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Design em Contradição: Explorando a Teoria da Atividade no entendimento do Design de Produtos Design in Contradiction: Exploring Activity Theory in understanding Product Design SANTOS, Marinês Ribeiro dos (M.Tec.) Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná MERKLE, Luiz Ernesto (Ph.D.) Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná, Palavras-chave: Design, Teoria da Atividade, Atividade Mediada, Contradição. Sob a perspectiva da Teoria da Atividade, este trabalho tece considerações sobre o papel de contradições nas práticas de design. Exemplos no design de mobiliário, de embalagens para alimentos, e de eletrodomésticos ilustram a importância de uma maior integração entre atividades de concepção, produção e uso de artefatos. Keywords: Design, Activity Theory, Mediated Activity, Contradiction Through the perspective of Activity Theory, this work explores issues related to the role of contradictions in design practices. Examples in the fields of furniture, packaging, and appliance design illustrate the importance of a broader integration among activities of conception, production, and use of artifacts. Design em Contradição: Explorando a Teoria da Atividade no entendimento do Design de Produtos 1- Introdução O design de produtos é uma atividade projetual de caráter multidisciplinar, que visa a materialização de conceitos elaborados pelo designer em resposta a necessidades situadas cultural e historicamente. O conceito do artefato tem como referência, entre outras questões, aspectos relacionados à viabilidade de produção e ao uso do produto. No decorrer deste artigo, a atividade de design de produtos será analisada a partir da Teoria da Atividade, o que facilita a compreensão de interligações existentes entre as etapas de concepção, fabricação e uso dos artefatos. Nesta abordagem é ressaltada a importância do ser humano como sujeito ativo, que faz uso dos artefatos como ferramentas ou signos mediadores de suas práticas cotidianas. 2- A Teoria Histórico Cultural da Atividade O trabalho de Lev Seminovich Vygotsky (1896-1934) foi fundamental para o posterior desenvolvimento da Teoria Histórico Cultural da Atividade, ou simplesmente Teoria da Atividade. Em VYGOTSKY (1978), o reconhecimento do emprego de ferramentas e signos como elementos mediadores de práticas sociais superou as limitações dos modelos que assumiam uma relação direta entre estímulo e resposta, como ilustrado na FIGURA 1. FIGURA 1: Modelo de ação não mediada e mediada por signos ou instrumentos O termo atividade vem do trabalho de Aleksei Nicolaevich Leont’ev (1904-1979), que estendeu e refinou o conceito de ação mediada através dos conceitos de atividade e operação, reforçando a sua fundamentação

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Design em Contradição: Explorando a Teoria da Atividade no entendimento do Design deProdutos

Design in Contradiction: Exploring Activity Theory in understanding Product Design

SANTOS, Marinês Ribeiro dos(M.Tec.) Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná

MERKLE, Luiz Ernesto(Ph.D.) Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná,

Palavras-chave: Design, Teoria da Atividade, Atividade Mediada, Contradição.

Sob a perspectiva da Teoria da Atividade, este trabalho tece considerações sobre o papel de contradições nas práticas dedesign. Exemplos no design de mobiliário, de embalagens para alimentos, e de eletrodomésticos ilustram a importânciade uma maior integração entre atividades de concepção, produção e uso de artefatos.

Keywords: Design, Activity Theory, Mediated Activity, Contradiction

Through the perspective of Activity Theory, this work explores issues related to the role of contradictions in designpractices. Examples in the fields of furniture, packaging, and appliance design illustrate the importance of a broaderintegration among activities of conception, production, and use of artifacts.

Design em Contradição: Explorando a Teoria da Atividade no entendimento do Design deProdutos

1- Introdução

O design de produtos é uma atividade projetual de caráter multidisciplinar, que visa a materialização deconceitos elaborados pelo designer em resposta a necessidades situadas cultural e historicamente. O conceitodo artefato tem como referência, entre outras questões, aspectos relacionados à viabilidade de produção e aouso do produto. No decorrer deste artigo, a atividade de design de produtos será analisada a partir da Teoriada Atividade, o que facilita a compreensão de interligações existentes entre as etapas de concepção,fabricação e uso dos artefatos. Nesta abordagem é ressaltada a importância do ser humano como sujeitoativo, que faz uso dos artefatos como ferramentas ou signos mediadores de suas práticas cotidianas.

