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DESDOBRAMENTOS FUNDIÁRIOS DA FRONTEIRA MATO- GROSSENSE: UM ESTUDO A PARTIR DE SORRISO E NOVA MUTUM LÍVIA MASCHIO FIORAVANTI 1 Resumo Grande parte das cidades mato-grossenses é atualmente conhecida pela produção agrícola e tem sua dinâmica urbana atrelada diretamente a uma visão reduzida do agrícola. Indo em outra perspectiva e com ênfase em Sorriso e Nova Mutum, ambas localizadas ao longo do eixo da rodovia BR-163, destacamos que essas cidades foram implantadas a partir de um negócio eminentemente urbano, por meio de mecanismos de produção de capital, concentrado nas mãos de poucos capitalistas e com consequências que ainda hoje reverberam na dinâmica imobiliária. Palavras chave: Concentração Fundiária; Urbano; Fronteira; Sorriso; Nova Mutum Abstract Most of the cities of Mato Grosso are currently known for agricultural production and have their urban dynamics directly linked to a reduced vision of the agricultural. Going from another perspective and with emphasis on the cities of Sorriso and Nova Mutum, both located along the axis of the BR-163 highway, we emphasize that these cities were implanted from an eminently urban business, through mechanisms of capital production, concentrated in the hands of few capitalists and with consequences that still reverberate in the real estate dynamics. Key-Words: Land Concentration; Urban; Frontier; Sorriso; Nova Mutum 1 Introdução Atualmente conhecidas como importantes “cidades do agronegócio” brasileiro 2 , Sorriso e Nova Mutum contam com uma dinâmica imobiliária marcadamente concentrada e excludente, resultado do controle fundiário que se delineou no início da década de 1970 por famílias e grupos que chegaram a Mato Grosso no decorrer da expansão territorial da acumulação capitalista. Como destacam Santos (2015), Becker (1982), Martins (1997) e Oliveira (1997), há conteúdos próprios vinculados à expansão da acumulação capitalista rumo 1 Docente do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT). Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. E-mail para contato: [email protected]. 2 Em nossa tese de Doutorado realizamos um breve debate sobre este termo, empregado por Elias (2006) e Elias e Pequeno (2007), uma vez que defendemos a primazia do urbano neste conjunto de cidades e questionamos a importância sobrestimada dos processos agrícolas que com frequência lhes é atribuída (FIORAVANTI,2018).

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DESDOBRAMENTOS FUNDIÁRIOS DA FRONTEIRA MATO-

GROSSENSE: UM ESTUDO A PARTIR DE SORRISO E NOVA MUTUM

LÍVIA MASCHIO FIORAVANTI1 Resumo Grande parte das cidades mato-grossenses é atualmente conhecida pela produção agrícola e tem sua dinâmica urbana atrelada diretamente a uma visão reduzida do agrícola. Indo em outra perspectiva e com ênfase em Sorriso e Nova Mutum, ambas localizadas ao longo do eixo da rodovia BR-163, destacamos que essas cidades foram implantadas a partir de um negócio eminentemente urbano, por meio de mecanismos de produção de capital, concentrado nas mãos de poucos capitalistas e com consequências que ainda hoje reverberam na dinâmica imobiliária. Palavras chave: Concentração Fundiária; Urbano; Fronteira; Sorriso; Nova Mutum Abstract Most of the cities of Mato Grosso are currently known for agricultural production and have their urban dynamics directly linked to a reduced vision of the agricultural. Going from another perspective and with emphasis on the cities of Sorriso and Nova Mutum, both located along the axis of the BR-163 highway, we emphasize that these cities were implanted from an eminently urban business, through mechanisms of capital production, concentrated in the hands of few capitalists and with consequences that still reverberate in the real estate dynamics. Key-Words: Land Concentration; Urban; Frontier; Sorriso; Nova Mutum

1 – Introdução

Atualmente conhecidas como importantes “cidades do agronegócio” brasileiro2,

Sorriso e Nova Mutum contam com uma dinâmica imobiliária marcadamente

concentrada e excludente, resultado do controle fundiário que se delineou no início da

década de 1970 por famílias e grupos que chegaram a Mato Grosso no decorrer da

expansão territorial da acumulação capitalista.

