desenvolvimento profissional docente: considerações sobre dois espaços formativos
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Sandra Novais Sousa e Eliane Greice Davanço Nogueira. No preloTRANSCRIPT
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A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA DE PROFESSORES: REVELANDO A CONSTITUIÇÃO DO HABITUS E O DESENVOLVIMENTO DO CAPITAL
CULTURAL EM DOIS CENÁRIOS FORMATIVOS.
É ponto consensual entre os pesquisadores que se dedicam a estudar formas de
melhorar a educação que qualquer mudança que se pretenda envidar nos processos
educativos escolares passa pela formação profissional docente. Esse, portanto, é um
tema sensível no contexto brasileiro, que engloba uma amplitude de aspectos de
naturezas distintas, dilemas, pontos de tensão e opiniões que se direcionam a caminhos
antagônicos, a depender do ponto de partida teórico. Podem-se focar as deficiências e
problemas percebíveis nas formações iniciais, nas diversas licenciaturas; criticar os
modelos de formação continuada oferecidos pelo Estado; culpar o “desinteresse” do
professor em se atualizar, as condições das escolas públicas, enfim, o campo abre
espaço para diferentes debates, que revelam uma pluralidade de respostas.
Nóvoa (2009) analisa que houve nos últimos anos um aumento “[...] da
comunidade da formação de professores, em particular dos departamentos universitários
na área da Educação”, assim como dos “especialistas internacionais” e da “indústria do
ensino”, produzindo o que ele chama de uma inflação discursiva sobre os professores.
Adverte, porém: “Mas os professores não foram os autores destes discursos e, num certo
sentido, viram o seu território profissional e simbólico ocupado por outros grupos.”
(NÓVOA, 2009, p. 16).
Desta forma, pensar em alternativas de melhoria da profissão docente, sem levar
em consideração os atores principais dessa ação, converte-se em um modo de fazer com
que estes estejam novamente à margem da “história oficial”, ou seja, desprovidos de
voz ativa nas questões que envolvem seu fazer docente. Na contramão desse
pensamento hegemônico, muitos estudiosos têm pesquisado e apresentado maneiras de
incluir o professor em seus próprios processos formativos. Conforme asseguram Nóvoa
e Finger (2010, p. 15), é necessário entender que “[...] nenhum serviço de formação
permanente pode reduzir a sua atividade aos modelos tradicionais aceitos,
consubstanciados, via de regra, na formação em sala.”
Nesse sentido, tem ganhado cada vez mais espaço a utilização do método (auto)
biográfico na formação de professores. Souza, Portugal e Silva explicam que a opção
metodológica por essa linha de pesquisa envolve a adoção de um novo modo de encarar
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a docência, a formação inicial e continuada, desvinculada da “[...] visão mecanicista e
positivista da modernidade.” (SOUZA; PORTUGAL; SILVA, 2013, p. 49).
Entendendo, desta forma, que é preciso incluir os protagonistas do cenário
educativo nas decisões e reflexões sobre os problemas inerentes ao sistema educacional,
desenvolvemos esta pesquisa que tem como objetivo investigar as possibilidades
formativas e de melhoria da qualidade da educação básica de duas políticas públicas
promovidas pela CAPES, pelo olhar dos sujeitos que delas participaram, observado a
partir de relatos autobiográficos..
O primeiro cenário desta pesquisa possui como atores 11 (onze) alunos egressos
do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, bolsistas do
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e que estão,
atualmente, atuando como professores iniciantes na Educação Básica. As narrativas e
entrevistas realizadas com esses professores recém formados revelam os processos
próprios de aprendizagem da profissão e a constituição do habitus professoral,
adquiridos com os conhecimentos teóricos vindos da academia, mas, principalmente,
com a vivência no cotidiano das escolas.
No segundo cenário, estão 5 (cinco), de um total de 19 (dezenove) sujeitos, que
fizeram parte da primeira turma (2012-2014) do Mestrado Profissional em Educação da
UEMS, escolhidos para esta pesquisa por serem participantes do Grupo de Estudo e
Pesquisa em Narrativas Formativas (GEPENAF1), do qual as autoras desse artigo são
também integrantes. As narrativas autobiográficas, produzidas por esses sujeitos nas
diversas reuniões do grupo, ancoradas em estudos teóricos dos conceitos de Pierre
Bourdieu, proporcionaram reflexões sobre o papel do Mestrado Profissional no
desenvolvimento do habitus professoral e na aquisição de um capital cultural
diferenciado, percebido ou não por seus pares na “volta” à escola como mestres em
educação.
Partiremos do entendimento que essas duas políticas públicas guardam em seu
bojo, ainda que necessitem de ampliações, incentivos maiores e adequações, um
potencial para atuar na promoção do desenvolvimento profissional docente, conceito
esse que consideramos mais amplo e complexo do que o de formação continuada,
1 O grupo de estudo e pesquisa foi criado em 2010 na cidade de Campo Grande - Mato Grosso do Sul, sob o título de Grupo de Estudo e Pesquisa em Narrativas Formativas GEPENAF, com a finalidade de reunir pesquisadores de diferentes instituições de ensino UEMS/UCDB/UNIDERP/UFMS/UNICAMP, interessados em produzir conhecimento e pesquisa sobre teoria e prática na formação docente, utilizando narrativas formativas, como: biografias, autobiografias, memoriais, histórias de vida. Informações disponíveis em http://grupogepenaf.blogspot.com.br/. Acesso em 01/05/2015
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utilizando como referencial teórico os conceitos bourdieusianos de habitus e capital
cultural e os pressupostos da utilização de histórias de vida na formação e na pesquisa
com professores.
O conceito de habitus , elaborado por Pierre Bourdieu é importante para se
estabelecer proximidades e distâncias sociais, no sentido que descortina as mudanças
pelas quais passa o sujeito, em relação às suas formas de ver e simbolizar a realidade
social, “[...] associadas ao nível de instrução (avaliado pelo diploma escolar ou pelo
número de anos de estudo) e, secundariamente, à origem social.” (BOURDIEU, 2008, p.
09).