2- A Teoria Histórico Cultural da Atividade

O trabalho de Lev Seminovich Vygotsky (1896-1934) foi fundamental para o posterior desenvolvimento daTeoria Histórico Cultural da Atividade, ou simplesmente Teoria da Atividade. Em VYGOTSKY (1978), oreconhecimento do emprego de ferramentas e signos como elementos mediadores de práticas sociais superouas limitações dos modelos que assumiam uma relação direta entre estímulo e resposta, como ilustrado naFIGURA 1.

FIGURA 1: Modelo de ação não mediada e mediada por signos ou instrumentos

O termo atividade vem do trabalho de Aleksei Nicolaevich Leont’ev (1904-1979), que estendeu e refinou oconceito de ação mediada através dos conceitos de atividade e operação, reforçando a sua fundamentação

coletiva. As atividades humanas, mesmo que realizadas individualmente, estão relacionadas com práticasestabelecidas histórica e coletivamente na sociedade. Uma atividade sempre responde a necessidades e édirecionada por motivações específicas.

Em Leont’ev, uma atividade é constituída por várias ações, que por sua vez, são constituídas por operações.Salienta-se, entretanto, que atividades sempre respondem a necessidades e são direcionadas por motivações,que ações são relacionadas a objetivos específicos, enquanto que operações são relacionadas às condiçõesdisponíveis para que sejam realizadas, como ilustrado na FIGURA 2. Uma reflexão mais aprofundada sobreas relações entre atividade, ação e operação, assim como sobre as relações entre o objeto de uma atividade,os motivos envolvidos e as contingências de seu exercício, fogem ao escopo deste artigo.

Yrjö ENGESTRÖM (1987), em seu trabalho sobre aprendizagem expansiva deu continuidade à Teoria daAtividade. Dentre outras contribuições, ele propôs um modelo de sistema de atividade humana que estende etransforma o modelo original de ação mediada através da inclusão de relações que se estabelecem entreindivíduos e sociedade, conforme ilustrado na FIGURA 2. O modelo expande a unidade de análise deatividades humanas.

FIGURA 2: Transição do modelo individual para o sistema de atividade coletiva.

Neste modelo de sistema de atividade, o sujeito representa o indivíduo ou subgrupo cuja forma de agir étomada como ponto de vista da análise. O objeto se refere às necessidades e motivos sobre os quais aatividade está baseada. Instrumentos externos e internos (ferramentas e signos) mediam e direcionamesforços na busca do resultado desejado. A comunidade representa indivíduos ou subgrupos que possueminteresses comuns e compartilham do mesmo objeto (necessidade e razão da atividade). A divisão detrabalho refere-se tanto à divisão horizontal de tarefas entre os membros da comunidade quanto à divisãovertical de poder e status. As regras referem-se aos hábitos, normas e convenções que restringem ações einterações no interior do sistema de atividade (ENGESTRÖM, 1993). Um sistema de atividade sempre leva aalgum resultado, seja este esperado ou não.

Um sistema de atividade nunca é estático, seus componentes estabelecem entre si tanto relações dedesenvolvimento contínuo, caracterizadas pela acumulação de experiências e mudanças incrementais, quantotransformações ocasionadas por rupturas e descontinuidades. ENGESTRÖM (1993) apresenta como umexemplo de desenvolvimento contínuo as modificações em instrumentos de trabalho estabelecidas através desua adaptação a novos contextos de uso, ao longo da experiência prática.

As transformações ocasionadas por descontinuidades são decorrentes de crises e rupturas que resultam emmodificações qualitativas do sistema coletivo. Segundo ENGESTRÖM (1993), esses conflitos são causadospor contradições, que são intrínsecas aos sistemas de atividades. As tensões e contradições que surgem entre

os componentes de um sistema ou entre diferentes sistemas de atividade representam a força motivadora demudanças e transformações das atividades humanas.

O modelo apresentado por ENGESTRÖM (1987) possibilita uma compreensão das relações sistêmicasenvolvidas em um ou mais sistemas de atividade. Sua representação gráfica facilita o reconhecimento dosmúltiplos relacionamentos que se estabelecem entre sujeitos, comunidades, o objeto da atividade e seusresultados. Ferramentas, regras e divisão do trabalho fazem a mediação, possibilitando ou restringindoprocessos de produção, distribuição, troca e consumo.

