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1 Descolonizar as mentes e os corações: Amílcar Cabral e a ruptura com a razão colonial DANÚBIA MENDES ABADIA * O colonialismo buscou desumanizar os povos a quem o imperialismo quer saquear as riquezas, tornando-os bestas-feras para melhor justificar a violência e o genocídio. Para além da exploração econômica do domínio territorial, político e social da vida das populações, marcas mais evidentes do sistema colonizador, a dominação colonial distinguiu-se, sobretudo, pela negação da condição humana da população colonizada, negação da sua cultura, da sua filosofia, do seu modo de ser. Por outro lado, nos diz Aimé Césaire, a ação colonial trabalha para des-civilizar o colonizador em prol da cobiça, da violência e do ódio racial (2010:20). A mentalidade moderna da Europa representava o continente africano como um “coração das trevas”, ideia realizada pelo colonizador, na África, apropriada a quem projeta nos “outros” os seus próprios defeitos, para tentar corrigir, nestes últimos, deficiências imaginárias. Toda uma mobilização é realizada para construir a representatividade dos “outros”, assim como o seu nível de humanidade, pois, quanto mais selvagem, mais se legitimaria sua escravidão. Foi assim que a Europa buscou todos os artifícios possíveis para impôr a sua conceituação e seu sistema econômico ao mundo. Segundo REIS, “Os países novos são um vasto campo aberto para as atividades individuais, violentas e assim, as colônias podem servir de válvula de segurança à sociedade moderna. Esta utilidade, mesmo que fosse a única, é imensa” (2008:12). E nesse sentido, afirma Césaire, “a ideia do negro bárbaro é uma invenção europeia1 (2010:46). A principal característica da colonização, afirma Amílcar Cabral 2 , é a negação do processo histórico do povo dominado, por meio da usurpação violenta da liberdade do processo de desenvolvimento das forças produtivas. Nesse sentido, os/as camponeses/as africanos/as foram obrigados/as a produzir matérias-primas destinadas à indústria europeia, concebida, sobretudo, para climas temperados. Eis o começo da deterioração dos solos pelo 1 Universidade Federal de Goiás, UFG. Doutoranda em História, bolsista da CAPES. 2 Retirar-lhes a possibilidade de desenvolver outra concepção de progresso e desenvolvimento, algo central na política colonial, é preciso insistir, está relacionado a convencer os povos colonizados de que sua cultura, tecnologia e modos de viver eram primitivos e selvagens. Importante lembrar também que os povos da atual Somália já desenvolviam observações científicas no séc IV; a cultura medieval Yorubá apoiava-se, desde muito, sobre a estrutura conceitual, sobre os “vermes” e os “insetos”, tão pequenos quanto invisíveis. Para mais informações, ver Coleção História Geral da África, UNESCO, Volume VIII: África desde 1935 (pp. 761-812). 3 Amílcar Cabral foi um importante teórico e prático da libertação africana, responsável pela mais bem- sucedida adaptação do marxismo crítico e criativo à realidade africana; contra o regime de espoliação colonial nas ex-colônias portuguesas, Cabral se ergueu com a crítica das armas e as armas da crítica para conduzir à vitória o Partido Africano da Independência de Guiné-Bissau e Cabo-Verde (PAIGC).

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Page 1: Descolonizar as mentes e os corações: Amílcar Cabral … · 2A principal característica da colonização, afirma Amílcar Cabral , é a negação do processo histórico do povo

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Descolonizar as mentes e os corações: Amílcar Cabral e a ruptura com a razão colonial

DANÚBIA MENDES ABADIA*

O colonialismo buscou desumanizar os povos a quem o imperialismo quer saquear as

riquezas, tornando-os bestas-feras para melhor justificar a violência e o genocídio. Para além

da exploração econômica do domínio territorial, político e social da vida das populações,

marcas mais evidentes do sistema colonizador, a dominação colonial distinguiu-se, sobretudo,

pela negação da condição humana da população colonizada, negação da sua cultura, da sua

filosofia, do seu modo de ser. Por outro lado, nos diz Aimé Césaire, a ação colonial trabalha

para des-civilizar o colonizador em prol da cobiça, da violência e do ódio racial (2010:20).

A mentalidade moderna da Europa representava o continente africano como um

“coração das trevas”, ideia realizada pelo colonizador, na África, apropriada a quem projeta

nos “outros” os seus próprios defeitos, para tentar corrigir, nestes últimos, deficiências

imaginárias. Toda uma mobilização é realizada para construir a representatividade dos

“outros”, assim como o seu nível de humanidade, pois, quanto mais selvagem, mais se

legitimaria sua escravidão. Foi assim que a Europa buscou todos os artifícios possíveis para

impôr a sua conceituação e seu sistema econômico ao mundo. Segundo REIS, “Os países

novos são um vasto campo aberto para as atividades individuais, violentas e assim, as

colônias podem servir de válvula de segurança à sociedade moderna. Esta utilidade, mesmo

que fosse a única, é imensa” (2008:12). E nesse sentido, afirma Césaire, “a ideia do negro

bárbaro é uma invenção europeia”1 (2010:46).

