desvendando a outra - bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v10n2-4/10.pdf · mostra como os...

9
Desvendando a outra Reflexões sobre o livro "Na Vida dez, na Escola zero", de Teresinha Nunes Carraher,

Upload: others

Post on 06-Nov-2020

4 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

Page 1: Desvendando a outra - bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v10n2-4/10.pdf · mostra como os cambistas do jogo do bicho calculam preços de apostas usando tabelas para verificar o

Desvendando a outra Reflexões sobre o livro "Na Vida dez, na Escola zero", de Teresinha Nunes Carraher,

Page 2: Desvendando a outra - bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v10n2-4/10.pdf · mostra como os cambistas do jogo do bicho calculam preços de apostas usando tabelas para verificar o

face do saber David William Carraher e Analúcia Dias Schliemann

Antônio Roazzi*

*Universidade Federal de Pernambuco

Page 3: Desvendando a outra - bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v10n2-4/10.pdf · mostra como os cambistas do jogo do bicho calculam preços de apostas usando tabelas para verificar o

No panorama da psicolo­gia do desenvolvimento cognitivo o livro" Na vida dez, na escola ze¬ ro" epitomiza uma abor­dagem que nos últimos

dez anos vem sendo desenvolvida pelos autores no mestrado em psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. O livro é uma coletânea de estudos sobre a matemática na vida diária cujos resultados levantam questões para di­ferentes áreas da ciência e abrem um novo espaço para reflexão sobre impor­tantes problemas no contexto político-educacional no qual o Brasil se encon­tra. Estas questões não são puramente acadêmicas, elas possuem importantes implicações em nível prático que são da maior relevância para a teoria psi­cológica e a prática educacional.

Elas fornecem pistas para uma me­lhor atuação do psicólogo ou educador não-pesquisador. O ponto central do livro é o divórcio do conhecimento matemático formal (conhecimento elabo­rador pelas leis da lógica através da dedução) do conhecimento matemático construído pela experiência (conheci­mento elaborado pelo indivíduo em sua atividade de adaptação ao meio). É a discrepância entre o que a criança sabe

É a discrepância entre o que a criança sabe fazer na vida e o que ela demonstra

fazer nas provas escolares. A questão que se coloca é:

Por que essa diferença entre matemática como

habilidade de sobrevivência e a matemática da escola? Ao

discutir esta dicotomia entre a matemática de rua em

contraposição à matemática da escola, são abertos

caminhos para reflexão sobre a educação

matemática que envolvem questionamentos não só em nível teórico como também

aplicativo.

fazer na vida e o que ela demonstra fazer nas provas escolares. A questão que se coloca é: por que essa diferença entre matemática como habilidade de sobrevivência e a matemática da escola? Ao discutir esta dicotomia entre a matemática de rua em contraposição à matemática da escola, são abertos cami­nhos para reflexão sobre a educação matemática que envolvem questiona­mentos não só em nível teórico como também aplicativo.

Divisão do Livro

"Na vida dez, na escola zero" analisa a matemática na vida diária entre cri­anças e adultos trabalhadores que, na maioria das vezes, não aprenderam na escola o suficiente para resolver os problemas que resolvem na vida diária. Este interesse surgiu da constatação de que muitos trabalhadores das classes populares usam no dia-a-dia muito mais matemática do que aprenderam na escola.

O livro é dividido em oito capítulos. Seis destes capítulos (do segundo ao sétimo) apresentam estudos empíricos específicos de atividades relacionadas à matemática avaliada com respeito às aprendizagens dentro e fora da escola. Estes estudos empíricos são precedidos por uma introdução, (capítulo 1) que discute a relevância dessas pesquisas para a educação matemática. O capítulo 2 mostra como as mesmas crianças, que

