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DOSSIÊ PERSPECTIVAS HISTÓRICAS DO ORIENTE MÉDIO
Revista Ipsis Libanis
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Ano 1 Número 4
ISSN:2526-0340 2017
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DESVENDANDO O ORIENTE: UMA ANÁLISE DO CONCEITO DE PODER EM AS MIL E UMA NOITES
Sarah Bevilaqua Zanforlin1
Elaine Cristina Senko2
Resumo
Apresento nesta pesquisa uma análise do livro As Mil e Uma Noites, especificamente uma comparação entre o Ramo Sírio e o Ramo Egípcio da coleção; suas diferenças culturais e a relação de poder entre seus respectivos governantes, Harun Al-Rashid e Malik Al-Daher Barquq. Ao estudar as histórias que se desenrolam através de mímises, é possível observar a riqueza cultural do povo árabe e estudar as diferentes formas que tais governantes lideravam seu povo, suas relações com seus conselheiros, religião e várias outras formas culturais.
Palavras-chave: As Mil e Uma Noites. Mímeses. Cultura Árabe. Oriente. História. Resume
I present in this study a book analyzing of Arabian Nights, specifically a comparison between the Syrian branch and the Egyptian branch of the collection; their cultural differences and power relations between their respective governments, Harunal-Rashid and Malik Al-Daher Barquq. By studying the stories that unfold through mimicry, you can see the cultural richnessof the Arab people and study thedifferent forms that such rulers led their people, their relationships with their counselors, religion and various other cultural forms. Keywords: A Thousand and One Nights. Mimesis. Arabe culture. East. History.
Introdução
As Mil e Uma Noites é uma obra literária clássica do Oriente Médio e Sul da Ásia que
engloba contos conhecidos mundialmente. O estudo deste livro contribui para compreender o
contexto sociológico e construir um pensamento crítico em relação à cultura árabe e,
consequentemente, um aprofundamento e reconhecimento de seu povo.
Para o islamismo, o primeiro livro literário é considerado o Alcorão, depois dele há as
seguintes presenças narrativas do Oriente no Ocidente: As Mil e Uma Noites, Calila y Dimna e
1 Graduada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Faculdade de Pato Branco e Pós-Graduanda
em História Contemporânea pela Universidade Paranaense – Francisco Beltrão. Francisco Beltrão, Paraná, Brasil.
[email protected] 2 Professora Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná. Orientadora.
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a produção dos zegéis amorosos e dos muachahats (odes) políticas (ambas produções
andaluzas3).
Os contos compilados em As Mil e Uma Noites são originários de diferentes épocas e
regiões e foram transmitidos, primeiramente, oralmente, como escreveu Mamede Mustafa
Jarouche, tradutor da última edição do livro no Brasil4.
Embora os contos, construídos ao longo de vários séculos, sejam de origem oriental,
eles também tornaram-se parte da história cultural ocidental e, assim, alguns de seus elementos
– como tapetes voadores, lâmpadas mágicas e gênios - estão impregnados no imaginário do
Ocidente. Porém, mais do que fábulas e contos de fadas qual deixaram para o mundo uma
grande herança artística, as histórias contadas em As Mil e Uma Noites abordam temas
universais sobre a vida humana, como amor, coragem, felicidade, morte, etc. Nota-se,
principalmente, a crítica proposital reproduzida por Sahrazad (personagem narradora dos
contos) em relação a política e espiritualidade, onde apresenta temas importantes de justiça,
humildade, perdão e perfeição espiritual.
O conceito de poder é amplamente explorado ao longo dos contos e sua representação
se dá através de personagens governantes que o detêm. As consequências disso nas histórias
é muitas vezes realçada, dando um grande leque de possibilidades para o estudo histórico, já
que os contos divergem em ramos sírio e egípicio, onde é possivel analisar dois distintos
patrocinadores: Harun Al-Rashid (766-809) e Malik Al-Daher Barquq (governante de 1383-1399,
com interrupções).5
Diferenciando o Ramo Sírio (noites 33 até a 62) do Ramo Egípcio (principalmente as
lições de Davi e Salomão no Volume 3), que é a proposta deste trabalho, nota-se proeminente
a diferença entre os dois para a conceitualização de poder.
3 Relativo a região de Al-Andaluz, sul da Espanha. 4 Mamede Mustafa Jarouche apud Almas c Udi: “Ele sabia muito bem (...) que os relatos históricos são comumente
constituídos de versões, muitas vezes discrepantes entre si, transmitidas ao historiador por quem participou do evento
ou o presenciou, ou ainda ouviu sobre ele relatos de terceiros. Um dos recursos dessa prática, fundamental na recolha
dos relatos dos hadites do profeta Maomé, era o insad, que consistia no encadeamento de testemumunhos que efetuam
uma regressão temporal linear ‘ouvi de fulano, que ouviu de beltrano, que ouviu de sicrano, que ouviu de alano, etc’”. 5 Segundo o estudo de Elaine Cristina Senko, As Mil e Uma Noites refletem o modelo de governança de ambos
citados: “A história convivia ao lado da narrativa ficcional, a literatura (...) possuía um crescente respaldo também
como orientação moral, tendo em vista sua produção envolver personagens relacionados ao poder tal como Harun
Al-Rashid, cuja presença constante é percebida tanto em As mil e uma noites como na Muqaddimah. SENKO, Elaine
Cristina. O passado e o futuro assemelham-se como duas gotas d’água: Uma reflexão sobre a metodologia da
história de Ibn Khaldun (1332-1406). Curitiba: PPGHIS UFPR, 2012, p. 172.