Segundo Bourdieu (2011):
Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o fruto da ação organizada de um maestro. (BOURDIEU, 2011, p.87)
Entendemos que é no interior das salas de aula, nas
experiências próprias do ensino, que são organizadas e geradas as
representações, a que Silva (2005) denomina habitus professoral.
Estas representações são ao mesmo tempo reguladas, por fazerem
parte de uma estrutura formal já constituída, e regulares, por não
serem estáticas e estarem em contínuo processo de transformação.
Um dos fatores que contribuem para essa modificação no
habitus é o desenvolvimento de um capital cultural diferenciado,
adquirido ou incorporado quando o sujeito investe em si mesmo.
Segundo Bourdieu, o capital cultural pode existir sob três formas: no
estado incorporado (disposições duráveis do organismo); no estado
objetivado (bens culturais: quadros, livros, dicionários, instrumentos,
máquinas); e no estado institucionalizado, o qual inclui a certificação
escolar que “[...] confere ao capital cultural – de que é,
supostamente, a garantia – propriedades inteiramente originais.”
(BOURDIEU, 1979, in NOGUEIRA; CATANI, 2012, p.74).
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Essas propriedades originais não possuem relação direta com a
certificação escolar. De fato, Bourdieu explica:
A objetivação do capital cultural sob a forma do diploma é um dos modos de neutralizar certas propriedades devido ao fato de que, estando incorporado, ele tem os mesmos limites biológicos de seu suporte. Com o diploma, essa certidão de competência cultural que confere ao seu portador um valor convencional, constante e juridicamente garantido no que diz respeito à cultura, a alquimia social produz uma forma de capital cultural que tem uma autonomia relativa em relação ao seu portador e, até mesmo em relação ao capital cultural que ele possui, efetivamente, em um dado momento histórico. (BOURDIEU, 1979, in NOGUEIRA; CATANI, 2012, p. 78).
Assim, justifica-se a investigação, em relação aos sujeitos dessa
pesquisa, sobre em que medida a certificação escolar (como
graduado em Pedagogia ou mestre em educação) conferiu aos seus
portadores um capital cultural diferenciado, percebido em mudanças
de habitus, no caso específico desse trabalho, do habitus professoral.
Assim, são questões de interesse dessa pesquisa desvelar: Quais os
novos valores, saberes e formas de apreender a realidade educativa e as políticas
públicas voltadas para a educação foram inculcados ou assimilados pelos sujeitos
egressos da UEMS? Houve mudanças percebíveis em seu capital cultural? Modificaram
seu habitus?
Utilizaremos, como já sinalizado, a fim investigar essas possíveis mudanças, de
relatos autobiográficos, produzidos em ambientes formativos. A análise desses relatos
“[...] reconhece os saberes subjetivos e adquiridos nas experiências e nas relações
sociais, sendo ela a própria história de formação do sujeito.” (ROCHA; SOUZA, 2013,
p.179).
Ainda, recorremos às histórias de vida dos professores para entender as
modificações pelas quais passaram sua constituição pessoal e profissional, frente ao
contato com as políticas públicas aqui consideradas, ou seja, levando-se em
consideração o tempo pessoalmente investido pelo sujeito sobre si mesmo.
1. O desenvolvimento profissional do Professor Iniciante: A experiência com o
PIBID.
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O PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência),
financiado pelo Ministério da Educação (MEC), por meio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), foi elaborado com vistas a
inserir os licenciados no cotidiano de escolas da rede pública de educação, não apenas
como observadores, mas
Assim, o Programa elenca como alguns de seus objetivos:
III - elevar a qualidade da formação inicial de professores nos cursos de licenciatura, promovendo a integração entre educação superior e educação básica; [...]IV - inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de educação, proporcionando-lhes oportunidades de criação e participação em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e interdisciplinar que busquem a superação de problemas identificados no processo de ensino-aprendizagem; [...]VI - contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à formação dos docentes, elevando a qualidade das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura. (BRASIL, 2010, p. 4, grifos nossos)
Essa inserção acontece enquanto estes estão realizando seus estudos teóricos na
universidade, contando, além do apoio dos docentes do curso, com o respaldo dos
coordenadores do Programa e das trocas entre os pares (professores da Educação Básica
com os quais convivem e outros pibidianos nas reuniões do grupo).
Na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, campus Campo Grande, o
PIBID está dentro do contexto do subprojeto “Ateliês Formativos de Professores
Alfabetizadores: construindo práticas eficazes”, o qual aborda os processos de
alfabetização os elementos da didática necessários ao desenvolvimento da oralidade,
leitura e escrita das crianças. Na configuração do PIBID adotada nesse subprojeto, os
bolsistas acadêmicos planejam e desenvolvem práticas alfabetizadoras diferenciadas em
escolas da rede estadual de ensino de Campo Grande/MS. Essas atividades envolvem o
atendimento de crianças com dificuldades na alfabetização inicial, o acompanhamento e
a observação das práticas de professores em classes de alfabetização (1º ao 3º ano do
ensino fundamental), a participação em reuniões com a coordenação pedagógica das
escolas e com a coordenação de área, na sede da Universidade. São produzidos, ainda,
relatórios mensais em que há a problematização das questões emergentes dos contextos
acompanhados e narrativas autobiográficas, produzidas em ateliês formativos, nesse
contexto identificados como espaços/tempos dedicados ao estudo e reflexão de temas
envolvidos na organização do trabalho didático do professor alfabetizador.
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Portanto, mais do que funcionar como uma extensão da disciplina de Estágio
Supervisionado, o PIDID, pelo menos da forma como foi configurado no subprojeto da
UEMS, traz a possibilidade do questionamento e do confronto entre a teoria vivenciada
na academia e a prática alfabetizadora efetivamente observada nas escolas, colocando os
(futuros) professores na condição de investigadores.
O que apresentaremos, nessa seção, são considerações acerca dos escritos de
onze egressos do PIBID, os quais concluíram o curso de Pedagogia na UEMS e
atualmente são ingressantes na carreira docente. Esses escritos remetem aos “[...] seus
percursos pessoais e profissionais, aos seus sucessos e às suas perspectivas sobre o
ensino, a aprendizagem, a avaliação e o currículo” (REIS, 2008, p. 20), dando
visibilidade aos processos de desenvolvimento profissional e pessoal envolvidos na
constituição de seus habitus, manifestados em novos capitais culturais, acedidos com a
formação universitária.
