devastacao_e_preservacao_ambiental_no_rio_de_janeiro.pdf

298
1 Voltar para o sumário

Upload: marcos-marques

Post on 09-Nov-2015

53 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 1Voltar para o sumrio

  • 1Voltar para o sumrio

    DEVASTAO E PRESERVAOAMBIENTAL

  • 2Voltar para o sumrio

    Jos Augusto Drummond

    DEVASTAO E PRESERVAO AMBIENTAL

    Os parques nacionais do Estado do Rio de Janeiro

    EDUFF

    EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSENiteri, RJ 1997

  • 3Voltar para o sumrio

    Copyright 1997 by Jos Augusto Drummond

    Direitos desta edio reservados EDUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense- Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icara - CEP 24220-000 - Niteri, RJ - Brasil- Tel.: (021) 620-8080 ramais 200 e 353 - Fax: (021) 620-8080 ramais 200 e 356.

    proibida a reproduo total ou parcial desta obra sem autorizao expressa da Editora.

    Edio de texto: Ricardo BorgesProjeto grfico e editorao eletrnica: Rosalvo Pereira RosaCapa: Marcio Andr de OliveiraDigitao: Khtia M. P. Macedo, Jussara M. Figueiredo e Juraciara RibeiroReviso: Damio do NascimentoSuperviso grfica: Rosalvo Pereira RosaCoordenao editorial: Damio Nascimento

    Catalogao-na-fonte

    D795 Drummond, Jos Augusto. Devastao e preservao ambiental: os parques nacionais do estao-do do Rio de Janeiro/Jos Augusto Drummond. Niteri: EDUFF, 1997 p. ; 21 cm. (Coleo Antropologia e Cincia Poltica

    Bibliografia : p. 159 ISBN 85-228-0204-1

    1. Meio ambiente - Preservao. 2. Proteo social. 3. Parques nacio-nais - Rio de Janeiro (Estado). I. Ttulo. II Srie.

    CDD 333.783

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor

    Luiz Pedro Antunes

    Vice-Reitor Fabiano da Costa Carvalho

    Diretora da EDUFFEliana da Silva e Souza

    Comisso EditorialAnamaria da Costa CruzGilberto Perez Cardoso

    Gilda Helena Rocha BatistaHeraldo Silva da Costa Mattos

    Ivan Ramalho de AlmeidaLuzia de Maria Rodrigues Reis

    Maria Guadalupe C. Piragibe da FonsecaPaulo Azevedo BezerraRoberto Kant de Lima

    Roberto dos Santos AlmeidaVera Lucia dos Reis

  • 4Voltar para o sumrio

    Dedico este texto a minhas filhas

    Maria e Helena, desejando que

    elas tenham muitos e belos par-

    ques nacionais para visitar.

  • 5Voltar para o sumrio

    SumrioAPRESENTAO ................................................................................. 9

    PARTE I

    PARASO PERDIDO, REDESCOBERTO E DESTRUDO: O RIO DE JANEIRO DOS SAMBAQUIS AOS CAFEZAIS ......... 23

    1 Introduo: recursos naturais, cultura e Histria ......................... 25

    2 Viso do paraso: os amerndios no Brasil e no Rio de Janeiro .. 31

    3 Portugal: da marinhagem explorao colonial ......................... 51

    4 As primeiras iniciativas coloniais europias na rea do Rio de Janeiro .......................................................................... 65

    5 A geografia natural do Rio de Janeiro .......................................... 71

    6 A cana-de-acar e as rotas da minerao no Rio de Janeiro ...... 81

    7 As plantaes de caf: origens e expanso inicial em terras fluminenses ................................................................................... 87

    8 Plantando e colhendo caf no Rio de Janeiro no Sculo XIX ...... 95

    9 A trajetria do exrcito verde em terras fluminenses ................. 121

    PARTE II

    OS PARQUES NACIONAIS DO RIO DE JANEIRO: CARACTERSTICAS NATURAIS E SITUAO POLITICA ..... 135

    1 Parques nacionais - o conceito e a sua adoo no Brasil ........ 137

    2 O Parque Nacional de Itatiaia: para alm da geologia brasileira ....................................................................................... 145

    3 O Parque Nacional da Serra dos rgos: uma sntese da Serra do Mar ................................................................................ 177

    4 O Parque Nacional da Tijuca: o jardim dentro da mquina ....... 203

    5 O Parque Nacional da Serra da Bocaina: a ltima fronteira fluminense .................................................................................... 259

  • 6Voltar para o sumrio

    6 Concluses, perspectivas e sugestes ........................................ 275

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................... 283

    FONTES (citadas e no-citadas) ...................................................... 291

    ANEXO ............................................................................................. 277

  • 9Voltar para o sumrio

    APRESENTAO

    Conscincia ambiental comea em casa...

    O Estado do Rio de Janeiro o que mais sofreu com a devastao de florestas tropicais. Essa afirmao deve soar inslita, quando no esdrxula, para muitas pessoas. O imaginrio brasileiro sobre o Estado do Rio de Janeiro costuma enfatizar, acima de todas as outras coisas, as suas belezas naturais. No so apenas os cario-cas e fluminenses que pensam assim. No se trata de bairrismo. Cantar as inegveis belezas naturais do Estado do Rio de Janeiro a maneira que adotamos para lidar com as profundas transfor-maes ambientais produzidas pelos humanos que habitaram as terras fluminenses nos ltimos seis a oito mil anos. Preferimos ir s praias (e nem todas elas) e ficar de costas para a terra, ou olhar de longe o perfil verde da Serra do Mar, nos seus largos trechos hoje recobertos por uma modesta vegetao secundria. Preferimos isso a encarar os enormes trechos devastados de lito-rais, baixadas, morros e serras.

    Quando ouvimos falar sobre devastao florestal no Brasil, quase todos ns, cariocas e fluminenses, pensamos imediatamente na distante Amaznia, to focalizada na mdia hoje em dia. Alguns, um pouco mais informados, talvez lembrem da devastao da Mata Atlntica, aquela faixa litornea e contnua de florestas subtropicais e tropicais que certo dia ia do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte. Mais provavelmente, porm, lamentaro os estragos que o ciclo da cana-de-acar fez na Mata Atlntica dos tambm distantes estados do Nordeste.

    Poucos lembram que as terras que hoje formam o Estado do Rio de Janeiro, h menos de 500 anos, foram cobertas em mais de 90%

  • 10Voltar para o sumrio

    por densas florestas tropicais midas dessa mesma Mata Atlntica. Delas restou pouco na forma nativa ou mesmo na forma pouco alterada pela ao humana. As belezas naturais do Estado do Rio de Janeiro inclusive praias, lagoas e restingas podem at ser marcantes, mas foram forjadas ou profundamente alteradas por sociedades humanas. Alm disso, esquecemos das vastas reas do estado desmatadas e degradadas, e inegavelmente feias, num canto da memria, embora elas gritem a sua presena margem de todas as estradas principais e secundrias do estado. A paisagem predominante do estado as encostas nuas e os morros calvos (as meias-laranjas) recente e de autoria integralmente humana.

    Com a Parte I deste texto quis recuperar para a nossa enganosa memria ambiental fluminense os fatos incmodos da devas-tao de nossas florestas, das paisagens e formas de vida a elas associadas. Superar idealizaes doloroso, bem sei. No entanto, se o Rio de Janeiro vai ser e parece que quer uma das sedes da conscincia ambientalista moderna do Brasil, fundamental que se tenha menos iluses sobre o que fizemos com as nossas prprias terras e os nossos prprios recursos naturais. Vivemos, cariocas e fluminenses, num ambiente biologica e ecologicamente degradado como poucos outros no mapa ptrio. No temos o direito de simplesmente condenar as degradaes alheias. Pre-cisamos conhecer as vantagens e os prejuzos retirados de nossa ao sobre o nosso meio ambiente para ter condies de dialogar com os habitantes de outros estados e regies.

    Fiel ao meu prprio vcio mental de ver o lado positivo das coisas, no entanto, quis tambm neste texto acarinhar o nosso combalido ego regional. Nos dias que correm, no so poucas nem suaves as crticas ao Rio de Janeiro, estado e cidade. Para isso estudei na Parte II os parques nacionais que preservam boa parte do que sobrou ou renasceu das florestas tropicais fluminenses e formas conexas de vida. Embora a situao atual dos parques nacionais fluminenses seja quase desanimadora, procurei mostrar todas as suas virtudes e como cada parque pode ser promovido. Acrescen-tei um Anexo, onde listei e comentei brevemente todas as demais unidades de conservaco e preservao existentes no estado.

    De toda forma, na minha abordagem o lado desagradvel acaba tendo mais peso: se cariocas e fluminenses com preocupaes ambientais quiserem participar com seriedade e humildade (por

  • 11Voltar para o sumrio

    exemplo, da discusso sobre os destinos das florestas da Amaz-nia), bom reconhecer o grau em que a sociedade local contri-buiu para transformar o Estado do Rio de Janeiro num dos mais desmatados trechos de territrio do Brasil. Precisamos tambm conhecer e defender as escassas reas ecologicamente ntegras e legalmente protegidas de nosso territrio. Outra coisa necessria pensar seriamente nos usos cabveis para as nossas vastas reas desgastadas. Esses trs grandes desafios esto em choque com a auto complacente promoo das belezas naturais locais. S su-peraremos uma pregao ambientalista adjetiva e acusatria por uma liderana autntica em questes ambientais se vencermos esses trs desafios.

    Origem do texto de onde veio e o que Este texto no produto de um cientista poltico ortodoxo. Ele o primeiro resultado mais extenso de minha busca deliberada por temas e abordagens mais amplas do que as modernas disciplinas cientficas permitem aos seus praticantes. No foi no departa-mentalizado mundo acadmico brasileiro, no qual trabalho h 20 anos, que fui estimulado a pensar e a escrever dessa forma. Foi no Exterior, no Programa de Ps-Graduao em Cincias Am-bientais (Environmental Sciences) que realizei no The Evergreen State College (Olympia, Washington, EUA), em 1986-1988, com apoio conjunto da Universidade Federal Fluminense e do CNPq. Nele encontrei o ambiente ideal para as minhas inortodoxias em embrio e para o meu ecletismo mal reprimido.

    Todos os trabalhos e atividades do programa foram inter, trans e multidisciplinares sem que perdssemos mais de 60 minutos discutindo os significados desses termos. Estive exposto s frteis influncias de botnicos, zologos, eclogos, gegrafos, gelogos, engenheiros florestais, agrnomos, outros professores e colegas formados em cincias naturais. Cientistas polticos, filsofos, eco-nomistas e historiadores, com formao mais prxima minha, tambm me ajudaram a participar daquilo que foi um grande dilogo de cincias, de cientistas e de pessoas de carne e osso, com opinies e valores claramente discernveis. O efeito dessa experincia foi dar veia solta s minhas tendncias interdiscipli-nares e eclticas, antigas mas ainda inibidas. Por vrios motivos,

  • 12Voltar para o sumrio

    cumpro o meu papel de intelectual profissional de forma mais competente atuando na confluncia de muitas reas de saber. Certa ou errada, esta a minha pretenso atual.