A principal característica da colonização, afirma Amílcar Cabral2, é a negação do

processo histórico do povo dominado, por meio da usurpação violenta da liberdade do

processo de desenvolvimento das forças produtivas. Nesse sentido, os/as camponeses/as

africanos/as foram obrigados/as a produzir matérias-primas destinadas à indústria europeia,

concebida, sobretudo, para climas temperados. Eis o começo da deterioração dos solos pelo

1 Universidade Federal de Goiás, UFG. Doutoranda em História, bolsista da CAPES. 2 Retirar-lhes a possibilidade de desenvolver outra concepção de progresso e desenvolvimento, algo

central na política colonial, é preciso insistir, está relacionado a convencer os povos colonizados de que sua

cultura, tecnologia e modos de viver eram primitivos e selvagens. Importante lembrar também que os povos da

atual Somália já desenvolviam observações científicas no séc IV; a cultura medieval Yorubá apoiava-se, desde

muito, sobre a estrutura conceitual, sobre os “vermes” e os “insetos”, tão pequenos quanto invisíveis. Para mais

informações, ver Coleção História Geral da África, UNESCO, Volume VIII: África desde 1935 (pp. 761-812). 3 Amílcar Cabral foi um importante teórico e prático da libertação africana, responsável pela mais bem-

sucedida adaptação do marxismo crítico e criativo à realidade africana; contra o regime de espoliação colonial

nas ex-colônias portuguesas, Cabral se ergueu com a crítica das armas e as armas da crítica para conduzir à

vitória o Partido Africano da Independência de Guiné-Bissau e Cabo-Verde (PAIGC).

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abandono forçado das técnicas agrícolas tradicionais em favor da monocultura, agricultura

intensiva e uso de fertilizantes (idem, 2010:764). Ao mesmo tempo que o processo colonial

paralisava o desenvolvimento africano, o seu desenrolar nas colônias tornava materialmente

possível o desenvolvimento científico e tecnológico da modernidade ocidental.

Os povos africanos, nas palavras de Aimé Césaire, foram transformados em

“sociedades esvaziadas delas mesmas, de culturas pisoteadas, de instituições minadas, de

terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de

extraordinárias possibilidades suprimidas” (2010:32). E ainda assim, o colonialismo foi

propagado como uma “dádiva da Europa aos selvagens, o “sacrifício da Europa pela

Humanidade”, o dever da Europa para com as pobres populações negras que não possuem

civilização própria” (DAVIDSON, 1974:18). Além de aclamar para si uma superioridade

moral civilizatória, a Europa ocidental precisou convencer o mundo do seu “pioneirismo”

epistemológico, de que “O ocidente inventou a ciência. Que somente o ocidente sabe pensar;

que nos limites do mundo ocidental começa a tenebrosidade do pensamento primitivo”

(CÉSAIRE, 2010:70).

Afirmar os povos europeus como superiores cientificamente significava esconder “a

invenção da aritmética e da geometria pelos egípcios; da astronomia pelos assírios; química

entre os árabes; racionalismo no Islã quando o pensamento ocidental era pré-lógico”

(idem:72). Isso quer dizer que o progresso científico africano foi retardado, em parte, porque

aos africanos, foi‐lhes imposto esquecerem que, outrora, eles próprios haviam sido

criadores científicos. Mesmo aos Egípcios, inventores da civilização, foi‐lhes

ensinado esquecerem o seu papel. Esta amnésia tecnológica coletiva permitiu

suscitar uma impotência científica coletiva. Ela também favoreceu o profundo

estabelecimento de um complexo de inferioridade técnica junto a numerosos

africanos colonizados da nova geração. O complexo de inferioridade e o complexo

de dependência da África representam os dois lados de uma mesma medalha

colonial (MAZRUI; AJAYI, UNESCO, 2010:770).

A retirada dos povos africanos da história ou a sua presença estigmatizada, o

silenciamento, como partes do processo de domínio colonial, pressupõe a retirada da

autonomia dos povos originários que perderam o controle das terras, da produção; tiveram

suas línguas e sua cultura rebaixadas e inferiorizadas. Para Cheik Anta Diop,

a identidade cultural de qualquer povo corresponde idealmente à presença simultânea de três

componentes: o histórico, o lingüístico e o psicológico. No entanto, o fator histórico parece o mais

importante, na medida em que constitui o cimento que une os elementos diversos de um povo, através

do sentimento de continuidade vivido pelo conjunto da coletividade. O essencial para cada

comunidade é reencontrar o fio condutor que a liga o seu passado ancestral, o mais longínquo

possível. Neste sentido, segundo o autor, o estudo da história permite ao negro recaptar a sua

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nacionalidade e tirar dela o benefício moral necessário para reconquistar o seu lugar no

mundo moderno (Citado por MUNANGA, 1986:85).

Era preciso legitimar e escamotear as verdadeiras intenções da presença europeia na

África, dizer que faziam o grande sacrifício de levar os costumes “desenvolvidos” da Europa

para “ensinar” a África a ser civilizada, o que é na verdade uma camuflagem para explorar e

lucrar com as riquezas africanas e transferi-las para as metrópoles colonizadoras4. Soma-se a

este processo o papel da Igreja Católica, reivindicando a superioridade religiosa, como diz

Césaire. A igreja funcionou como propagandeadora da civilização cristã no quadro da

exploração e da opressão racial nas colônias. Como nos diz FANON, “a Igreja nas colônias

não chama o homem para o caminho de Deus, senão para o caminho do Branco, do dono, do

opressor” (1961:37). A Igreja Católica, segundo FIADEIRO, sempre tomou a posição do

estabelecimento contra a evolução, da comodidade contra o risco do progresso (…) “A Igreja

foi favorecida com privilégios e domínios que a fizeram enriquecer e estabelecer-se como das

instituições moral e materialmente mais sólidas na sociedade portuguesa” (1974:38).