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Características de Narração
A partir da história 33ª do Ramo Sírio, os contos possuem elementos ainda mais
peculiares que atiçam a curiosidade para desvendar o que vem em seguida. Desde o começo
do livro, as histórias são entrelaçadas uma na outra, porém a partir deste ponto, estas tornam-
se mais longas e complexas.
É essencial notar algumas particularidades que compõe basicamente todos os contos do
Ramo Sírio. As narrativas – tanto de Sahrazad, como dos personagens dentro da história –
possuem detalhes mínimos na descrição de lugares e pessoas. Também os protagonistas dos
contos são, geralmente, relacionados com o sultanato: caso já tenham laços familiares com a
nobreza no ínicio da história, geralmente acontece uma reviravolta, conhecida dentro da
narratividade como catarse6, que frequentemente se dá pela arrogância ou imprudência do
personagem e acabam perdendo o status inicial, seguido por arrependimento ou culpa, como
se lê no trecho da noite 62ª (Conto do Terceiro Dervixe, dentro do conto O Carregador e as Três
Jovens de Bagda):
Cada um estava na melhor vida, gozando dos mais deliciosos prazes, mas não pode esperar quarenta dias para desfrutar um ano de comida, bebida e cuidados; comer galinha, escorropichar garrafas, dormir em brocado; beber vinho e dormir junto ao seio de mulher graciosas. Mas nossa curiosidade não deixou, e nosso olho foi arrancado. Eis-nos agora, conforme você vê, a chorar o que passou. (As Mil e Uma Noites, 2012, p. 183).
Já o personagem que é pobre e humilde no ínicio no conto, por meio de trabalho árduo
ou forças do destino - como encontrar-se com ifrits7, outros personagens invejosos que
engrandecem o protagosnista aos olhos do leitor, personagens benfeitores, etc. - terminam a
história com um final feliz. Pode-se notar a semelhança que os contos de As Mil e Uma Noites
apresentam junto com os contos de fadas clássicos ocidentais, contados a partir do século VII,
exatamente quando o Islamismo surge como religião.
6 Catarse de uma história significa o ápice da tragédia. 7 Citado a primeira vez em no livro na pág. 46, em nota de rodapé: Como as palavras “demônio” ou “diabo” não dão
conta do sentido, optou-se por uma transcrição aproximada do termo ifrit, já verificada no Alcorão (...) Em outros
manuscritos usa-se jinni (gênio).
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A grandeza de Deus, igualmente, é realçada em todos os contos repetidas vezes,
especialmente através da frase: “Não há poderio nem força senão em Deus altissímo e
poderoso”, assim como o ato dos personagens de “fazer abluções e rezar”, que, como o nota o
primeiro rodapé da obra onde aparece essa expressão (1º noite), “embora descreva um ritual
aparentemente islâmico e se valha da terminologia muçulmana, neste ponto o texto parece
referir-se a uma religião anterior ao Islamismo”8. Assim como nos contos das noites seguintes,
o ato dos personagens beberem vinho também pode levar a essa mesma interpretação; ou
pode-se concluir que a embriaguez dos personagens – em praticamente a maioria dos contos –
faz-se desenrolar infortúnios e isso conte como lição moral e espiritual, de acordo com as regras
do Islamismo.
Os contos também apresentam muitos provérbios populares, como por exemplo: “Estava
sossegado mas minha curiosidade me deixou ferrado” e “Olho que não vê, coração que não se
entristece”, os equivalentes para “A curiosidade matou o gato” e “O que os olhos não vêem, o
coração não sente”, ou seja, a influência das lições contidas nesses provérbios estão presentes
até hoje no dia-a-dia do Ocidente.
É importante também ressaltar a representação das mulheres nos contos. Raramente as
mulheres apresentadas são descritas por inteligência, e sim pela paixão e sensualidade. Na
maioria das vezes, as personagens femininas aparecem para serem cobiçadas pelos homens,
quais desempenham papéis mais importantes na narrativa. Mas claro, existe excessões, como
o exemplo mais óbvio em Sahrazad, que arrisca sua vida durante a execução do plano que
impede o marido de matar mais mulheres. A personagem é descrita no começo da obra como
sábia e culta:
Sahrazad tinha lido livros de compilações, de sabedoria e de medicina; decorara poesias e consultara as crônicas históricas; conhecia tanto os dizeres de toda gente como as palavras dos sábios e dos reis. Conhecedora das coisas, inteligente, sábia e cultivada, tinha lido e entendido. (As Mil e Uma Noites, 2012, p. 49).