    Este texto nasceu da segunda parte de minha tese de Mestrado no The Evergreen State College, defendida em setembro de 1988. Nela investiguei os parques nacionais do territrio fluminense como estudos de caso da poltica de criao de parques, objeto da primeira parte da tese. A segunda parte foi traduzida, refundida, ampliada e mais extensamente pesquisada. Nesta verso, os usos humanos das terras fluminenses em geral at o sculo XIX e os antecedentes de cada parque ganharam um peso muito maior. A anlise da poltica brasileira de parques nacionais praticamente desapareceu, com exceo de uma pequena discusso conceitual no captulo 10. No entanto, essa primeira parte da tese tambm foi atualizada, reescrita e aguarda publicao parte. Cpias da minha tese Nacional Parks in Brazil: a study of 50 years of environmental policy (with case studies of the National Parks of the State of Rio de Janeiro) (Olympia, Washington, September 1988) foram depositadas por mim nas bibliotecas Central do Gragoat (UFF), da Fundao Brasileira de Conservao da Natu-reza (Rio), da FUNATURA (Braslia) e da Fundao Biodiversitas (Belo Horizonte).

    Dividi este texto em duas partes. Na Parte I lancei mo, sem timi-dez mas com critrio, de temas, achados e conceitos da histria das civilizaes, da antropologia cultural, da biologia, da geografia, da ecologia, da geologia, da histria econmica e outras reas de saber. Com esse instrumental procurei dar conta dos processos de alterao ambiental dos ecossistemas fluminenses, principal-mente a devastao de suas florestas. Nos principais captulos da Parte II, em que analiso individualmente os parques nacionais fluminenses, a minha veia de cientista poltico mais perceptvel, principalmente pela minha preocupao com a qualidade dos parques enquanto bens pblicos que, por definio, devem ser administrados de forma a escapar das externalidades geradas pelos conflitos entre usos e interesses privados. Ainda assim, o leitor notar na discusso sobre a qualidade ecolgica dos par-ques a minha preocupao com os seus aspectos propriamente

  • 13Voltar para o sumrio

    naturais. No geral, entretanto, o leitor ver que o texto no cabe tranqilamente em qualquer classificao disciplinar.

    Quem ajudouQuero agradecer a ajuda e o estmulo que recebi de muitas pessoas para a elaborao deste texto, mesmo sabendo que no mencio-narei todas. Espero que as no mencionadas no se considerem esquecidos. Como sempre digo, mencionadas e no-mencionados so parcialmente responsveis pelo que escrevi, embora eu seja autor de todos os erros.

    Primeiramente agradeo os colegas do Departamento de Cincia Poltica da Universidade Federal Fluminense pela concesso de uma licena para o meu afastamento para estudos no Exterior. Maria Celina Soares dArajo, mais amiga do que colega da UFF, foi a minha procuradora no Brasil e o seu desempenho na ingrata tarefa foi fundamental para a tranquilidade da minha estadia no Exterior.

    O CNPq me concedeu uma bolsa de estudos entre 1986 e 1988, permitindo a minha dedicao exclusiva ao curso de Evergreen. Depois, em 1989-1990 e em 1990-1991, o mesmo CNPq concedeu--me Bolsas de Iniciao Cientfica, que remuneraram os meus as-sistentes de pesquisa, Ana Cristina do Couto e Lus Manuel Estrela de Matos, ento alunos do curso de Cincias Sociais da UFF. Os seus trabalhos, de alta seriedade e qualidade, foram incorporados a este texto e a outros que produzi simultaneamente.

    Em Evergreen aprendi muito com todo o corpo docente do pro-grama de Cincias Ambientais, especialmente com Thomas B. Rainey, orientador de curso e de tese. A sua viso integrada de histria social e histria natural muito me influenciou na redao deste texto. Menciono ainda Ralph Murphy (Evergreen) e Eduar-do Viola (Universidade de Braslia), integrantes da minha banca examinadora, pelas suas contribuies e crticas.

    Quase toda a pesquisa para este texto foi realizada no Rio de Janeiro, cidade e estado. Tive a ajuda inestimvel de Carmen Moretzsohn Rocha, biliotecria-chefe da Fundao Brasileira de Conservao da Natureza, onde encontrei os materiais mais im-portantes para este texto. Jos Augusto Pdua (Greenpeace) me

  • 14Voltar para o sumrio

    repassou diversos documentos valiosos e facilitou alguns contatos com instituies e pessoas. Jairo Csar Marconi Nicolau, ento pesquisador do Ibase (hoje professor do Iuperj), alm de me orientar no uso dos arquivos de recortes e resumos jornalsticos do Ibase (organizados por ele), foi uma espcie de pesquisador--auxiliar voluntrio que encontrou diversos documentos e pistas importantes. Frederico Raphael Carelli Duro Britto, ento alu-no do curso de Cincias Sociais da UFF, foi o meu assistente de pesquisa enquanto eu estava no Exterior. O seu trabalho foi da mais alta qualidade.

    Em Braslia, no Departamento de Parques Nacionais e Reservas Equivalentes do antigo IBDF (atual Ibama), tive a ajuda de Fbio de Jesus na coleta de informaes inditas sobre os parques na-cionais brasileiros. Margarene M. L. Bezerra, Antonina Ornelas e Aureo Faleiros, do mesmo departamento, tambm me ajudaram muito. Maria Tereza Jorge Pdua, a maior autoridade brasileira em parques nacionais, ento Diretora-Presidente da Funatura, compartilhou comigo o seu grande conhecimento sobre o assunto e me deu inmeras indicaes para pesquisa, inclusive cedendo textos inditos de sua autoria. Niklaus von Behr, ento da Funa-tura, ajudou na localizao de algumas obras de referncia na biblioteca da instituio. Elimar Nascimento e famlia exibiram o melhor da tradicional hospitalidade nordestina, alojando-me por alguns dias em sua residncia em Braslia.

    Devo mencionar ainda o falecido Warren Dean, professor de histria na New York University, que prontamente deu resposta s minhas perguntas sobre o seu trabalho no campo da histria ambiental brasileira, particularmente na questo do desmatamento da Mata Atlntica. Em Belo Horizonte, Herbert Martins, socilogo, outro amigo pessoal, enviou-me dados que levantou espontane-amente sobre os parques nacionais e estaduais mineiros, dados esses usados apenas indiretamente neste texto.

    Mais recentemente, lucrei muito ao conhecer Jos Vilhena, do Departamento de Geografia da UFF, arguto conhecedor dos pro-blemas ecolgicos e sociais do Estado do Rio de Janeiro. Henrique Martins, bilogo da Feema-RJ, respondeu com pacincia e clareza cristalina as excessivas perguntas que lhe fiz sobre os ecossiste-

  • 15Voltar para o sumrio

    mas, a fauna e a flora fluminenses, dos quais conhecedor pro-fundo. A equipe da coordenao de meio ambiente da Monasa S.A. se interessou pelos meus estudos sobre os parques nacionais, em meio a trabalhos de outra natureza que desenvolvamos em conjunto. Agradeo todos os seus integrantes nas pessoas de Jos Turco, Marlia Pastuk, Terezinha Wiggers de Almeida (falecida) e Ana Lacorte.

    Verses anteriores deste texto passaram em todo ou em parte pelo crivo das leituras de Maria Celina Soares dArajo (UFF), Elimar Nascimento (Departamento de Sociologia da Universidade de Braslia) e Lvia Neves de Holanda Barbosa (Departamento de Antropolgia da UFF). Hector Ricardo Les (Universidade Federal de Santa Catarina) foi outro leitor e crtico de vrios textos de minha autoria. Agradeo as leituras cuidadosas de todos.

    Sobre a histria ambientalCombinei neste texto as duas influncias mais fortes que rece-bi no meu curso em Evergreen: a chamada histria ambiental (environmental history) e a anlise dos resultados de polticas ambientais. A Parte II, embora pontilhada de trechos de histria ambiental, basicamente uma anlise das origens e dos resultados da mais antiga poltica ambiental propriamente dita praticada no Brasil a criao e a administrao de parques nacionais. Creio que esta Parte II, embora focalizada no Rio de Janeiro, ilustra a situao dos parques nacionais em geral, alm de fornecer um modelo possvel para estudos de outras unidades de conservao.

    O componente de histria ambiental, que predomina em toda a Parte I e comparece brevemente em sees da Parte II, ao contrrio, no foi, para os meus prprios padres de exigncia, desenvolvido em toda a sua potencialidade. Para isso concorreram fatores diversos, como a impossibilidade de realizar mais trabalho de campo, a dificuldade de acesso a algumas fontes e as barreiras ao trabalho interdisciplinar. Gostaria de aproveitar esta apresen-tao, portanto, para indicar algumas direes de pesquisa que no aprofundei o suficiente ou que apenas mencionei.

  • 16Voltar para o sumrio

    Para tanto, quero primeiro discorrer brevemente sobre algumas ca-ractersticas da histria ambiental conforme praticada atualmente nos EUA e em alguns outros pases de lngua inglesa.1 Ela nasceu do trabalho de pesquisa e de escrita de uma comunidade ainda pequena mas altamente produtiva de historiadores e bilogos, vindos de diferentes temas e especialidades. Ela est construindo, h cerca de quinze anos, o que eu considero uma nova modalida-de de estudo, ligando a histria natural histria social e, acima de tudo, vendo as interaes entre ambas. A agenda do grupo , como diz um desses historiadores, William Cronon, colocar a natureza na histria. O grupo tem uma associao profissional American Society for Environmental History e um peridico publicado desde meados da dcada de 80, Environmental Review.2 Cronon, Donald Worster, Richard White, Stephen Pyne, Warren Dean, Alfred Crosby, Richard Tucker, Joseph Petulla, Frederick Turner, Roderick Nash, Samuel Hays, Richard Tucker, outros historiadores e bilogos vm produzindo anlises histricas das relaes entre comunidades humanas e os seus meios naturais.

    A primeira caracterstica que faz da sua produo um gnero histrico singular que quase todas as anlises focalizam uma regio geogrfica com algum grau de homogeneidade natural. Estudam uma regio rida, o vale de um rio, uma ilha, um trecho de terras florestadas, um litoral, a rea de ocorrncia natural de uma rvore de alto valor comercial e assim por diante. Por vezes eles do um recorte poltico ou cultural regio estudada, porm sem perder de vista as suas caractersticas fsicas e ecolgicas: um parque nacional, a rea de influncia de uma ferrovia ou de projetos de irrigao, terras de povos nativos invadidas por mi-grantes europeus etc. Assim, a histria ambiental quase sempre tem parentesco com a histria regional na sua nfase em proces-sos locais ou geograficamente circunscritos, embora as regies estudadas sejam mais naturais do que sociais.

    Uma segunda caracterstica dos estudos de histria ambiental o seu dilogo sistemtico com quase todas as cincias naturais aplicveis ao entendimento dos quadros fsicos e ecolgicos das regies estudadas. Eles usam textos bsicos e avanados de geo-logia (inclusive solos e hidrologia), geomorfologia, climatologia, meteorologia, biologia vegetal e animal e, principalmente, eco-

  • 17Voltar para o sumrio

    logia (a cincia da interao entre os seres vivos e entre eles e os elementos abiticos do ambiente). Usam ainda estudos sobre biologia humana, doenas e dietas. Valem-se tanto dos achados de campo quanto de laboratrio dessas reas de saber e, por vezes, dos seus mtodos e conceitos. Os historiadores ambien-tais no fazem apenas visitas protocolares s cincias naturais: dependem delas para saber como funcionam os ecossistemas sem interferncias humanas, para da identificar com preciso os efeitos ecossistmicos da ao humana. Por vezes os historiadores ambientais trabalham em longos projetos de pesquisa ao lado de cientistas naturais.