3- Design de Produtos: A Atividade de Projetar Artefatos para outras Atividades

No que diz respeito à profissão de design, a concepção de produtos envolve sistemas de atividade cruciais nodesenvolvimento dos artefatos que fazem parte da cultura material de uma sociedade. Sob a ótica da Teoriada Atividade o objeto da atividade de design de produtos pode, por exemplo, estar associado à criação eviabilização da produção de artefatos para o uso. Almejando um resultado alvo, designers, ou equipes dedesign, empregam como ferramentas mediadoras formas de representação – como desenhos, ilustrações,animações, modelos tridimensionais e relatórios, entre outras – que auxiliam na concreção de entidadessemióticas e materiais possíveis de serem compartilhadas pela comunidade envolvida. O sistema de atividadeé organizado em consonância com regras que determinam como ações devem ser divididas e realizadas,estabelecendo papéis a serem desempenhados e diretrizes a serem seguidas pelos integrantes da atividadedurante a sua realização.

O resultado final concretiza-se em um projeto, que a princípio deve compreender as representaçõesnecessárias para que o artefato possa ser produzido por um outro sistema de atividade. Ou seja, o resultadoda atividade de concepção é um instrumento mediador que será empregado no sistema de atividade deprodução. Por sua vez, o artefato fabricado será instrumento mediador de outros sistemas de atividades quepoderão envolver sua distribuição, uso, reuso e descarte. Os vários sistemas de atividades formam uma redede relações, onde as várias comunidades envolvidas estão interligadas.

Os sistemas de atividade são dinâmicos e estão em constante transformação, muitas vezes movidos porcontradições internas e externas, modificando práticas vigentes e estabelecendo novas. Mudanças em umsistema acarretam alterações em outros a ele relacionados, desencadeando alterações em todo um conjuntode práticas sociais. O sistema de atividade de concepção pode introduzir mudanças na atividade de produçãoe vice-versa. Formas de uso podem mudar a maneira de projetar e produzir um artefato, bem como novosartefatos podem modificar a atividade de uso. A integração destes sistemas é condição para que as constantesmudanças possam ser percebidas pelas comunidades envolvidas, possibilitando a negociação e a resoluçãodas contradições resultantes desse processo.

A FIGURA 3 ilustra três sistemas de atividades presentes em design de produtos, dentre outros. Asatividades de concepção, produção e utilização podem ser associadas respectivamente a instituições ligadas àeducação, à indústria e ao mercado, porém isto não deveria restringir a participação de designers,engenheiros e usuários nestes diferentes domínios. Na realidade, a rede de relações entre sistemas deatividades compreende um universo bem maior do que o conjunto citado. Todos os sistemas de atividadesque diretamente ou indiretamente apresentam qualquer tipo de ligação com as práticas consideradas, dealguma maneira exercem influência no seu desenvolvimento.

O desenvolvimento de um artefato é um processo contínuo de negociação que envolve os valores de todos osinteressados em busca de resultados satisfatórios. Nesta rede de sistemas o designer não é um criadorisolado, pois seu trabalho inclui, por exemplo, a troca de informações com profissionais de várias áreas deconhecimento, tais como pessoas ligadas ao setor produtivo e ao mercado consumidor, assim comocontradições entre seus interesses.

Mais especificamente, a relação entre atividades de projeto e atividades de produção acontece pelanecessidade de concreção do processo criativo em um artefato simbólico ou material. Ou seja, o artefato

concebido precisa ser enunciado e produzido. Ao elaborar e propor um artefato, o designer precisa estarciente das contingências de outros sistemas de atividades. Por exemplo, as especificações de projeto devemlevar em conta tanto a infraestrutura material da empresa produtora e o conhecimento envolvido, como ademanda da comunidade. Se o projeto contemplar propostas inovadoras para a realidade tecnológica daempresa, que impliquem em modificações nas práticas vigentes ou nas ferramentas disponíveis, o estudo daviabilidade dessas mudanças precisa ser realizado em conjunto com a comunidade responsável pela atividadede produção.

FIGURA 3: Atividades de concepção, produção e uso de artefatos

O design precisa integrar as atividades de concepção e de produção, de modo a favorecer o conhecimentomútuo das respectivas características, potencialidades e limitações referentes a cada uma. A atividade defabricação deve ser encarada pela comunidade envolvida no design do produto como um espaço quepossibilita a realimentação constante de dados que podem contribuir para o resultado da sua própriaatividade, considerando a natureza e a cultura específica de cada empresa.