1.1 Os sentidos atribuídos ao processo de alfabetização: construindo um novo capital
cultural.
No subprojeto “Ateliês Formativos de Professores Alfabetizadores:
Construindo práticas eficazes, é priorizada a formação de professores
alfabetizadores capazes de reconhecer a importância de se relacionar a
alfabetização à apropriação de um sistema notacional, que envolve a
compreensão – mais que reprodução – do sistema de escrita alfabético, de modo
a desenvolver nas crianças a capacidade de ler, entender e produzir textos orais e
escritos, garantindo sua inserção social com práticas de letramento.
Essa formação é oportunizada nos ateliês formativos, tempos e espaços
em que há a promoção do diálogo permanente, do estudo coletivo, da
participação efetiva na e pela reflexão, em busca de novas aprendizagens. As
ações partiram, a princípio, de uma re (construção) dos processos de
alfabetização experimentados pelos pibidianos em sua infância, buscando,
nessas memórias, quais as concepções (de alfabetização, de escola, de ensino, de
aluno) presentes nas práticas docentes vivenciadas. Essas aproximações teóricas
são importantes como reveladoras da intencionalidade e desencadeadoras da
problematização necessária sobre os sentidos atribuídos à alfabetização e como
eles podem ser reproduzidos inconscientemente nas práticas profissionais.
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Nos escritos dos pibidianos, encontramos o desvelamento de práticas
tradicionalistas, que priorizavam a escrita como uma técnica, a ser treinada por
meio da repetição e da cópia de modelos, sem levar em consideração a formação
conceitual do aluno, ao indicarem que [...] a professora passava um monte de ba-
be-bei... na lousa, o aluno não tinha voz”(P-1)2 ou a constatação de que
As repreensões por não conseguir aprender, entender, perguntar repetidas vezes, ainda são lembranças vivas, principalmente quando me deparo com situações iguais na sala de aula. Fazia muitos exercícios de cópias, muitos exercícios para trabalhar a coordenação motora, cobrir letras e números, colagens com revistas e jornais [...] (P-2)
Nessa perspectiva, a composição dessas memórias é inscrita num
contexto histórico e cultural, uma vez que a reflexão sobre as situações
vivenciadas no papel de estudante pode contribuir para a formação de um novos
habitus professoral, que tenda a minimizar os problemas rememorados em sua
experiência estudantil. Por exemplo, observar que, quando criança, “o aluno não
tinha voz” (P-1), levará o sujeito a oferecer momentos de escuta aos seus
próprios alunos? Reconhecer que as lembranças de ser repreendido “por não
conseguir aprender” (P-2) incomodam, o fará ser mais compreensivo com
aqueles que apresentam mais dificuldades na aprendizagem? Deparar-se, nas
observações feitas das aulas dos professores que acompanha hoje como
pibidiano, com “situações iguais” (P-2), fará com que empreenda novas práticas
como professor? Não há garantias que essas respostas sejam positivas, porém,
refletir sobre isso, certamente, é um passo largo nessa direção.
Desse modo, as análises iniciais que os pibidianos efetuaram
contemplam alguns ensaios de consideração das tensões existentes entre as
concepções teóricas no campo da educação e as práticas efetivas nas salas de
aula observadas, questionando e refletindo ora sobre a teoria e a imposição de
conceitos estagnados: “Durante muito tempo, pensou-se que só havia uma
direção a seguir para aprender ortografia: memorizando palavras. Hoje podemos
propor situações de aprendizagem interessantes”. (P-9); ora sobre a prática
“Embora seja uma maneira verdadeiramente tradicionalista (exercícios de
prontidão, memorização, exercícios que não envolvem tanto), pude perceber a
2Preservamos o anonimato dos participantes. A letra “P” refere-se à pibidiano e, na próxima seção, a letra “M” a mestrandos/mestres.
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preocupação da professora em preparar essa aula, o interesse, a organização e a
busca por tímidas inovações.” (P-8).
Esses excertos revelam os primeiros passos para uma ressignificação dos
saberes teóricos e práticos: o questionamento dos conceitos nos quais os
professores vêm se pautando “durante muito tempo” (P-9), traduzindo o
verdadeiro espírito científico, que, longe de ser a busca por uma “verdade”, tem
a ver com o compromisso com a pesquisa; e a relativização da prática,
considerada tradicionalista pelo pibidiano, mas num contexto em que o trabalho
didático do professor não é desmerecido. Essa reflexão remete a uma das
consequências do trabalho com histórias de vida: o reconhecimento dos sujeitos
por trás das práticas, do professor real, que precisa enfrentar o cotidiano a partir
das armas que possui e da forma que consegue, mesmo que com “tímidas
inovações” (P-8).
A reflexão, no subprojeto, configurou-se como um modo de interpretar
um conjunto de ações, orientadora dos modos de formar, construir e significar as
aprendizagens dos acadêmicos, fazendo a articulação não só entre teoria e
prática, mas entre o novo habitus que estavam constituindo e o habitus
professoral encontrado nas instituições escolares, conforme demonstram outros
fragmentos:
Por que as pessoas saem da universidade e são vencidas pela ESCOLA? Que poder é esse que a escola tem de mudar as pessoas? Será que comigo não vai ser diferente? Não quero ser vencido sem lutar. É possível trabalhar na escola o que se aprende na UNIVERSIDADE. (P-2)
A sala de aula prova um enfrentamento intrigante, um deslocamento, um desajuste. Onde está a teoria que aprendemos? Será que é possível colocar em prática na sala de aula o que dá certo no ateliê? Será que estamos corretos com relação à aplicação da teoria – Psicogênese da Língua Escrita? (P-10)
Ou seja, apesar de estarem adquirindo um novo capital cultural, advindo da
instrução superior e pelas experiências consolidadas no PIBID, os sujeitos percebiam
os obstáculos que a cultura vigente na escola impunha à realização do novo, ao impor
aos integrantes daquela comunidade suas regras e normas internalizadas de
funcionamento. A preocupação em querer saber se com ele – sujeito com perspectivas
e saberes diferenciados – “seria diferente”, se a cultura interna da escola “o venceria”,
ou se seria “possível colocar em prática” (P-2) a teoria aprendida, demonstra a tomada
de consciência da complexidade das ações que envolvem a atuação em sociedade. Será
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que aqueles professores (con)formados com/pela escola passaram pelos mesmos
conflitos? Deixaram de lado o saber da universidade porque desistiram de lutar e se
renderam ao “poder da escola” (P-2)?