    A terceira caracterstica da histria ambiental explorar as inte-raes entre o quadro de recursos naturais teis e os diferentes estilos ou nveis civilizatrios das sociedades humanas. As cincias naturais mais uma vez contribuem para o entendimento material do conjunto de recursos naturais disponveis, mas principal-mente na histria das civilizaes, na antropologia cultural e na geografia econmica que os historiadores ambientais encontram um repertrio de conceitos, estudos empricos e enfoques que permitem avaliar as diferentes formas de uso dos recursos.

    Vejamos alguns exemplos. As pastagens naturais so menos im-portantes para um povo sem animais domsticos herbvoros do que para outro povo que adotou o uso deles. Um minrio til pode ser abundante no territrio de uma sociedade e ainda assim ser ignorado por ela, pelo fato de no dominar a tecnologia do seu processamento. O domnio do fogo amplia drasticamente o controle que uma sociedade tem sobre o seu territrio, modifi-cando o uso de recursos. Os historiadores ambientais fogem do determinismo natural, tecnolgico ou geogrfico, mas se recusam a ignorar a evidente influncia dos quadros de recursos naturais na histria e na cultura das sociedades humanas.

    Uma quarta caracterstica a grande variedade de fontes. Os historiadores ambientais usam fontes tradicionais da histria econmica e social, como censos populacionais, econmicos e sanitrios, inventrios de recursos naturais, imprensa, documentos governamentais, dirios e correspondncia. Nos casos dos povos sem escrita ou de tradio predominantemente oral, trabalham

  • 18Voltar para o sumrio

    com os seus mitos e lendas. Os relatos de viajantes, exploradores e cientistas europeus, que se expandiram pelo globo a partir do fim do sculo XV, so outra fonte fundamental. Neles h notcias detalhadas sobre os modos nativos de vida, passados ou rema-nescentes, e sobre as dificuldades de implantao dos modos de vida europeus modernos, alm de preciosas informaes sobre aspectos naturais (fauna, flora, geologia etc). Os historiadores am-bientais usam tambm memrias, inventrios de bens e heranas, escrituras de compra e venda de terras, testamentos, descries de dietas, roupas, moradias, mobilirio, ferramentas e tcnicas pro-dutivas, estudos sobre doenas, projetos e memoriais descritivos de obras (estradas, ferrovias, portos), listas de bens comerciali-zados, romances, desenhos, pinturas, registros climticos tudo que permita ver quais recursos naturais (locais e importados) so usados e valorizados no cotidiano das sociedades estudadas.

    Uma quinta e ltima caracterstica da histria ambiental o trabalho de campo. Quase sempre os seus praticantes viajam pessoalmente aos locais estudados e incorporam aos seus textos as suas observaes sobre paisagens naturais, rurais e urbanas, clima, flora, fauna, ecologia. Evidentemente, podem aproveitar a oportunidade para explorar fontes locais: entrevistar moradores antigos, consultar arquivos locais e conversar com cientistas que trabalham na regio. Acima de tudo, no entanto, o trabalho de campo serve para identificar as marcas deixadas na paisagem pelos diferentes usos humanos. Nesse sentido, como diz William Cronon, a paisagem se transforma em si mesma num documento que precisa ser lido adequadamente.

    Um cientista social com um olho minimamente treinado pode, por exemplo, distinguir uma floresta nativa madura de uma floresta secundria (capoeira) renascida depois de um desmatamento total, de uma floresta apenas parcialmente explorada ou, ainda, de um reflorestamento. Cada uma indica usos humanos distintos. Ele pode identificar plantas ornamentais ou de valor comercial introduzidas numa regio pela indstria humana, ou um rio bar-rento e assoreado que os documentos garantem ter sido cristalino e navegvel, os rejeitos de uma mina exaurida, os restos de um pomar ou de uma estrada de ferro, materiais de construo no existentes localmente etc. Esses documentos so conclusivos em

  • si mesmos, embora muitas vezes possam ser confirmados pela documentao tradicional, textual. Mas eles podem e devem ser usados mesmo sem comprovao suplementar.

    A pesquisa e a escrita da histria ambiental tm, claro, an-tecedentes, principalmente na histria das civilizaes e na antropologia cultural, inclusive em certos tipos de estudos de comunidades. Os historiadores ambientais citam Arnold Toynbee, Lewis Mumford, Gordon Childe, Walter Prescott Webb, Fernand Braudel e os muitos antroplogos clssicos e contemporneos interessados nas relaes entre cultura material e cultura simb-lica, como Claude Lvy-Strauss, Julian Steward e Marshall Sahlins. Valem-se tambm da geografia humana e econmica (como a de Carl Sauer), dos estudos sobre energia e tecnologia. Muitos citam Ritter, Ratzel e seus discpulos na geografia cultural. A histria ambiental , portanto, um campo que sintetiza muitas contribui-es e cuja prtica inerentemente interdisciplinar.

    No Brasil, temos tido alguns cientistas sociais particularmente sensveis s relaes entre sociedade e recursos naturais, tais como o historiador Srgio Buarque de Holanda e o socilogo Gilberto Freyre. O gegrafo Aziz AbSaber tem uma percepo altamente apurada da histria das interaes entre os quadros naturais e as sociedades humanas. A obra de Alberto Ribeiro Lamego, embora formado em engenharia de minas, outro exemplo do estudo conjunto terra/homem, como ele mesmo coloca a questo. No entanto, parece-me que Caio Prado Jnior, em seu magistral For-mao do Brasil contemporneo, foi mais longe que qualquer historiador brasileiro na considerao conjunta de variveis ex-plicativas ambientais e sociais. Infelizmente, ele no criou uma escola que desenvolvesse mais detalhadamente ou atualizasse as suas estimulantes anlises das relaes entre recursos naturais e processos sociais nos tempos coloniais brasileiros.

    Como disse acima, algumas direes de minha pesquisa de his-tria ambiental foram desenvolvidas de forma incompleta, ou foram apenas mencionadas. Quero, para concluir esta apresen-tao, mencionar essas dimenses insuficientemente exploradas e coment-las brevemente:

  • 20Voltar para o sumrio

    t BTUDOJDBTEFDVMUJWPFEFJOEVTUSJBMJ[BPEBDBOBEF--acar, que variaram bastante ao longo do tempo e afetaram grande parte das terras baixas fluminenses, exatamente as mais prprias para a agricultura e a pecuria permanentes;

    t B BHSJDVMUVSB EF TVCTJTUODJB RVF DPNQMFNFOUB Platifndio exportador e monocultor no uso da terra e dos demais recursos e produz a base alimentar de quase toda a populao local;

    t BTEJFUBTBMJNFOUBSFTFBTEPFOBTNBJTDPNVOTEPTcolonos europeus e escravos africanos, que indicam o seu grau de adaptao s terras brasileiras e flumi-nenses;

    t PTFGFJUPTBNCJFOUBJTEBTUSJMIBTFEBTUSPQBTEFCVS-ros, agentes de estmulo a novos usos de recursos em reas isoladas ou de fronteira;

    t BJOnVODJBEFWBMPSFTDVMUVSBJTEPTFTDSBWPTBGSJDBOPTque mesmo destitudos de autonomia para decidir sobre os usos de recursos, tinham experincia civiliza-tria e valores distintos dos de indgenas e europeus;

    t B FYQBOTP VSCBOB EP 3JP EF +BOFJSP F EF PVUSBTcidades, j que as cidades tambm so consumidoras diretas dos recursos naturais do seu entorno (gua potvel, madeira para lenha, carvo, construo e marcenaria, minrios, matrias-primas diversas etc);

    t BJNQPSUODJBEBJOUSPEVPEFBOJNBJTEPNTUJDPTpelos europeus, j que esses animais concorrem com a fauna nativa, introduzem doenas (que afetam inclusive os seres humanos) e exigem uma srie de modificaes intencionais do ambiente local s suas particularidades; permitiram ainda que o colono europeu desprezasse o desaparecimento de fontes locais de protina animal (animais de caa, pescado, moluscos, crustceos etc);

    t PTFGFJUPTBNCJFOUBJTEBTFTUSBEBTEFGFSSPnVNJOFO-ses, empreendimentos pioneiros no Brasil, intensi-

  • 21Voltar para o sumrio

    vos de capital, de grande porte e tecnologicamente avanados, e que cortaram regies recm-abertas explorao comercial; as ferrovias ao mesmo tempo seguiram e estimularam a mobilidade da cafeicultura e tiveram o seu cortejo prprio de impactos sobre o ambiente.

    Nota sobre o textoEste texto estava pronto para ser publicado em meados de 1992, antes da Conferncia da Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92), realizada no Rio de Janeiro em junho daquele mesmo ano. O livro acabou fora do programa de publi-caes da EDUFF, espera de algumas pequenas modificaes sugeridas em fins de 1992 por um consultor. No entanto, de 1991 a 1995, estive no Exterior, realizando estudos de doutorado, e no consegui executar as modificaes necessrias para a sua reprogramao editorial.

    Apenas quando retornei ao Brasil, em outubro de 1995, fiquei conhecendo a ntegra do parecer do consultor. Em dezembro de 1995 fiz uma reviso completa do texto, incluindo algumas das sugestes do consultor e procurando atualizar algumas sees que tratam de temas contemporneos. Desse trabalho nasceu o Anexo I. Abstive-me, no entanto, de tentar atualizar o texto atravs de confrontos com a bibliografia relativamente extensa publicada desde 1991 a respeito de diversas dimenses das questes ambientais do Rio de Janeiro. Isso faria o livro atrasar demasiadamente. A nica exceo foi quanto ao recente livro de Warren Dean With broadax and firebrand the destruction of the Brazilian rainforest publicado em 1995. O seu tema central muito parecido com o do meu texto e o Rio de Janeiro um dos focos geogrficos principais da sua anlise. Alm do mais, atravs de contatos pessoais e profissionais com Dean, vinha seguindo a feitura desse seu livro, tendo inclusive recebido do autor pelo menos dois textos de sua autoria mais tarde incorpo-rados ao livro. Dean trabalhou no seu manuscrito pelo menos at o incio de 1994. Por esses motivos, introduzi no texto ora publicado alguns confrontos com e citaes desta grande obra

  • 22Voltar para o sumrio

    de Dean, enriquecendo o meu prprio texto com a sua diligncia e meticulosidade de pesquisador. Esta foi a maneira mais prtica e substantiva que encontrei para atualizar um texto que estava pronto em 1992, sem atrasar mais a sua publicao.

    Jos Augusto Drummond

    Rio de Janeiro, janeiro de 1996

  • 23Voltar para o sumrio

    PARTE I

    Paraso Perdido, Redescoberto e Destrudo:

    O Rio de Janeiro dos Sambaquis aos Cafezais

  • 24Voltar para o sumrio

    1 INTRODUO: RECURSOS NATURAIS, CULTURA E HISTRIA

    Quem viu naquela poca a Bacia do Paraba, ostentando soberbamente o vasto oceano de suas culturas, e observa hoje a desolao de suas terras despidas, a decadncia de suas cidades e a depreciao geral das propriedades, o esqueleto das fazendas, cuja casaria deixa a impresso de um monte de ossadas, sente a tristeza apertar-lhe o corao.

    Nilo Peanha, 1904*

    Drama recorrenteO particular recanto do globo terrestre no qual se situa a efme-ra entidade poltica que o Estado do Rio de Janeiro foi pouco modificado pelo Homo sapiens sapiens at bem recentemente na histria registrada da humanidade. No entanto, este recanto hoje, em sua quase totalidade, um dos muitos territrios do nosso planeta desgastados ao extremo pela ao da espcie humana. As terras fluminenses foram palco da encenao de um dos dra-mas mais comuns trajetria da espcie humana: a explorao excessiva ou destrutiva dos recursos naturais.