Seu conhecimento favorece a coleção inteira do livro, pois significa que possui talento e
sabedoria para a narração. Portanto, pode-se obeservar através dos contos, que a cultura
8 JAROUCHE, Mamede Mustafa. In: ANÔNIMO. As Mil e Uma Noites. Vol. 1. São Paulo: Editora, 2005, p. 57.
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impregnada na época era claramente machista, o que torna particularmente notáveis as
representações ocasionais de mulheres fortes e sábias.
A análise da mímesis9 de As Mil e Uma Noites também é de grande importância para o
estudo e para compreender o tipo de governança aplicada, como cita Elaine Cristina Senko em
seu artigo “E a aurora alcançou Sahrazad: Reflexões sobre a mímesis na obra ‘As Mil e Uma
Noites’”:
Como verificamos na obra [As Mil e Uma Noites], mais especificamente no ramo sírio, há varias referências e perspectivas acerca do califado abássida, sucessor do governo omíada a partir de 750, assim como um realce da imagem, através da mímesis, de Al-Rashid. Este parecia compreender a importância “propagandistica” de tal escrito, pois, numa época em que a ascensão da família barkamida (de origem persa) ao poder o preocupava, a obra acaba potencializando argumentos de critica em relação aos personagens barkamidas. (SENKO, 2012, p. 260).
Representação da realidade
Tanto Platão quanto Aristóteles consideravam a mimesis como a “representação da
natureza”. Platão escreveu sobre mimesis no clássico: A República, onde afirmava que a poesia
é a arte da “loucura divina”, ou, mais comumente conhecida, “inspiração”. Como a cultura na
época consistia na escuta de oradores ou poetas, Platão expunha que o teatro não era suficiente
em transmitir a verdade; ele argumentou que os atores persuadiam a audiência pela retórica em
vez da verdade. Ou seja, para o filósofo, o mundo em si não passa de um mero reflexo do que
seria a realidade: o mundo das ideias.
Já Aristóteles, por sua vez, no clássico Arte Poética, questiona a teoria, argumentando
que a natureza humana é tão complexa que somente a arte poderia representá-la. Aristóteles
afirmava que os seres humanos sentem um desejo de “criar” a fim de representar a realidade.
O filósofo, porém, considerava importante que houvesse certa distância entre arte e a vida real;
pois sem esta, a tragédia não poderia dar origem a um dos principais pontos da mímesis e visto
em todos os contos neste estudo de As Mil e Uma Noites: a catarse. Sustentava que é através
da mímesis da atuação que o público consegue ter empatia pela história e é a tarefa do artista
fazer com que isso aconteça. Em suma, a catarse só pode ser alcançada se o ser humano
interpreta a arte como algo reconhecível e distante ao mesmo tempo.
9 Do grego, imitação ou representação. Ficção realista.
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Aristóteles ainda argumentava que a literatura é mais atraente como um meio de
aprendizagem do que história em si, isso porque a história lida com fatos específicos e
acidentais, enquanto a literatura - embora muitas vezes com base na história - lida com eventos
que poderiam ou deveriam ter ocorrido. Assim como José D’Assunção Barros, ao estudar Paul
Ricouer10, em seu trabalho Paul Ricoeur e a Narrativa Histórica, afirma o seguinte:
Seu cuidado especial [Ricouer] foi o de demonstrar a especificidade da narrativa historiográfica frente à narrativa ficcional, e não de confundir estas duas modalidades narrativas, esta alternativa que na época já surgia como um dos discursos historiográficos da pós-modernidade. Distanciado em relação a esta posição que não se incomodava em confundir História e Ficção, Paul Ricoeur empenhou-se em demonstrar que uma das singularidades da narrativa histórica era a de também se apresentar como um discurso cuja intencionalidade apontava para um referente real (ou existente) do Passado. Retomar a narrativa como uma dimensão fundamental para o discurso histórico não implicava, para Ricoeur, em um mergulho na ficção. Quando muito, a narrativa histórica poderia reivindicar para si o “duplo estatuto de realidade e ficção.” (BARROS, 2011, p. 05).
Na coleção objeto deste estudo, nota-se que tanto Harun Al-Rashid como Malik Al-Daher
Barquq11, utilizaram nas mímesis como uma forma de publicidade e influência política. Sendo
uma ficção realista, a amplitude da propaganda se dava de modo sutil, porém pode-se interpretar
tal ato semelhante ao que seria conhecida, atualmente, como assessoria12.
Além da afirmação de Aristóteles e Ricouer, no estudo The Morals of History, Tzvetan
Todorov13, afirma a teoria de ambos quando escreve:
(...) Between fiction and truth, our modernity offers an even more radical one, which claims not that fiction and truth are indistinguishable, but that fiction is truer than history: the distinction is retained, but the hierarchy is inverted. In a recente book [...] the historian and the ethnologist must, according to the stubborn rules of their professions, report only what has
10 Filósofo e pensador francês, 1913. 11 “O governo de Barquq concentrou notável força política em sua época, superando de modo estratégico as
dificuldades de ordem social que o período de guerra civil legou. Pois bem, foi entre tais circunstancias que o governo
de Barquq patrocinou a recolha e sistematização da tradição oral muçulmana (persa, indiana, árabe e egípcia) que, ao
final, viria a compor uma versão extensa e duradoura da obra As Mil e Uma Noites.” SENKO, Elaine Cristina. E a
aurora alcançou Sahrazad: Reflexões sobre a mímesis na obra ‘As Mil e Uma Noites’. Rio de Janeiro: PEM
UFRJ, 2012, PG 12 Veículo (neste caso As Mil e Uma Noites) que conquista uma imagem positiva e de confiança junto à sociedade. 13 Filósofo e linguista búlgaro.