Esses questionamentos, mais que suas respostas, auxiliam no desenvolvimento
pessoal e profissional desses sujeitos, na formação de sua identidade profissional, a
qual “[...] passa pelo conhecimento teórico, pela prática e experiência docente, pela
dimensão pessoal que não pode ser extirpada da profissional, como se fosse possível
anular todas as vivências que compõem um ser humano, um ser humano que também é
professor.” (SOUSA, 2014, p.20).
Lidar com essas questões, procurando se constituir como profissional do
ensino, implica em procurar formas de atuar pedagogicamente na aula, em contextos
de planejamento ou de negociação que transcendem o sentido puramente técnico do
trabalho didático. Assim, não podemos nos esquecer de “[...] que os professores
podem se encontrar condicionados em suas próprias perspectivas, desde as que
exerceriam sua função mediadora, pelos valores que a instituição assume e pela forma
com que vêm definidas suas tarefas profissionais” (CONTRERAS, 2002, p. 142).
Desse modo, para entender o potencial formativo de políticas públicas que
pretendem atuar no desenvolvimento profissional dos professores (iniciantes ou não),
se faz necessário procurar indícios de mudanças, nos sujeitos envolvidos, em relação
às suas representações pessoais da profissão.
1.2. O potencial do PIBID no desenvolvimento profissional docente, pelo olhar dos
sujeitos.
No acompanhamento da trajetória acadêmica dos pibidianos, foi possível
inferir algumas referências sobre seus processos de formação docente e sobre as
dinâmicas vivenciadas no movimento de trocas e ressignificação, frente às urgências
do cotidiano escolar e das práticas alfabetizadoras. Segundo Larossa (2004, p. 17),
“[...] o que acontece enquanto experiência só pode ser interpretado narrativamente”,
assim, foram nas narrativas que buscamos pistas que pudessem demonstrar se houve,
por parte desses sujeitos, algum aprofundamento das suas representações sobre as
experiências educativas.
Considero o PIBID como um divisor de águas na minha formação, com o ingresso no projeto passei a entender e me interessar mais pelas outras disciplinas da graduação, fiquei mais ativa em todos os movimentos e
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eventos acadêmicos além de me envolver com a pesquisa. [...] estando em sala hoje, percebo que essa contribuição está além do que eu imaginava, pois os momentos de observação (no período do projeto) me norteiam para questões mais práticas de organização e funcionamento da gestão de uma sala; toda vez que estou em um dilema ou com alguma dificuldade tento me lembrar de algo que tenha visto aquelas professoras fazerem e que deram certo. (P-1)
Percebemos, na narrativa, que a entrada no Programa e o consequente
contato com a sala de aula, de forma profissional e não mais na condição de
estudante, alterou as formas de significação da formação em andamento, fazendo
com que a pibidiana entendesse e, até mesmo, se interessasse “mais pelas outras
disciplinas da graduação” (P-1). A constatação da complexidade envolvida no
fazer docente, que demanda uma gama de conhecimentos em diversas áreas,
pode ter contribuído para esse “despertar” para a necessidade do saber teórico,
vindo da universidade. Validar esses saberes na prática da docência envolve,
entretanto, cultivar uma atitude de pesquisador frente aos problemas e às
situações de conflito vividas no cotidiano da escola. Ao rememorar, já na
condição de profissional, “algo que tenha visto aquelas professoras fazerem e
que deram certo” (P-1), inclui-se nos saberes teóricos aquele saber prático, que
“[...] embora se nutra de diversas fontes e experiências, adquire uma dimensão
fundamentalmente prática, isto é, que tem na ação o principal referente e se
expressa mais amiúde como implícito na ação e intuitivo, que não como saber
proposicional.” (CONTRERAS, 2002, p. 83).
Assim, percebemos a dimensão formativa do Programa na articulação
entre o capital de conhecimento disponível (na academia, nos ateliês, na rotina
de trabalho dos professores observados) e o capital cultural trazido pelo sujeito,
que altera suas formas de perceber e dar significado à realidade social em que
atua e à sua própria condição de pesquisador e (futuro) profissional.
Esses saberes vindos da ação docente e ressignificados nos ateliês
acompanharam os pibidianos em sua inserção profissional, conforme pode ser
exemplificado ao mencionarem que “O trato com os alunos, a organização das aulas,
certamente foram adquiridas no PIBID e aplicadas em sala de aula.” (P-7), “A divisão
do tempo, o planejamento e a postura em sala de aula trabalhada no PIBID [ajudaram]
na inserção na profissão e no momento de estar em sala de aula.” (P-2), ou ainda no
relato da pibidiana que relata que “Não [queria ser professora], mas quando entrei no
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PIBID me encontrei como professora. Hoje me sinto muito bem, posso dizer que me
vesti das fardas de um professor e hoje me realizo em uma sala de aula. (P-3).
Nessa perspectiva, tendo em vista o objetivo traçado pelo Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, de “[...] inserir os licenciados no
cotidiano de escolas da rede pública de educação” (BRASIL, 2010, p.4), percebemos
que, em relação ao subprojeto desenvolvido na UEMS “Ateliês Formativos de
Professores Alfabetizadores: construindo práticas eficazes”, houve a observação de
resultados relevantes, o que demonstra a potencialidade do programa como articulador
entre academia e educação básica. Essa potencialidade pôde também ser notada na
facilitação da entrada profissional desses sujeitos nas escolas: “O PIBID foi
fundamental, pois através dele fui convidada pela escola em que atuei a integrar o
quadro de professores.” (P-7). “Facilitou muito, pois me empregaram na escola onde
atuava no PIBID”. (P-2). “O PIBID foi determinante, não trabalho na escola onde
atuava o PIBID, mas a diretora da escola que me contratou sabia dos benefícios do
PIBID e logo me contratou. (P-3)”.