    O objetivo da Parte I deste texto precisamente discutir os efeitos cumulativos das atividades humanas sobre a ecologia das terras fluminenses, como prembulo ao estudo da situao ambiental e administrativa dos quatro parques nacionais situados nessas terras. A pergunta mais geral que orienta este texto , portanto: quais as caractersticas naturais dos parques nacionais existentes num territrio to profundamente alterado pela ao humana? Em outras palavras: o que restou ou renasceu para ser preservado em terras to sobreexploradas?

    * 1LOR3HoDQKDLPSRUWDQWHSROtWLFRXPLQHVHIRLJRYHUQDGRUGR(VWDGRGR5LRGH-DQHLURHSUHVLGHQWHGD5HS~EOLFDHP

  • 25Voltar para o sumrio

    Caberia aqui tratar de uma pergunta mais grandiloqente, em clave quase filosfica: at que ponto foi excepcional essa sobreexplo-rao dos recursos naturais, no contexto da trajetria humana? A resposta, na verdade, que a encenao fluminense do drama da exausto de recursos, se vista no contexto da histria das ci-vilizaes, no tem maior originalidade. A espcie humana uma tenaz exploradora de recursos e conta com uma ferramenta de eficcia nica para isso, a cultura. Quanto s florestas em parti-cular fator proeminente da natureza fluminense elas tm sido sistematicamente usadas, abusadas e destrudas, principalmente (mas no unicamente) por fornecerem uma das matrias-primas mais teis para os humanos, a madeira.

    Perceber essa recorrncia, paradoxalmente, no conduz neces-sariamente a uma preocupao com a questo. Eu, talvez na contramo, me preocupe e conclua, talvez sem realismo: No devemos nem precisamos fazer o mesmo que os outros. Outros, no entanto, mais numerosos e pragmticos, preferem dizer: Esta-mos apenas fazendo o que os outros fizeram antes de ns. Essas atitudes polares no conseguem dialogar com facilidade, e mais freqentemente se denunciam mutuamente em tons catastrficos.

    De fato, em pocas remotas e recentes, da China, India e Oriente Mdio antigos ao Dust Bowl das grandes plancies dos EUA neste sculo, recursos abundantes foram sobreexplorados por popula-es empreendedoras e otimistas de muitas civilizaes. Depois de prazos que sempre parecero curtos aos protagonistas e aos estudiosos mas no aos pragmticos os estilos e nveis de vida arduamente construdos perderam sua sustentao ambiental e ruram. Por vezes eles tiveram uma sobrevida a partir da migrao, da colonizao, da conquista ou da pilhagem ou seja, a partir do consumo de recursos naturais de outros lugares. O esgotamento de recursos naturais - principalmente florestas e solos agrcolas esteve quase sempre associado decadncia ou dbcle de grandes e pequenas civilizaes do passado remoto e recente.

    Ainda assim, h muitos detalhes de cenrio, texto e desempenho que fazem da histria ambiental do Estado do Rio de Janeiro uma encenao singularmente pungente desse enredo dramtico e que merece a nossa ateno. Talvez possamos mesmo aprender

  • 26Voltar para o sumrio

    alguma coisa com o nosso prprio passado recente, embora o aprendizado histrico seja muito mais uma esperana dos his-toriadores ou um sonho dos romnticos do que um fato social corriqueiro. A destruio das florestas fluminenses foi um cap-tulo da destruio da Mata Atlntica brasileira, a maior floresta tropical eliminada pela ao humana em tempos histricos. Alm do mais, ns, brasileiros, somos hoje um dos povos que mais territrios virgens temos ainda a ocupar efetivamente, inclusive na Amaznia, que contm a maior parcela das matas tropicais remanescentes do planeta. Quais so os nossos antecedentes neste tipo de empreendimento? Que aprendizado podemos e queremos retirar desses antecedentes? Quais so as perspectivas de recuperaco dos recursos naturais destrudos?

    Infelizmente, o estudo da histria ambiental do Estado do Rio de Janeiro revela um precedente integralmente desastroso, entre outros ocorridos em territrio atual do Brasil. A maneira brasi-leira de ocupar territrios novos tem sido to imediatista e to predatria quanto a de muitos povos antigos e contemporneos, com os quais aparentemente s aprendemos a lio do otimismo mope. Aprendemos apenas a ser pragmticos. Nossos esforos de recuperar recursos naturais exauridos tambm tm sido pfios. Vale a pena, portanto, incluir o drama socioambiental fluminense na lista crescente dos casos documentados de inviabilizao da vida humana pela disrupo dos ecossistemas e pela exausto de recursos. A literatura estrangeira e brasileira registra muitos ttulos escritos por cientistas sociais que se ocupam de processos de consumo de recursos ambientais por diferentes sociedades humanas. Lewis Mumford, em Techinics and Civilization (New York, 1934), escreve uma histria das civilizaes com grande sensibilidade para as relaes entre a tecnologia, as estruturas sociais e os recursos naturais. Dois textos clssicos sobre o des-tino das civilizaes e suas relaes com os recursos do solo so Tom Gale e Vernon Gill Carter, Topsoil and civilization (Lincoln, University of Nebraska Press, 1955) e Edward Hyams, Soil and civilization (New York, Harper and Row, 1976). Um texto que correlaciona explicitamente a ascenso e a queda das civilizaes com a disponibilidade de florestas e de madeira o de John Perlin, A Forest Journey The role of wood in the development

  • 27Voltar para o sumrio

    of civilization (New York, Norton, 1989). A historiografia norte--americana conta com muitos excelentes ttulos recentes lidando principalmente com histrias ambientais regionais. Entre outros, Donald Worster, Dust Bowl The southern plains in the 1930s (Oxford, Oxford University Press, 1982); Rivers of Empire water aridity and the growth of the american west (New York, Pantheon, 1985); William Cronon, Changes in the land indians, colonists and the ecology of New England (New York, Hill and Wang, 1983); Richard White, Land use, environment and social change The shaping of island county, Washington (Seattle, University of Washington Press, 1980); Michael Williams, Americans and their forests (Cambridge, Cambridge University Press, 1989). H ainda dois excelentes livros de Alfred Crosby citados em notas dos captulos seguintes. Do mesmo Richard White h uma boa apre-ciao crtica da historiografia ambiental norte-americana em En-vironmental History: The Development of a New Historical Field, Pacific historical review, 1985, p. 297-335. The ends of the earth (Cambridge, Cambridge University Press, 1988), uma excelente coletnea, editada por Donald Worster, com estudos de histria ambiental de diversas partes do mundo, como Sucia, Inglaterra, India e Costa do Marfim. Tem ainda uma extensa bibliografia e excelente apreciao temtica e metodolgica escrita pelo prprio Worster sobre os rumos da histria ambiental. As perspectivas atuais da histria ambiental norte-americana so instigantemente discutidas na mesa-redonda publicada sob o ttulo A Round Table: Environmental History, em The journal of american history, 76 (4), March, 1990. Sobre histria ambiental ver ainda o meu texto A histria ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa, Estudos Histricos, 4(8), 1991, p. 177-197.

    Para o Brasil, contamos com alguns estudos sociais e histricos com grande sensibilidade para o papel dos fatores naturais e ambientais. Gilberto Freyre, em Nordeste aspectos da influn-cia da cana sobre a vida e a paisagem do nordeste do Brasil (5. ed. Rio de Janeiro, Jos Olympio; Recife, Fundao do Patrim-nio Histrico e Artstico de Pernambuco, 1985), fez um estudo excelente e pioneiro de histria ambiental do Nordeste mido brasileiro. Outro estudioso brasileiro que desde cedo explorou com elegncia e erudio as relaes entre a sociedade e meio ambiente Srgio Buarque de Holanda. Ver de sua autoria, entre outros, Caminhos e fronteiras (3. ed. So Paulo, Companhia das

  • 28Voltar para o sumrio

    Letras, 1994); Mones (3. ed. rev. e amp7. So Paulo : Brasiliense, 1990); e O Extremo Oeste. (So Paulo : Brasiliense e Secretaria de Estado da Cultura, 1986). Caio Prado Junior, em Formao do Brasil contemporneo (So Paulo, 1942), produziu o mais abran-gente estudo histrico escrito por brasileiros atentando para as relaes entre os colonizadores europeus e os distintos meios naturais do vasto territrio brasileiro. Obras de estrangeiros tam-bm tm dado contribuies excelentes para o estudo conjunto da sociedade e da natureza no Brasil. Temos o clssico estudo de geografia humana de Pierre Monbeig, Pioneiros e fazendeiros de So Paulo (So Paulo : Hucitec e Polis, 1984). O historiador norte-americano Warren Dean escreveu a primeira histria am-biental de grande porte focalizada quase exclusivamente sobre o Brasil: O Brasil e a luta pela borracha (So Paulo, Nobel, 1989). Mais recentemente, o mesmo Dean publicou um texto intitulado With Broadax and Firebrand The Destruction of the Brazilian Atlantic Forest (Berkeley, University of California Press, 1995), integralmente dedicado destruio da Mata Atlntica brasileira. A editora Companhia das Letras est preparando uma traduo para o portugus deste importante livro, com publicao prevista para o fim de 1996.

    Espero com a Parte I deste texto provocar algumas reflexes no apenas sobre o nosso passado e presente mais propriamente fluminenses, mas principalmente sobre duas outras coisas: a) as opes brasileiras atuais e futuras, sobre o uso de vastos recursos naturais de regies brasileiras de fronteira; e b) os altos custos sociais e ambientais dos usos pragmticos dos recursos naturais . A Parte I servir tambm para oferecer o contexto ambiental e histrico anlise dos parques nacionais fluminenses, na Parte II.

  • 31Voltar para o sumrio

    2 VISO DO PARASO: OS AMERNDIOS NO BRASIL E NO RIO DE JANEIRO

    A volta do bom selvagemNa imaginao ambientalista contempornea, os amerndios (e os povos primitivos em geral) so quase sempre absolvidos de qualquer responsabilidade quanto a mudanas ocorridas no seu meio ambiente natural. Os motivos disso variam de um romantis-mo etnocntrico a uma sndrome de culpa. No cabe analisar uma ou outra aqui. Afirmo apenas que a naturalizao desses povos, aparentemente um gesto generoso e revisionista de valorizar as suas virtudes ambientalistas, pouco mais do que uma derivao de formas simblicas etnocntricas mais violentas de destitu-los de cidadania no universo da cultura humana. Na verdade, esses povos so dotados de cultura, que , entre muitas outras coisas, o mais poderoso instrumento para aperfeioar e ampliar o uso dos recursos do meio ambiente. Esses povos so, portanto, o ponto de partida obrigatrio de qualquer estudo sistemtico das alteraes humanas nas terras das Amricas e de qualquer outro lugar onde existam ou tenham existido. Os impactos ambientais no comeam, portanto, com o desembarque dos primeiros europeus, a no ser que eles desembarquem em terras nunca habitadas pelos humanos, o que certamente no foi o caso no continente americano.

    Persistir nesta absolvio ecolgica dos povos primitivos uma atitude romntica, no sentido ruim que a palavra pode ter. tam-bm um autntico etnocentrismo s avessas. Para a compreenso dos impactos ambientais dos humanos, a idia do bom selvagem em total harmonia com a natureza integralmente enganadora, como de resto acontece com bom selvagismo na imaginao poltica clssica e contempornea. Toda sociedade humana tem uma cultura, consome recursos naturais e provoca impactos no equilbrio (se que tal coisa existe) do mundo natural. No existe qualquer cultura inteiramente submetida ao natural, embora seja

  • 32Voltar para o sumrio

    certo dizer que algumas culturas tm usos menos destrutivos dos seus ambientes naturais.