A negociação entre os diferentes profissionais, com o intuito de resolver as contradições que surgem entre aconcepção do artefato e sua viabilidade de fabricação, tanto pode alterar a atividade de design – acarretandomodificações na concepção do projeto, adaptando suas características à tecnologia disponível – quanto podeintroduzir mudanças na atividade de produção – com o emprego de novos materiais e equipamentos ou coma alteração de procedimentos de trabalho que permitam a obtenção de novas propostas de produtos.

A “estação de trabalho para pequenos ambientes” desenvolvida pela Morpho Serviços de Design Ltda.(MORPHO, 2004), com escritório sediado em Curitiba – PR, pode ilustrar como critérios relacionados àestética e ao conceito do produto podem impulsionar modificações na atividade produtiva. Esse móvel,comercializado pela Tok & Stok com o nome de Berimbau, consiste em três tampos de placa de madeirafixados em uma estrutura feita de tubo de aço curvado, conforme ilustrado na FIGURA 4c.

Os tubos desta estação de trabalho são de seção oblonga, ou seja, apresentam um perfil oval. A equipe dedesign determinou que a curvatura do tubo deixasse o lado mais estreito deste voltado para frente da estante,e o mais largo para as laterais. A opção em vergar o perfil desta maneira demonstrou-se problemática, poisas calandras convencionais disponíveis não se prestavam para tal. Ao ser indagado sobre os motivos quelevaram a equipe a insistir na curvatura do tubo neste sentido, o diretor do escritório Alceu Franco Munizargumentou que, como o conceito do projeto foi inspirado em um berimbau, a intenção do grupo era fazerreferência ao arco (verga) característico desse instrumento musical, para compor a estrutura da mesa. Umacomparação rápida entre um berimbau (FIGURA 4a), a geração de conceitos formais (FIGURA 4b), e oproduto final (FIGURA 4c) permite identificar a similaridade entre vários de seus componentes.

Como a empresa fabricante não possuía equipamento para dobrar o tubo no sentido especificado, foinecessário o desenvolvimento de uma máquina ferramenta que possibilitasse a operação. Segundo o próprioMuniz:

Claro que todo o mundo questionou: mas por que não usamos o tubo da maneira convencional? Só que daí agente não reproduziria a idéia do berimbau, ia ficar uma coisa meio forçada. Depois, pela experiência do grupoque naquele momento estava envolvido nesse projeto, concluímos – juntando o conhecimento um pouquinhode um, um pouquinho de outro – que nós conseguiríamos, teoricamente, adaptar uma calandra convencionalpara fazer aquilo (SANTOS, 2000, p 54).

A equipe elaborou um esquema de como seria a adaptação da máquina e depois de várias respostas negativasde fornecedores de tubos calandrados, foi encontrada uma serralheria disposta a realizar a experiência:“então acabou dando certo. Só depois de feito o protótipo e aprovado pelo nosso cliente, nesse caso a Tok &Stok, é que esse conhecimento, essa adaptação de máquina [...] foi daí transferida para o fabricante. Então foiconstruída uma calandra especificamente para isso” (SANTOS, 2000, p 54).

FIGURA 4: Berimbau; estudo formal, e estação de trabalho para pequenos ambientes (Morpho Design, 2004).

Uma das preocupações da equipe foi com a viabilidade econômica da solução proposta. O novo sistema nãoimpossibilitou o custo final e, além disso, a nova máquina também pôde ser usada para curvar tubos nosentido convencional. É importante salientar que sem o conhecimento do processo de calandragem de tubos,a equipe de design não teria condições de resolver a contradição que surgiu entre as atividades de concepçãoe fabricação, preservando o conceito do produto. Foram esses conhecimentos que levaram o grupo aacreditar e a insistir que era possível modificar o processo tradicional de curvar tubos, utilizado pelaempresa.

Esse exemplo ilustra como a resolução de contradições entre sistemas de atividades pode impulsionartransformações em práticas estabelecidas, bem como salienta a importância do conhecimento dascaracterísticas das várias atividades envolvidas no desenvolvimento de produtos. A impossibilidade defabricar o móvel da maneira desejada pela equipe de design não se apresentou como um elemento limitador,ou seja, o projeto não foi alterado para se adaptar aos processos disponíveis. O conhecimento da atividade deprodução por parte da equipe de design permitiu a modificação da máquina ferramenta da fábrica e aintrodução de inovações em sua forma tradicional de trabalhar.