É necessário, entretanto, apresentar as carências e lacunas do Programa,
evidentes em diversas pesquisas apresentadas em eventos, congressos e outros
meios, como, por exemplo, o baixo valor da bolsa-auxílio e o número reduzido
de bolsas oferecidas. Os pibidianos mencionaram esses aspectos em suas
narrativas: a necessidade de “[...] disponibilização de mais vagas, pois ao meu
ver essas são insuficientes, privilegiando apenas uma pequena parte dos
acadêmicos”(P-4); a “[...] falta de incentivo financeiro para participar dos
eventos divulgando o PIBID” (P-1) e a reivindicação de um “[...] maior [valor
de] bolsa e vale transporte”. (P-7)
Sob essa ótica, a apresentação de resultados relevantes obtidos na UEMS
não visa promover o programa como uma solução permanente para os
problemas enfrentados na formação de professores e na sua inserção como
profissionais, mas para “[...] se observar, nesse programa, quais suas
características promissoras como programa público de valorização à docência e
diminuição dos problemas de adaptação dos novos professores na educação
básica” (SOUSA, 2014, p. 191), uma vez que “[...] as ações realizadas neste
subprojeto [...] são potencializadoras de sentido e significado em relação ao
desenvolvimento da profissionalidade, numa relação dialógica reflexiva,
articulando a teoria no contexto da prática” (NOGUEIRA, ?????).
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2. O Mestrado Profissional: potencialidades como “terceiro espaço” formativo.
De acordo com a CAPES e o Ministério da Educação, o investimento na
abertura e ampliação dos Mestrados Profissionais leva em consideração “[...] a
relevância social, científica e tecnológica dos processos da utilização aplicada dos
conhecimentos e o exercício da inovação, visando a valorização da experiência
profissional. (BRASIL, 2009, p. 21)
Dessa forma, assim como apresentamos, no subitem anterior, as potencialidades
do PIBID como espaço formativo diferenciado, intentamos demonstrar as
especificidades que fazem do Mestrado Profissional uma formação diferenciada, pela
valorização, nessa modalidade de estudo acadêmico, da experiência profissional.
Os Mestrados Profissionais, por sua vinculação à educação básica, podem
configurar-se e firmar-se como uma importante “instância formadora”, aproximando-se
do que Zeichner (2010) denomina como “terceiro espaço” de formação. Nessa
perspectiva, “[...] a criação de terceiros espaços na formação de professores envolve
uma relação mais equilibrada e dialética entre o conhecimento acadêmico e o da prática
profissional”, com vistas a “[...] dar apoio para a aprendizagem dos professores em
formação.” (ZEICHNER, 2010, p. 487).
Reivindicamos, assim, um melhor entendimento da importância dessa
modalidade de pós-graduação como uma política pública que traz em seu bojo a
possibilidade de promover a pesquisa entre os professores da escola pública e
auxiliar na diminuição da distância entre saber acadêmico e conhecimento
prático. Conforme as ideias de Zeichner:
Da perspectiva das faculdades e das universidades, a solução para a desconexão entre universidade e escolas na formação de professores e na formação profissional continuada para professores da Educação Básica tem sido, habitualmente, tentar perceber maneiras melhores de trazer o saber acadêmico das faculdades e das universidades para os professores da Educação Básica. (ZEICHNER, 2010, p. 487)
Os Mestrados Profissionais trouxeram para a universidade sujeitos com
perfis substancialmente diferentes daqueles encontrados em Mestrados
Acadêmicos ou programas de Doutorado. Marli André levanta outras
características dos alunos de pós-graduação:
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Se nossos alunos de mestrado chegam sem domínio básico da escrita ou dos conceitos da área de educação, precisamos pensar em estratégias para superar essas dificuldades. Não podemos repetir aquela idéia corrente entre muitos professores da educação básica que esperam alunos sem dificuldades ou sem defasagens e que culpam os alunos ou seus professores anteriores por não terem a prontidão necessária. Temos que superar também a tendência de deixar a solução para iniciativas individuais dos docentes e buscar construir propostas do curso ou do programa de pós-graduação. (ANDRÉ, 2007, p.49)
Destacamos, ainda, que o perfil de alguns alunos que ingressam nos programas
de pós-graduação stricto sensu na modalidade Profissional apresenta características
diferenciadas nas questões de domínio de saberes considerados básicos ou essenciais
para se desenvolver uma pesquisa científica, como apontado por André (2007). Essas
“defasagens” ou não detenção da “prontidão necessária” indicadas por Marli André,
podem ser caracterizadas como a falta de um capital ou de uma herança cultural
privilegiada, o que não deve diminuir ou descaracterizar a validade desses programas.
Antes, como bem defendido pela autora, é necessário “construir propostas” que visem o
melhor aproveitamento dos recursos que o ingresso nesses programas pode oportunizar,
na melhoria da educação básica e em reais chances de mobilidade social e criação de
novos habitus entre os docentes.
Neste sentido, a autora cita como um importante aliado na superação desses
obstáculos a formação de robustos grupos de pesquisa. Assim justifica:
Os grupos de pesquisa podem constituir uma forma muito interessante de preservar o nível de qualidade das dissertações, face ao encurtamento dos prazos de mestrado. Se os programas de pós-graduação oferecerem ao mestrando a oportunidade deinserção num projeto coletivo, em que seja possível (com)partilhar de um referencial teórico comum e ao mesmo tempo desenvolver, apoiado pelo grupo, um ângulo específico de uma problemática mais ampla, o trabalho final poderá vir a atingir um nível de qualidade melhor do que se feito isoladamente.(ANDRÉ, 2007, p.50)
Os grupos de pesquisa, dentro do Programa de Pós-Graduação, podem
ser entendidos como um dos “espaços híbridos”, ou de terceiro setor, a que
Zeichner (2010, p.493) faz alusão, importantes na perspectiva de romper com o
pensamento hegemônico existente, de que existem “[...] relações de saber/poder
assimétricas já instaladas no campo da educação”, que colocam “[...] os docentes
em um lugar de subordinação em relação aos pesquisadores acadêmicos”.