    Os povos indgenas da Amrica uma presena antigaAs populaes nativas do continente americano so na verdade migrantes relativamente recentes na histria da expanso da espcie humana pelo planeta, ainda que a essa sua presena seja muito mais antiga do que a de europeus e africanos. Foi apenas nos ltimos 15 a 20 mil anos, perodo no muito grande na arqueologia registrada do Homo sapiens sapiens, que popu-laes humanas, oriundas do continente asitico e/ou de ilhas do Pacfico, deixaram marcas de ocupao definida e definitiva em vrias partes do continente americano. Esse continente, alis, foi o ltimo do planeta a ser invadido e permanentemente ha-bitado pelos humanos. No entanto, alguns milhares de anos so suficientes para que uma populao humana dotada de certos traos culturais at simples afete e modifique significativamente o ambiente em que vive.

    Em algumas regies do continente americano formaram-se socie-dades complexas, de alta densidade e dimenso populacionais, com marcadas hierarquias sociais e dotadas de algumas tecno-logias relativamente avanadas, agrcolas, pecurias e artesanais, como maias, aztecas e incas. Darcy Ribeiro as chama de imprios teocrticos de regadio. Os seus impactos ambientais se aproxi-mam daqueles bem amplos causados pelos povos neolticos da sia, de quem foram contemporneos. Em outras regies, preva-leceram populaes paleolticas de caadores-coletadores, viven-do em regime de comunidade primitiva, em grupos ou aldeias relativamente pequenos, nmades ou seminmades, com baixo grau de diferenciao social e tecnologias agrcolas e artesanais de rudimentares a simples, e sem animais domsticos. A essas Ribeiro reservou o nome de aldeias agrcolas indiferenciadas (RIBEIRO,1987). Os impactos ambientais desses grupos foram muito diferentes, mas ainda assim deixaram os seus registros indiscutveis.

  • 33Voltar para o sumrio

    Tudo indica que no territrio brasileiro como um todo, foi este segundo tipo de sociedade humana que prevaleceu antes da che-gada dos europeus nos fins do sculo XV. Tanto Betty Meggers quanto William Denevan e Anna Roosevelt registram na Amaznia brasileira a existncia de algumas sociedades com agricultura mais intensiva, densidade populacional maior e aldeias maiores, possivelmente marcadas por hierarquias sociais (MEGGERS, 1984 ; ROOSEVELT, 1992 ; DENEVAN, 1992; OLIVEIRA, 1983). Algu-mas delas tinham desaparecido antes da chegada dos europeus (como os povos da fase Maraj, no delta do Amazonas), mas ou-tras ainda estariam presentes no mdio rio Amazonas em torno de 1500 (como os da fase Tapajs). Mas a prevalncia geral das aldeias agrcolas indiferenciadas no futuro territrio brasileiro no desmentida por esses registros. Com algumas diferenas regionais, as naes e agrupamentos de indgenas em terras brasileiras estavam desdobrados em milhares de aldeias semi-permanentes com algumas centenas a alguns pouco milhares de habitantes. Eles viviam de uma combinao de caa, pesca, coleta e de uma agricultura ainda em fase inicial de desenvolvimento. Acredita-se que os primeiros migrantes asiticos-ocenicos ou seus descendentes chegaram ao atual territrio brasileiro muitas geraes humanas depois de os migrantes originais terem feito as suas travessias originais do Estreito de Bering ou do oceano Pacfico. Os pioneiros humanos no continente americano encon-traram um territrio vasto e diversificado, destitudo de humanos, e se expandiram em vrias direes, desenvolvendo adaptaes a muitos ecossistemas de muitas latitudes florestas temperadas e tropicais, desertos, montanhas, lagos, rios e litorais ocenicos.

    Pesquisas recentes tm produzido evidncias de que pelo menos em algumas regies brasileiras a ocupao humana pode ser to antiga quanto em qualquer outro ponto do continente americano. Alguns stios arqueolgicos descobertos recentemente no nordeste (Piau), por exemplo, foram datados em cerca de 32000 anos, uma idade bem superior aos 6000 a 8000 que tradicionalmente se d para a presena humana mais antiga em territrio brasileiro. De toda forma, tendo em vista as rotas presumidas de migrao, a ocupao humana do litoral brasileiro do sudeste ( Rio de Janeiro em particular), dever ter sido mais recente do que qualquer data

  • 34Voltar para o sumrio

    que se venha a estabelecer definitivamente para regies mais ao norte e mais a oeste, por onde teriam vindo as diversas ondas migratrias de populadores originais. A presena mais antiga de populaes humanas no Estado do Rio de Janeiro correntemente datada em 6000 a 8000 anos, no mximo (CROSBY, 1973, 1986 ; RIBEIRO, 1988, 1986, 1987 ; DENEVAN, 1992 ; DEAN, 1995, p. 24).

    Usos milenares das terras brasileirasOs impactos dos amerndios sobre os ambientes em que viviam foram proporcionais aos tamanhos de suas populaes, s suas tecnologias e sua viso de mundo. As estimativas populacionais dos amerndios residentes no atual territrio do Brasil poca da chegada dos primeiros europeus tm variado consideravelmente, e vm crescendo. Os primeiros exploradores europeus que dei-xaram relatos so quase unnimes em suas impresses sobre o nmero elevado, a boa sade, a perfeita adaptao s terras e o vigor dos nativos. Destacam tambm o seu bom conhecimento dos recursos naturais de seus respectivos territrios, embora et-nocentricamente lamentem a sua falta de interesse em explor-los de forma intensiva ou comercial. No entanto, as suas estimativas da populao indgena total so hoje consideradas meras advi-nhaes, baseadas em observaes parciais e impregnadas pelo costumeiro otimismo dos primeiros documentos de descrio colonial, sempre precipitados em valorizar as terras descobertas.

    No havia entre os indgenas do atual territrio brasileiro organi-zaoes polticas centralizadas que abrangessem sequer os grupos lingstica e religiosamente assemelhados. Muito menos existiam imprios centralizados cuja contabilidade de tributos auxiliasse na contagem dos sditos, tal como ocorreu quando os espanhis liderados por Fernando Corts derrotaram os astecas e assumiram o seu papel de coletador de tributos com conhecimento docu-mentado sobre as populaes e a localizao dos povos sditos.

    Como foi dito acima, a maioria dos nativos do atual territrio bra-sileiro vivia em regime de comunidade primitiva, ou de aldeias agrcolas indiferenciadas. Aldeias permanentes ou temporrias tinham populaes que variavam de algumas centenas a alguns poucos milhares de indivduos. Regularmente a populao das

  • 35Voltar para o sumrio

    aldeias se subdividia para cumprir migraes mais ou menos extensas, explorar recursos disponveis em certas pocas do ano em determinados locais ou mesmo fundar novas aldeias depois de derrotas em guerras ou mortes de chefes. Os Tupi em particular, predominantes em quase todo o litoral brasileiro do ano de 1500, eram migrantes relativamente recentes do interior do continente e continuaram a exibir uma clara dinmica migratria nos scu-los seguintes. Isso tudo evidentemente dificultava as estimativas populacionais dos colonizadores e viajantes, que podiam tomar um subgrupo pelo total ou o total como um subgrupo, ainda mais porque muitos narradores sequer tinham idia do enorme tama-nho das terras brasileiras. preciso destacar tambm que muitas estimativas regionais e gerais dos portugueses eram tendenciosas, influenciadas pelo conhecimento dos povos indgenas mais co-nhecidos por eles, especialmente os Tupi, espalhados pelo litoral Atlntico ou ao longo das rotas mais importantes de explorao.

    As estimativas publicadas por antroplogos brasileiros sobre a populao indgena total no Brasil, em 1500, variam de 2 a 5 milhes. Mas pesquisas arqueolgicas recentes continuam a empurrar para cima as estimativas. Roger Stone cita estudos arqueolgicos e agroecolgicos que apontam a possibilidade de apenas a Amaznia brasileira sustentar um total de 3,6 a 4,8 mi-lhes de indgenas nmades, seminmades e sedentrios. Susana Hecht menciona cifras ainda maiores na ordem de 12 milhes de indivduos para a bacia amaznica como um todo. Denevan, o maior perito na matria de populaes pr-colombianas na Amrica, recentemente apresentou uma cifra significativamente maior para a sua estimativa do nmero de amerndios em 1492, e os seus clculos para a Amaznia tambm subiram (STONE, 1986, p. 29-30 ; HECHT, COCKBURN, 1989 ; DENEVAN, 1992 ; MORN, 1990).

    Warren Dean calculou com cuidado a capacidade possvel de sustentao de populaes humanas duma rea que inclui uma faixa substancial do territrio atual do Estado do Rio de Janeiro e uma pequena parte de So Paulo, nos anos imediatamente posteriores a 1500 (DEAN, 1984, p. 3-26, 1995). Ele destaca que grupos Tupinamb, em torno do ano 1100, desceram ao litoral dos planaltos florestados do interior, j portadores de uma tecno-

  • 36Voltar para o sumrio

    logia agrcola adaptada floresta. Eles assimilaram, mataram ou expulsaram povos de caadores-coletadores nmades existentes nessas reas fluminenses e paulistas. Esses povos deslocados pelos Tupi foram os criadores dos stios arqueolgicos chamados sambaquis.1 Em torno de 1500, os Tupinamb (alis, adotados por Darcy Ribeiro como o modelo dos povos no estgio de aldeias agrcolas indiferenciadas), j estavam firmemente instalados nos litorais fluminense e paulista (e em quase todo o resto do litoral brasileiro). Praticavam regularmente a agricultura de coivara que tinham trazido de suas migraes pelo interior do continente, exibindo bom conhecimento dos solos e das variaes climticas regionais, e ainda caavam, pescavam e coletavam.

    Em qualquer lugar, a agricultura, mesmo rudimentar, permite densidades populacionais bem superiores sustentada pela caa e coleta, pois fornece suprimentos maiores, mais diversificados e mais confiveis de alimentos. Portanto, ao combinarem a co-leta com a agricultura, os Tupi necessariamente desenvolveram populaes e densidades populacionais bem maiores que as dos povos dos sambaquis, seus antecessores. Se no viveram perma-nentemente no territrio fluminense, os povos dos sambaquis ao menos o usaram com regularidade por alguns milhares de anos. A prevalncia dos seminmades Tupi significou portanto uma grande intensificao do uso humano do territrio fluminense (em termos de populao e de tecnologia), territrio esse j sub-metido h milnios ao uso mais leve e espordico dos annimos povos dos sambaquis.