4- A Atividade de Uso como Referência Projetual

O uso dos artefatos é um fator considerado na atividade de design, mas é preciso ressaltar que essapreocupação geralmente privilegia os aspectos funcionais, sem um maior aprofundamento das características

culturais que envolvem a complexidade das relações que se estabelecem no sistema de uso com o todo.Projetar um artefato compreende também o projeto das relações entre o sujeito, o artefato e o contexto daatividade em que se estabelecem essas relações. Conforme diz Margolin:

Antes de mais nada, a experiência [o uso] amplia as discussões sobre a função. Ela nos move de um foco naoperação mecânica de um produto a caminho de como ele se encaixa nas atividades de um usuário. O produtonão existe em um vácuo. Ele se torna significativo apenas em relação a um usuário (MARGOLIN, 1997, p229).

Os significados dos artefatos estão atrelados ao contexto da atividade em que são utilizados comomediadores. Uma vez que os contextos de uso são variados e estão em constante transformação, não épossível presumir que a forma definida pelo designer como representativa dos significados de umdeterminado artefato tenha o mesmo entendimento por parte dos usuários. Para que a atividade de projetoresulte em artefatos que supram as expectativas dos usuários nos aspectos funcionais e simbólicos, énecessário o conhecimento de como a atividade de uso se desenvolve e de como o usuário interage com oartefato na produção dos significados que envolvem seus aspectos culturais.

Um dos profissionais da empresa de eletrodomésticos Electrolux do Brasil, entrevistado por GUIMARÃESet al. (1997, p 47, grifos das autoras), comenta que algumas funções diferentes das imaginadas pela equipe deprojeto usualmente são atribuídas aos refrigeradores, quando estes produtos passam a fazer parte da vida daspessoas. Através de pesquisas com os clientes, constatou-se que era necessário prever que as cabeceiras dasgeladeiras serviriam de apoio para outros produtos, como um forno de micro ondas ou uma televisão:

... porque muitos consumidores nossos compram refrigerador não para deixar na cozinha, mas para ficar nasala. Isso é fácil de detectar em pesquisa, porque em alguns lugares do Brasil, você ter um freezer ou umrefrigerador ainda é sinônimo de status. Chega no Rio de Janeiro, numa favela, ou mesmo em alguns lugaresdo nordeste, é a coisa mais normal. Mesmo em residências menores, onde não se consegue colocar a geladeirana cozinha. Tem que colocar alguma coisa em cima e esbarra no problema: o produto não consegue comportara utilidade dele. Não a utilidade prática, mas a utilidade subjetiva dele.

Considerar o contexto de uso como referência para o projeto também pode sugerir uma mudança de foco doproduto para a atividade. Muitas vezes, o ponto de partida para o design é o produto. Nesse tipo deabordagem projetual, todo o direcionamento está voltado para uma idéia pré concebida de um artefato, cujossignificados podem ser definidos muito mais pelos contextos de quem está projetando do que pelasexperiências de vida dos usuários.O contexto de uso como referência e a consideração dos aspectos culturaisque envolvem a relação sujeito / artefato podem levar ao desenvolvimento de outros tipos de produtos,impossíveis de serem previstos sem o estudo da atividade de uso.

FIGURA 5. Copos para embalagem de alimentos da Nadir Figueiredo (NADIR, 2004)

Uma experiência desse tipo marcou a história da empresa de artigos em vidro Nadir Figueiredo. Segundo orelato de Mauro Marquesano – diretor da área de embalagens de vidro – na década de 50, o vendedor Plíniode Paula Ramos, em uma de suas viagens ao interior do Brasil, teria observado que as pessoas tinham o

costume de tomar água em latas de extrato de tomate, reutilizando embalagens vazias. “Então ele teve aidéia: Por que a gente não vende extrato de tomate em copo e as pessoas passam a comprar o extrato no copoe passam a ter o copo como algo que pode ser reutilizado? Então foi assim que começou o negócio”(SANTOS, 2000, p 60). Atualmente o segmento de copos para embalagens de alimento representa uma partesignificativa do volume físico dos negócios da empresa. Durante o ano 2000, no total de unidades fabricadas,35% correspondiam a copos destinados para o mercado de embalagens de alimentos. “A indústria tem porvocação fazer copos, não exatamente só copos de embalagens, mas copos em geral. Nós adaptamos umavocação da empresa a uma necessidade do mercado” (SANTOS, 2000, p 60). Na verdade, não foiexatamente uma necessidade de mercado que levou a essa inovação, mas sim a observação docomportamento das pessoas em suas atividades cotidianas.