Assim, ao se posicionar como acadêmico e como professor
simultaneamente, procura-se formas de valorizar, nos sujeitos em formação,
“[...] suas experiências e saberes pedagógicos, mas também suas próprias
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competências intelectuais em matéria de elaboração de conhecimentos
educativos”. (SUÁREZ, 2008, p. 107).
Nesta perspectiva social, buscamos pesquisar entre seis egressos da
primeira turma do Programa de Mestrado Profissional da UEMS (2013-2015),
participantes do GEPENAF, sendo três também orientandos de uma das autoras
desse artigo, se essa experiência trouxe maior significação às práticas de ensino,
em seu “regresso” à docência como profissional-mestre. Houve a apropriação de
um novo capital cultural? Essa mudança foi percebida pelo sujeito e por seus
pares? Como esse profissional diferenciado foi recebido na escola, haja vista a
cultura institucionalmente formalizada ali existente?
Em busca dessas respostas, propomos que narrassem sobre esses
aspectos apontados. Partimos do entendimento que a pesquisa na pós-graduação
em Educação, feita por professores da educação básica sobre as diversas
interfaces do processo educativo, se afirma como um espaço de produção de
conhecimentos que pode vir a ajudar na compreensão das “[...] tensões e
desafios da formação de professores que, por sua vez, ao se realizar na
universidade e/ou em parceria com ela, tem possibilidades de efetivação de
diálogo profícuo e indutor de políticas e ações transformadoras” (MONTEIRO,
2011, p.108)
2.1. Mestres novos, novos habitus?
Conforme mencionado anteriormente, um dos critérios de escolha dos sujeitos
desse cenário de políticas públicas pesquisado nessa seção foi guardarem em comum o
fato de serem integrantes de um grupo de estudo e pesquisa em narrativas formativas.
Um dos autores debatidos e estudados no GEPENAF foi Pierre Bourdieu, o que justifica
a menção de alguns de seus conceitos nos escritos desses egressos da primeira turma do
Mestrado Profissional da UEMS. Sobre possíveis mudanças de habitus, houve, por
exemplo, a indicação de que houve mudanças em relação às preferências por leitura,
evidenciada nos relatos: “[...] meu interesse maior antes do mestrado era a literatura e
agora ela está guardada em uma caixa que posso abrir em outro momento, pela
apropriação de novos conhecimentos. Por fim, afirmo que o meu "habitus" está em
contínua revolução. (M-1); “[...] alguns gostos por leitura foram sendo abandonados e
outros se construíram ao mesmo tempo. Aquilo que antes causava interesse hoje já não
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tem mais tanto sentido” (M-3); “[...] houve mais uma ampliação do universo de autores
que passei a ler, sendo que alguns eu nunca havia lido antes do mestrado.Passei,
também, a descartar autores que apresentam uma postura muito prescritiva, ou soluções
simplistas para problemas da educação”. (M-4). Ainda, outra egressa do Mestrado
Profissional assim narra:
Em relação ao meu "habitus" foram inúmeras as mudanças, já que passei a ter mais compromisso com as discussões realizadas que envolvem a temática da educação, passando a fazer leituras mais aprofundadas, participar de grupos de estudos dentro da escola, como também com parceria com universidades, ter um “olhar” e um “ouvir” mais crítico para tudo que vejo e ouço dentro e fora das escolas. (M-5)
Em seus relatos, os atores revelaram ser ponto consensual entre eles a
importância atribuída ao Mestrado Profissional em seu desenvolvimento profissional
docente e em suas formas de conceber as representações sociais envolvidas no processo
educacional, como pode ser percebido em relatos como: “É válido dizer que entrei uma
pessoa/profissional no mestrado e sai outra pessoa/profissional (M-5)”, ou mesmo nos
seguintes excertos:
Desde a minha primeira graduação, tinha interesse em ingressar em um curso de pós-graduação, porém as condições não eram favoráveis. [...] No final da segunda graduação surgiu o interesse em tentar alguns processos seletivos de mestrado, entre esses fui aprovada no mestrado em Educação na UEMS, para minha alegria, e a partir desse momento alguns concepções e fundamentações teóricas foram sendo transformadas. (M-3)
[...] quanto à experiência obtida em meu processo formativo posso afirmar que é a minha cereja do bolo, posso oferecer discussões mais concisas no debate que circunda a educação e sinto-me muito mais segura com relação à formação, alargando as fronteiras do meu capital cultural.. (M-1)
Essa leitura de mundo propiciada por um maior entendimento dos fatores envolvidos na qualidade da educação teve um efeito muito positivo na minha vida profissional, principalmente na escola em que eu trabalho meio período como coordenadora pedagógica. (M-4)
Como professora da Educação infantil, posso dizer, antes do conhecimento sobre Sociologia da Infância, e os demais conhecimentos teóricos absorvidos por mim durante minha estadia no Mestrado Profissional em Educação e no processo de investigação da pesquisa, eu era uma professora, hoje, sou outra professora. (M-2)
Outro aspecto mencionado pelos participantes foi a construção do conhecimento
durante o processo formativo do Mestrado, em relação à articulação entre a apropriação
da teoria e a prática educativa, presente no campo empírico das pesquisas desenvolvidas
junto ao Programa. Relataram, também, a desconstrução dos saberes e crenças presentes
em seu habitus professoral, frente ao processo de incorporação de novos habitus
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pautados no fortalecimento de seu capital cultural, propiciado pelas leituras teóricas
empreendidas no Mestrado.