    6DPEDTXLVVmRSLOKDVGHFRQFKDVGHPROXVFRVHFDVFDVGHFUXVWiFHRVDFXPXODGDVHPiUHDVOLWRUkQHDV(VVDVSLOKDVVmRPXLWDVYH]HVH[WHQVDVHVHPSUHUHODWLYDPHQWHDOWDVSRLVRVSRYRVTXHDVIDEULFDUDPYROWDYDPDQXDOPHQWHDRVPHVPRVORFDLVHFRQWLQXDYDPMRJDQGRIRUDDOLDVFRQFKDVHRXWURVREMHWRV$FDEDYDPIRUPDQGRSHTXHQRVPRUUHWHVTXHSHUPLWLDPDFDPSDPHQWRVSURYLVyULRV~WHLVSULQFLSDOPHQWHHPiUHDVLQXQGiYHLVGHPDQJXH]DLVDIHWDGDVSHODVPDUpV(OHVOLWHUDOPHQWHDFDPSDYDPHPFLPDGRVHXSUySULROL[R2VDUTXHyORJRVSRGHPDSDUWLUGRHVWXGRGHVWDVDXWrQWLFDVOL[HLUDVGHGX]LULQ~PHURVDVSHFWRVGDYLGDGRVSRYRVGRVVDPEDTXLVGLHWDVURWDVHFLFORVPLJUDWyULRV WDPDQKRGDVSRSXODo}HVHYiULRVDVSHFWRVGDFXOWXUDPDWHULDOFRPRXVRGRIRJRGRPtQLRGHWpFQLFDVGHFHUkPLFDWLSRVGHLQVWUXPHQWRVHDGRUQRVHWF2VVDPEDTXLVSRUYH]HVFKDPDGRVGHFRQFKHLURVVmRFRPXQVHPYiULRVSRQWRVGROLWRUDOEUDVLOHLUR9HUDHVVHUHVSHLWR.15,3

  • 37Voltar para o sumrio

    As estimativas mnima e mxima de Dean para a densidade popu-lacional dos Tupinamb nos litorais paulista e fluminense so 4,8 e 5,3 habitantes por quilmetro quadrado. Considerando apenas as reas costeiras mais facilmente habitveis na regio por ele estudada (planas e prximas do mar, esturios, baas e lagoas), isso se traduziria numa populao de 57 mil a 63 mil Tupinamb. Essas cifras no incluem outras populaes indgenas residentes no litoral do territrio fluminense, como os Goitac, Maracaj e Goian, presumivelmente to densas ou numerosas quanto os Tupinamb. Aplicando a densidade populacional tima calculada por Dean a outras reas costeiras fluminenses, a sua populao indgena total, em 1500, poderia muito bem exceder 150 mil. Em termos de presses humanas sobre o ambiente fluminense, esta cifra, muito embora hipottica, est longe de ser desprezvel. A cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, s chegou a ter esse nmero de habitantes no sculo XIX, talvez em torno de 1850.

    Quando passamos da questo do nmero (presumivelmente ele-vado) de indgenas fluminenses do seu modo de vida, ou ao que os antroplogos chamam de cultura material, a cifra impressiona ainda mais. O aspecto mais importante da cultura material dos Tupinamb, do ponto de vista dos seus impactos ambientais, a sua agricultura. Como outros povos indgenas da Amrica, eles praticavam a coivara, uma forma de agricultura itinerante muito comum em reas cobertas por florestas tropicais, em todo o mun-do. Alis, h antroplogos e historiadores das civilizaes que acreditam que a agricultura de queimada da qual a coivara uma variante foi a primeira e duradoura forma de agricultura em todos os lugares do mundo. Ela teria sido erradicada apenas quando e onde se estabeleceram as grandes civilizaes neolti-cas que passaram a disciplinar com outras tecnologias o uso de grandes reas agrcolas, excluindo a agricultura de queimada.

    Como se sabe, a agricultura neoltica e o fenmeno quase sem-pre simultneo de domesticao de alguns animais herbvoros de grande e mdio porte (bois, cavalos, cabras, ovelhas, porcos etc.) foram prticas culturais que em muito contriburam para sedentarizar e aumentar as populaes humanas. Proporcionaram tambm maior conhecimento e controle dos seus territrios e quase sempre intensificaram o uso e aceleraram a exausto dos

  • 38Voltar para o sumrio

    recursos teis de vastos territrios da face do planeta. (gouldblom, 1992, cap. 3 e 4). De modo algum podemos, portanto, desprezar os impactos causados pela agricultura dos indgenas brasileiros, por mais simples ou rudimentar que ela possa parecer.

    Mas h outro elemento da cultura material indgena que ao mesmo tempo possibilita a agricultura de queimada e produz efeitos ambientais prprios e de larga escala. A coivara uma conseqncia direta, embora no necessariamente imediata, do controle humano do fogo, ou seja, do uso deliberado do fogo por populaes humanas em oposio a fogos naturais, causados por relmpagos, erupes vulcnicas ou combusto espontnea de biomassa vegetal ressecada. O fogo de origem humana um trao cultural ou tecnologia muito mais antigo e mais dissemina-do do que geralmente se pensa. Para se ter uma idia disso, na expanso dos modernos povos europeus para as diversas partes do planeta, iniciada nos fins do sculo XV, Stephen Pyne que estudou muitos relatos de viajantes e etnografias destaca que apenas trs povos (nenhum deles do continente americano) foram registrados que no soubessem acender, manter e controlar o fogo.

    Pelo que consta, portanto, todos os povos amerndios tinham pleno domnio do fogo, que usavam para numerosos fins, todos eles com poder de modificar os meios naturais em pequena ou grande escala: limpeza de reas para aldeias, plantaes e reas de caa; auxlio direto caa, para cercar ou espantar animais em direes desejadas; estmulo ao crescimento de certas plantas resistentes ao fogo e que atraem herbvoros especialmente valo-rizados como animais de caa; festas e rituais; arma de guerra; cermica; iluminao noturna, aquecimento e segurana contra animais predadores; e, por ltimo, o cozimento, a preservao e a defumao de alimentos, um dos traos distintivos mais marcantes da espcie humana em relao aos demais animais. (PYNE, 1988 ; DEAN, 1995, cap. 2 e3)

    Tal como muitas outras naes indgenas americanas, os Tupi-namb (e os Goian e Goitac) das terras fluminenses passaram, portanto, dcadas ou mesmo sculos queimando regularmente pores das florestas tropicais nativas para abrir terras para a sua agricultura e outros fins. Alm disso, queimavam a madeira

  • 39Voltar para o sumrio

    como lenha e usavam madeira e fibras vegetais para construo, armas, tecidos, cestaria, canoas etc. No havia escassez de ma-deira e florestas nas terras fluminenses, pois em torno de 1.500 essas florestas eram a vegetao predominante, cobrindo mais de 90% do territrio do atual Estado do Rio de Janeiro. Na discusso que se segue, focalizarei principalmente a destruio das flores-tas para fins da agricultura de coivara, deixando implcitas as muitas outras formas citadas de consumo dos recursos florestais pelos indgenas.

    A coivara (tambm chamada de agricultura de queimada ou agricultura itinerante, e de swidden agriculture ou slash-and--burn agriculture, na abundante literatura de lngua inglesa sobre o assunto) basicamente um mtodo rudimentar de rotao de reas cultivadas, atravs de ciclos de queima, abertura, plantio e do repouso de sucessivos lotes de terras originalmente cober-tas por florestas primrias ou secundrias. A queima da densa biomassa vegetal das florestas tropicais libera para o solo um grande volume de nutrientes imediatamente aproveitveis pelas novas plantas que se instalam depois do fogo, espontaneamente ou introduzidos pela ao humana. Isso percebido tanto pelos povos primitivos quanto pela moderna cincia agronmica. A falta de ferramentas agrcolas metlicas, a rpida recuperao da flora tropical e uma disposio seminmade dos indgenas fluminenses faziam com que a explorao de cada lote agrcola durasse alguns poucos anos (de duas a cinco colheitas anuais). Esse detalhe crucial para avaliar o impacto ambiental cumulativo da coivara, como veremos a seguir.

    Embora tecnologicamente racional, produtiva e capaz de fornecer significativos meios adicionais de subsistncia para povos antes dependentes de caa, pesca e coleta, essa agricultura itinerante exige uma quantidade relativamente grande de reservas florestais agricultveis para cada aldeia. S essa extensividade garante a observao dos prazos adequados do ciclo de rotao de terras e do repouso suficiente de cada lote. Existe hoje uma polmica, em escala mundial, sobre os tipos e a profundidade dos impac-tos provocados pela agricultura de queimada na integridade dos ecossistemas de floresta tropical. H desde aqueles que argumen-tam que ela destrutiva e irracional, sendo a maior responsvel

  • 40Voltar para o sumrio

    pela perda de florestas tropicais em todo o mundo, at quem sustente que seja o nico mtodo vivel de praticar agricultura nessas reas tropicais (MEGGERS, 1984 ; MYERS, 1985 ; HECHT, COCKBURN, 1989).

    O ponto crucial da polmica est na questo da intensidade com que a agricultura itinerante praticada nos mesmos lotes. Para que ela seja sustentvel a longo prazo, preciso que cada lote plantado seja usado por pouco tempo (dois a cinco anos) e logo abandonado para repouso por muito tempo (pelo menos 20 anos). Alis, pesquisas cuidadosas como as de Padoch, Denevan e seus associados mostram que os termos abandono ou repouso no so os melhores para descrever o que na verdade uma fase de usos e manejos menos intensivos dos lotes caa, coleta de pro-dutos naturais da mata secundria, coleta de bens eventualmente produzidos pelas plantas domesticadas, abandonadas (PADOCH, IONG, 1987, p. 179-194 ; DENEVAN, 1984, p. 346-357 ; PADO-CH, 1984, p. 47-58). Para haver sustentabilidade, portanto, o uso propriamente agrcola de cada lote pela agricultura de coivara deve ser temporalmente limitado principalmente para evitar a exausto dos solos e dos elementos fsico-qumicos do hmus, a massa de lixo florestal que normalmente se acumula sobre o solo das florestas tropicais e lhe repassa elementos de fertilidade.

    A combinao de agentes biolgicos degradadores com a mat-ria orgnica em decomposio do hmus fundamental para a sustentao ou reproduo natural da floresta. De outro lado, o abandono de cada lote por pelo menos duas dcadas neces-srio para permitir o crescimento de uma biomassa suficiente de vegetao secundria. Essa vegetao que lentamente recupera o hmus; a queima de sua biomassa que nutre instantanea-mente o solo no incio do novo ciclo. S com uma massa vegetal substancial o fogo produz quantidade suficiente de nutrientes para a agricultura, por ocasio da reabertura do lote. Ou seja, a capacidade de o fogo fertilizar o solo novamente depende da quantidade de biomassa de flora secundria acumulada e queima-da, e esta depende do tempo dado para o crescimento espontneo da floresta secundria.

  • 41Voltar para o sumrio

    A baixa densidade populacional dos indgenas brasileiros, a sua propenso ao nomadismo ou seminomadismo e o seu conheci-mento do potencial agrcola dos diferentes tipos de solos se com-binavam para evitar que eles usassem os lotes com intensidade excessiva. Isso em princpio permitia a recuperao natural de vegetao secundria dos lotes agrcolas antigos e o seu uso agr-cola renovado. Como consequncia, diminua a presso humana sobre as florestas mais fechadas ou virgens. Estas eram muito mais difceis de serem preparadas para a agricultura, principalmente por causa do tamanho maior das rvores a serem derrubadas sem a ajuda de instrumentos metlicos. Na verdade, em torno de cada aldeia Tupi devia existir uma paisagem de colcha de retalhos: lotes agrcolas em produo, lotes recentemente abandonados cobertos por gramas e ervas, lotes recm-abertos mas ainda no plantados, lotes abandonados h mais tempo cobertos por ca-poeira mais ou menos densa, e extenses de terra cobertas por florestas primrias no afetadas pela agricultura.