Como destacam Santos (2015), Becker (1982), Martins (1997) e Oliveira

(1997), há conteúdos próprios vinculados à expansão da acumulação capitalista rumo

1 Docente do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT). Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. E-mail para contato: [email protected]. 2 Em nossa tese de Doutorado realizamos um breve debate sobre este termo, empregado por Elias (2006) e Elias e Pequeno (2007), uma vez que defendemos a primazia do urbano neste conjunto de cidades e questionamos a importância sobrestimada dos processos agrícolas que com frequência lhes é atribuída (FIORAVANTI,2018).

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ao Centro-Oeste e ao Norte do Brasil que permitem relativizar a expressão “fronteira

agrícola”. Principalmente a partir da ditadura militar, o Estado se constituiu no principal

agente que viabilizava e fomentava a ocupação capitalista do que era

estrategicamente visto como um “espaco vazio”. Poderosos empresários se

transformaram em latifundiários por meio de generosos incentivos fiscais, da cessão

ou venda de terras a custos irrisórios ou imersas nos mais variados mecanismos de

burla, corrupção e grilagem (OLIVEIRA, 1997; MORENO, 2007)

A fronteira que se reproduzia neste momento era primordialmente urbana,

tendo na urbanização sua condição e meio. A implantação de cidades no Centro-

Oeste brasileiro não deve ser vista, neste sentido, como uma mera consequência da

expansão do agrícola. Planejar e implantar cidades – não somente loteando e

valorizando terras de modo isolado e disperso – era um grande e rentável negócio,

como se nota, além das cidades em questão neste artigo, em Primavera do Leste,

Sinop, Lucas do Rio Verde, Alta Floresta, Colíder e tantas outras no território mato-

grossense. Nesse contexto, a especulação fundiária e o estabelecimento de cidades,

em si, eram uma atividade possivelmente tão ou mais rentável quanto a própria

produção agrícola (no caso de Mato Grosso, principalmente de soja).

É a partir dessa perspectiva que revelamos neste artigo como a captura de

terras na reprodução da fronteira mato-grossense tornou possível o controle do

mercado fundiário e dos processos de urbanização em poucas mãos. Esse domínio

ocorreu à medida que fazendas eram loteadas para a expansão da área construída

da cidade, de modo que os mesmos “donos” dos latifúndios se tornavam também

“donos” dos terrenos no núcleo urbano ou próximo dele.

Há um rigoroso domínio do espaço empreendido por esses empresários e

proprietários de terras, geralmente do Sudeste e Sul do Brasil, e que ainda hoje

comandam fortemente os poderes econômico e político e ditam onde e quando serão

os vetores de expansão da cidade. Na urbanização de Sorriso e Nova Mutum,

conforme foi possível verificar por meio de trabalhos de campo e de entrevistas, bem

como de levantamento bibliográfico, há um maior poder, desde o início da ocupação

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da cidade, sobre a dinâmica fundiária, gerando um maior domínio na abertura de

loteamentos, no tamanho e no preço dos lotes e imóveis.

Na medida em que foram criados imensos patrimônios fundiários individuais ou

de pequenos grupos – ligados a interesses especulativos e que permitem que ainda

hoje os considerados “pioneiros”3 exerçam uma pesada ingerência no espaço urbano

– a realização e reprodução do capital via urbanização vêm ocorrendo de modo muito

particular nesse conjunto de cidades mato-grossenses.

Há uma centralização do poder de decisão no que tange ao processo de

urbanização, realizado por poucos “pioneiros”, em uma soldagem de interesses e dos

agentes econômicos e políticos. Esse poder pessoal esteve fortemente baseado em

práticas de produção de capital e presente na obtenção de privilégios e vantagens (lícitas

e ilícitas) para a obtenção de terras. Continua sendo revigorado em práticas tradicionais

e arcaicas travestidas de modernas, conforme detalharemos a respeito dos processos

de urbanização tanto em Sorriso quanto em Nova Mutum.