comentem erros absurdos na escola, sabem muito bem a matemática de que precisam para sobreviver; elas são capazes de desenvolver estratégias próprias para resolver problemas de aritmética. Questiona-se assim o pro­cedimento usal de atribuir à criança a razão do seu fracasso na escola. O capítulo 3 apresenta uma análise das características da matemática oral, a qual usamos freqüentemente, mas cuja existência tendemos a ignorar na escola. É demonstrado como a matemática oral não é caótica. Muito pelo contrário, ela tem bases sólidas na compreensão do número e do sistema decimal; ou seja, ela é organizada em heurísticas flexíveis, que se ajustam aos problemas, mas que têm uma descrição geral e uma relação definida com as operações aritméticas.O capítulo 4 mostra como o ensino de fórmulas, por melhor que fosse, não resolveria alguns problemas da vida diária. Por exemplo: "um marceneiro que compra madeira não quer saber simplesmente que volume de madeira vai usar, mas quer saber analisar os móveis em peças a serem adquiridas, respeitando suas dimensões, sem mis­turá-las" (p.167). Resolver problemas práticos que envolvem conceitos matemáticos implica em uma procura de respostas relacionadas com a ex­periência cotidiana.

Nos três capítulos subseqüentes, são apresentados estudos que demonstram como modelos matemáticos mais com¬

Page 4: Desvendando a outra - bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v10n2-4/10.pdf · mostra como os cambistas do jogo do bicho calculam preços de apostas usando tabelas para verificar o

plexos podem ser construídos pelos sujeitos na organização de suas ações no trabalho, ainda que esses modelos pareçam, em ocasiões, ir além das ne­cessidades reais dos trabalhadores. Nos primeiros destes dois estudos (capítulo 5 e 6) a competência desses trabalha­dores é contrastada com a competência de estudantes que receberam instrução formal da matemática nos mesmos aspectos. O capítulo 5 mostra como os mestres de obra trabalham com escalas mesmo tendo, com freqüência, muito pouca instrução escolar. O capítulo 6 mostra como os cambistas do jogo do bicho calculam preços de apostas usando tabelas para verificar o número de com­binações quando se faz uma aposta invertida. O capítulo 7 mostra como os feirantes trabalham com equações quando pesam mercadorias em balanças de dois pratos. Estes estudos empíricos são seguidos por um capítulo final (capítulo 8) e uma conclusão, que bus­cam uma interpretação resumida dos resultados no contexto da educação em geral, e da educação matemática em particular.

Na base dos resultados obtidos nestes estudos pode-se inferir que:

1) diferentes situações nas quais a resolução de problemas ocorre causam um efeito diferenciado sobre os in­divíduos;

2) um melhor conhecimento dos pro­cedimentos matemáticos desenvolvidos

fora da sala de aula possibilita verificar que o conhecimento matemático é a¬ cessível a muitos;

3) a habilidade de um indivíduo para mostrar uma determinada competência depende das situações culturais e so­ciais nas quais ele tem a oportunidade de usá-las;

4) é o contexto social que determina, em parte, o nível de dificuldade das tarefas e problemas que induzem o que pode ser considerado como compor­tamento inteligente; isto significa que um problema idêntico pode assumir um significado diferente para indivíduos ou grupos sócio-culturais quando está inserido em diferentes contextos sócio-culturais;

5) pode-se avaliar com mais preci­são as competências cognitivas de um indivíduo quando as tarefas têm sido classificadas e definidas em relação a um número de características e ex­periências cotidianas próprias de cada grupo, porque a ecologia social, na qual os indivíduos vivem, influencia de ma­neira importante seu desempenho, de­terminando os problemas que são im­portantes para ser solucionados como também as estratégias apropriadas para solucioná-las.

A procura do "Significado Perdido"

O que une os vários estudos do livro

é a verificação da importância dos tipos de significados ou falta de significados que as situações formais nas quais o ensino da matemática está inserido possuem para as crianças. Os resulta­dos das pesquisas apresentadas no livro mostram claramente que o que distin­gue as situações cotidianas das situações escolares é o significado que elas têm para o sujeito, o qual, resolvendo proble­mas, constrói modelos lógico-matemáti-cos adequados à situação. É exatamente o significado que o problema tem para a criança no momento em que se engaja na sua solução que diferencia o impacto que as situações possuem para o in­divíduo. Situações que apresentam as quantidades dentro de uma interação significativa parecem levar a criança a adotar um procedimento de resolução de problemas. Esta questão do signifi­cado, de qualquer maneira, não pode ser identificada com a utilização no ensino de objetos concretos. Como os autores afirmam: "um problema não perde o significado para a criança porque usa uva ao invés de pitomba ou pitomba ao invés de uva ... O problema perde o significado porque a resolução de proble­mas na escola tem objetivos que di­ferem daqueles que nos movem para resolver problemas de matemática fora da sala de aula. Perde o significado também porque na sala de aula não estamos preocupados com situações par­ticulares, mas com regras gerais, que tendem a esvaziar o significado das