    Ou seja, geralmente a floresta tropical resiste a alteraes locali-zadas e recoloniza naturalmente trechos usados por algum tempo pela agricultura itinerante. No entanto, preciso notar que uma floresta secundria, mesmo madura de algumas dcadas, no tem a mesma composio, a riqueza biolgico-ecolgica e sequer a apa-rncia de uma floresta madura centenria. Uma floresta secundria que resulte da eliminao total ou quase total da cobertura vegetal original (para agricultura ou pecuria) uma floresta alterada pela ao humana, quer os agricultores sejam Tupi ou europeus. Do ponto de vista ecolgico, essa floresta secundria um ecossiste-ma simplificado pela ao humana, pois nela muitas espcies da mata primria esto faltando, temporria ou permanentemente. Como diz Dean, conforme os indgenas residentes em terras do Rio de Janeiro se tornaram mais dependentes da agricultura, sua sobrevivncia dependia cada vez mais do consumo de estoque bitico complexo da floresta madura. Tudo indica que em tor-no de 1.500 deles transitavam para uma dependncia cada vez maior em relao agricultura como fonte de alimentos, ainda que continuassem caando, pescando e coletando. As presses dos indgenas sobre a floresta, j multiplicadas 400 anos antes

  • 42Voltar para o sumrio

    pela chegada dos agricultores Tupi, estavam portanto quase que certamente crescendo de forma proporcional sua populao.

    Ou seja, no que toca aos recursos naturais teis espcie humana, os indgenas fluminenses no foram neutros ou inofensivos. Se os povos dos sambaquis concentravam o seu consumo em vegetais e animais selvagens, os Tupinamb estavam desde antes do ano de 1100 usando vegetais domesticados que permitiram um grande aumento e adensamento populacionais. Isso, por sua vez, ampliou o consumo dos estoques disponveis de recursos selvagens e as pressoes por expandir as reas dedicadas s plantas domesti-cadas. Assim, a presso sobre o capital natural estava crescendo independente da presena de europeus.2

    O mais importante at aqui que a populao indgena do atual territrio fluminense era grande, antiga e tinha tecnologia agrcola mais do que suficiente para alterar embora no para destruir qualquer equilbrio ecolgico natural porventura existente na regio antes de sua presena. Na verdade, grande parte das florestas virgens do continente americano que impressionavam tanto os europeus recm-chegados tinha sido em algum grau mo-dificada pela agricultura de coivara. Ainda assim, essa populao indgena no foi um fator de disrupo dos ecossistemas locais. H muitos fatores moderadores a considerar. Eles tornaram os indgenas apenas modificadores desses ecossistemas. Veremos esses fatores a seguir.

    Os indgenas fluminenses e a variedade de recursos naturaisNo fim das contas, a agricultura itinerante dos Tupinamb e ou-tros indgenas fluminenses era mesmo incipiente. O nmero de espcies cultivadas era modesto e as reas efetivamente plantadas no eram grandes. A populao indgena, embora crescente, era pequena e dividida em aldeias que raramente tinham mais de

    2 eRSRUWXQROHPEUDUDTXLTXHQmRKiUHJLVWURGHDQLPDLVGRPpVWLFRVGHVHUYLoRHQWUH RV LQGtJHQDV GR WHUULWyULR EUDVLOHLUR (OHV WHULDP DXPHQWDGRPXLWR DVSUHVV}HVVREUHRFDSLWDOQDWXUDOSRLVH[LJHPSDVWRVRXUDo}HVJHUDGDVSRUSODQWDVGRPHVWLFDGDVRXFROHWDGDVDOpPGHPXOWLSOLFDUDFDSDFLGDGHKXPDQDGHDOWHUDURPHLRDPELHQWH2VDQLPDLVGRPpVWLFRVTXHVHDOLPHQWHPSRUVLPHVPRVRXVHMDPDOLPHQWDGRVSRUDOLPHQWRVSODQWDGRVRXFROHWDGRVDFDEDPFRPSHWLQGRFRPDIDXQDVHOYDJHPSRUPHLRVOLPLWDGRVGHVXEVLVWrQFLD

  • 43Voltar para o sumrio

    mil pessoas. O seminomadismo desestimulava proles numerosas. Os nveis de consumo eram de subsistncia. Considere-se ainda que muitas faixas de territrio, mesmo na rea litornea onde se concentravam os indgenas fluminenses, eram disputadas por grupos distintos e por isso no estavam sujeitas explorao sistemtica. Ou seja, para o conjunto das populaes indgenas existiam reas de fronteira onde eles no faziam trabalho agrcola, sendo por isso pouco usadas ou apenas marginalmente utilizadas.

    Acima de tudo, preciso recordar que a baixada litornea flu-minense tinha recursos naturais teis em grande quantidade e variedade. Dean destaca, com muita propriedade, que os indgenas fluminenses de 1500 no tinham uma dieta de fome. Muito pelo contrrio, a sua dieta era rica e variada e nem toda ela depen-dia de derrubada de florestas. Isso indica no apenas a escala relativamente pequena da agricultura, mas ainda o consumo de numerosos outros recursos alm de plantas domesticadas para a subsistncia dos nativos. Essa abundncia de recursos alimentares nos esturios, mangues, florestas, lagoas, rios e baas conspirava contra um grande investimento de trabalho na agricultura. A dieta Tupinamb inclua toda espcie de caa (mamferos, aves, quel-nios, rpteis), inmeros peixes e outros seres de gua doce e de mar (camares, pitus, botos e at baleias), ovos de aves marinhas, moluscos e crustceos habitantes dos lamaais dos mangues e at certos tipos de formigas. Os indgenas tambm coletavam castanhas, frutas, mel, razes e outros alimentos silvestres.

    Todos so recursos naturais renovveis, quando usados para subsistncia de populaes modestas e esparsas. Nessas circuns-tncias de abundncia de recursos coletveis, a coivara exigia apenas 20 km2 de terras usadas e em (Warren Dean) por aldeia para complementar a subsistncia da populao com feijo, mi-lho, mandioca, inhame, amendoim, abbora, batata etc. Assim, os indgenas distribuam as suas presses de subsistncia por uma grande variedade de recursos (terrestres e aquticos) e no che-garam a ameaar a integridade do recurso terrestre fundamental, as florestas tropicais.

    Voltemos questo da intensidade da agricultura itinerante. Afir-mei que o reaproveitamento de antigas reas de plantaes, cober-

  • 44Voltar para o sumrio

    tas por capoeiras (matas secundrias) era certamente prefervel difcil abertura de novas reas cobertas com florestas nativas ou de capoeiras antigas. Os indgenas sabiam identificar as virtudes agrcolas dos solos j usados. Havia ainda convenincias como topografia plana e boa localizao que faziam alguns lotes mais desejveis do que outros. Os indgenas desconheciam machados e serras metlicas antes da chegada dos europeus, o que dificultava extraordinariamente a derrubada das muitas rvores grossas; a falta de foices e enxadas impedia um controle mais efetivo das ervas indesejadas e estimulava o abandono mais rpido das reas cultivadas. Isso, por sua vez, favorecia a formao de florestas secundrias de porte significativo em perodo relativamente cur-to (duas ou trs dcadas). O resultado lquido desses fatores, j mencionado, era o uso repetido de reas agrcolas conhecidas e a reduo da presso sobre as florestas nativas.

    Outros fatores tambm moderavam o impacto dos indgenas flumi-nenses sobre as florestas e outros componentes do ambiente. Os indgenas se concentravam na Plancie Costeira. As extensas reas montanhosas do Estado do Rio de Janeiro eram usadas apenas para expedies peridicas de caa e coleta ou para migraes. O frio, o excesso de chuvas, a virtual ausncia de planaltos e as encostas ngremes desestimulavam a localizao de aldeias e plantaes nas montanhas da Serra do Mar.

    Detalhe fundamental que no existe registro de que qualquer recurso usado pelos diversos grupos indgenas fosse objeto de comrcio ou trocas em larga escala. Em outras palavras, no havia estmulos de mercado para produzir/coletar determinados bens numa escala superior da subsistncia, tal como ocorreria, por exemplo, com o pau-brasil logo aps a chegada dos primeiros europeus. Quando os europeus estimularam (inclusive com a doao de machados metlicos) os nativos litorneos a coletar o pau-brasil na Mata Atlntica, em poucas dcadas a rvore se tornou rara em torno das aldeias litorneas e das rotas para o interior. muito improvvel que os indgenas, que localizavam, cortavam e transportavam as toras de pau-brasil, se importassem ambientalmente com a sua rarefao.

  • 45Voltar para o sumrio

    Relatos dos missionrios, viajantes e exploradores do sculo XVI mostram que os indgenas fluminenses no tinham animais domsticos, como bois, cabras, ovelhas, porcos, cavalos (todos introduzidos pelos europeus) ou lhamas (como alguns povos andinos). Como foi dito acima, tais animais exigiriam reas de pastoreio fabricadas e mantidas pelos humanos, ou raes origi-nrias de plantaes. Ou seja, no havia animais domsticos que aumentassem indiretamente a presso humana sobre as florestas fechadas e multiplicassem a energia disponvel para ampliar a agricultura. A formao de pastagens historicamente uma das atividades humanas de maior impacto ambiental, pois implica ne-cessariamente no empobrecimento bitico de grandes extenses de ecossistemas mais complexos. (CRONON,1983)

    Alis, antes de 1500 os indgenas fluminenses sequer tinham ces domsticos, aliados tradicionais de muitos povos caadores na localizao e perseguio dos animais de caa. Adotaram--nos rapidamente, a partir de trocas com os europeus. O mesmo ocorreu com as galinhas. Os nicos animais sistematicamente domesticados mais freqentemente capturados e depois criados em cativeiro pelos indgenas fluminenses antes da chegada dos europeus no eram de servio. Eram aves principalmente psi-tacdeos (papagaios, araras, jandaias, periquitos e ranfustdeos) tucanos cuja plumagem era usada para fins utilitrios, rituais ou estticos. Pequenos primatas (micos) eram s vezes mantidos como brinquedos infantis. Os efeitos disso sobre as populaes desses animais eram provavelmente mnimos, embora no se possa ignorar que povos primitivos por vezes fazem perseguies implacveis contra certas espcies animais.

    Mitos e usos dos recursosUma ordem bem distinta de consideraes se coloca quando pas-samos das variveis populacionais e tecnolgicas para os valores culturais dos indgenas. Em todo o territrio brasileiro eles eram mticos nas suas religies e cosmogonias. Os mitos abarcavam os seus conceitos sobre o mundo natural. As religies histricas

  • 46Voltar para o sumrio

    judaico-crists, em contraste, romperam com os mitos, desencan-taram as paisagens e desenvolveram uma verdadeira abominao pela natureza intocada pela mo humana. Coerentemente, elas desprezam os povos animistas (idlatras) cujas cosmogonias os submetem aos processos naturais. Em contraste com todos os colo-nizadores cristos europeus (herdeiros da tradio judaico-crist), a viso de mundo dos amerndios era mtica, especialmente no tocante aos relacionamentos entre humanos e os demais elemen-tos do mundo natural. Os povos mticos valorizam os territrios que habitam como portadores de elementos dotados simultane-amente de valores terrenos e extra-terrenos. Ou seja, a terra e os demais elementos do ambiente natural tm ao mesmo tempo valores utilitrios e sagrados. Os seus usos so por isso muitas vezes condicionados por interdies religiosas especficas. Nor-malmente as religies mticas derivam de narrativas fundadoras em que animais, plantas, rios ou montanhas tm papis cruciais em episdios da construo da cultura e da sociedade humana, tais como a criao do mundo, a apario do homem, a inveno de ferramentas, a descoberta do fogo ou da agricultura etc.