No meu processo formativo, o mestrado profissional teve um papel muito importante. Não tanto pelas disciplinas oferecidas, que é claro também contribuíram com a ampliação do meu conhecimento teórico sobre a educação, mas, principalmente, pelo desenvolvimento da pesquisa em si. As leituras, o processo de coleta de dados, a análise desses dados, à luz de uma teoria que considerava a voz dos professores alfabetizadores, modificaram minha forma de ver a educação e os problemas na área da alfabetização. (M-4)
Outrora na minha prática, desconsiderava totalmente as vozes das crianças, seu pensar e agir. Minha percepção de criança era de um ser totalmente dependente da minha intervenção e cuidados, um indivíduo como uma tábula rasa. [...] Apesar de ter uma graduação, na minha concepção antiga, inconscientemente, tratava-os como um ser irracional que poderia ser domado, de tanto que eram os meus excessos de cuidados e proteção. (M-2)
Dessa forma, tendo em vista que a noção de habitus formulada por Pierre
Bourdieu está vinculada à ideia de representação ou compreensão dos sujeitos “[...] a
partir da sua força da representação na auto-organização objetivo-subjetiva dos agentes
no âmbito da ação prática” (SILVA, 2005, p.156), é preciso levar em consideração tanto
a observação ou representação do real quanto os conhecimentos internalizados pelos
sujeitos por suas experiências de aprendizagem anteriores, como demonstraram os
escritos dos egressos da UEMS. Assim,
[...] as representações “representam” a compreensão dos sujeitos a partir da observação real, mesmo que seja imprescindível levar-se em conta que a construção das representações é operacionalizada dinamicamente com as informações cognitivas já estabelecidas. Faz-se necessário aceitar que a exterioridade das mesmas passa por refinamentos de significação e sua configuração estética pode estar mostrando algo que não pode ser percebido sem que a atenção esteja disciplinada e intencionalmente voltada para a estruturação do ato ou comportamento – nesse caso, o ensino na sala de aula. (SILVA, 2005, p.156)
Esses refinamentos de significação e ação intencional de voltar a atenção
a aspectos não observados antes podem ser exemplificados também quando os
sujeitos apontam que “[...] o olhar enquanto educadora se transformou [...]
principalmente muitas coisas que aceitávamos antes e que hoje temos um olhar
mais crítico” (M-3), ou que “[...] A leitura que passei a fazer das legislações e
das políticas públicas também teve uma alteração significativa, pois passei a
buscar as intenções por detrás dos discursos”. (M-4). Esse posicionamento mais
crítico envolve o “[...] questionamento dentro da própria escola, como também
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as políticas educacionais que [...] os professores tem que aceitar, principalmente
as formas nos quais ocorre as formações oferecidas pelas secretarias.”(M-3), ou,
ainda, a constatação de que os saberes teóricos incorporados aos que já possuía e
à experiência da sala de aula “[...] facilitou e deu coerência no meu fazer
pedagógico”.(M-2)
2.2 A volta à cultura escolar.
A escola, como um lócus em que atuam “[...] agentes que objetivam
ações específicas no âmbito do exercício de suas práticas” (SILVA, 2011,
p.339), guarda um modo de ser e estar próprios de sua cultura, disseminados nas
práticas e comportamentos dos sujeitos nela inseridos, os quais se adaptam (ou
não) ao que deles é esperado naquele ambiente. Segundo Marilda Silva:
Os grupos profissionais produzem e reproduzem práticas semelhantes no interior do respectivo campo. Assim, as práticas de agentes sociais que exercem socialmente uma mesma profissão guardam entre si semelhanças que podem ser facilmente percebidas por meio de sua hexis, ações objetivadas, atendendo às exigências de seu ethos. A hexis é a exteriorização da interiorização, o ethos, as disposições da objetivação da hexis. O habitus é em si a hexis, o que se observa. (SILVA, 2011, p.339)
Nesse sentido, ao efetuarmos essa pesquisa procuramos investigar entre
os sujeitos se houve alguma mudança em relação à forma com que foram
percebidos pelos seus pares ao retornar à escola com mestres recém-formados,
ou na própria forma dos mesmos se perceberem em meio à cultura escolar. Os
escritos em suas narrativas demonstraram uma diversidade de percepções sobre
esse aspecto. Houve os sujeitos que narraram situações de desconforto na volta à
escola:
Com relação de minha apropriação e ganho de capital cultural se foram ou não perceptíveis pelos meus pares, [...] raros foram os colegas que comemoraram comigo a conclusão dessa importante etapa de minha vida. Como experiência, posso conceber que nas relações entre os pares quase nada mudou, existe as relações de alteridade, estimulo-os a refletir sobre a valorização profissional docente, mas a maioria são engenheiros agrônomos, zootecnistas e veterinários, profissões que na concepção deles se sobrepõe em serem professores. (M-1)
Acredito que nas escolas onde trabalho houve uma mudança em relação à forma como meus pares me vêem, mas não sei dimensionar se é positiva ou negativa. Em alguns momentos, parece que alguns olham com certa ressalva o fato de você ter uma formação maior que a deles, principalmente os que estão em cargos superiores. [...] alguns colegas, principalmente os professores, nos olham com respeito e certa consideração, mas sempre dando
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ênfase à coragem e ânimo de voltar a estudar, que alguns acham admiráveis, porém não aplicável a eles.. (M-4)
Essa ressalva em relação à sua condição de mestre em educação narrada
por M-4 é exemplificada ao apresentar em seus escritos uma situação vivenciada
em seu ambiente de trabalho depois de formada.
Houve até uma ocasião em que a diretora adjunta e uma das supervisoras da escola em que eu trabalho na biblioteca, por estar readaptada do cargo de professora alfabetizadora (motivos de saúde), me pediram ajuda para fazer umas adequações, pedidas pelos professores numa reunião pedagógica, no texto do Projeto Político Pedagógico da escola, “porque você tem mestrado”. Mas essa ajuda rendeu alguns contratempos, como uma advertência da diretora de que eu não podia fazer grandes mudanças no texto, para não criar conflitos com outra supervisora. Supervisora esta que deixou de me cumprimentar por achar que eu estava querendo “me aparecer”, ou passar por cima da autoridade dela, fazendo um comentário do tipo “ tem gente que acha que porque tem mestrado é melhor que os outros”. (M-4)
No entanto, essa realidade não foi consenso entre os sujeitos pesquisados. Há
aqueles que se sentiram reconhecidos e valorizados por seus pares e pela comunidade
escolar, como percebido no excerto “Até os olhares dos colegas passaram a serem
respeitosos e de valorização para com minha pessoa e com meu desempenho
profissional, ressalto uma professora da instituição que trabalho, reivindicou que seu
filho fosse matriculado na turma que atuo.” (M-2), ou “Agora em 2015 foi o ano do
“regresso” para a escola como profissional-mestre fui muito bem recebida, já que venho
conseguindo dar minha contribuição enquanto diretora adjunta” (M-5).