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taken place, only what they can establish as facts; while the novelist, who is not subject to "this cult of the true word" (26), has access to a higher truth, beyond the truth of details. Historians and ethnologists would thus do well, according to Auge, to follow in the novelists' footsteps. (TODOROV, 1995, p. 54)14
Com base em tais afirmações, pode-se assegurar que o estudo de As Mil e Uma Noites
convém perfeitamente como contribuição para inteligibilidade histórica, ainda que classificada
como literatura de caráter ficcional.
Todorov ainda vai longe em seu estudo sobre a moral da história; ele pergunta se alguns
marcos históricos, na realidade, não poderiam ser considerados ficcionais, e dá um exemplo
claro: “A descoberta da América”, argumentando que isso somente é considerado um fato
histórico pelo ponto de vista eurocêntrico, pois pela visão dos nativos americanos, seria a “A
invasão da América”, ou seja, não seria um dos dois ficticio? Nesta filosofia, a linha que separa
história-ficção torna-se ainda mais tênue.
Relação de poder e a cultura árabe
A aparição de Harun Al-Rashid se dá a partir da 33ª noite e, logo nos primeiros
momentos, é descrita que o califa e seu J’afar caminham disfarçados pelas ruas de Bagdá a fim
de observar mais profundamente o que se passa com o povo. Tal narrativa já é um exemplo
perfeito de sua inclusão como “provável ingerência (...) motivada por estratégias políticas em
seu tempo”, como cita Elaine Senko.15
No conto 69,ª o califa já é claramente descrito como benfeitor, por libertar duas jovens
de suas respectivas maldições. Algumas páginas adiante, na noite 72ª o califa exclama a frase:
“(...) tenho de tomar providências que satisfaçam minha sede de justiça e estejam à altura de
14 (...)Tradução: Em relação entre a ficção e verdade, nossa modernidade oferece um ainda mais radical, que afirma
não que a ficção e verdade são indistinguíveis, mas que a ficção é mais verdadeira do que História: a distinção é
mantida, mas a hierarquia é invertido [...] o historiador e o etnólogo devem, de acordo com as regras mais difíceis de
suas profissões, relatar só o que aconteceu, apenas o que eles podem estabelecer como fatos; enquanto o romancista,
que não está sujeito a "este culto da verdadeira palavra" (26), tem acesso a uma verdade superior, além da verdade
dos detalhes. Historiadores e etnólogos fariam o bem, de acordo com a Auge, em seguir os passos dos romancistas.
(TODOROV, 1995, p. 54). 15 SENKO, Elaine Cristina. E a aurora alcançou Sahrazad: Reflexões sobre a mímesis na obra ‘As Mil e Uma
Noites’. Rio de Janeiro: PEM UFRJ, 2012, PG
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um governante excelso”16, mostrando sem sombra de dúvidas a imagem de uma natureza justa
e impecável.
Na noite 122ª, o conto foi adaptado para o governo de Harun Arrasid, sendo na verdade
um conto conhecido no governo do califa Almuqtadir, que governou de 908 a 932 d.C17. Isso se
deu porque uma das personagens enigmáticas da história fora criada por Arrasid e sua esposa,
Zubayda, que são descritos como generosos com o personagem principal, deixando o casar
com a sua “filha” e ainda proporcionando a eles 50 mil dinares18. Nota-se que o conto fora
adaptado por lapsos de narrativa e descrição de local. Essa adaptação pode ser analisada como
conveniente referente ao governo de Arrasid; pois mesmo que o personagem seja relativamente
secundário na história, produz papel fundamental no seu desenvolvimento, podendo assim ser
concluído que esse tipo de introdução de figuras reais em contos de fantasias podia produzir um
grande efeito perante aos leitores/ ouvintes da época.