É demonstrado como a matemática oral não é caótica. Muito pelo contrário, ela tem bases sólidas na compreensão do número e do sistema decimal; ou seja, ela é organizada em heurísticas flexíveis, que se ajustam aos problemas, mas que têm uma descrição geral e uma relação definida com as operações aritméticas.

Page 5: Desvendando a outra - bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v10n2-4/10.pdf · mostra como os cambistas do jogo do bicho calculam preços de apostas usando tabelas para verificar o

situações. Perde também o significado porque o que interessa à professora não é o esforço de resolução do problema por um aluno mas a aplicação de uma fórmula, de um algoritmo, de uma operação, predeterminados pelo capítulo em que o problema se insere ou pela série escolar que a criança freqüenta (p. 22).

Em outras palavras, esta questão do significado é central para compreender­mos os problemas de aprendizagem que as crianças apresentam quando aprendem matemática na sala de aula. De fato, o impacto das situações na aprendizagem de operações lógico-matemáticas está diretamente relacionado com o signifi­cado que o problema tem para a criança no. momento em que se engaja na sua solução. Esta perda de significado na sala de aula parece explicar a facilidade com que a criança aceita resultados ab­surdos na matemática escrita que con­tradizem a própria formulação do problema (por exemplo, encontrar em divisões resultados que são maiores do que o dividendo). Erros, estes, que são ausentes, ou pelo menos raros, na matemática oral. Isso leva a revermos o significado que as tarefas escolares possuem para o sujeito.

O "A Priori" da superioridade

Os autores questionam a crença de que a partir da avalição de habilidades matemáticas de tipo escolar é possível classificar os alunos de acordo com os mais inteligentes e menos inteligentes. Esta crença é criticada por duas razões: Em primeiro lugar, porque se baseia em um pressuposto, a priori e arbitrário: o pressuposto de superioridade do conhe­cimento desenvolvido na escola sobre aquele desenvolvido fora dela. Desta forma, elitizam-se formas de conheci­mento enquanto negam-se outras. A matemática escolar é elevada a parâmetro para selecionar, os alunos que sabem ra­ciocinar e os que não sabem. No en­tanto, a matemática escolar ou formal com seu conjunto de regras e definições, teoremas e algoritmos é apenas uma das formas de se fazer matemática; esquece-se a matemática da vida como forma de atividade humana para organ­izarmos os objetos e eventos no mundo; ou seja, esquece-se a matemática utili­zada pelo indivíduo para solucionar problemas concretos da vida diária quando compra, vende, mede peças de madeira, encomenda mercadorias, constrói paredes, calcula porcentagens, faz o jogo na esquina, etc. Todas estas atividades mostram que, enquanto as práticas pedagógicas ignoram essas

capacidades do aluno fora da sala de aula e reconhecem apenas o que acon­tece no cenário da escola e das provas, o indivíduo, fora da sala de aula, é capaz de raciocinar, deduzir, calcular, construir modelos para resolução de problemas.

Èm segundo lugar, esta superiori­dade da matemática formal ensinada na escola sobre a matemática aprendida na vida é criticada porque não encontra suporte empírico (veja os seis estudos apresentados no livro). De fato, por que

esta diferenciação em termos de atribuição de superioridade se os mesmos invariantes lógico-matemáticos estão subjacentes a atividade matemática dentro e fora da escola? Uma vez que as crianças resolvem problemas em atu­ação extra-classe, utilizando os mesmos princípios lógico-matemáticos que em sua aprendizagem de matemática na sala de aula, isto nos indica qae as diferenças estie modelos lógico-matemáticos aprendidos, tanto na escola como na vida cotidiana, são resultados

Page 6: Desvendando a outra - bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v10n2-4/10.pdf · mostra como os cambistas do jogo do bicho calculam preços de apostas usando tabelas para verificar o

do uso de estratégias diferentes, e não são problemas de base conceitual.