Essa instituição gozará do monopólio no que se refere a ação religiosa na educação,

sendo responsável pelo enquadramento religioso nas escolas, na educação das mulheres e na

propagação da família como sustentáculo de ordenamento social. Sua principal função na

colonização era a educação dos nativos5; aliás, o sistema educacional é a arma mais efetiva da

política portuguesa de assimilação, pois, é neste setor em que o Estado impõe, em colaboração

com a Igreja, uma cultura política portuguesa, alheando, com isso, os povos da sua própria

cultura; “assim, falseia a imagem do Jesus histórico, do libertador, tornando-o um Jesus-

colonialista” (FERREIRA, 1974:244). Segundo Cabral,

toda a educação portuguesa deprecia a cultura e a civilização do africano. As

línguas africanas estão proibidas nas escolas. O homem branco é sempre

apresentado como um ser superior e o africano como um ser inferior. Os

conquistadores coloniais são descritos como santos e heróis. As crianças africanas

adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola primária. Aprendem

a temer o homem branco e a ter vergonha de serem africanos. A geografia, a

história e a cultura de África não são mencionadas, ou são adulteradas, e a criança

é obrigada a estudar a geografia e a história portuguesas (2013:72).

4 Para mais informações, ver o texto do jamaicano Walter Rodney, Como a Europa subdesenvolveu a

África. Seara Nova, Lisboa, 1975. 5 Para melhor assegurar a sua dominação, o regime de Salazar teve que encontrar aliados. O acordo sobre

as missões, assinado com a Santa‐Sé em 1939, desdobrar‐se‐ia em uma concordata no ano seguinte: as missões

católicas se tornaram o braço do Estado na educação da população africana. Isto não trouxe nenhum efeito maior

ou mais grave a São Tomé e Príncipe e tampouco ao Cabo ‐Verde mas, criou dificuldades constantes para a

Guiné, onde a população, apegada às tradições e reforçada pela importante presença do islã, resistiu a tentativa

de “catolicização” da colônia. As missões receberam alguns subsídios do Estado mas foram obrigadas a financiar

a tarefa à qual elas se haviam proposto − um mínimo de escolarização − contando com os donativos obtidos

junto aos crentes (UNESCO, 2010:76).

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Como nas colônias dominadas pela França, por exemplo, era ensinado que os

africanos seriam descendentes dos gauleses6. O sistema colonial tentou dissolver a identidade

cultural dos povos colonizados; o papel da escola trabalhou no domínio da mente e do corpo,

em prol de “domesticar todo tipo de sensibilidade considerada como bárbara” (SPIVAK,

2010). Veremos como Portugal se justificou pelo mito de uma nação amiga que levaria à

África a religião cristã e a cidadania portuguesa aos africanos: construiu-se a ideologia da

sociedade multirracial, do paternalismo colonial de reminiscências darwinistas, que assumia

como necessária a presença dos europeus na África, sem os quais os africanos estariam

condenados à estagnação, se não mesmo a barbárie e à extinção. Conforme FERREIRA, “A

discriminação racial está na origem de qualquer expansão do sistema capitalista fora das

fronteiras europeias” (1974:143).

No entanto, Portugal sempre alegou que a sua forma particular de colonialismo seria

isenta de qualquer vestígio de racismo, uma nação 'mais cristocêntrica do que etnocêntrica',

ou como afirma Eduardo Mondlane7, “um povo que se considera mais cristão que europeu”;

um povo que se “mistura aos indígenas”. Para acobertar o regime colonial, para se defender

das críticas internacionais devido sua política colonial, continua Mondlane, “reafirmam a

imagem dos portugueses como não racistas e “cegos à cor”, para argumentar que, como

cidadãos iguais de um Portugal maior, os habitantes das suas colónias não tem qualquer

necessidade de independência” (2011:310). Ao mesmo tempo, Portugal dissipa “a ideia de

que há que não falar em “raça” para se evitar o racismo” (idem:12).

O argumento da comunidade multirracial foi muitas vezes utilizado para encobrir a

segregação racial e perpetuar a dominação. É que, na realidade, de acordo com Cabral, o que

se constatava era uma tendência para a institucionalização de uma espécie de “apartheid à

portuguesa” (SOUSA, 2010:287). Com base na "política de assimilação", ele nos diz que,

Portugal tem vindo a praticar a destruição sistemática dos valores da cultura

Africana nos nossos países. Nós, os africanos das colonias portuguesas,

conhecemos as mentiras, as perversidades e as hipocrisias contidas nessa política

que tem tentado dividir-nos para nos explorar mais e melhor. Sabemos quanto custa

obter um "bilhete de identidade" (prova de assimilação), para fugirmos à desgraça

6 No tempo do Império francês, os gauleses eram apresentados como os ancestrais dos africanos

francófonos; a elite herdeira deste império, sem chegar a tal extremismo, não conferiu prioridade à modificação

dos currículos na educação, educação esta que, na qualidade de instrumento cultural imperialista, exercera em

suas colônias francesas uma ação ainda mais profunda e eficaz, comparativamente ao exercido nas colônias

inglesas ou belgas (UNESCO, 2010:537). 7 MONDLANE, Eduardo. A estrutura social – mitos e fatos. In. SANCHES, Manuela, org. Malhas que

os impérios tecem. Lisboa, Portugal, 2011: 310.