Além da inserção de pessoas, os contos em geral – tanto no ramo sírio quanto egípcio –
possuem variadas narrações sobre locais reais da época. A Mesquita Omíada, por exemplo,
aparece na noite 94ª e é uma mesquita que existe até hoje, um dos principais pontos turísticos
de Damasco e “uma das joias da arquitetura mulçumana”19. Isso é interessante avaliar,
considerando a linha invisível entre fantasia e realidade existente no período, como citado no
estudo de Elaine Senko:
(...) Ainda que esses historiadores medievais pretendessem, utilizando-se de critérios mais ou menos rigorosos, encontrar e escrever a verdade em seus escritos, como muitos salientaram retoricamente no prefácio de suas obras, eles acabavam muitas vezes mesclando, numa mesma narrativa, elementos da realidade plausível, constatáveis, junto com aspectos da fantasia, míticos e sobrenaturais.20
Ainda no ramo sírio, existe a abundância de prosa e poesia dentro dos contos, quais
através os personagens expressam seus sentimentos. Embora também existente no ramo
16 JAROUCHE, Mamede Mustafa. AS MIL E UMA NOITES. São Paulo, 2005. p. 211. 17 Nota de rodapé. JAROUCHE, Mamede Mustafa. AS MIL E UMA NOITES. São Paulo, 2005. p. 290 18 Moedas de ouro. 19 Nota de rodapé. JAROUCHE, Mamede Mustafa. AS MIL E UMA NOITES. São Paulo, 2005. p. 255 20 SENKO, Elaine Cristina. O PASSADO E O FUTURO ASSEMELHAM-SE COMO DUAS GOTAS D’ÁGUA:
UMA REFLEXÃO SOBRE A METODOLOGIA DA HISTÓRIA DE IBN KHALDUN (1332-1406). Curitiba,
2012. p. 105
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egípcio, porém em menor quantidade. Como descreve Jarouche21, “trechos em prosa estão
regijidos em saj, prosa rimada ornamental muito comum em árabe, que (...) determina o
andamento da narrativa” foi uma época e cultura marcada por esse tipo de método, já que o
“aprendizado da língua (gramática), da prosa e poesia árabe, ao lado do Alcorão, são as lições
primeiras dos muçulmanos”22. Além disso, pela narração pode-se ter noção dos costumes
existentes na época e praticados no dia-a-dia, como culinária (“doce de romã rechado om
julepo”, pag 255), ou a tradução de ‘suco’ (composto farmacológico de água, mel e vinagre”,
pag. 257), moda (“este turbante está enrolado à maneira de Mossul”, pag. 243) e hábitos
pessoais de higiene (“casas de banho”, onde iam limpar-se para ocasiões especiais ou
simplesmente para ficarem melhor-apresentados. Funcionavam como “saunas e locais para
revigorar o espírito”, pag. 260).
Vê-se claramente através do ramo sírio em As Mil e Uma Noites, o valor da cultura árabe
em sua fartura de detalhes, adjetivos e metáforas. Sua riqueza nas descrições mostra a arte do
povo e período como sublime e muito além de meros contos de fadas.
O peculiar ramo egípcio
No começo do ramo egípcio já é nítido a diferença de narrativa: apesar de um
vocabulário mais simples, a escrita tende a repetir frases e passagens que são desnecessárias
para o leitor - algo não existente no ramo sírio – tornando as histórias mais longas e cansativas.
As noites também são divididas desigualmente; sendo que ao invés de inserir outros contos na
metade da narrativa, eles se completam e apenas em outra noite é narrado o que teria sido
introduzido no conto anterior. A altercação entre os dois ramos é saliente logo nas primeiras
paginas do livro 3.
A partir do conto O Rei Baht Zad e seus dez vizires23 é interessante observar como a
narrativa altera-se. As mímeses e os contos tornam-se mais curtos e é visível que os editores
da obra de fato separaram tais contos por tema.
21 JAROUCHE. 2005, p. 235 22 SENKO, Elaine Cristina. O PASSADO E O FUTURO ASSEMELHAM-SE COMO DUAS GOTAS D’ÁGUA:
UMA REFLEXÃO SOBRE A METODOLOGIA DA HISTÓRIA DE IBN KHALDUN (1332-1406). Curitiba,
2012. p.70 23 JAROUCHE, Mamede Mustafa. AS MIL E UMA NOITES (Ramo egípcio). São Paulo, 2005. p. 135.
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Nota-se que da página 135 até 188 do volume 3 todas as onze diferentes narrativas ali
inseridas abordam o tema de paciência e injustiça. Nos contos dessa história, especificamente,
há uma importante ressalva a se refletir no que se trata de relações de poder: todos eles tratam
do vizir como traidor e invejoso perante o rei. Mesmo que algumas páginas adiante existam
outras narrativas que tratam o vizir como sábio e amigo, não pode se ignorar o fato de que é um
número significativo de contos que retratam negativamente esse papel.
É possível fazer algumas avaliações a partir deste tópico; pode-se considerar que
algumas dessas histórias de traição de fato ocorreram com alguns importantes governadores da
época e isso acabou impregnado nas narrativas orais e no imaginário do povo, que repassou
tais histórias com precisão do “bem” e do “mal”, “mocinho” e “vilão”, assim como está no
imaginário do Ocidente que “príncipes” são do bem e “bruxos” são do mal.
A segunda reflexão a se ponderar é que o patrocinador de tais noites, Malik Al-Daher
Barquq, tivesse propositalmente plantado características negativas ao papel de vizir, a fim de
modificar a imagem deste cargo perante a sociedade; dado que seu governo foi marcado por
inúmeros conflitos e interrupções.