Educação e Fracasso: a contradição absurda

Como pode-se perceber, os resulta­dos dos estudos apresentados e a análise dos autores nos dirigem para uma re­flexão profunda sobre o papel da psi­cologia na escola. As implicações em nível de política-educacional e de edu­

cação matemática, em particular, também são relevantes e tornam as perspectivas de mudança a partir da sala de aula mais promissoras. Se as crianças, apesar de serem perfeitamente capazes de raciocinar, não aprendem matemática, torna-se errônea a aceitação da hipótese de que "as crianças não aprendem matemática porque não tem capacidade de raciocinar; posição esta, em geral, defendida através da idéia que as crianças de camadas populares não têm capacidade para aprender em

67

decorrência dos fatores adversos que atuam em suas vidas. As evidências não permitem mais a possibilidade de colo­cação do problema nestes termos. É preciso não esquecer que muitas vezes, dentre os alunos que não aprendem na sala de aula estão alunos (em geral, jovens das classes populares) que usam a matemática, no seu pleno sentido, para sobreviver no dia-a-dia, vendendo, fazendo biscates, dando trocos, calcu­lando preços ou repartindo lucros.

Isto implica que a escola deveria 1) olhar o raciocínio de uma forma

mais independente da ideologia do saber instituído;

2) rever os seus procedimentos de ensino e o que estes procedimentos sig­nificam no contexto social mais amplo (por exemplo, não deixando que o en­sino de matemática se sobreponha ao aluno como objeto determinante de sua aprendizagem;

3) reavaliar a forma de atribuição do fracasso escolar às próprias crianças.

Não refletir nestes pontos com seriedade irá permitir a manutenção das contradições que atualmente per­manecem sem solução e que são aparen­temente absurdas. Por exemplo, como é possível que uma criança, que já sabe somar, não aprenda a somar? A análise desta contradição não é mais possível de ser adiada.

Sugestões para superar as contradições

Várias sugestões sobre novos cami­nhos educacionais para solucionar esta contradição (capacidade de raciocinar vs. falta de aprendizagem) são sugeri­das. Uma delas é o aproveitamento dos conhecimentos já adquiridos na vida cotidiana. O raciocínio sobre o qual se baseia esta idéia é o seguinte: se a experiência da vida diária parece enri­quecer os problemas, as operações, as relações numéricas de significado, por que não usar em sala de aula o conheci­mento matemático cotidiano dos alunos? Ou seja, se existem diferentes cami­nhos para chegar à solução de proble­mas, por que não incorporá-los nos programas escolares? Por que o profes­sor não os utiliza na sala de aula, dado que estes caminhos representam so­luções matematicamente equivalentes, e possuindo até, muito mais signifi­cado, do que aquelas que estão nos programas escolares? O professor tendo consciência da existência de vários caminhos e estratégias para resolver um mesmo problema, todas elas apro­priadas do ponto de vista matemático,

Page 7: Desvendando a outra - bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v10n2-4/10.pdf · mostra como os cambistas do jogo do bicho calculam preços de apostas usando tabelas para verificar o

terá maior flexibilidade para analisar os trabalhos de seus alunos. Ele poderá deixar de concentrar-se na questão de "certo" ou "errado" para permitir que os alunos encontrem várias maneiras de resolver um mesmo problema, nem tentar forçá-los, por exemplo, a utilizarem um algorítmo ou uma regra que ele pre­tende ensinar. Como afirmado pelos autores, "a liberdade de pensar e orga­nizar diferentes formas de solução é essencial para que os alunos recriem um modelo matemático em ação". Dessa forma, "teríamos alunos reflexivos, independentes, confiantes em sua ca­pacidade de fazer matemática e dispos­tos a aprender um pouco mais de sim­bologia matemática para representar significados conhecidos e ampliar seu poder de solucionar problemas" (p. 180).

Em outras palavras, o professor, a partir de um conhecimento mais claro da matemática feita fora da sala de aula, poderá melhor entender como funcionam alguns dos modelos matemáticos difíceis de serem ensina­dos na escola. Dado que a prática da matemática na vida diária oferece con­dições para a construção dos mesmos invariantes necessários para os con­ceitos implícitos na matemática for­mal, o professor se beneficiaria deste conhecimento capaz de fornecer uma base mais sólida para a aprendizagem de matemática formal ensinada na escola.