Esse reconhecimento, também se manifestou na forma perceber seus pares, de
uma forma mais “humana” (M-2; M-5).
Meu olhar e atitude mudou no que se refere aos colegas [...] tudo passou a ser mais humano e prazeroso, pois quando observava certas atitudes e conceitos que aconteciam no recinto escolar, me sentia entristecida e aborrecida. Hoje, no entanto, tenho a certeza de que é possível fazer uma educação de qualidade e humanizadora, respeitando as fragilidades e limitações dos colegas,que muitas vezes são convencionadas no ambiente escolar, e assim, posso enfrentá-las através da minha prática, mostrando que é possível fazer uma educação de qualidade sem dor e sofrimento, basta querer e buscar conhecimento. (M-2)
Essa visão a que M-2 e M-5 denominam como mais “humana” pode ser,
também, reflexo da participação no Grupo de Estudo e Pesquisas Narrativas Formativas
que oferece maior atenção, nesse ambiente de formação, à valorização dos atores
envolvidos nos processos educativos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Tanto o PIBID quanto o Mestrado Profissional se constituem como políticas
públicas surgidas no esteio das ações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES), elaboradas com a intenção de promover uma “[...]
formação de qualidade, em um processo intencional, articulado e capaz de se
retroalimentar, gerando um movimento progressivo de aperfeiçoamento da formação
docente.” (CAPES, 2012, n.p).3
No entanto, entendemos que devam ser consideradas em sua
transitoriedade, como políticas públicas que ainda apresentam um caráter
compensatório, frente às deficiências encontradas na formação inicial em
aproximar o saber teórico dos saberes não proposicionais vivenciados na prática
docente. São compensatórias, ainda, pela pouco êxito que as instituições
escolares (incluindo-se a universidade) têm obtido em auxiliar na formação de
um capital cultural que promova uma real mobilidade social entre a população
das classes populares.
Tardif (2000), ao referir-se ao impacto aparentemente insuficiente das formações
continuadas no fazer pedagógico dos professores, alerta:
Na verdade, eles terminam sua formação sem terem sido abalados em suas crenças, e são essas crenças que vão se reatualizar no momento de aprenderem a profissão na prática, crenças essas que serão habitualmente reforçadas pela socialização na função de professor e pelo grupo de trabalho nas escolas, a começar pelos pares, os professores experientes. (TARDIF, 2000, p.20).
Dessa forma, entendemos que sem modificação no habitus e no capital cultural
dos professores em formação, dificilmente pode haver desenvolvimento profissional
docente, que se perceba nas mudanças reais das práticas em sala de aula. As mudanças
não podem ser simplesmente impostas, pois passam, além dos conhecimentos, pelos
“[...] sistemas de valores implícitos e profundamente interiorizados” (BOURDIEU,
1966, in NOGUEIRA; CATANI, 2012, p. 42) que cada sujeito carrega em sua
constituição.
Foi em busca dessas modificações que apresentamos, em dois cenários, as
experiências dos pibidianos da graduação em Pedagogia e dos mestres em educação
formados pela primeira turma do PROFEDUC, buscando pistas em seus relatos
narrativos sobre a ocorrência real de mudanças em suas “crenças e valores” (TARDIF,
3 Informações do site oficial da CAPES, disponível em http://www.capes.gov.br/. Acesso em 01/05/2015.
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2000), ou no seu habitus e capital cultural (BOURDIEU, 1966; 1979; 2011), que
possam indicar a relevância, ou não, de tais políticas públicas.
Destarte, segundo Contreras (2002), o campo de representação social
em que a escola está inserida supõe um “[...] compromisso social da prática
docente” impondo aos professores “[...] um conflito com as definições
institucionais da escola, a regulação de suas funções e as inércias e tradições
assentadas.” (CONTRERAS, 2002, p. 82). Ainda segundo Contreras (2002):
[...] parece que temos que pensar num conhecimento que é em parte individual, produto das reelaborações sucessivas dos docentes a partir de sua experiência, em parte compartilhado, por obra dos intercâmbios entre professores e processos comuns de socialização, e em parte diversificado, produto de diferentes tradições e posições pedagógicas, o que supõe formas diferentesde interpretar a realidade escolar, a ação doente e as aspirações educativas. (CONTRERAS, 2002, p. 83)
Promover mudanças, nessa perspectiva, é uma tarefa realmente desafiadora,
que para ser alcançada deverá envolver mais do que a promoção de algumas políticas
pontuais: envolve, sobretudo, mudanças nas formas de ver e conceber a prática
docente e os professores, incluindo ações que visem combater o constante descrédito
que a profissão docente vem sofrendo, e que, por sua vez, abre brechas para que outros
profissionais “mais habilitados” intervenham nos rumos da profissão, a fim de “ajustá-
la” à sua dita finalidade social. “Nessa perspectiva, considera-se que as mudanças na
educação são processos lineares que se implantam de forma simples, contanto que
saibamos 'explicar' bem aos docentes em que consistem.” (GARCIA, 2010, p. 25).
Como afirma Imbernón (2000, p. 69) não podemos “[...] entender a formação
permanente apenas como atualização científica, pedagógica e cultural do professor, e
sim, sobretudo como a descoberta da teoria para organizá-la, fundamentá-la, revisá-la e
combatê-la, se preciso.” Nesse sentido, justifica-se o investimento em políticas que
promovam a formação de sujeitos dotados de autonomia, co-formuladores de soluções e
com uma visão crítica do cenário educacional.
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