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de sermos "indígenas" e, ao fim e ao cabo, continuarmos humilhados nas nossas

próprias terras, depois de sermos obrigados a negar a nossa condição de africanos"

(MAC–PAIGC, 1956:7).

Para Portugal, sob comando de um governo fascista desde 1926, colonizar os

“domínios ultramarinos” era “da essência orgânica da Nação portuguesa”; Salazar colocou o

Estado Novo indissociável da manutenção das colônias em África. Portugal construía-se sob o

mito de “missão civilizadora” e o instrumento criado para a “salvação das raças negras” foi o

Estatuto do Indígena, onde o “indígena” era uma categoria de nativos que não eram cidadãos

e que, só de nascer, contraía uma dívida com o Estado português, o imposto da palhota, a ser

pago com o trabalho forçado (TOMÁS, 2007:45-47). A prerrogativa da preguiça inata dos

africanos deveria ser combatida através da transformação do trabalho num preceito legal,

princípio filosófico que esteve na base da criação do estatuto, em que as sociedades foram

divididas em civilizados e indígenas. Os primeiros, 1% da população, por possuírem cultura e

ilustração, usufruíam de direitos semelhantes aos portugueses, são os assimilados. Os

restantes não eram considerados cidadãos nem lhes eram reconhecidos quaisquer direitos

(idem:120).

Nesse quadro, será fundamental observar como se desenvolveu a ruptura

epistemológica que possibilitou a concretização das lutas contra o colonialismo, tendo origem

em uma geração que, ao invés de exigir reformas dentro do sistema colonial, passou a exigir a

independência política como um primeiro passo para a libertação do continente africano. Com

tal exigência, nos diz António Tomás, “a “geração de Cabral” rompia com um certo

compromisso entre os representantes das elites africanas e o Estado Novo salazarista;

começam, pois, a resolver a contradição da geração anterior entre serem portugueses e

africanos ao mesmo tempo” (2007:70).

A partir de 1940, muitos jovens africanos vão para Lisboa; a maioria dos estudantes

provenientes da África eram brancos e vinham de famílias que podiam mantê-los no exterior.

Amílcar Cabral, cujos pais não podiam pagar os estudos quanto mais mantê-lo em Portugal,

fora recrutado por organismos ligados ao Estado colonial. Tanto Cabral quanto os demais

estudantes africanos negros em Lisboa, devido aos poucos recursos financeiros, tinham

pouquíssimas condições de se manterem, vivendo nas condições mais degradantes a fim de

garantir os estudos.

A ideologia de superioridade racial tonificava a sociedade portuguesa, vigorando,

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inclusive, entre os operários; como consequência, os estudantes africanos negros que viviam

em Lisboa sentiram vir à tona a opressão racista. Se mostrava na prática toda a inversão do

discurso de miscigenação e harmonia racial; Segundo nos descreve Mário de Andrade,

(...) Na sociedade portuguesa, a presença do negro era marginalizada. Havia um

conjunto de preconceitos raciais vivos. “Nós, de fato, não estávamos integrados a

Portugal”. Bastava andar em qualquer rua de Lisboa para perceber isso. Negro

dava sorte. Era objeto de curiosidade, apesar de se vestir como qualquer português:

terno de casimira – geralmente castanho – gravata e chapéu. “As raparigas

tocavam, davam beliscos, tiravam um gosto, como se dizia na época. Qualquer

costureirinha, sem nenhum preconceito, que passasse em grupo, tinha sempre uma

reação quando via um preto. Notar que o preto existe, observar a diferença”

(1976:86).

Neste contexto, Amílcar Cabral, embora convivesse e se socializasse com os seus

colegas brancos do Instituto, é natural que se sentisse bem melhor junto aos estudantes

africanos; com estes, diz Tomás, “Cabral partilhava a mesma sorte e mais profundamente se

identificava” (2007: 61).

O processo de consciência pela libertação do homem africano, na perspectiva de Julião

Souza, viria no final dos anos 1940, e contou com pelo menos três factores favoráveis: em

primeiro lugar, a forte influência da ideologia negritudinista8 de expressão francesa,

nomeadamente com a chegada da Anthologie de la nouvelle poésie négre el malgache de

Leopóld Senghor, em 1948 e, por via delas, das ideias pan-africanistas9. Em segundo lugar, a

consciencialização e a viragem teria sido forçada pelo contexto mundial, pela intransigência

das posições dos movimentos de esquerda relativamente à questão colonial e pela defesa que

faziam da tese da imaturidade das colônias. O último fator se refere à chegada em Lisboa de

estudantes angolanos (Agostinho Neto e Mário de Andrade) que, sendo politicamente ativos,

8 Ao longo da primeira metade do século XX, africanos do continente e da diáspora encabeçaram

movimentos de resistência à assimilação forçada: abria-se um processo de recusa às referências e aos valores

morais, estéticos e modelos culturais brancos. Em contrapartida, a desmistificação do colonizador como o

modelo a ser imitado e, consequentemente a negação da 'branquitude' como modelo universal, impulsionou a

busca pelos valores e símbolos culturais de origem africana. Nesse contexto, despertou-se uma consciência

racial, e, por conseguinte, a disposição de lutar a favor do resgate da identidade cultural esvaecida do povo negro

(…). O alvo do ataque também era “o mundo capitalista, cristão e burguês”. Os jovens escritores defendiam que

o intelectual devia assumir sua origem racial. Além disso, apregoavam a libertação do estilo, da forma e da

imaginação frente aos modelos literários franceses (VER UNESCO, 2010:11). 9 O Pan-Africanismo, de acordo com a perspectiva dos pesquisadores do VIII Vol. Historia Geral da

África, seria resultado de todo o racismo e a subjugação dos povos negros. A negação da estrutura colonial é,

consequentemente, uma reação ao modo como o racismo manifestou‐se de modo particularmente marcante na

maneira pela qual as populações negras do continente foram tratadas. A humilhação e o rebaixamento de que os

africanos negros foram vítimas, por razões raciais, no curso dos séculos, contribuíram a levá‐los a se

reconhecerem mutuamente como “irmãos africanos” (UNESCO, 2010: 11).