Reproduz-se um clientelismo, ancorado em retribuições materiais e políticas e que

corrobora para manter as oligarquias no poder, transformando dinheiro público em

benefícios privados de empresários e latifundiários. Da mesma forma que em Sorriso e

em Nova Mutum, cuja urbanização foi acentuadamente controlada por poucos

“pioneiros” – ocorreu em Primavera do Leste com os Cosentino e os Riva; em Sinop,

Vera, Santa Carmem e Cláudia com Ênio Pipino; em Alta Floresta, com o conhecido

caso de grilagem de Ariosto Riva; em Sapezal, com a família Maggi; em Juara, com Zé

Paraná; em Matupá, com os Ometto. Como afirma Oliveira (1997) ao citar alguns

desses “pioneiros”, esse processo está relacionado ao modo pelo qual ocorreu a

dominação privada das terras de extensão considerável do território mato-grossense,

no qual houve a imposição de monopólios. Esse controle explicaria o fato de que, ainda

segundo o autor, cada parte dessa região tenha dono.

Esses “pioneiros” mobilizam não só o monopólio da propriedade para a

efetivação de suas estratégias econômicas (como detalhamos neste artigo), como

3 Utilizamos o termo “pioneiro” e “pioneirismo” entre aspas uma vez que considera a precedência na ocupação da terra sob a ótica hegemônica capitalista, desconsiderando e menosprezando, dentre outros, indígenas e posseiros, bem como migrantes pobres.

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também colocaram em prática mecanismos de controle de vários aspectos da vida

urbana, do trabalho e da moradia. Reiteram-se práticas de supervisão e de vigilância

de determinadas práticas socioespaciais, tornando essas cidades-negócio mato-

grossenses espaços tendencialmente homogêneos e que negam a diferença4.

2 – A urbanização de Sorriso

Considerada “pioneira”, a família Francio é hoje uma das mais ricas do estado

de Mato Grosso. Segundo Custodio (2005), essa família gaúcha adquiriu terras na

década de 1970, junto com outros poucos “pioneiros”, que somavam

aproximadamente 27 mil hectares. Formaram a Colonizadora Feliz, responsável pelo

projeto de colonização particular empreendido em 1976 e que originaria o município.

Como elucida Oliveira (1997, p. 356), Sorriso foi desde o início composta por

colonizadores possuidores de mais recursos, cujo ideal ao desenvolverem o projeto

de colonização “era um só: ampliar as fronteiras produtivas de seus empreendimentos

particulares”.

Atualmente, a família comanda o Grupo Francio, cujas áreas de atuação

envolvem o setor imobiliário, comercialização de lotes rurais e urbanos, suinicultura,

extração e comercialização de madeira, bem como atividades agrícolas. A antiga

colonizadora e atual Imobiliária Feliz foi a responsável pelo estabelecimento de todo

o núcleo urbano inicial da cidade. No decorrer de três décadas, implantou os

loteamentos já ocupados e consolidados Pq. Felicidade, Vitória Régia, Porto Kaiabi,

Novos Campos, Vila Bela e Bela Vista. Nos anos de 2016 e 2017, lançou mais quatro:

Porto Alegre, Vila Romana, Recanto dos Pássaros, Arboreto Ecoville.

4 Um debate mais aprofundado sobre a ingerência desses “pioneiros” na vida cotidiana dessas cidades é tratado por Almeida (2013), Cerutti (2004), Custódio (2005), Guimarães Neto (2002) e Fioravanti (2019). Esses mecanismos de domínio do espaço abrangem a expulsão dos mais pobres para as periferias (frequentemente, do outro lado das rodovias em relação ao centro e atrás de silos ou armazéns) e inclusive da própria cidade. Também envolvem aspectos mais tênues vinculados a uma ojeriza ao pobre, ao nordestino, ao negro, ao indígena e usualmente a todos e tudo que não seguem os padrões culturais aceitos ou legitimados pelos “pioneiros” da cidade, bem como por aqueles considerados como “padrões de sucesso” a serem seguidos devido ao “persistente e incessante trabalho”. Há, desta forma, uma ideologia do “pioneirismo”, preenchida de conteúdo meritocrático, que tende a inferiorizar quem não está inserido, ou se insere precariamente, no mundo do trabalho e na lógica da propriedade privada capitalista da terra.