Em sua dissertação de mestrado A representância do passado histórico, o historiador
Bruno Mendes analisa pontos de vista de diferentes autores a fim de compreender o ponto chave
entre história e ficção. “White é um nome incontornável que nutriu teses polêmicas desde a
publicação de Meta-história, em 1973”24, e cita:
De um modo geral houve uma relutância em considerar as narrativas históricas como aquilo que elas manifestamente são: ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do que com seus correspondentes nas ciências (WHITE, 1994, p. 98).
Além disso, compreende Mendes, tais registros históricos desempenham uma inclinação
de refiguração temporal por meio de “instrumentos de pensamento” que, em sua formação
possuem informações tanto do tempo objetivo quanto do subjetivo.
(...) A narrativa ficcional emerge do um campo prático da experiência e tem um efeito na experiência vivida pelos leitores, transformando-a. O
24 MENDES, Bruno. A REPRESENTÂNCIA DO PASSADO HISTÓRICO EM PAUL RICOEUR:
LINGUAGEM, NARRATIVA E VERDADE. Belo Horizonte, 2013. p. 98.
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conceito de experiência ficcional do tempo pretende sublinhar a abertura presente nas narrativas de ficção. As obras se reportam a... , se dirigem para... , são a respeito de... No momento da leitura, a experiência fictícia dos personagens se encontra com a experiência viva doleitor (T&N 2). A ficção, assim como a história, fornece uma refiguração temporal ao leitor, tornando o tempo mais humano. Para nós, a tese central de Ricoeur sobre a mediação entre temporalidade e discurso narrativo apresenta afinidades com os argumentos publicados por Frank Kermode em meados dos anos de 1960. Para esse crítico literário, a ficção humaniza o tempo, ao atribuir-lhe a noção de início e de fim. Seu exemplo é um simples tique-taque de um relógio. Efetivamente, não há diferença entre os sons, porém, nossa consciência confere um sentido a esse intervalo, erigindo um princípio e um fim. (MENDES.2013. p. 103).
A partir dessa análise, é possível assimilar que provavelmente uma das duas hipóteses
levantadas é autêntica e a coleção de histórias organizadas nesse trecho específico do ramo
egípcio pode ter sua importância histórica altamente considerada no que se trata de relações de
poder e interpretações de imagem da época.
Todas as histórias a partir desde ponto trazem a justiça como elemento central.
Normalmente, a justiça envolve a execução de alguém ou maneiras cruéis de tortura até a morte
- como cortar uma parte do culpado por dia; costumes comuns de sentenças no medievo. No
entanto, a justiça realizada é um tanto incoerente ao longo dos contos. As distinções encontram-
se nos pretextos dos governantes. O melhor exemplo de tal inconsistência é encontrado na noite
69ª25 ainda no ramo sírio. Nessa história, o rei ameaça matar seu vizir Jafar se ele não obtiver
êxito em uma tarefa impossível e nada relacionada a ele e logo em seguida poupa a vida de um
jovem que assassinou sua esposa por causa de um mal-entendido. Neste caso, os critérios
parecem totalmente incoerentes e se alinham com a forma como a justiça é transmitida ao longo
de todas as histórias. No geral, a coleção faz nenhum ponto explícito sobre a justiça, mas
implicitamente aborda sobre o risco de ter tanto poder nas mãos de um ser humano, qual traz
uma bagagem emocional e muitas vezes respostas irracionais.
Importante observar que o ramo egípcio é composto por muitas notas de rodapé do
tradutor Jarouche, isso se dá porque as cópias dos manuscritos de Balaq e Calcutá são muitas
e apresentam diferentes versões/ frases/ narrativas de um mesmo conto. Os contos do ramo
egípcio também são significativamente mais longos do que do ramo sírio. Um personagem
25 Conto “As três maçãs” p. 211. A mesma história que traz Harun Arrasid como personagem governante, citada
anteriormente neste artigo.
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apenas continua com sua própria história durante várias noites até conseguir seu objetivo e na
sua narrativa passa-se geralmente anos até o plano principal da história ser finalizado.
Diferenciando, portanto, o ramo sírio do egípcio em As Mil e Uma Noites, a partir de
características como narração, catarse e modelos de governantes, é possível aprofundar-se no
contexto histórico da época, já que é somente no século XIV, que o historiador tunisino, Ibn
Khaldun (1332-1406)26, propõe a separação definitiva entre história e fábula.27
Geradores do poder
Na noite 201ª é narrado que um certo rei do Egito chamado Assin Bin Safwan, adorava
o Sol, e não a um Deus altíssimo. Este acaba pedindo ajuda ao rei chamado Salomão Bin Davi
que tinha um “rei poderoso nos céus (...) conhece a linguagem de todos os pássaros, as línguas
de todas as criaturas e, apesar disso, prega para todos os serem a religião de seu deus, e os
estimula a adorá-lo”28, referindo-se já a fé do Islamismo. É curioso notar que toda vez que o Rei
Salomão é citado, é seguido pela frase: “que a paz esteja com ele”. Esta é uma passagem
interessante, já que é a primeira vez entre os dois ramos que aparece esse contraste gritante
de crenças; chegando a aproximar-se das narrativas no Novo Testamento da Bíblia e do Alcorão
– onde Rei Salmão e Davi aparecem.