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divulgariam entre os estudantes africanos, as atividades que alguns movimentos civis, como o

ANANGOLA, MNIA e a Liga Angolana, estavam a fazer naquela colônia (2012:527).

Encontrando-se na mesma situação, distante da família, num país frio, tendo de lidar

com o regime policial e com a discriminação racial, os estudantes africanos que se

encontraram em Lisboa foram aos poucos se conhecendo e se envolvendo numa composição

que Mário de Andrade chamou de “A Geração Cabral”. Segundo diz Mário de Andrade, (…)

“Já nessa época, a primeira preocupação que estava latente em nossas conversas – de Amílcar,

Humberto Machado, eu e outros companheiros – era a nossa afirmação como negros” (idem).

A Geração Cabral rompe com o processo de assimilação, e estes estudantes e poetas

africanos, levam adiante as lutas anticoloniais nas suas terras; segundo diz Tomás, “Quando a

Geração de Cabral começa a corresponder-se com as várias organizações africanas sediadas

em Paris, estas superam finalmente as contradições que tinham emperrado o despertar do

nacionalismo na geração que havia precedido: eram africanos e não portugueses”(2012: 68).

Amílcar Cabral, ao longo dos estudos em Lisboa, não se deixou enganar diante às

promessas de identidade oferecidas por Portugal; logo que chegou à capital, passou a conviver

com outros estudantes africanos, numa experiência de troca de conhecimentos, aspirações,

publicações, textos, poemas; próximo ao pan-africanismo e ao movimento negritude, publicou

artigos na revista Présence Africaine10. Cabral, como outros africanos da sua geração, rompia

com os interesses tradicionais dos intelectuais colonizados, trabalhando para a articulação e

organização junto aos seus companheiros do continente. De acordo com Fobajong,

(…) A opção de Cabral, não foi para os valores ou identidade europeus, mas sim, e

numa aspiração instintiva, por uma solidariedade pan-africanista e por uma

identidade africana. Isso foi numa altura em que a identificação com a África, ou a

adoção de uma visão pan-africanista, em Portugal, não era apenas considerada

abominável – era proibida (2012:169).

Portanto, a 'Geração Cabral' vem reconfigurar as relações entre colonizadores e

colonizados, buscando realizar a 'desportugalização' que, para Cabral, era o primeiro passo a

ser tomado, num contexto de exploração colonial em que por muitos séculos os africanos

haviam sido escravizados e “desligados do seu passado africano por um processo de batismo e

10 No ano de 1947, em Paris, foi lançada a revista Présence Africaine, por Alioune Diop, universitário

senegalês, convertido ao catolicismo e durante certo tempo, senador socialista do Senegal. A revista retomava os

princípios do pan‐africanismo e do Primeiro Congresso Pan‐africano. “O periódico procurava sincronizar as

atividades de africanistas e africanos com negros do hemisfério ocidental em uma nova e poderosa configuração

anti-imperialista” (GILROY, 2012:365).

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conversão que era conhecido por “ladinização”. Antes do seu transporte para e de Cabo-

Verde, eram forçados a renunciar aos seus nomes africanos e às suas práticas religiosas”

(FOBAJONG, 2012:168). Estava em pauta a discussão do Negro enquanto desvinculado do

seu povo originário, advindo do berço da humanidade e que foi, por meio do tráfico e de todo

o sistema de violência colonial, tratado como selvagem, ontologicamente inferiorizado.

Em resposta à negação da modernidade racista e de toda a violência da estrutura

colonial, o movimento negritude e o pan-africanismo são uma reação ao modo como o

racismo desmoronou as bases das populações negras do continente. Assim, “A humilhação e

o rebaixamento de que os africanos negros foram vítimas, por razões raciais, no curso dos

séculos, contribuíram a levá‐los a se reconhecerem mutuamente como “irmãos africanos”

(UNESCO, 2010: 11). Esse processo, ou a reafricanização dos espíritos, como diz Cabral, vai

desaguar na luta por libertação nacional. Foi assim que esses estudantes, afastados das suas

terras, sentem-se mais próximos das suas raízes africanas, a necessidade em libertar-se do

jugo colonial; ou de acordo com Munanga, os estudantes “se convenceram de que a opressão

sofrida não era apenas a de uma classe minoritária sobre uma outra majoritária inferiorizada,

mas ao mesmo tempo a de uma raça, independentemente da classe social” (1986:39).

A 'Geração Cabral' conseguiu desenvolver a ruptura epistemológica que possibilitou a

concretização das lutas contra o colonialismo, pois, ao invés de exigir reformas dentro do

sistema colonial, passou a exigir a independência política como um primeiro passo para a

libertação do continente africano. A 'Geração Cabral', fora da África, pôde conspirar a sua

libertação, porque, ao se encontrar e desenvolver as ideias anticoloniais, voltam à África, não

para colonizar, como queria a Europa, mas para “libertar”.