5- Conclusões

Na realização de suas atividades o ser humano se relaciona socialmente: o indivíduo interage com acomunidade, suas regras, suas hierarquias, suas relações de poder, com as ferramentas e signos empregados,seus modos de uso e suas restrições. As atividades - sempre mediadas por artefatos - são formas de relaçõessociais. Embora o artefato seja tradicionalmente considerado um fim para a atividade de design,isoladamente vista como concepção, ele também representa um meio para outras atividades, como a de uso.

O ensino de design de produtos geralmente aborda o sistema de atividade referente à concepção de artefatos,sem necessariamente relacioná-lo significativamente com os sistemas de produção, de distribuição e de usode artefatos. Assim, a prática profissional geralmente privilegia as relações entre as atividades de projeto eprodução, muitas vezes relegando a um segundo plano o contexto de uso dos artefatos. Como dizMARGOLIN (1997, p 228):

Se designers profissionais pretendem aumentar o escopo de suas influências, eles precisam enriquecer suascompreensões sobre o entorno (milieu) dos produtos. Eles precisam ter ciência tanto da vastidão, quanto dacomplexidade com que produtos vêm a existir e se incorporar às atividades dos usuários. Designers tambémprecisam explorar em maior profundidade a relação interativa de como as pessoas desenvolvem suas atividadesindividuais e coletivas e as maneiras com que novos produtos influenciam e são influenciados por esseprocesso.

O presente artigo pretende reforçar a necessidade de ampliação do escopo da atividade de design, incluindooutros sistemas de atividade a ela relacionados, posicionando as atividades de produção e uso como fontes deconhecimento e espaços para troca de informações indispensáveis para os profissionais de design deprodutos, conforme ilustrado na FIGURA 3. É pela participação de comunidades envolvidas em outrossistemas de atividade que o designer pode compartilhar informações sobre a viabilidade de seu projeto. Éjunto à comunidade envolvida na atividade de uso que estão os conhecimentos necessários para a criação deartefatos culturalmente significativos.

3- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ENGESTRÖM, Y. (1987) Learning by Expanding: An Activity-Theoretical Approach toDevelopmental Research. Helsinki, Orienta-Konsultit.ENGESTRÖM, Y. (1993) Developmental Studies of Work as a Testbench of Activity Theory: The case ofprimary care medical practice. In Understanding Practice. Editado por Seth Chaiklin e Jean Lave.Cambridge University Press, p 64-103.GUIMARÃES, A. L. V; GAPSKI, M. L.; SANTOS, M. R. e ONO, M. M. (1997) Contextualização daArte, da Técnica e da Tecnologia no Design Industrial: Um estudo de caso na empresa Electrolux /Curitiba – PR, Programa de Pós Graduação em Tecnologia, CEFET-PR, manuscrito.LEONT’EV, A. N. (1978) Activity, Consciousness, and Personality. Prentice Hall, Englewood Cliff, NewJersey, USA.MARGOLIN, V. (1997) Getting to Know the User. In Design Studies, V. 18, No 3, Great Britain, p 227-236.MORPHO (2004) Morpho Design http://www.morphodesign.com.br/prt_pd_berimbau.html, acessado em 10de abril de 2004.

NADIR (2004) Nadir Figueiredo Indústria e Comércio S.A.http://www.nadir.com.br/htm/embalagens/embalagens.htm, acessado em 14 de abril de 2004SANTOS, M. R. (2000) Design, Produção e Uso dos Artefatos: Uma abordagem a partir da atividadehumana. Curitiba, 82 p. Dissertação (Mestrado em Tecnologia) - Programa de Pós-Graduação emTecnologia, Curitiba, Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná.VYGOTSKY, L. S. (1998) A Formação Social da Mente. São Paulo, Martins Fontes

Marinês Ribeiro dos SANTOS [email protected] Ernesto MERKLE [email protected]