais em trajes tpicos japoneses foi

    moda na Europa nas dcadas de 1860 e 1870, quando o japonismo estava em voga.

    Essa moda persistiu no imaginrio coletivo nacional pelos traos e artigos dos peridicos,

    que, em tempos de guerra, viam no Japo a personificao do soldado e em tempos de

    paz apelavam para a figura da gueixa. Exemplo dessa persistncia foi a publicao em

    dezembro de 1905 do soneto Gueisha impresso, de autoria de Olgario Carneiro da

    Cunha. No soneto, o autor descreve uma suposta cena, inesquecvel para ele, na qual

    um marinheiro deposita um sello breve na fronte de uma mimosa gueisha scismadora e

    bella que vivia no Japo sombrio. Essa viso fez com que o autor, nas ltimas linhas do

    soneto, repetisse consigo mesmo extasiado que gostaria de ser marinheiro.20

    A simpatia pelo Japo e os japoneses tambm pode ser vista na publicidade dos

    mais variados produtos nas revistas ilustradas, que se utilizavam no s da imagem do

    japons, mas tambm deste adjetivo para nomear alguns produtos. Esse foi o caso do

    Sabonete Japonez. As frases curtas de sua propaganda se fizeram constantes na revista

    O Malho21, transformando o sabonete em um produto quase milagroso:

    O Sabonete japonez D a cutis belleza, attractivos e encantos

    Torna os cabellos sedosos e perfumados

    19 Idem. 20 Gueisha Impresso por Olgario Carneiro Cunha. Revista da Semana. Rio de janeiro. N. 290, 3 de dezembro de 1905, p. 2932. 21 O Malho, Rio de Janeiro, n. 94, ano III. 2 de julho de 1904, p. 20.

  • 20

    Torna a pele fina e acetinada

    Trs anos aps o final da guerra, em 20 de junho de 1908, logo aps a chegada

    da primeira leva de imigrantes japoneses no Brasil, o xarope Bromil em sua propaganda

    At no Japo!,22 publicava uma cena na qual aparecem uma gueixa e um oficial da

    marinha brasileira conversando sobre o clima do Brasil e as propriedades milagrosas do

    xarope. Notamos nessa representao a persistncia de um imaginrio ainda associado a

    idealizaes baseadas em histrias como da pera Madama Butterfly (1904) de Gicomo

    Puccini.

    No incio de 1908, O Malho publicou uma outra interessante propaganda de

    remdio intitulada Entre Asiaticos23, na qual, pela primeira vez, identificamos as figuras

    de uma mulher japonesa e de um chins. No dilogo entre os dois representantes da

    raa amarela, ao ser questionada pelo chins se estava no Brasil tambm para povoar

    o solo, a japonesa responde negativamente, dizendo ser rica o bastante e no precisar

    trabalhar Podemos afirmar que nesse curto, mas simblico dilogo ocorre a sntese do

    modo pelo qual eram avaliados os chineses, de tranas e em uma categoria abaixo dos

    japoneses, vistos como ricos e representados (ainda) pela figura feminina.

    Imagem 3: Entre Asiticos propaganda do remdio A Sade da Mulher. (O Malho

    1908)

    Certifiquei-me que mesmo aps as transformaes no cenrio internacional e

    nacional ocorridas, algumas imagens relacionadas ao amarelo persistiram, enquanto

    outras desapareceram da imprensa ilustrada. O imaginrio relacionado imagem do

    chins/chim ainda carregava os estigmas dos debates ocorridos trinta anos antes

    (Questo Chinesa, 1879), assim como no caso do japons persistia a figura feminina e

    extica. No entanto, aps a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) criaram-se novas

    imagens do Japo, contribuindo para dissociar no imaginrio nacional a sua imagem da

    dos chineses.

    22 At no Japo!. O Malho. Rio de Janeiro, n. 301, ano VII. 20 de junho de 1908, p. 10. 23 Entre Asiaticos. O Malho. Rio de Janeiro, n. 227, 4 de janeiro de 1908, p. 40.

  • 21

    Pode-se afirmar que, at aquele momento e mesmo depois, nenhum elemento

    estrangeiro foi em to curto espao de tempo (1903-1905) retratado com tanto

    entusiasmo e euforia no Brasil como os japoneses. Nota-se que antes da chegada dos

    imigrantes japoneses ao pas, as imagens veiculadas pela imprensa relacionadas a esse

    elemento ainda tinham um ar de extico, de maravilhoso, feminino. Boa parte da opinio

    pblica alimentava-se dessa forma de idealizao da figura do japons, que, ao

    desembarcar no Brasil, causou estranhamento.