    Uma viso exageradamente romntica da mente mtica sustenta que ela faz dos povos mticos agrupamentos humanos ecolgi-cos ou ambientalistas, eximindo-as dos impactos sobre os seus ambientes. bem mais realista reconhecer que os povos mticos tm restries culturais ao consumo ampliado de muitos recursos naturais, mas que nunca deixam de us-los sistematicamente, de acordo com uma escala de necessidades geralmente modesta. Ou seja, as restries mticas implicam em usos distintos daqueles usos dos povos de religio histrica, mas no eliminam o consu-mo dos recursos naturais nem anulam os impactos disso no meio ambiente. A prpria ausncia ou fraqueza de relaes comerciais internas a cada grupo ou entre os grupos indgenas americanos que no tem necessariamente fundamentao religiosa j em si mesma uma poderosa restrio cultural ao consumo de recursos naturais. (TURNER, 1990; RIBEIRO, 1988; CAMPBELL, 1970; SAHLINS, 1972)

    O mais importante neste particular entender que os marinheiros, soldados, padres e colonizadores europeus que chegaram ao lito-ral fluminense nos primeiros anos do sculo XVI no encontraram

  • 47Voltar para o sumrio

    uma paisagem intocada pelas mos humanas. Encontraram um territrio explorado por populaes humanas (a) de presena muito antiga; (b) dotadas de tecnologias adaptativas (nomadismo, fogo e agricultura, principalmente) capazes de provocar alteraes significativas no ambiente; (c) conhecedoras e consumidoras de muitos recursos naturais disponveis. Aos olhos encantados de muitos viajantes europeus, porm, os impactos ambientais dos nativos como que desapareciam na riqueza da luxuriante paisa-gem tropical.

    As primeiras narrativas europias destacam muito mais o carter ednico das terras virgens e os abundantes recursos naturais (reais ou imaginrios), como terras, plantas e ouro, que os co-lonizadores poderiam explorar. Tal como muitos ambientalistas contemporneos, aquelas narrativas minimizaram ou ignoraram as alteraes ambientais produzidas pelos idlatras semi-nus que habitavam as terras recm-descobertas. Esta foi uma operao cognitiva etnocntrica que em primeiro lugar destituiu os ind-genas do estatuto de humanidade plena. Naturalizados podiam ser tratados (realmente foram) pelos europeus como animais ou seres sub-humanos. E mais: essa operao apagava o trabalho indgena coleta, caa e agricultura e anulava os seus direitos terra e aos seus frutos. curioso observar como boa parte dos ambientalistas contemporneos recaiu nessa etnocntrica natu-ralizaco dos povos indigenas, a pretexto de salvar indgenas remanescentes, suas culturas e suas terras. A causa nobre, mas a sua sustentao equivocada.

    De toda forma, destaco que as minhas concluses sobre os im-pactos ambientais das populaes indgenas do Estado do Rio de Janeiro so um tanto diferentes das de Warren Dean. Ele sustenta que um pico hipottico de 9 habitantes por km2 na densidade populacional dos indgenas, por um perodo de 500 anos, talvez tivesse causado, apenas pelos usos associados coivara, a destrui-o total das florestas costeiras fluminenses uma vez a cada 110 anos. Esse prazo no permitiria a reconstituio de uma floresta tropical de clmax ou madura. Nessa hiptese, a paisagem florstica predominante na faixa litornea do Estado do Rio de Janeiro, em 1500, teria sido inteiramente fabricada ou profundamente alterada

  • 48Voltar para o sumrio

    pelo homem depois de vrios ciclos completos de substituio de florestas maduras por lotes agrcolas.

    Supondo, no entanto, que os 150 mil indgenas da populao hipottica mxima de indgenas fluminenses se distribussem em 150 aldeias de mil habitantes, cada uma delas requerendo 20 km2 (calculados pelo mesmo Dean) de rea florestal a ser plantada num ciclo rotativo, este tipo de impacto direto da agricultura ind-gena afetaria uma rea total de 3000 km2, apenas 9% do territrio fluminense atual. O uso repetido das melhores terras agrcolas impediria esse ciclo de uso total a cada 110 anos. Em outro texto, o mesmo Dean faz um clculo bem mais ameno do alcance dos impactos ambientais da agricultura dos amerndios do Sudeste brasileiro. Ele estima que apenas 5% da paisagem original de florestas tropicais e subtropicais, de campos gerais e de campos cerrados do extenso planalto paulista foram transformados em cinco sculos pela agricultura itinerante de uma numerosa e densa populao indgena dotada da mesma tecnologia agrcola, antes da chegada de europeus. (DEAN, [s.d.], p. 77)

    Portanto, parece-me mais factvel supor que (a) os impactos dos indgenas fluminenses se concentraram na Plancie Costeira, me-nos de 1/3 da rea do atual Estado do Rio de Janeiro; (b) grande parte desses impactos se deu sobre recursos naturais renovveis; e (c) isso se deu em escalas compatveis com a renovao natural da floresta e de outros recursos. Em suma, penso que uma popu-lao indgena razoavelmente grande viveu em terras fluminenses por um perodo longo, com uma tecnologia relativamente impac-tante, mas sem erradicar nem alterar radicalmente a cobertura florestal e sem destruir qualquer outro recurso ambiental de que se tenha notcia.

    Quando os marinheiros e colonizadores europeus chegaram ao litoral fluminense, as cores, os cheiros, os sabores e os sons es-timularam uma viso do paraso. A angustiada cultura europia mergulhada em inquisies, cruzadas, guerras e cismas religio-sos, doenas epidmicas e misria os predispunha a encontrar um paraso terrestre. Como foi dito, eles ficaram impressionados com a condio aparentemente virgem daquelas terras perdidas e agora diligentemente descobertas com a ajuda do deus dos

  • 49Voltar para o sumrio

    cristos. Como mostra Srgio Buarque de Holanda, com erudio, elegncia e humor, no foram poucos os viajantes e telogos europeus do sculo XVI portugueses, espanhis, franceses, ho-landeses, italianos ou alemes que acreditaram seriamente estar nas Amricas o paraso terrestre. (HOLANDA, 1985) O prprio Colombo escreveu sobre isso.

    No mnimo do seu entusiasmo, os viajantes europeus se imagi-navam e se descreviam em tons bblicos como os portadores da civilizao e da verdadeira religio, penetrando num deserto, a ser conquistado e dominado para a glria de seu deus e reis. So copiosas nas crnicas coloniais as comparaes entre os coloniza-dores europeus e a saga do xodo dos antigos israelitas, narrada no Velho Testamento. A Amrica era a nova terra prometida para os europeus. No Brasil, em particular, colonos, mercadores, fazendeiros, militares, marinheiros e padres portugueses, repre-sentando o bastio mais conservador do catolicismo europeu em crise (com a Reforma Protestante), formaram tacitamente um exrcito invasor cuja misso cumprida com grande eficincia, alis foi assegurar as terras novas para Portugal, procurar e explorar riquezas e converter o gentio ao catolicismo. Por isso, no captulo seguinte, fao uma apreciao sobre a eficcia colonialista dos portugueses e sobre os impactos do colonialismo portugus no quadro ambiental das terras brasileiras. Como veremos, os portugueses combinaram os seus usos antigos e trazidos de longe com os usos nativos e tambm antigos.

  • 51Voltar para o sumrio

    3 PORTUGAL DA MARINHAGEM EXPLORAO COLONIAL

    Uma escola de exploradoresPara apreciar os impactos ambientais resultantes da presena dos europeus no territrio do atual Estado do Rio de Janeiro ser ne-cessrio analisar brevemente o projeto colonialista portugus. A pequena nao portuguesa, alm de extensas colnias na frica e de entrepostos e longas rotas comerciais na sia, conseguiu con-trolar ou colonizar grande parte da banda oriental da Amrica do Sul, do equador at a latitude 30o sul, aproximadamente. Portugal, alis, no controlou apenas o litoral Atlntico, mas alcanou ainda uma notvel expanso para o interior do continente sul-americano, aproveitando a falta de interesse dos espanhis na explorao de grande parte das reas que lhe cabiam pelo Tratado de Tordesi-lhas, de 1494. Pelo menos na sua extenso, portanto, o imprio colonial portugus foi uma enorme conquista para uma nao pequena e marginal no contexto europeu.

    Os brasileiros somos em grande parte frutos do projeto colonia-lista de Portugal. Talvez por isso mesmo nem sempre refletimos com iseno sobre os desafios enfrentados e os sucessos alcan-ados por Portugal. Do ponto de vista deste texto o do uso do territrio fluminense e de seus recursos naturais Portugal foi o principal introdutor de modalidades europias de explorao econmica, ou seja, novas e mais impactantes formas de avaliar e explorar os recursos do territrio brasileiro. Dessa perspectiva, os portugueses foram sem dvida alguma colonizadores muito conseqentes. As suas aes causaram modificaes ambientais extensas e profundas. Assim, imprescindvel examinar alguns aspectos do mpeto colonial portugus para avaliar os seus efeitos ambientais de curto e mdio prazos.

    Um dos principais fatores do mpeto colonialista portugus foi seu papel de vanguarda na tecnologia das exploraes martimas. Desde cedo na histria moderna da Europa, governantes e elites

  • 52Voltar para o sumrio

    portuguesas perceberam que a vocao geopoltica daquele que foi o primeiro estado-nao da Europa moderna deveria incluir, se no priorizar, a explorao e o comrcio martimos de longo curso. O ultramar cristalizou-se como um projeto da nascente nacio-nalidade portuguesa pelo menos desde 1415, com a conquista de Ceuta. Os seculares esforos de expulso dos muulmanos do seu territrio foraram os portugueses a raciocinar geopoliticamente em termos do mar Mediterrneo e do litoral norte da frica. Os sculos de dominao muulmana colocaram os portugueses em contato indireto com muitos recantos dos vastos domnios do Is-lo, no norte e leste da frica, no Oriente Mdio, na sia e ilhas do Pacfico, dando aos portugueses uma vocao cosmopolita precoce no paroquial mundo europeu de ento.

    A famosa Escola de Sagres, criada no Algarve em princpios do sculo XV, dirigida pelo visionrio e mstico Henrique (O Infan-te), expressou bem essa percepo. Ela foi um bem-sucedido projeto de reunir, em escala multinacional e multicultural, todos os tipos de conhecimento disponveis para um empreendimen-to de longo prazo baseado na explorao martima de longo curso. O currculo pragmtico e abrangente da escola inclua construo e manuteno navais (inclusive o desenho de embar-caes adequadas, a escolha das melhores madeiras e demais matrias-primas), a seleo de provises e conservas, as artes de navegar em alto mar e ao longo de litorais, o reconhecimento de pontos importantes do litoral (portos e desembocaduras de rios, principalmente), a navegao por instrumentos, a cartografia, o armamento, as lnguas estrangeiras. Estudavam e testavam at os tipos de bugigangas mais atraentes para fazer trocas com povos indgenas (espelhos, pentes, contas de vidro, sinos, apitos etc.) (TURNER, 1990 ; CROSBY, 1986). Tcnicas e tradies de povos europeus, asiticos e africanos foram deliberadamente combina-das nessa momentosa escola nutica, onde o prprio Cristvo Colombo fez um proveitoso estgio.

    Como conseqncia de sua avanada tecnologia de viagens mar-timas, os portugueses ganharam experincia nutica, colonizaram diversas localidades das costas norte e oeste da frica, alm das ilhas atlnticas (Madeira, Aores, Canrias etc.) As habilidades nuticas os ajudaram a criar o moderno trfico de escravos ne-

  • 53Voltar para o sumrio

    gros, a usar a mo-de-obra escrava em plantaes comerciais e se estabelecer no comrcio de produtos exticos. Os mercadores portugueses e a prpria Coroa se entusiasmaram com as possibi-lidades de intermediao comercial entre frica/sia e a Europa. O projeto colonial portugu