Assim foi com o próprio Amílcar Cabral, que, dois anos após se formar em Lisboa,

recusou uma vaga de professor no Instituto onde se formou e optou por romper com a lógica

da formação de funcionários do sistema colonial; voltou para Guiné-Bissau, sua terra natal,

contratado pelo Ministério do Ultramar como adjunto dos serviços agrícolas, onde ficou

responsável pela realização do primeiro recenseamento agrícola da Guiné-Bissau. Tal

experiência permitiu a Amílcar Cabral conhecer e lidar com a realidade do povo guineense e

fundamentar todo seu pensamento político, onde era da realidade de seu povo que a luta pela

libertação deveria partir. O conhecimento das realidades africanas, nos diz Sónia Vaz,

adquirido pela sua profissão, as influências recebidas das correntes ideológicas

políticas e culturais que marcaram o mundo na segunda metade do século XX –

marxismo-leninismo, o pan-africanismo, negritude, e a sua actividade diplomática

permitiram que Cabral construísse e desenvolvesse um projecto político-cultural,

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adaptado ao contexto africano mais concretamente à Guiné e Cabo Verde

(2010:118).

Mesmo depois de formados, os estudantes da geração Cabral não tinham os mesmos

direitos que os cidadãos portugueses brancos. Nesse sentido, responder aos critérios do

assimilacionismo e do embranquecimento, não garantiu-lhes o reconhecimento esperado. Em

Arma da Teoria, Amílcar queixava-se de que um trabalhador “assimilado” ganhava três ou

quatro vezes menos do que um trabalhador europeu, fazendo o mesmo trabalho e, ainda que

tivesse a mesma qualificação, era considerado de segunda categoria. E isso provava que,

mesmo com o discurso da educação e do domínio das línguas europeias como passo para a

ascensão social, o racismo prevalecia. Julião Sousa nos relata que o próprio Amílcar foi

vítima dessa situação quando, pouco depois de terminar os seus estudos, concorreu para um

lugar na Junta de Colonização Interna e foi excluído; a essa altura, Amílcar buscou de

diversas formas conseguir um emprego na África e regressar para iniciar a luta por

independência na Guiné, “mas não foi fácil a Amílcar Cabral conseguir emprego em África”

(2012:163)11. Amílcar Cabral começou a entender que a ascensão a um novo estatuto social,

por via da educação, em nada iria alterar a sua condição de negro no quadro do regime e da

sociedade coloniais. E assim, os/as negros/as da África e da diáspora que haviam assimilado o

branqueamento, não conseguiam fugir do drama da marginalização. Nas suas próprias

palavras:

Portugal tem vindo a praticar a destruição sistemática dos valores da cultura

Africana nos nossos países. Nós, os africanos das colonias portuguesas,

conhecemos as mentiras, as perversidades e as hipocrisias contidas nessa política

que tem tentado dividir-nos para nos explorar mais e melhor. Sabemos quanto custa

obter um "bilhete de identidade" (prova de assimilação), para fugirmos à desgraça

de sermos "indígenas" e, ao fim e ao cabo, continuarmos humilhados nas nossas

próprias terras, depois de sermos obrigados a negar a nossa condição de africanos"

(MAC;PAIGC, 1956:7)12.

Com a ajuda de um conhecido de seu pai, “um alto funcionário de origem cabo-

verdiana”, que interveio em seu favor, em junho de 1952, após muita insistência, conseguiu

11 Sobre essa situação, mais tarde vai escrever que as únicas profissões reservadas aos negros assimilados

eram de criados (que absorvia a grande maioria), assalariados, porteiros, motoristas, operários de segunda

categoria, embora sem poderem entrar em concorrência com o branco, na maioria das colônias (Citado por

SOUSA, 2012:162). 12 De todo esse processo,Cabral recusou a nacionalidade portuguesa, segundo ele: Houve um tempo na

minha vida em que eu estive convencido que eu era português porque assim é que me ensinaram, eu era menino.

Mas depois aprendi que não, porque o meu povo, a História de África, até a cor da minha pela... Temos de ter

paciência, diabo! Não somos meninos, não é? Aprendi que não era português nada, não era português (Citado

por SOUSA, 2011:75).

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um emprego como engenheiro agrônomo na Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas e

Florestais e, em 21 de setembro de 1952 embarcou em Bissau com a sua família (2012:164).

Com isso, regressa ao seu país natal e aí põe o seu saber tecnológico em agronomia ao serviço

da análise das realidades dos guineenses, onde faz o recenseamento agrícola da Guiné no ano

de 1954, o que permite o contato com muitos povos e comunidades africanas.

No seu trabalho de líder e militante do PAIGC, conheceu diversas realidades culturais

num território, povos diferentes que foram a base da guerrilha e da independência. Por

exemplo, o contato que teve com os grupos balanta, fula, mandinga, entre outros, ao longo

dos anos de combate, o levaram a refletir sobre como a luta gerava uma nova cultura de

resistência, de volta às raízes, de trabalho coletivo e autônomo, de ruptura com padrões

tradicionais, sendo portanto o fator cultural um elemento fundamental para a construção do

processo de libertação13. Assim, a libertação nacional era simultaneamente um fato de cultura

e um fator cultural, sendo a resistência cultural a mais efetiva forma de resistência.