    Apesar de o Japo ter se tornado uma potncia, modelo de progresso a ser

    seguido, a chegada dos primeiros imigrantes japoneses colaborou para a diminuio da

    distncia entre o real e o imaginrio. O contato com o real fez com que esse elemento

    passasse a ser visto por parte da imprensa ilustrada que at ento o exaltara de forma

    estereotipada. Resgatou-se o arsenal de esteretipos utilizados anteriormente contra os

    chineses e agora, em um outro contexto, adaptados aos japoneses.

    Imagem 4: Immigrao japonesa. (O Malho 1908)

    Exemplo dessas mudanas pode ser visto no cartum Immigrao Japoneza,

    publicado na revista O Malho, em dezembro de 190824 (seis meses aps a chegada da

    primeira leva de imigrantes japoneses ao Brasil). Muito parecidas com os cartuns

    publicados pela Revista Illustrada no final da dcada de 1870, as imagens e os discursos

    se fazem carregados de marcas negativas inspiradas em questes raciais, religiosas,

    culturais, sem falar nas questes de concorrncia trabalhista, onde o japons aparece

    como um srio concorrente do trabalhador nacional por conseguir sobreviver com

    salrios mais baixos. A imagem desse imigrante em solo brasileiro passou a ser

    associada de seu pas, configurando-se como um elemento muito mais perigoso do

    que o chins.

    A idia de perigo amarelo que at ento vinha sendo debatida e combatida em

    pases como os Estados Unidos tornava-se uma (possvel) realidade no Brasil; pois

    deixava de ser uma figura imaginada pelos intelectuais, polticos e periodistas nacionais

    para se apresentar como partcipe do cotidiano nacional.

    24 Immigrao Japoneza. O Malho, Rio de Janeiro, n. 325, ano VII. 5 de dezembro de 1908, p.9.

  • 22

    A opinio pblica ainda mal havia digerido os elementos positivos e incuos do

    japonismo misturados euforia das vitrias do Grande Japo, quando os japoneses

    aqui aportaram, trazendo consigo um novo ingrediente a ser adicionado ao imaginrio

    coletivo sobre a figura do oriental: o perigo amarelo ou, como os polticos e intelectuais

    norte-americanos denominaram, new Oriental peril.

    BIBLIOGRAFIA: ABRANCHES, D. Governos e Congressos da Repblica dos Estados Unidos do Brasil. So Paulo, vol. 1, 1918. BUENO, Clodoaldo. A Repblica e sua Poltica Exterior (1889-1902). So Paulo, Edunesp/IPRI, 1995. DEMORO, Lus. Coordenao de Leis de Imigrao e Colonizao. Rio de Janeiro, Instituto de Imigrao e Colonizao, 1960. DEZEM, R. Matizes do amarelo: a gnese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). So Paulo: Associao Editorial Humanitas, 2005. GOMBRICH, E.H. Meditaes sobre um cavalinho de pau. E outros ensaios sobre teoria da arte. So Paulo: Edusp, 1999. HUNTER, J.E. The emergence of Modern Japan: an introductory history since 1853. New York: Longman, 1989. ORTIZ, Renato. O prximo e o distante : Japo e Modernidade Mundo. So Paulo, ed. Brasiliense. 2000 QUEIRS, Ea. Chineses e Japoneses. Srie Oriental. Lisboa, Edies Cotovia, 1997. SALIBA, Elias T. Razes do Riso. A representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque aos primeiros tempos da rdio. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. FONTES PRIMRIAS: Anais do Senado, sesses de 6/1892. Anais do Senado Federal, sesso de 28 de outubro de 1895.

  • 23

    Anais do Senado Federal, sesso de 21 de setembro de 1896. Colleco de Leis e Decretos do Estado de So Paulo de 1895-1896 Revista Illustrada (1878-1879) Acervo Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro Brasil) Revista da Semana Edio semanal ilustrada do Jornal do Brazil (1903-1908) - Acervo Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro Brasil)

    Revista O Malho (1902-1908) - Acervo Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro Brasil)