Jesus Cristo aparece no conto “Os três homens e Jesus Cristo”29 e logo depois no conto
inserido neste “A Aventura do discípulo de Jesus”. Ambas histórias simples e curtas onde Jesus
é constituinte como qualquer outro personagem bondoso e para ele utilizada a frase depois de
seu nome “que a paz esteja com ele”, assim como com o Rei Salomão. Sua narrativa é breve e
poderia ter sido substituída por qualquer outro personagem, o que torna ainda mais peculiar sua
26Considerado um precursor de várias disciplinas científicas sociais; como história cultural, filosofia, sociologia,
demografia e historiografia. 27 “(...) Talvez influenciado, nesse sentido, pela recolha e difusão, por parte do governo mameluco, dos contos
presentes em As Mil e Uma Noites numa época em que a comunidade islâmica transfere sua herança política para o
fortalecimento das ações culturais. Vemos, dessa forma, como era presente o estilo de escrita do século IX ainda
aceitável no XIV, o qual possuía um claro sentido universal, talvez e provavelmente resquício do pensamento
aristotélico (...)” SENKO, Elaine Cristina. E a aurora alcançou Sahrazad: Reflexões sobre a mímesis na obra ‘As
Mil e Uma Noites’. Rio de Janeiro: PEM UFRJ, 2012, p. 270. 28 Conto “Sayf Almuluk e Badi At Aljamal”. p. 17. Ramo egípcio. 29 Noite 901ª, p. 256. Ramo egípcio.
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inserção na história. Os dois contos tratam de três homens amigos que enganaram uns aos
outros e acabaram mortos; quais “Jesus Cristo, filho de Maria”30 é testemunha:
Disse Jesus, que a paz esteja com ele: “Se aqueles três tivessem agido com integridade, teriam preservado suas vidas, mas deixaram de lado as consequencias de suas ações, pois quem age com integridade fica bem e vence, mas quem perde a integridade se aniquila e se arrepende” (JAROUCHE. 2012, p. 257).
A referência ao símbolo do Cristianismo em um ramo claramente mulçumano só reforça
o fato já escrito no Alcorão Sagrado de que o Islamismo é uma religião pacífica que não apenas
respeita Jesus Cristo e Maria, mas como os exalta com grande reverencia31.
Maomé (ou Muhammad) também faz uma breve aparição alguns contos para frente, com
o mesmo objetivo do de Jesus: trazer uma lição valiosa de paciência para outros personagens
principais.
Pode-se dizer que a fé é o componente principal de todos os contos, seja ramo egípcio
ou sírio; não existindo nenhuma história da coleção inteira sem que haja qualquer personagem
a exclamar “Deus Altíssimo e Poderoso!”, o que mostra nitidamente um amplo componente da
cultura árabe.
Elementos fantásticos
Como já citado no começo deste artigo, a coleção de histórias de As Mil e Uma Noites
está repleto de feitiços, criaturas míticas e episódios bizarros. Os ifrits e gênios são uma parte
importante da fantasia, acrescentando as narrativas um ar de magia e poder. Alguns dos
melhores exemplos são as sete histórias de Sindabad, O Navegante32, que ao longo de suas
viagens, encontra uma série de criaturas místicas, como animais imensos, um gigante canibal e
um ancião do mar demente. Estes vários elementos fantásticos adicionam aventura e intensas
catarses nas histórias.
30 Referência a primeira descrição de Jesus no conto e no Alcorão. 31 Jesus Cristo é citado no Alcorão 27 vezes, como “mestre da paz” e profeta a ser respeitado. 32 Personagem do ramo egípcio, p. 189, noite 199ª .
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Uma vez que existam tantos elementos irreais em certos contos, serve obviamente para
separar essas narrações da realidade. Por outro lado, os ingredientes fantásticos podem muitas
vezes representar metáforas para forças que estão além do controle de uma pessoa. Ao
confrontar personagens com a fantasia, essas histórias implicitamente transmitem como os
seres humanos respondem à forças maiores do que a humanidade, em geral, sugerindo que o
destino não é mais significativo do que como se responde a ele.
O ramo egípcio por sua vez, além de possuir elementos fantásticos já vistos no ramo
sírio, também possui algo a mais: personagens que se misturam em formas de animais, como
feiticeiros que se transformam em criaturas como leões alados, demônios em forma de águias,
etc. típica da cultura egípcia antiga e a fé politeísta pré-Islamismo, principalmente pela excessiva
menção a dois elementos: a ídolos33 e a deuses – tidos como demônios ou gênios do mal - ,
mesmo que o personagem principal geralmente seja focado no “Deus altissimo e poderoso”,
como se lê na noite 267ª, ramo sírio, onde uma personagem feminina tenta alertar o protagonista
da história:
“Ele [Lúcifer, o maioral dos demônios] soube que estava indo até Muhammad e que abandonou seu país para visita-lo e ingressar na sua religião por amor a ele. Quando soube disso, foi encontrar você, convidando-o para cá e dignificando-o. O que ele quer é corromper seu juízo e sua fé; está lhe preparando um deus para ordenar-lhe que o adore”. (JAROUCHE. 2012. p. 111).