A adoção deste procedimento não implica em uma negação do ensino formal da matemática mas implica em uma combinação desta forma de aprendi­zagem com o conhecimento adquirido na experiência diária. "Quando a ex­periência diária é combinada com a experiência escolar é que os melhores resultados são obtidos... Isso não signi­fica que os algoritmos, fórmulas e modelos simbólicos devam ser banidos da escola, mas que a educação matemática deve promover opor­tunidades para que esses modelos sejam relacionados a experiências funcionais que lhes proporcionarão significado" (p. 99). Combinar estes dois saberes parece atualmente o melhor caminho a ser adotado. De fato, o contexto da sala

Page 8: Desvendando a outra - bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v10n2-4/10.pdf · mostra como os cambistas do jogo do bicho calculam preços de apostas usando tabelas para verificar o

de aula pode ser um ambiente mais propício ao desenvolvimento de mode­los gerais de resolução de problemas do que a experiência cotidiana; mas, ao mesmo tempo, a experiência da vida diária pode melhorar modelos dando-lhes significados, e tornando-os mais eficazes em sua aplicação. Nesta pers­pectiva o papel do professor como depositário do saber a ser simplesmente repassado para os alunos na criação de novas estruturas lógico-matemáticas mudaria. Muito mais importante para o professor seria tentar transferir a habili­dade que a criança já possui para outros contextos não muito usuais para ela, ampliando, assim, as suas potenciali­dades.

Neste contexto, as situações utili­zadas nas pesquisas poderão ser vistas como situações interessantes para serem matematizadas em sala de aula. O conhe­cimento e utilização por parte do pro­fessor das estratégias e procedimentos já conhecidos pelas crianças se reverteria em lucros para o desenvolvimento da sua própia didática; enquanto uma ati­tude de desprezo da matemática infor­mal da vida diária se tornaria um inútil desperdício do conhecimento já adqui­rido e dominado pela criança.

Os dois saberes

Infelizmente esta desconsideração do saber popular existe e possui efeitos nefastos não só em termos quantitati­vos (o não aproveitamento de algo já possuído), mas também em nível de consciência do indivíduo. Em geral, as camadas mais pobres das populações vêem-se continuamente desvalorizadas e privadas da sua sabedoria que é rele­gada a um saber de segunda ordem em relação ao saber veiculado pela escola. A escola, nestes termos, se torna em relação aos seus alunos uma fonte gera­dora de complexos de inferioridade. As crianças ao freqüentá-la se persuadem de serem incapazes de aprender, ao mesmo tempo que introjetam uma ati­tude negativa sobre o tipo de saber que elas utilizam, por exemplo, a matemática

oral. Este ponto é ressaltado pelos au­tores: "Aparentemente, aprendemos na escola não somente a resolver operações aritméticas, mas também atitudes e valores relativos ao que é apropriado em matemática. A matemática, aprende­mos implicitamente, é uma atividade que se pratica por escrito, é algo para aqueles que vão à escola. E esta é a forma apropriada de resolver proble­mas. Esta ideologia não apenas inibe o cálculo oral, mas, também, desvaloriza este tipo de saber popular, que não tem lugar na escola nem pode ser reconhe­cido num sistema de promoção em que todas as avaliações são feitas por escrito. Quando constatamos que a escola re­jeita esse saber popular da criança, mani­festo na matemática oral, precisamos perguntar-nos: a quem interessa esta rejeição? Ao aluno? Ao professor? À sociedade?"(p. 65-66, o grifo é origi­nal).

Parece que o indivíduo deve aprender a respeitar as regras formais da matemática ensinada na escola, da mesma forma que deve aprender a res­peitar as regras dominantes na sociedade; regras estas que são as regras da classe dominante, a qual não permite aos in­divíduos o desrespeito das mesmas. Parece que o respeito das regras matemáticas formais se torna um treino para o respeito das regras de controle social por parte da classe dominante, a qual não permite aos indivíduos o desres­peito das mesmas. Parece que o res­peito das regras matemáticas formais se torna um treino para o respeito das regras de controle social por parte da classe dominante.

