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Deslocamentos sem chão. Linguagens cênicas contemporâneas Oscar Cornago

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Page 1: Deslocamentos sem chão.€¦ · construiu e que constrói o meu posicionamento no meu fazer teatral. Para isso, tenho que me utilizar da memória, que com o tempo vai se diluindo

Deslocamentos sem chão.

Linguagens cênicas contemporâneasOscar Cornago

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No começo dos meus estudo práticos do fazer teatral, pelas escolas e pelos diretores que estiveram sempre me guiando nos processos de criações teatrais, sempre esteve presente um olhar diferenciado para os pés, ou melhor, para o andar. Os exercícios propostos dentro da sala de criação nos levava a ação do caminhar, ainda me lembro dos comandos do meu professor e diretor teatral João Andrade Joca “ Caminhem pela sala” e depois “ com o calcanhar, com as pontas do pés, e agora a parte externa e interna dos pés”

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Confesso que naquele momento em que os comandos eram direcionados, eu ainda como uma principiante e aspirante de atriz não entendia a importância de fazer aquela ação, para mim tudo era uma brincadeira, era um jogo que eu estava descobrindo.

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Nestes princípios do contato com a prática teatral, em que o ator esta num estado quase que “puro” (sem nenhuma técnica especifica, sem grandes textos dramáticos na memória, sem referenciais teóricas). Relatarei brevemente um momento importante que construiu e que constrói o meu posicionamento no meu fazer teatral. Para isso, tenho que me utilizar da memória, que com o tempo vai se diluindo os seus detalhes e ficando na lembrança talvez, os momentos que torna necessário a mim.

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Lembro que com meus 09 anos de idade eu morava no Pernambuquinho, distrito de Guaramiranga uma cidade serrana do interior do Ceará, o lugar guarda em si as mesmas características que as comunidades interioranas: pacata, com alguns bêbados nas ruas, mulheres religiosas, onde todos se conhecem até porque provavelmente fazem parte de uma mesma família. E foi neste lugar que conheci a minha primeira professora de teatro (confesso que hoje o seu nome já se perdeu da minha memória frágil) e nos primeiros dias de aula pediu que retirássemos nossos chinelos e saíssemos da sala para a rua, em total silêncio e nos disse: “é para sentir”.

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Retiramos nossos chinelos, saímos coletivamente como um bloco e todos em total silêncio, mas eu estava assustada não sabia o que era “sentir”. Sentir? Eu não entendia o que ela queria fazer com a gente? Pra que andar de pés descalços na rua? Cadê o teatro? Essas eram as minhas grandes questões, mas mesmo achando aquilo tudo tão estranho, achando que era uma loucura, mas essa estranheza e por ser uma criança a atividade era levada como uma diversão, uma brincadeira de criança. Minha memória é rala e vai se diluindo e as vezes tenho rápidos flashes, mas lembro que quando retornamos a sala ela nos perguntou: “ o que sentiram?” E eu não consegui dizer nada, eu não sabia o que era esse tal do “sentir”.

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Mas hoje, com os meus 25 anos, quando estou em processos criativos ou fazendo treinamentos físicos da ação do andar, me faz retornar aos meus 09 anos e sinto e reconheço todas as sensações adquiridas daquele simples exercício. E retorna os estouros de sensações: vergonha, constrangimento, alegria, medo, assustada, temerosa, invadida, desnuda, livre, etc, e os meus pés que passavam pelos pedregulhos, pela lama, pelo asfalto, no barro, na areia, nas calçadas e pelas ruelas daquela cidadezinha, expondo os meus pés desnudados e deslocados. Percebo que essas sensações são frutos da exposição dos nossos corpos, numa ação extra-cotidiana, uma ação de amostragem de nós mesmo, os moradores e transeuntes tão comuns a mim se tornaram estranhos e ao observarem se expressavam singularmente.

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Os meus pés, eles suportam um corpo miúdo e magro, mas este corpo que adora descobrir novos caminhos, novas veredas, outros sentidos, outras sensações. Andar pelo centro da cidade me possibilita uma sensação de incomodo, mas é de um estado ativo, me sinto constantemente em estado de prontidão. O meu andar pelas comunidades do interior do Ceará entre as veredas, é uma andar mais leve, pairado quase no ar, um andar despreocupado e rasteiro como as matas que vemos nas pequenas veredas. Cito esses, de alguns tantos outros andares que os meus pés me trazem, que vai modificando a pisada a partir da paisagem, que vai se diluindo e se somando aos trajetos tão distintos.

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Percebo que os meus pés pisam menos no chão, o contato da pele com o chão, não o chão de madeira, ou o de piso, o de cerâmica, o de asfalto, o de concreto, digo o chão da areia, do barro, da terra, é raro a pele dos meus pés estar em contato com a terra, mas quando isso acontece quando piso na areia de uma praia, tento enraizar o máximo possível os meus pés no chão, e retorna assim as sensações de estouro dos meus 9 anos. No final do carnaval de 2012 em Olinda - Brasil, meu pé sofreu uma torção, aparentemente simples e de recuperação rápida. Porém, meu pé tinha sofrido um trauma, um desgaste físico por conta de movimentos repetitivos, assim como ocorre com os atletas e os bailarinos, como também ao ator - performer.

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Meu andar está comprometido, os deslocamentos são breves, os pés não podem mais alcançar voo como antes, seus movimentos estão limitados a permanecer numa ação mais confortável. E é esse conforto que me incomoda, me incomodo de não poder dançar na potência que eu queria, me incomodo dos pés não pisarem firme no chão, me incomodo por andar pelas ruas do centro da cidade com menos prontidão, me incomodo não poder saltitar pelas veredas. Mas o que me faz pensar sobre essas sensações que os meus pés me dão, são esses distintos deslocamentos, essas trajetórias que estão em transformação porque existe em mim ainda o incomodo.

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