A ação do sistema colonial, para Cabral, tanto no âmbito econômico quanto no

cultural, procura acentuar as divisões entre a classe social assimilada e as massas populares,

bem como entre os diferentes grupos étnicos existentes. Nesse sentido, Cabral chama a

atenção do como e porque o elemento cultural de uma sociedade e sua organização política

devem ser considerados a principal arma de reação aos condicionamentos materiais e culturais

de opressão do sistema colonial. Em resposta aos pressupostos coloniais da “incapacidade

político-cultural dos africanos” para cuidar do seu próprio destino e da crença no “valor nulo

de suas culturas e civilizações”, Amílcar Cabral, nos diz Patricia Villen, contrapõe e propõe a

política e a cultura como seu próprio antídoto. Nesse sentido, a sociedade colonizada deve

reaprender a olhar e enxergar as contradições da própria realidade social e econômica,

entender suas causas e agir para sua transformação (2013:17).

Segundo Cabral, “a cultura revela-se como o fundamento do movimento de libertação,

e só podem mobilizar-se, organizar-se e lutar contra a dominação estrangeira as sociedades e

grupos humanos que preservam a sua cultura” (Citado por VILLEN, 2013:167). Esta era

considerada a expressão da natureza orgânica da sociedade, sendo capaz de influenciar a

13 Cabral considerava que nenhuma cultura está pronta, e acabada, ou que seja superior ou inferior a

outra. Acredita que há elementos bons na cultura opressora, assim como questões a serem resolvidas nas

comunidades tradicionais. Da mesma forma que as estratégias do PAIGC tiveram forte influência das lições de

guerrilhas de outras experiências, como o maoísmo, a Guerra do Vietnã e as teorias marxistas, para o contexto

específico da Guiné, contribuindo na atuação do recrutamento e no convencimento ideológico dos diferentes

povos do território.

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fecundação da história; para Cabral aí está contido os germes da contestação, os fatores de

conflito de determinada sociedade, segundo ele, “como sucede com a flor numa planta, é na

cultura que reside a capacidade (ou a responsabilidade) da elaboração e da fecundação do germe

que garante a continuidade da história, garantindo, simultaneamente, as perspectivas da evolução

e do progresso da sociedade em questão” (Cabral, Citado por VILLEN, 2013:165).

Cabral soube ver a cultura enquanto “emoção do homem perante o cosmos”, como

definiu Aimé Césaire; suas discussões sobre a cultura como ato de libertação levaram-no a

questionar a centralidade da luta de classes como única força motora da história. Como poderia se

falar em luta de classes, ou classe proletária em contextos em que não haviam classes sociais?

Onde a etnicidade tinha muito mais força e as sociedades organizavam-se por outros moldes e

outras bases epistemológicas?

Nesse sentido, José Carlos Gomes dos Anjos, chama a atenção para a forma que

“Cabral vai compondo a realidade a partir da interação das realidades diversas (…) um

exercício epistêmico que leva ao limite, quando se apropria e deforma o conceito de

centralismo democrático para chegar à noção de democracia cooperativa” (2016:246). Para

Cabral era fundamental que nas “zonas libertadas”14 fossem desenvolvidas estratégias que

garantissem a democracia com forte participação popular; defendia um governo com “um

sistema político e econômico ancorado em Assembléias Populares descentralizadas. As

funções do Estado deviam ser estritamente limitadas (…) Cabral chamou isso de democracia

cooperativa” (RUDEBECK, 2012:140).

A experiência na mobilização para a luta nos campos da Guiné-Bissau e em Cabo-

Verde, levaram Cabral a assumir um posicionamento crítico com relação ao marxismo, sem

desconsiderá-lo por completo. Assim, “acabou por acrescentar ao manifesto comunista a defesa

que o nível das forças produtivas é um elemento determinante do conteúdo e da forma da luta de

classes” (LOPES, 2005: 87)15. Significa ainda que os fatores sociológicos são fundamentais para a

14 O movimento de libertação estabeleceu uma estratégia de “zonas de retaguarda”, que realizavam o

reabastecimento de tropas, formação política e militar, ações sociais (…) o que configurou-se num estado

embrionário dentro da colônia. Assim que eles haviam liberado uma zona, eles ali aplicavam a sua política de

libertação: por um lado, eles expulsavam todos os funcionários e comerciantes coloniais, aboliam todos os

impostos e direitos coloniais e punham termo ao trabalho forçado e às plantações obrigatórias; por outro lado,

eles instauraram um novo sistema comercial e criaram escolas e postos de saúde na mata, lá onde antes jamais

houvera, dotando os de pessoal de formação e intervenção em saúde recrutado em meio a homens e mulheres

muito amiúde formados na Europa ou em Cuba. Ainda mais importante, em termos políticos, o PAIGC

implantou uma verdadeira democracia nas zonas libertas. A população foi incitada a eleger comitês

representativos aos quais foram confiadas as responsabilidades administrativas locais (CANALE e BOAHEN,

UNESCO, 2010:221). 15 No caso da Guiné, apesar dos vários estudos realizados e do recenseamento agrícola realizado em

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constituição da identidade, dado que a realidade social, “isto é, a materialidade histórica de

determinada sociedade, é para ele o elemento que confere “forma e conteúdo” à identidade”

(idem:167). Consequentemente, veremos que o discurso da união pela origem e identidade foi

muito mais persistente e eficaz do que o discurso marxista de identificação e consciência de

classe. De acordo com Abebe Zegeye e Maurice Vambe, Cabral entendia o valor da luta de classe,

mas se recusava a desqualificar as lutas relacionadas à etnicidade e o gênero como irrelevantes

para moldar os contornos da cultura nacional, tendo colocado em pauta o debate sobre a crítica ao

patriarcado tradicional africano, onde as questões de gênero marcam algum dos aspectos da luta

que ressignificavam toda a ideia de cultura nacional (UNESCO, 2012: 38). Seguia defendendo a

linha de Fanon, em que a contradição revolucionária principal era a que opunha os povos

dominados aos dominadores, mais do que o proletariado contra a burguesia dos países

colonizadores: “O colono criou o colonizado e é este que está fadado a destruí-lo, libertando-se e

libertando-o” (Fanon, citado por LOPES, 2005: 86).