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Observa-se em Sorriso a constituição de uma cidade engendrada por meio da

manutenção e reprodução de mecanismos de produção do capital, bem como de

relações espaciais preenchidas pelo “poder do atraso” (cf. Martins, 1994) que tanto

caracteriza a sociedade brasileira. Os filhos de um dos “pioneiros” da família Francio –

o fundador da Colonizadora Feliz – hoje são um dos maiores sojicultores do estado e a

atual proprietária da Imobiliária Feliz (pertencente ao Grupo Francio). Integrantes dessa

família “pioneira” de Sorriso foram acusados em 2007 de serem responsáveis por um

esquema de extração ilegal de madeira no Parque Indígena do Xingu por meio da

“corrupção dos índios da etnia Trumai e de servidores públicos de órgão ambientais”.

Os filhos do colonizador de Sorriso também foram processados pelo Ministério do

Trabalho por terem mantido trabalhadores em situações análogas à escravidão em

fazendas nos municípios de Vera e de Feliz Natal (SIQUEIRA, 2007; FAZERES, 2007).

Além disso, segundo reportagem publicada no jornal Folha de S.Paulo no dia 20 de março

de 2007 (“Ministério público denuncia prefeito de MT por compra de votos”), a proprietária

da Imobiliária sofreu acusações de compra de votos na eleição municipal de 2004 (com a

oferta de vantagens pessoais e a quitação de parcelas de financiamentos de imóveis de

modo a favorecer a campanha do candidato eleito).

Por fim, a Colonizadora Feliz, que continua loteando a fazenda adquirida pela família

há mais de quatro décadas e atua também em empreendimentos da construção civil, tinha

negócios, ao menos até 2013, que “pareciam envoltos em irregularidades como

medições equivocadas ou outras irregularidades na emissão de escritura” (ALMEIDA,

2013, p. 31). Como cita Almeida (2013), a colonizadora teria adquirido terras que já

estavam em litígio e que contavam, segundo relatado por Custódio (2005) a partir de

entrevistas, com mais de duzentos posseiros (que acabaram sendo expulsos).

Além dos Francio, a família Dairot também é tida uma das “pioneiras” da cidade,

tendo chegado à região em 1982. Em 2017, tinha três loteamentos previstos para

lançamento, totalizando 625 lotes. O grupo Dairot – formado por sócios irmãos de

Renascença, no Paraná – reúne atualmente sete grandes propriedades rurais em um

raio de cinquenta quilômetros a partir de Sorriso. Além da criação de gado de elite, são

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mais de 20 mil hectares com soja, milho, arroz e feijão, bem como duas unidades de

armazenagem e uma usina de etanol combustível.

Em 2016, dois integrantes dessa família foram acusados pelo Ministério Público

de integrarem um esquema de lavagem de capitais envolvendo o desvio de milhões

de reais da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso5. Outra imobiliária

conhecida em Sorriso, a Araguaia Imóveis, também foi acusada de realizar

desmatamento ilegal em três loteamentos6, totalizando uma área de 66 hectares.

Essas cidades que aparecem no senso comum como “cidades de luxo”7 em meio

às plantações de soja são produzidas, desta forma, por mecanismos de acumulação do

capital ligados a práticas de acumulação primitiva (a grilagem de terras realizada por meio

da burla e da corrupção, a extração madeireira, as relações de trabalho análogas à

escravidão), bem como de práticas perpassadas pela troca de favores (como compra

de votos em período eleitoral e relações de corrupção para aprovação de loteamentos).

A histórica manutenção de privilégios, das práticas clientelistas, patrimoniais e rentistas

se reitera tanto em Sorriso quanto em demais cidades.

Essa produção de capital, empreendida por meio de uma espécie de

acumulação primitiva, desvela uma lógica capitalista imposta a estes novos espaços

carregada de contradições e arcaísmos. O que na aparência desponta com

intermináveis loteamentos cravejados de casas imensas e opulentas, assim como de

uma heroica história de “pioneirismo” e de “trabalho árduo”, é, efetivamente, marcado

pela dominação e monopólio de terras (com frequência, em um processo permeado

pela ilegalidade), pelo conflito de terras, pela expropriação das populações locais.