Tal passagens e tantas outras parecidas no decorrer dos contos de ramo egipicio reflete
a transição religiosa que o Egito e países do Oriente Médio passaram. Tais referências são
encontradas tanto no Alcorão e no Novo Testamento da Bíblia cristã. A crença monoteísta
preenchendo o lugar onde antes havia fé pagã.
É curioso perceber, porém, que por mais centrados na religião e em “Deus Altíssimo”
que um personagem possa ser, é significativo o número de vezes nos contos do ramo egípcio
que estes tratam da astrologia, signos egeomantes34como ciência exata, como se lê no conto O
Mercador de Má Sorte35:
33 Imagem/estátua que representa uma divindade e que se adora como se fosse a própria divindade. 34 Videntes que realizam adivinhação através das figuras formadas por um punhado de terra que se atira ao acaso
sobre o chão ou qualquer outra superfície. 35 Noite 180ª. p.141.
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O amigo lhe disse: “Eu não te advertira que teria sido mais feliz vender o trigo? Seja como for, porém, vá a um geomante que leia a sua sorte na areia”, e ele foi a um geomante, a quem disse: “Leia a minha sorte na areia”; o homem, após lançar a areia, disse-lhe: “Sua estrela é de mau augúrio. Não faça nenhum negócio por estes dias (...)” (JAROUCHE, 2012. p. 141).
Um exemplo ainda mais caro de como a astrologia era levado a sério na região é no
conto O rei Qsaim Ala Mar e sua filha Sitt Alaqmar36
“Ó rei, eu gostaria de deixá-lo a par de algo que pode ter certeza que ocorrerá. Estudei geomancia, calculei o seu mapa astral e constatei que não lhe restam senão três anos de vida, e que será sucedido por um rei de sua estirpe, um rapaz varão” [...] o rei ordenou que astrólogos e sacerdotes fossem trazidos, e eles vieram e se colocaram diante dele, que lhes ordenou que se acomodassem e lhe calculassem o mapa astral, e eles constataram que as coisas se dariam conforme dissera sua filha Sitt Alaqmar. (JAROUCHE, 2012. p. 127, 128).
Trechos como este acabam que por ser levemente contraditórios religiosamente, já que
como se sabe na astrologia egípcia cada signo é representado por um deus pagão. De qualquer
forma, mostra um relevante habito da época que ainda era mantido, mesmo com a fé monoteísta
em andamento.
Considerações Finais
Principalmente depois de 11 de setembro de 200137, o islamismo e a cultura árabe em
geral começaram a sofrer uma grande perseguição e uma série de episódios de preconceito no
Ocidente. A imagem do árabe já era distorcida em filmes hollywoodianos antes dos ataques -
pintados sempre como vilões; porém se intensificou significativamente depois dos atentados.
A generalização da religião e da cultura passou a ser algo habitual. As palavras
“terrorismo” e “fanatismo religioso” são associadas instantaneamente quando se faz menção ao
Islamismo. As imagens positivas de desenhos animados como Aladdin (que apesar de possuir
36 Noite 273ª. p. 127. 37 Ataques terroristas contra os Estados Unidos, que resultou na morte de quase três mil pessoas.
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alguns ingredientes negativos, mostram elementos do mundo de As Mil e Uma Noites, como
tapetes mágicos, gênios e lâmpadas) foram substituídas na mente ocidental por imagens de
guerra, bombas e medo.
As novelas da Rede Globo são um grande exemplo de como é interpretada a cultura
árabe no Brasil. O Clone e Caminho das Índias, grandes sucessos nacionais e internacionais,
apesar de abordarem com precisão uma grande parte do mundo árabe, trazem certos aspectos
carregados de estereótipos muitas vezes infundidos, como a da mulher que “foge do véu”, dando
a entender que tal hábito [de usar a burca] é um ato de vergonha e desonra e não um simbolismo
de orgulho da religião, como é o caso com a maioria adepta ao Islamismo. Esse tipo de imagem
refletida em uma tela de televisão alcança milhões de pessoas do mundo inteiro que nunca
tiveram um contato mais aprofundado com o Oriente Médio.
Em 2015, a imagem negativa do mulçumano e árabe se intensificou por razão de vários
episódios que abalaram o mundo ocidental, como os ataques em Paris ao jornal Charlie Hebdo
e a Guerra da Síria que resultou na vinda ao Ocidente de milhões de imigrantes. Todos episódios
que resultaram em milhões de pessoas inocentes mortas e feridas. No entanto, é necessário
perceber e dinfundir o fato de que existe uma grande lacuna entre grupos terroristas isolados e
muçulmanos inofensivos.
Como foi visto e analisado neste estudo, o Islamismo é uma religião pacífica e respeitosa,
assim como toda cultura árabe é rica em vários aspectos. A coleção de As Mil e Uma Noites
abre a consciência ocidental ao mergulhar o leitor em um mundo fictício e real ao mesmo tempo,
e, como citado anteriormente, com base tanto na filosofia Aristotélica como a de Ricouer, nada
como a arte para se fixar na mente e coração do ser humano.
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