De fato, o respeito às regras é um dos meios que a classe dominante utiliza para consolidar o seu poder. Além do

mais, esta desvalorização do saber popular está relacionada com a divisão entre classes sociais inerente a nossa sociedade (a classe dominante e a classe dominada). Desvalorizando o saber dos pobres, os pressupostos de dominação da classe no poder encontram-se re­forçados. Tudo o que a classe domi­nante sabe é bom e toma-se o parâmetro, segundo o qual os outros serão julga­dos. Enquanto tudo o que a classe dominada (os pobres) sabem "não presta", deve ser modificado para se melhorar o padrão. Esta divisão dos saberes possui importantes repercus­sões em nível de status social, prestígio e remuneração econômica dado que a nossa sociedade tende a privilegiar as profissões que estão em sintonia com o saber formal que ela, de forma a priori, estabeleceu ser superior.

Tendo o seu saber desvalorizado, a classe dominada deve, de fato, aprender a aceitar como normal os tipos de tra­balhos subordinados, em geral despres­tigiados pelos baixos salários e status social a eles associado, para os quais o sistema os destinou.

Conclusão

Além da relevância dos estudos re­latados que se caracterizam pela seriedade e novidade da perspectiva apresentada, como também pelo caráter científico das metodologias adotadas, o livro exerce um certo fascínio que acom­panha a leitura de cada página. Este fascínio c produto de uma convicção que inspira os autores: para renovar as estruturas educacionais c necessário não se limitar somente a estudos de caráter teórico e a proclamações de princípios (que conservam certamente, um seu

Page 9: Desvendando a outra - bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v10n2-4/10.pdf · mostra como os cambistas do jogo do bicho calculam preços de apostas usando tabelas para verificar o

próprio valor), mas se empenhar em in­vestigações que focalizam aspectos específicos, sustentados por cuidados metodológicos e análises precisas. Esta é a maneira mais eficiente para o pesqui­sador contribuir para um processo de mudança visando a criação de instru­mentos de transformação na direção de uma maior justiça social. Este processo de mudança apresenta diferentes fren­tes a serem trabalhadas: mudança na perspectiva das instituições de ensino, mudança dos conteúdos programáticos, mudança no compromisso dos pesqui­sadores envolvidos neste tipo de pesquisa, mudança de atitude por parte dos edu­cadores e até mudanças, quem sabe, das estruturas que são origem das desigual­dades sociais.

Mais do que fornecer soluções, o livro despeita a reflexão de nossas práti­cas como psicólogos, pesquisadores e educadores. Ele provoca uma discus­são sobre estas práticas e sobre a ver­dadeira finalidade da educação. Ele questiona, também, através dos estudos apresentados, procedimentos que, tanto na psicologia como em educação, são aceitos passivamente sem nenhuma reflexão crítica sobre sua validade e utilidade. A contribuição do livro é sem dúvida relevante e reconhecida, não só no panorama nacional como também no panorama internacional (o livro foi aceito para publicação em língua inglesa pela Cambridge University Press).

O leitor desperta para questões práti­cas e teóricas que encontram-se ao nosso redor e que devem ser respondidas. As inquientações extrapolam o simples domínio da psicologia ou da educação. Qual é o papel que a educação matemática está desempenhando no ensino? Que tipo de matemática deve ser ensinada? Com qual finalidade? Quais os métodos mais úteis para este ensino sem que o conteúdo seja deturpado e esvaziado de significado?

Este é o desafio lançado e que pre­cisa ser enfrentado. Esta vai ser a tarefa que nos próximos anos irá direcionar o rumo das investigações de muitos pesqui­sadores e a prática pedagógica de mui­tos educadores. Foi resgatada a outra face do saber, a face oculta que corres­ponde ao saber vivo da experiência diária do indivíduo, que hoje, infe­lizmente, encontra-se em oposição ao conhecimento formal veiculado pela escola.

Espera-se que os autores continuem desenvolvendo esta mesma perspectiva, dado que as questões levantadas nestes estudos, merecem ulteriores investi­gações e um maior aprofundamento teórico. •