Dando uma ideia dessa pesada ingerência sobre a propriedade privada na

dinâmica do mercado imobiliário urbano, citamos a atuação de outras duas grandes

5 “MP denuncia 3 deputados e 2 moradores de Sorriso por desvio de R$ 9 milhões”. Disponível em: <http://www.mtuol.com.br/noticia/mp-denuncia-3-deputados-e-2-moradores-de-sorriso-por-desvio-de-r-9-milhoes>. Acesso em: set 2017. 6 “Araguaia imóveis também acusada de desmatamento”. Disponível em: <http://www.mtnoticias. net/sorriso-ibama-embarga-area-aos-fundos-do-sao-domingos-e-multa-empresas-e-associacoes-por-desmatamento/>. Acesso em: jun. 2017. 7 Expressão utilizada em reportagem da TV Globo veiculada no Jornal Hoje em abril de 2017. “Agronegócio muda a cara de muitas cidades no interior do Brasil”. Edição do dia 06/04/2017. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2017/04/agronegocio-muda-cara-de-muitas-cidades-no-interior-do-brasil.html>.

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imobiliárias de Sorriso. A Pôr do Sol Urbanizações, originada a partir do loteamento

de uma fazenda contígua a fragmentos ocupados da cidade e que passou a ser

considerada como pertencente ao perímetro urbano, lançou empreendimentos em

Rondonópolis e Nova Mutum e atua em Sorriso desde 2005, tendo sido responsável

pela implantação de mais de dez mil lotes. Já a Araguaia Imóveis foi a responsável

pela incorporação e venda de sete loteamentos, além de outras terras em áreas

próximas ao perímetro urbano. Os preços de cada lote variam de 70 mil (Morada do

Bosque) a 400 mil (Cidade Jardim). Há previsão de lançamento de novos

empreendimentos em Sinop, Nova Mutum, Primavera do Leste e Cuiabá. A partir de

informações obtidas em trabalhos de campo e em imobiliárias, nota-se no mapa 1 a

atuação da imobiliária Feliz, Pôr do Sol e Araguaia em parcela significativa dos lotes da

cidade, somada ao papel exercido pelas imobiliárias Araguaia e Invest.

Mapa 1. Loteamentos em Sorriso, 2017

Elaborado em jul. 2018 por Alcântara, Willian; Fioravanti, Lívia.

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3 – A urbanização de Nova Mutum

Em Nova Mutum, a concentração fundiária é ainda mais evidente. O domínio

privado sobre as terras dessa cidade teve como ponto de partida a aquisição de 169

mil hectares de terras pelo empresário paulista José Aparecido Ribeiro na década de

1960. A JAR empreendimento imobiliários, criada a partir da Colonizadora Mutum –

colonizadora da cidade e abreviação dos nomes desse “pioneiro” – comanda parcela

significativa do solo urbano da cidade. No início da ocupação do núcleo urbano foram

destinados 100 mil hectares para a implantação do projeto de colonização, dos quais

551 foram reservados para a implantação do núcleo urbano. Segundo informações

obtidas em trabalhos de campo em julho de 2017 e de acordo com Custodio (2005) e

Volochko (2013), como forma de incentivo e de assegurar o retorno dos investimentos

realizados – valorizando o próprio investimento – quem comprasse um lote para uso

agrícola “ganhava” dois lotes urbanos.

A doação de terrenos urbanos era uma prática recorrente entre as empresas

de colonização que pretendiam incentivar a valorização das terras e a ocupação do

núcleo urbano (CUSTODIO, 2005). O domínio das terras realizado por Aparecido

Ribeiro e fundador da JAR Empreendimentos Imobiliários foi de tal magnitude que

essa imobiliária é responsável pela implantação de loteamentos que totalizam mais

da metade da mancha urbana da cidade.

Atualmente, a JAR utiliza outro mecanismo de valorização de seus loteamentos

residenciais: o comprador tem de 30% (a oeste da BR-163) a 50% (a leste da BR-163)

de “desconto” no valor do lote caso construa em três anos seu imóvel e siga a metragem

mínima de área construída estipulada pela empresa. Esses “descontos” podem ser

vistos, como cita Volochko (2013), como multas a quem, inclusive devido ao elevado

custos para aquisição da propriedade e construção das casas, “atrapalhar” o que foi

delineado de estratégias de valorização para esses novos loteamentos. Segundo o autor

(2013, p.30), por meio dessa prática “a JAR impõe um visual e uma estética urbana

elitizada – uma representação do espaço, diríamos – que se realiza como estratégia de

valorização, e ao impor o tempo para a construção realiza uma espécie de monopólio da

especulação imobiliária (...)”. No Jardim das Orquídeas, por exemplo, loteamento de

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alto padrão da JAR Empreendimentos em Nova Mutum, os lotes são de mil metros

quadrados e a metragem mínima das casas deve ser de 120 metros quadrados. O

preço do lote era de a partir de 380 mil reais em julho de 2017.