A guerra do PAIGC foi considerada por vários observadores um dos mais bem

sucedidos movimentos revolucionários do mundo; no entanto, Cabral não viu a independência

realizar-se, pois, nas palavras de Tomás, “foi brutalmente assassinado na noite de 21 de

janeiro de 1973, quando já faltava tão pouco para colher os frutos daquilo que tão dificilmente

e com tanto esforço semeara” (2007: 265).

Paulo Freire publicou um livro com o título Cartas à Guiné-Bissau, em 1977, onde

relata sua vivência nas zonas libertadas, afirmando que (…) o PAIGC “realizara experiências

de alta importância na educação, saúde, justiça, produção e distribuição, com os “armazéns do

povo” (1977:35). O educador brasileiro compartilha um processo de reconstrução pós-

colonial onde a guerra de libertação foi a grande parteira da consciência popular, onde os

processos de luta anticolonial são vistos como o despertar de uma nova mentalidade, num país

que, segundo ele, “fala da luta enquanto o que ela ensinou, exigiu e assim continua num

processo permanente; da luta como fator de cultura” (idem:37). Re-africanizar-se, na visão de

1954, tal não permitira ainda a Amílcar Cabral ter uma ideia objetiva da sociedade social guineense, ao ponto de

saber que não havia “proletariado”, pelo menos no sentido marxista do termo (SOUSA, 2012:321). Portanto, nos

meios urbanos, afirmava Cabral, o colonialismo apenas consentira o aparecimento de uma classe “assalariada”.

Por isso, passou a defender a mobilização no campo, pois, na ausência de um “proletariado” com consciência de

classe, não era possível lutar nas cidades seguindo o exemplo de outros países (idem:322). A tomada de

consciência dessa realidade só veio a acontecer nos anos 60, e tem um marco importante na reunião de quadros

cabo-verdianos, em Dakar, no ano de 1963, mesmo ano em que dá início à guerrilha armada do movimento de

libertação de Guiné-Bissau e Cabo-Verde. O processo africano demonstra que categorias sociais clássicas, como

operariado e burguesia não serviam para a compreensão da realidade africana num contexto onde o proletariado

não podia ser uma classe social porque nem sequer existia em países de economia rural: foi a pequena-burguesia

urbana, formada no Ocidente, quem, dirigiu o combate contra o colonialismo.

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Amílcar Cabral, ou conscientizar-se, segundo Paulo Freire, só se concretiza na prática. As

pessoas assumem um posicionamento crítico diante da realidade, têm condições de, ao longo

da luta desenvolver a teoria necessária tendo em base a realização e os fatores internos de

cada processo.

Para Cabral, era fundamental a formação política ideológica onde a conscientização é

condição da revolução para que as pessoas assumam a reinvenção da sociedade. Por isso, é

urgente uma educação política que conscientize e desfetichize a cultura do colonizador. Tal

processo implica a descolonização das mentes e dos corações. Cabral defende a ideia de que

nenhum povo, mesmo no período pós-colonial, consegue se livrar de seu colonizador

enquanto não se liberta também dos seus referenciais teóricos, de suas premissas, de seus

fundamentos e dos seus paradigmas, enfim, de sua “Razão”. Conseguiu enxergar a

necessidade da libertação cognitiva, da superação da racionalidade imbricada pela

colonização, pois não existe libertação sem a “descolonização das mentes”, como dizia

Amílcar Cabral. Assim, nas palavras de Romão,

a revolução tem de estar presente na própria elaboração da “ontologia” (teoria do

ser), da “gnosiologia” (produção de conhecimento) e da “epistemologia” (teoria

do conhecimento), ou seja, nas elaborações e representações humanas a respeito

dos seres, dos fenômenos e dos processos (2010:15).

Pela própria reinterpretação da teoria marxista feita por Amílcar Cabral, assumindo

com o seu povo o processo de “reafricanização dos espíritos”, foi ele mesmo uma antítese do

processo de assimilação cultural empreendido pelo regime colonial. Na luta travada pelo

PAIGC, sob sua liderança, era fundamental que o povo e os combatentes fossem politizados.

Cabral insistia na importância de todo revolucionário estudar. Dizia ele: “devemos, portanto,

diante das perspectivas favoráveis da nossa luta, estudar cada problema em profundidade e

encontrar para ele a melhor solução. Pensar para agir e agir para pensar melhor” (Cabral,

1974a:15). Era o político motivando o pedagógico.

As reflexões de Cabral sobre a assimilação cultural demonstram que a reafricanização

é o passo pela qual as pessoas dominadas pelo colonialismo possam parar de reproduzir e

ansiar pela assimilação e voltarem-se para a luta pela transformação de sua condição

colonizada. A intencionalidade presente em sua perspectiva perpassava pela educação, o

emponderamento, a mobilização e organização política, a construção popular de uma visão de

mundo base para a revolução.

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