A JAR empreendimentos imobiliários em Nova Mutum controla territorialmente

grande parte da cidade (mapa 2), conforme averiguamos em trabalho de campo, por

meio de falas de corretores imobiliários e de material de divulgação de imobiliárias. Além

do centro e de mais sete previstos em 2017 para implantação, como loteamentos da JAR,

citamos: Nossa Senhora Aparecida; Bela Vista; Ipês; Residencial das Acácias; Jardim

das Orquídeas; Flamboyant; Loteamento Hilda Strenger Ribeiro; e Loteamento Comercial

José Aparecido Ribeiro.

Tanto em Nova Mutum quanto em Sorriso, cidades que brevemente retratamos

aqui, e provavelmente em inúmeras outras implantadas no contexto da reprodução da

fronteira do capital rumo ao Centro-Oeste brasileiro, é nítido o emprego de diversas

táticas espaciais – como terrenos doados ou negociados a custos baixos – para ampliar

a valorização do solo urbano desde o início das primeiras ocupações no núcleo urbano,

as quais garantiam e continuam assegurando, após décadas, o monopólio da dinâmica

fundiária e imobiliária.

Mapa 2. Loteamentos da JAR em Nova Mutum, 2017

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Mapa elaborado em julho de 2017 a partir de informações obtidas em imobiliárias e em trabalhos de campo em Nova Mutum. Elaborado por Alcântara, Willian; Fioravanti, Lívia.

4 – Considerações Finais

O estudo da monopolização e privatização da terra em Sorriso e em Nova

Mutum permite problematizar a imbricação entre o público e privado. A cidade,

produzida socialmente (embora na sociedade capitalista seja dominada

privadamente), tem seu aspecto privado reforçado. Ambas as cidades tratadas nesse

artigo surgem, neste contexto, como cidades essencialmente privadas, cuja dimensão

da propriedade manifesta-se com força. Planejadas e empreendidas como rentável

negócio, desdobram-se praticamente em um bem pessoal, socializado por alguns (em

uma relação também mediada pela mercadoria).

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Tanto Sorriso quanto Nova Mutum são vistas e concebidas como mercadoria,

sobre a qual “pioneiros” e outros poucos podem exercer o controle, com mandos e

desmandos a seu bel prazer. São cidades-negócio que contam com a particularidade

não somente de realizarem-se como mercadoria diante da lógica capitalista e da

propriedade privada da terra e do solo urbano, mas por apresentarem uma forte

centralização do poder de decisão no que tange ao processo de urbanização.

Contudo, se por um lado Sorriso e Nova Mutum parecem, no discurso e no senso

comum, esbanjarem riqueza e “qualidade de vida”, por outro, permanecem agrilhoadas

em mecanismos arcaicos de produção do capital que tanto caracterizam o capitalismo

rentista brasileiro. Os projetos de ocupação de Mato Grosso permitem problematizar as

especificidades de várias de suas cidades e a dimensão do grande poder pessoal do

qual são dotados os “pioneiros”, proprietários e, em larga medida, donos. Aqui, abre-se

um amplo espectro de investigações a respeito não apenas das dinâmicas e

particularidades do mercado imobiliário dessas cidades que surgiram a partir de

“pioneiros” e colonizadoras específicas, mas também para esmiuçar em que medida e

por meio de quais estratégias ainda exercem forte comando da produção do espaço

urbano.

A dominação capitalista da propriedade privada iniciada com o avanço da fronteira

e ocupação do território mato-grossense sob a égide hegemônica do capital trouxe, assim,

profundas consequências aos processos de urbanização. Elites e oligarquias locais,

embora atualmente também alinhadas com grupos internacionais, ao que tudo indica,

continuam desempenhando relevante papel no mercado imobiliário dessas cidades.

5 – Referências Bibliográficas

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__________________. Concentração fundiária e dinâmica imobiliária em uma cidade

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